Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
263/18.5GCACB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PENA ACESSÓRIA
NATUREZA
CONTAGEM
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 69.º DO CP; 479.º DO CPP; 296.º E 297.º, AMBOS DO CC.
Sumário: I - A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no art.º 69.º do Código Penal embora pressupondo a condenação do agente numa pena principal (prisão ou multa), é uma verdadeira pena criminal, que limita ou restringe o direito do arguido a conduzir, sendo apreciada, quanto aos seus pressupostos e dosimetria, segundo as regras aplicáveis à pena principal.

II - O cômputo ou liquidação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor deve ser feito de acordo com as regras estabelecidas para a pena de prisão, previstas no art.º 479.º do Código de Processo Penal, aplicável por analogia, e não segundo as normas dos artigos 296.º e 297.º do CC, pelo que o prazo de cumprimento se inicia no dia em que o título de condução for entregue pelo arguido e termina no último dia de cumprimento da pena.

Decisão Texto Integral:




                           


I

1. Por despacho judicial de 22. 9. 2021, proferido nos autos, procedeu-se à liquidação da pena acessória e de sanção acessória de proibição de conduzir veículos em que o arguido foi condenado - pena acessória de 7 meses de proibição de conduzir veículos motorizados e sanção acessória de 7 meses de inibição de conduzir, cumpridas sucessivamente.

2. Não se conformando com o teor do despacho, do mesmo recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

1. No caso concreto, o arguido foi condenado na pena acessória de sete meses de proibição de conduzir veículos a motor e na sanção acessória de 7 (sete) meses de inibição de conduzir, que serão cumpridas sucessivamente, tendo entregue a sua carta de condução nos presentes autos em 09-09-2021.

2. A pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, sendo uma verdadeira pena, não priva o condenado da liberdade de circulação nem sequer do seu direito de conduzir na via pública, uma vez que aquele mantém o seu direito de conduzir na via pública veículos para os quais não careça de habilitação legal, tais como velocípedes e veículos a eles equiparados     cf. artigo 121.º, n.º 6, do Código da Estrada.

3. O recurso à analogia pressupõe a existência de um caso omisso (lacuna) e a procedência das razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei         e nenhum dos referidos pressupostos, previstos no artigo 10.º, n.º 2, do Código Civil, se verifica no caso concreto.

4. Não sendo uma pena privativa da liberdade, não há que equiparar a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor à pena de prisão (privativa da liberdade) e assim, por recurso à analogia, aplicar àquela as normas previstas nos artigos 479.º do CPP (contagem do tempo de prisão) e 24.º do CEPMPL (momento da libertação), como o fez o despacho recorrido.

5. Na perspectiva do Ministério Público, a duração temporal da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor (bem como a duração temporal da sanção acessória de inibição de conduzir) é um prazo tal como expressamente previsto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal , pelo que a determinação do início da sua contagem obedece à regra prevista na alínea b), do artigo 279.º. do Código Civil e a determinação do seu termo à regra prevista na alínea c), do mesmo preceito, por força do disposto no artigo 296.º do Código Civil, não havendo qualquer incompatibilidade com as normas previstas no artigo 182.º, n.º 3, do Código da Estrada, aplicando-se, concomitantemente, aquele regime à sanção acessória de inibição de condução.

6. A norma prevista na alínea e), do artigo 279.º, do Código Civil, não é aplicável ao cômputo da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor (nem à sanção acessória de inibição de conduzir), atenta a subsidiariedade estabelecida no artigo 296.º do Código Civil (na falta de disposição especial em contrário) e o princípio da legalidade na aplicação das penas (artigo 2.º do Código de Processo Penal), do qual decorre que, uma vez transitada em julgado a condenação numa determinada pena, a duração temporal (prazo) da execução da pena fica definitivamente fixada, não podendo sofrer acréscimos ou decréscimos, salvo se expressamente previstos na lei.

7. A aplicabilidade da regra prevista na alínea b), do referido artigo 279.º, não conduz a qualquer prolongamento da duração da pena acessória já fixada, pois ao “avanço” do primeiro dia da contagem do prazo corresponde o igual “avanço” do último dia, resultado garantido pela regra estabelecida na alínea c), do mesmo preceito.

