Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA VÍCIOS FACTUAIS PROVA PROIBIDA | ||
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Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2 -TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 126º, 167º, 410º, 412º TODOS DO CPP; ARTIGO 32º, Nº 8, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; 153.º, N.º 1, 155.º, N.º 1, ALÍNEA A), 199º, DO CÓDIGO PENAL | ||
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Sumário: | 1 - As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular constituem métodos proibidos de prova, nos termos do nº 3, do artigo 126º, do CPP.
2 - As gravações de conversas entre particulares são válidas como meio de prova, como meio de proteger um conjunto de direitos fundamentais, como é o caso quando a gravação, efectuada pela vítima, contém, em si, um meio para perpetrar um crime, sendo válida a prova recolhida, mesmo que sem consentimento do arguido. 3 - As gravações em causa nos presentes autos documentam comunicações telefónicas entre a arguida e o assistente, nas quais se materializou a conduta ilícita da primeira, subsumível ao crime de ameaça pelo qual veio a ser condenada. 4 - Quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. 5 - O juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA
2. Desta sentença recorreu a arguida, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): 3. Respondeu o Ministério Público e o assistente BB a este recurso, tendo ambos defendido a sua improcedência.
4. O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no seguinte sentido: «Subscrevendo a interpretação que sustentámos, de que resulta que a arguida não foi regularmente notificada da sentença, dois caminhos podem ser seguidos: - Notificar a arguida para que esclareça se ainda assim aceita o prosseguimento do recurso, por não ter interesse em requerer novo julgamento, aproveitando-se os atos praticados; - Declarar a nulidade da notificação da sentença realizada pela GNR na pessoa da arguida, por não respeitar o regime legal imposto por lei europeia – artigos 8.º, n.º 2 e 9.º da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, devendo a arguida ser pessoalmente notificada nos moldes em que o foi, mas também de que pode requerer a realização de novo julgamento, no mesmo prazo, extinguindo-se esta instância de recurso por inutilidade superveniente (art.º 277.º, al.ª e), do CPP)».
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso. Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação. Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso pela arguida, são estas as únicas questões a decidir por este Tribunal: 1º- Estão perfectibilizados os vícios da matéria de facto do artigo 410º, nº 2, alínea a) e c) do CPP? (assumindo aqui realce a questão da prova proibida consubstanciada no uso de transcrições de telefonemas feitos) 2º- Foi violado o princípio do «in dubio por reo»?
2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA (em transcrição): “Então, quando é que tu arranjas quando é que tu arranjas aquilo que a gente combinou?” “Ai então se não sabes o problema é teu.” “Então eu também não sei o que fazer. Pede um crédito, faz aquilo que quiseres. A minha filha tem que ser indemnizada.” “Não estejas sempre não me estejas a telefonar para dizer Tá tudo bem? feito cona da mãe.” “Não fizeste o quê? Não fizeste o quê?” “Agora não fizeste nada de mal, mas tu sabes que tens de pagar.”(…) “Eu não quero saber do dinheiro. Vai (impercetível) onde tu quiseres se não vais levar no cu.”