8. A razão de ser da aplicabilidade da regra prevista na alínea b), do aludido artigo 279.º, ao cômputo da pena e da sanção acessórias compreende-se à luz da necessidade de prevenção de injustiças relativas, que ocorreriam se, por exemplo, para o cumprimento de penas de igual duração, dois arguidos entregassem os respectivos títulos de condução no mesmo dia mas em horas diferentes (um às 09h00 de manhã no tribunal, outro às 23h00 da noite no posto policial da sua área de residência), circunstância que prejudicaria o arguido mais diligente no cumprimento e beneficiaria o arguido mais atrasado no cumprimento (no primeiro dia da pena/sanção, um arguido ficaria privado do título durante quinze horas e outro apenas uma hora).

9. Tendo o arguido sido condenado na pena acessória de 7 (sete) meses de proibição de conduzir veículos a motor e na sanção acessória de 7 (sete) meses de inibição de conduzir, a cumprir sucessivamente, temos que o evento a partir do qual o prazo começa a correr é, in casu, a entrega da carta de condução nos presentes autos, evento esse que ocorreu em 09-09-2021.

10. De acordo com a norma estabelecida na citada alínea b) do artigo 279.º do Código Civil, não se inclui esse dia na contagem do prazo da pena acessória, pelo que, o primeiro dia de execução da pena acessória corresponde ao dia 10-09-2021.

11. Segundo a regra prevista na alínea c) do artigo 279.º do Código Civil, o prazo fixado em meses termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro do último mês, a essa data.

12. Portanto, o último dia do prazo da pena acessória corresponde ao dia 10-04-2022, Domingo, durando todo este último dia, ou seja, das 00h01m às 24h00m, não fazendo sentido considerar que a pena se extingue nesse último dia.

13. Uma vez que o arguido irá cumprir sucessivamente a sanção acessória de 7 (sete) meses de inibição de conduzir, tem-se como primeiro dia do respectivo cumprimento o dia 11-04-2022, terminando o seu cômputo a 11-11-2022, durando todo este último dia, ou seja, das 00h01m às 24h00m, não fazendo, outrossim, sentido considerar que a sanção acessória se extingue nesse último dia.

14. Com efeito, tal juízo correspondia a uma contradição lógica, segundo a qual a pena/sanção acessória vigoraria e estaria em execução e, simultaneamente, não vigoraria nem estaria em execução nesse último dia.

15. A interpretação adoptada pelo Tribunal a quo no sentido do recurso à analogia por favorecer inequivocamente o condenado, aplicada às demais penas não privativas da liberdade, conduz a resultados incertos e deve ser rejeitada; por exemplo, no caso da pena de suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50.º do Código Penal), se o condenado cometesse novo crime precisamente nesse último dia, faria sentido aplicar a norma prevista no n.º 1 do artigo 24.º do CEPMPL por analogia por favorecer inequivocamente o condenado?...a resposta só pode ser negativa.

16. A data da extinção da pena constitui um facto sujeito a inscrição no registo criminal, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, alínea l), do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25-08, cuja determinação exacta assume manifesta importância, desde logo, no caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, para efeitos de determinação de eventual cometimento do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal e da (i)legalidade de uma eventual detenção em flagrante delito pela prática de tal crime; e no caso da pena de suspensão da execução da pena de prisão, para efeitos de determinação da aplicabilidade das normas previstas nos artigos 56.º, n.º 1 e 57.º, n.º 2, do Código Penal.

17. Recorrendo à analogia sem existência de um caso omisso (lacuna) e sem procedência das razões justificativas da regulamentação da pena de prisão à pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor e à sanção acessória de proibição de conduzir, o despacho recorrido violou a norma prevista no artigo 10.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que padece de ilegalidade.

18. Decidindo que o cômputo da pena acessória e da sanção de inibição de conduzir terminará no dia 09-11-2022, o despacho recorrido procedeu ao cômputo do respectivo termo infringindo a regras previstas nas alíneas b) e c) do artigo 279.º do Código Civil, aplicável por remissão do artigo 296.º do mesmo diploma, pelo que padece de ilegalidade.

19. A possibilidade de o condenado proceder ao levantamento da sua carta de condução no último dia da pena/sanção acessória, conferida pelo despacho recorrido, não tem fundamento legal, pelo que aquele padece de ilegalidade.

20. Consequentemente, pugna-se pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que declare que o prazo de 7 (sete) meses de proibição de conduzir veículos com motor e o de 7 (sete) meses de sanção acessória de inibição de conduzir, cumpridos sucessivamente, vigorarão até às 24h00 do dia 11-11-2022, determinando que o arguido apenas poderá proceder ao levantamento da carta de condução a partir das 00h01 do dia 12-11-2022.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso.

3. O arguido, ora recorrido, nada veio dizer.

            4. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

            Pese embora o esforço argumentativo do Magistrado do Ministério Público na primeira instância, sufragado, aliás, por minoritário Acórdão desta Relação de Coimbra de 10-03-2021, Relator: José Eduardo Martins, com o Sumário: «O cômputo do prazo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor obedece às normas previstas nos artigos 296.º e 279.º do Código Civil, e não, por analogia, aos ditames do artigo 479.º do Código de Processo Pena», in www.dgsi.pt, não podemos acompanhar a sua pretensão.

            Na verdade, parece-nos que é a partir do momento da entrega da carta de condução que deve ser contado o período de proibição de conduzir e não do dia seguinte, como defende o MP recorrente.

            Assim, no topo da pirâmide legislativa encontra-se a Constituição da República que define os princípios básicos do Estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

            Ora, o tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são a base para a possibilidade de um processo equitativo que admite derivações, entre as quais, o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” (numa expressão de Gomes Canotilho) e com os princípios da segurança jurídica e da confiança, tal como fluem do artigo 2.º da CRP e tal como vêm sendo aplicados pela jurisprudência constitucional.

            Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória (não esqueçamos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor embora não sendo, obviamente, uma pena privativa da liberdade inibe o exercício de um direito) está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) do processo equitativo o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro dos valores da lealdade e da confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo no seu todo.

            Pelo que consideramos que o princípio da proteção da confiança em que deve assentar a relação de todos os cidadãos com o Estado e com as instituições que o integram, conjugado com os princípios da proporcionalidade e da igualdade, aplicáveis ao processo penal por força do artigo 4º do CPP, impõem que não seja defraudada a legitima expectativa do arguido no sentido de que é a partir do dia que entrega a carta de condução que se inicia o cumprimento da proibição de conduzir e não do dia seguinte.

Nestes termos, à semelhança do que já aconteceu em situação similar, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.

            5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

            Questão a apreciar:

            A liquidação das medidas de inibição de conduzir (pena e sanção acessórias) aplicadas ao arguido, quer quanto ao início quer quanto ao términus do respetivo cumprimento.

                                               III

É o seguinte o teor do despacho recorrido no que para o efeito releva:

            “Nos presentes autos foi o arguido condenado na pena acessória de 7 meses de proibição de conduzir veículos motorizados e na sanção acessória de 7 meses de inibição de conduzir, que serão cumpridas sucessivamente.

            Procedeu à entrega da sua carta de condução em 09.09.2021.

            Nos termos do artigo 500º, n.º 4º do CPP “a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição” e “decorrido esse período a licença é devolvida ao titular”. De acordo com o n.º 2, “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo” e com o n.º 3, “se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

            Na falta de disposição legal que expressamente preveja o computo da pena acessória de proibição e conduzir veículos motorizados, afigura-se-nos possível recorrer analogicamente às regras processuais para o computo da pena de prisão. Efetivamente, não obstante a pena acessória de proibição de conduzir não consubstancie uma     pena privativa            da liberdade, ela consubstancia, indubitavelmente, uma pena.

            É que o artigo 4º do Código de Processo Penal (Integração de lacunas) preceitua expressamente que “nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal”.

            Estabelece o artigo 479.º do CPP

            1 - Na contagem do tempo de prisão, os anos, meses e dias são computados segundo os critérios seguintes:

            a) A prisão fixada em anos termina no dia correspondente, dentro do último ano, ao do início da contagem e, se não existir dia correspondente, no último dia do mês;

            b) A prisão fixada em meses é contada considerando-se cada mês um período que termina no dia correspondente do mês seguinte ou, não o havendo, no último dia do mês;

            c) A prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas, sem prejuízo do que no artigo 481.º se dispõe quanto ao momento da libertação.

            2 - Quando a prisão não for cumprida continuamente, ao dia encontrado segundo os critérios do número anterior acresce o tempo correspondente às interrupções.

            Já o artigo 24.º do Código de Execução de Penas, quanto ao cumprimento da pena de prisão que “1 - A libertação tem lugar durante a manhã do último dia do cumprimento da pena.       2 - Se o último dia do cumprimento da pena for sábado, domingo ou feriado, a libertação pode ter lugar no dia útil imediatamente anterior se a duração da pena justificar e a tal se não opuserem razões de assistência. (…)”.

            Entendemos assim ser de aplicar analogicamente as regras do computo da pena de prisão ao computo da pena acessória (uma vez que a proibição da analogia é apenas in malam partem).

            E daí resulta que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução, em consonância com o preceituado no artigo 182º, nº 3, alínea a), do Código da Estrada, relativo ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, que estabelece que “sendo aplicada sanção acessória, o seu cumprimento deve ser iniciado no prazo previsto no n.º 1, do seguinte modo: a) Tratando-se de inibição de conduzir efetiva, pela entrega do título de condução à entidade competente”.

            Efectivamente tem sido este o entendimento adoptado pelos nossos Tribunais superiores.

            Neste sentido veja-se, a titulo exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.02.2021, proferido no processo n.º 778/07.0PAOLH-A.E1, salientou que “O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução no Tribunal a quo, à ordem do processo”, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05.12.2007, proferido no processo n.º178/06.OGTCBR onde se escreve “O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução (sublinhado nosso).

            Também o acórdão do Tribunal da relação do Porto, de 02.02.2011, proferido no processo n.º 136/10.0GCOVR.P1 no qual se escreve “Se é certo que a pena acessória de proibição de conduzir produz efeitos a partir do trânsito em julgado da condenação, também o é que a sua execução não se inicia sem que o título de condução esteja junto ao processo.” E ainda que “Duas diferentes situações de facto, comummente, há, desde logo, a considerar: 1. a licença de condução não se encontra apreendida no processo; 2. a licença de condução se encontra apreendida no processo. Na hipótese, o cumprimento da pena acessória começa a partir do momento em que tal documento, porque foi entregue voluntariamente pelo condenado no prazo de 10 dias a contar do trânsito no tribunal ou em qualquer posto policial, quer porque foi apreendido por ordem do tribunal face à não entrega voluntária, deixa de estar na posse do condenado e passa a ficar à ordem do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição, após o que será devolvido àquele.” (sublinhado nosso).

            Ora, perguntamos nós, se o cumprimento da pena acessória, a sua execução, se inicia com a entrega da carta de condução, precisamente no momento em que o título é entregue, que sentido faz que o seu computo se inicie apenas no dia seguinte à entrega do título? Não nos parece, sem quebra de vénia por distinta opinião, razoável tal entendimento, que ademais se mostra prejudicial ao condenado.

            Tal entendimento – de que o cumprimento da pena acessória e consequentemente o seu computo se inicia com a entrega/remessa do titulo de condução e não no dia subsequente - foi adoptado  no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de proferido no processo n.º 230/18.9PTCBR.C1, no qual tendo a carta de condução sido remetida aos autos em causa em 13.05.2020, o Tribunal da Relação liquidou tal pena entendendo que o seu terminus ocorreria em 13.02.2021 e ainda no acórdão de 04.12.2019, dessa mesma Relação, proferido no processo n.º 37/17.0PTLRA-A.C1 que confirmou o entendimento do recorrente no sentido de que “3.O arguido entregou a sua carta de condução, em 19.09.2018, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado. 4. O início de contagem do cumprimento sanção acessória de inibição ocorreu em 19.09.2018, 5. A referida sanção acessória de inibição de conduzir tem-se por cumprida em 19.12.2018.”

            Expressamente sobre a questão em causa e incidindo sobre decisão proferida por este mesmo juízo local criminal, pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.06.2021, proferido no processo n.º 54/18.3GCACB-A.C1, com o seguinte sumário: I - Não constituindo um efeito de qualquer pena, a proibição de conduzir veículos motorizados a que se refere o art.º 69.º, do Código Penal é uma verdadeira pena acessória. II Em cuja contagem não são de aplicar as normas previstas nos artigos 296.º e 297.º do Código Civil, mas sim, por analogia, as normas relativas à contagem da pena de prisão. III - O cumprimento desta pena acessória de inibição de conduzir inicia-se com a entrega voluntária da licença de condução ou, caso não se verifique tal entrega, com a sua apreensão. IV– Por isso, in casu, fixada a sua duração pelo período de seis meses, uma vez que o arguido entregou a carta de condução no dia 25.09.2020, foi nesse dia que se iniciou a execução da referida pena acessória. E, V - Por outro lado, no dia 25.03.2021 que terminava o seu cumprimento, nada impedindo, ademais, que durante este dia a licença de condução fosse restituída ao arguido.

            Assim, entendemos que o cumprimento da pena acessória se iniciou no dia 09.09.2021, aquando da entrega do título de condução.

            Por fim, afigura-se-nos que tal como expressamente previsto no artigo 24.º, n.º 1 do Código de Execução de Penas, o arguido deve ter a possibilidade de proceder ao levantamento da sua carta de condução no último dia.

            Donde se conclui que, na situação que vimos analisando, a analogia será admissível, por favorecer inequivocamente o condenado.

            Assim, procedo à liquidação da pena acessória de proibição de conduzir veículos nos seguintes termos:

            Pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (pena de 7 meses) e sanção acessória de inibição de conduzir (7 meses):

            Data do início: 09.09.2021- data da entrega do título.

            Data do términus: 09.11.2022 (sem prejuízo de alteração da data caso se apure que o arguido é titular de outro documento válido que lhe permita conduzir veículos com motor/verificação do previsto no art. 69.º, n.º6, do CP – outras privações de liberdade)”.


IV

Apreciando:

1. A questão suscitada pelo recorrente traduz-se em apurar qual o exato início e termo final do cumprimento da pena acessória de 7 (sete) meses de proibição de conduzir veículos com motor e da sanção acessória de 7 (sete) meses de inibição de conduzir igualmente veículos com motor, nomeadamente se deve ser tido em conta o dia da entrega efetiva da carta de condução e se pode ser levantada no último dia, como decidiu o despacho recorrido ou se, pelo contrário, como defende o recorrente, a contagem apenas se inicia no dia seguinte ao da entrega do título de condução e este apenas pode ser entregue ou levantado no dia seguinte ao último dia do prazo de cumprimento da pena e/ou sanção de inibição.

Equacionada a questão sob uma outra perspetiva, cumpre averiguar se ao caso será de aplicar a contagem do prazo nos termos do artigo 279.º do Código Civil, como defende o recorrente ou se, pelo contrário, deve ser aplicado o disposto no artigo 479.º do Código de Processo Penal (por analogia) e outras disposições processuais penas, como decidido pelo tribunal a quo.

A posição do recorrente encontra correspondência no decidido pelos dois arestos que refere, de 10-03-2021 e de 07-07-2021, respetivamente nos processos n.º 96/20.9PAACB-A.C1 e n.º 178/14.6GLTRA-B.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, (mesmo relator), em cujo sumário se pode ler: “O cômputo do prazo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor obedece às normas previstas nos artigos 296.º e 279.º do Código Civil, e não, por analogia, aos ditames do artigo 479.º do Código de Processo Penal”.

 Por sua vez, a decisão recorrida encontra suporte na vasta jurisprudência aí referenciada (que nos dispensamos de repetir), à qual acrescem ainda os recentes acórdãos desta mesma Relação de Coimbra:

- de 10-11-2021, proc. nº 187/20.6GCACB-A.C1:

“O cômputo do prazo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor deve ser feito de acordo com as regras estabelecidas para a pena de prisão, previstas no art. 479.º do Código de Processo Penal”.

- de 10-11-2021, proc. nº   214/20.7GAACB-A.C1:

II – O cumprimento desta pena acessória inicia-se com a apreensão do título que permite o exercício da condução ou com a sua voluntária entrega.

III – Na ausência de disposição expressa relativa à contagem desta pena acessória são analogicamente aplicáveis, por força do disposto no art. 4º do CPP, as regras de contagem da pena de prisão, considerando-se como dia do início da execução a data da apreensão ou entrega do título que habilita ao exercício da condução, que poderá ser levantado no dia em que termina o cumprimento da pena

- e de 19-01-2022, proc. nº 111/19.9GBACB.C1:

“À contagem da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados prevista no artigo 69.º do CP não são de aplicar as normas dos artigos 296.º e 297.º do CC, mas sim, por analogia, as regras contidas no artigo 479.º do CPP, que regulam o cômputo da pena de prisão”.

2. Um primeiro aspeto que importa definir é a natureza jurídica efetiva das inibições de conduzir em que que o arguido foi condenado.

No concreto caso, temos duas diferentes inibições, uma decorrente da prática de contraordenações ao Código da Estrada[1] e outra aplicada ao abrigo do artigo 69º, do Código Penal, a título de pena acessória, que tem como causa ou fonte a prática de um crime e respetiva pena principal (elementos decorrentes da sentença de condenação em 1ª instância, confirmada por ac. desta Relação de Coimbra).

No que respeita à sanção acessória, entende-se que seria de aplicar diretamente o disposto no artigo 182º, nº 3, alínea a), do Código da Estrada, relativo ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, o qual estabelece que “3. Sendo aplicada sanção acessória, o seu cumprimento deve ser iniciado no prazo previsto no n.º 1, do seguinte modo: a) Tratando-se de inibição de conduzir efetiva, pela entrega do título de condução à entidade competente”.

Tendo sido usado como argumento pela decisão recorrida (v. teor desta), bem como por outra jurisprudência, de que se deve aplicar ao cômputo da pena acessória de inibição de conduzir aplicada ao abrigo do artigo 69º, do Código Penal o mesmo regime aplicado para a sanção acessória regulado por aquele preceito (182º, CE) no sentido de que a inibição se deve iniciar no próprio dia da entrega do título de condução, significa que, quanto a esta sanção, não seria de colocar a questão da aplicação analógica do artigo 479º, do Código de Processo Penal mas sim e apenas a mera interpretação daquele preceito 182º, nº 3, alínea a), do Código da Estrada.

E, parece-nos, como se vem entendendo de um modo praticamente unânime que, quanto ao  cumprimento da sanção de inibição de conduzir ao abrigo deste preceito do código da Estrada, o cumprimento da inibição considera-se iniciado no dia efetivo da entrega do título de condução.

3.  No que respeita à pena de inibição aplicada nos termos do artigo 69º, do Código Penal, cumpre averiguar da sua efetiva natureza jurídica.

Sobre esta matéria acompanha-se o decidido no ac. desta Relação de Coimbra de 09.06.2021, proferido no processo n.º 54/18.3GCACB-A.C1, que sobre a mesma, afirma:

“Não sendo um efeito de qualquer pena, a proibição de conduzir veículos motorizados é uma verdadeira pena acessória.

É certo que as penas acessórias pressupõem a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), mas são verdadeiras penas criminais, também elas ligadas à culpa do agente e justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1ª edição, 2013, pág. 34, citada no Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsipt).

Como se refere no referido aresto, “porque se trata de uma pena, a determinação da medida concreta da sanção inibitória, há-de efectuar-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, não olvidando que a sua finalidade (diferentemente da pena principal que tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) reside na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165)”.

Neste sentido v. também ac. supra citado, de 10-11-2021, proc. nº   214/20.7GAACB-A.C1:

“I – A proibição de conduzir veículos com motor prevista no art. 69º do Código Penal, apesar de dependente da aplicação de uma pena principal, relativamente à qual assume carácter assessório, constitui uma verdadeira pena”.

Esta pena acessória, como verdadeira pena que é, não sendo uma pena de prisão ou de multa, não deixa de ser uma pena que limita ou restringe os direitos do arguido, o seu direito de conduzir. E esta pena é apreciada, quanto aos seus pressupostos e dosimetria, segundo as regras aplicáveis à pena principal, logo, segundo as regras do Código Penal. Como se decide no  acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de maio de 2021, proferido no processo 163/20.9GCACB-A.C1, (ainda não publicado), “(…) as penas acessórias, pressupondo embora a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), são verdadeiras penas criminais, também elas ligadas à culpa do agente e justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1ª edição, 2013, pág. 34, citada no Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsipt)”.

4. Sobre a execução das penas acessórias, dispõe o artigo 500.º do Código de Processo Penal:

2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3 - Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

4 - A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

Embora a lei processual penal não se refira expressamente à contagem do tempo desta pena acessória[2], nomeadamente quanto ao início do cumprimento, faz todo o sentido que se aplique, quanto a este, as regras previstas para o cumprimento da pena principal, ou seja, as regras do artigo 479º, do Código de Processo Penal. Até porque, não se está perante a mera contagem de um prazo qualquer para a prática de um ato (que justificaria a eventual aplicação do disposto no artigo 279º do CC), mas sim perante um caso de liquidação ou contagem de uma pena.

Pelo que, na contagem desta pena, devem ser levados em conta regras e princípios de segurança e confiança jurídicas bem como de legalidade, que tenham em conta uma justiça material e não tanto meras formalidades como aquelas por que se orienta o teor da alegação de recurso.

Sobre este aspeto merece atenção o teor do parecer do Ministério Público junto deste tribunal da relação que para o efeito se reproduz:

            “Assim, no topo da pirâmide legislativa encontra-se a Constituição da República que define os princípios básicos do Estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

            Ora, o tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são a base para a possibilidade de um processo equitativo que admite derivações, entre as quais, o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” (numa expressão de Gomes Canotilho) e com os princípios da segurança jurídica e da confiança, tal como fluem do artigo 2.º da CRP e tal como vêm sendo aplicados pela jurisprudência constitucional.

            Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória (não esqueçamos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor embora não sendo, obviamente, uma pena privativa da liberdade inibe o exercício de um direito) está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) do processo equitativo o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro dos valores da lealdade e da confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo no seu todo”.

            Por sua vez, aplicando, ao presente caso, o pretendido regime da contagem dos prazos constante do CC, conduziria a que, por força da aplicação do disposto na alínea e) do referido artº 279º, resultaria uma clara e evidente violação dos princípios da legalidade em matéria penal, pois que da mesma resultaria um alargamento do prazo de cumprimento de uma pena para além do limite fixado na sentença.   

           

            5. Tratando-se de uma situação omissa (embora existam alguns elementos na própria legislação citada que indicam uma interpretação o mesmo sentido), pelos considerandos já expostos e ainda segundo o bom senso jurídico, a analogia seguida pela decisão recorrida por aplicação do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal e, consequentemente, do regime do artigo 479º, do mesmo diploma, afigura-se a melhor solução legal.

            O que significa que o cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor se inicia no dia em que a mesma foi entregue pelo arguido e termina no último dia em que se completa o respetivo prazo[3].

E, como supra se aflorou, uma das inibições de conduzir (pois trata-se de duas inibições, cada uma de 7 meses, a cumprir sucessivamente) emerge da violação de regras estradais, logo, deve ser cumprida segundo o disposto no citado artigo 182º do Código da Estrada.

Pelo que poderia questionar-se qual delas se iniciaria em primeiro lugar, pois iniciando-se o cumprimento pela inibição decorrente da sanção da prática das contraordenações, não se colocaria, em nosso entender (embora o recorrente também questione o início e fim do cumprimento mesmo na aplicação deste preceito 182º), qualquer dúvida sobre tal início, sendo este o correspondente ao dia da entrega do título de condução!!

Mas esta questão não deve equacionar-se nem merecer outros desenvolvimentos, na medida em que se entende que ambas as medidas de inibição devem iniciar-se, no seu cumprimento, no dia da entrega do título e terminar no último dia desse prazo.

Ora, a decisão recorrida procedeu à liquidação da pena e sanção, tendo por base todos os pressupostos acabados de analisar, sabendo-se ainda que o arguido procedeu à entrega da sua carta de condução em 09.09.2021:

            Pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (pena de 7 meses) e sanção acessória de inibição de conduzir (7 meses):

            Data do início: 09.09.2021- data da entrega do título.

            Data do términus: 09.11.2022 (sem prejuízo de alteração da data caso se apure que o arguido é titular de outro documento válido que lhe permita conduzir veículos com motor/verificação do previsto no art. 69.º, n.º6, do CP – outras privações de liberdade)”.

Pelo que o decidido não merece censura, antes se devendo confirmar e manter.


IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, mantêm-se o teor da decisão recorrida.  

Sem tributação.


*

Coimbra, 16.2.2022.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)


[1] A sanção de 7 meses é a sanção única resultante do cúmulo.
[2] Entendendo-se, no entanto, no ac. desta Relação de 19-01-2022, supracitado, proc. nº 111/19.9GBACB.C1, que “resulta de forma literal da norma do artº 500º do CPP, que o cumprimento da pena acessória se inicia com a entrega voluntária do título (nº 2) ou, não ocorrendo esta, com a sua apreensão (nº 3)”.
[3] Decidiu-se ainda no ac. de 21/01/2015, do T. R. Coimbra (processo nº 42/13.6GCFND.C1, in www.dgsi.pt:
I - Se o título de condução já está apreendido, o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados começa a partir do momento em que a sentença que a impôs transita em julgado.
II - Nos demais casos - entrega voluntária, e posterior, do título pelo arguido, ou sua apreensão por ordem do tribunal -, o dito cumprimento tem o seu início nas datas de verificação dos dois referidos actos.


            Por outro lado, tal pena que terminará, nos termos do artigo 479.º, n.º 1, al. b) e c) do CPP, no dia 09.04.2022.