. “Não tenho não tenho nada a ver com isso. Vai para o caralho” “Queres que ela mate alguém?” “(imperceptivel) à puta da tua mãe.” “Então está bem. Eu amanhã tou aí em Marselha. Parece que queres ver como eu te vou partir a boca toda filha da puta.” “Tu és porco.” “Não saias aí de casa que eu amanhã tou aí em Marselha e vou-te partir a boca toda.” “Eu vou-te partir a boca e vou-te partir os ossos. Eu vou-te meter um um um um (impercetível) nos ossos das pernas e vou-te matar oh BB. A sério. O que tu fizeste à minha filha e agora tens o descaramento de dizer isso?” Então fizeste o quê filha da puta? Fizeste o quê filha da puta?” “Seu porco.” “És um porco” “Eu vou-te bater ainda BB, eu vou-te bater ainda. Tu vais levar ainda.” “Queres levar outra vez?” “Queres levar mais?” “BB, tu queres levar mais?” “Eu já te bati sim. Queres levar mais?” “Agora vou lá sem o EE. Olha, o EE cobriu-te. Agora vou sem o EE.” “Eu vou-te dar tantas nesse focinho.” “Vai para o caralho . Eu não quero eu não quero saber disso para nada. Desenmerda-te .” “Tu és mesmo porco.” “Eu não eu não te tou a ameçar” “Quero-te bater mais e vou-te bater mais, e vou-te bater mais e vou-te bater mais.” “Queres que eu vá para Marselha? Queres que eu te corte o pescoço?” “Eu tou-te a avisar, eu tou-te a avisar. Não é uma ameaça, é um aviso.” “Eu vou outra vez a Marselha. Eu vou-te caçar. Um dia, que tu não tiveres à espera, como foi desta vez, e tu vais-te arrepender BB.” “Ai pá, eu vou-te partir a boca com tanto estalo.” “Vais levar mais.” “Tu vais levar mais.” “Eu tou-te a dizer que eu vou-te virar a cabeça para onde tu tens o cu.” “BB, tu põe-te a pau. Olha que eu tou-te com muita pouca paciência para ti.” (…) “Ah, e ainda havia de foder com um gajo à tua frente.” “Não fui eu. Otário , atrasado mental.” “És atrasado mental.” “Porque tu tens que ter uma deficiência.” “A tua mãe? A tua mãe vai levar nos cornos que até se fode. O que é que aquela puta quer?” “Tás com medo?” “Se tás com medo é porque tens o cu apertado. Olha, eu não vivo com medo.” “Há quatro anos que dormes no chão e os cães dormem no chão.” “Os cães dormem no chão.” “Como tu és cão dormes no chão.” “Vou-te fazer sofrer como tu fizeste à minha filha.” “Vais ver.” “Já viste que tu és parvo pá?” “Vou-te destruir a vida e vou-te destruir como pessoa. Podes ter a puta da certeza BB.” “Até me está a secar a boca. Tu vais apanhar tantas nesse focinho BB. Tantas, tantas, tantas, tantas. Que é para baixares o pito quando eu estiver a falar contigo, percebeste?” “Baixa o pito” “Eu vou fazer aquilo que eu quiser e bem me apetecer.” “Sua besta.” “Nem à tropa foste, mas tás bem treinado de língua caralho.” “Vou-te bater ainda.” “Vou-te bater mais.” “Olha que eu sou bem mulher para te matar.” “Tu sabes que eu sou mulher para te matar BB.” “Eu vou-te queimar todo com óleo.” “Pois já te bati, sim.” “E? E espetava-te a faca.” “Só tens é que trabalhar.” “Pois meti. Meti-o na prisão e agora vou-te lá meter a ti.” “O meu ex-marido foi para a prisão, mas também fui eu que o de lá tirei.” “És um mentiroso” “És um grande aldabrão.” “Vais levar (impercetível) e vou-te cortar sim senhor. E vou-te desfigurar.” “Oh BB, vai à merda. BB, cala-te BB. Cala-te BB. Cala-te que eles até lá têm a pen registada com tudo aquilo que tu disseste à miúda BB.” “És mesmo porco.” “És um porco.” “És um porco. Ah, porque violação é só penetração, para ti. Não.” “Tens 18 euros.” “Com a renda da casa 450€” “Com a renda de casa, com a luz, tudo pago, não sei do que é que tu tás-te a queixar.” “Olha, arranja a casa. E quando eu for a Marselha vou levar, sim senhora, alguém comigo. Já ficas a saber.” “Sou eu que te bato, sim senhor. É o que tu mereces. E dormes no chão porque és cão. Porque eu não sei o que é que te passa para estares deitado em cima da minha cama caralho.” “Eu não te quero a dormir em cima da minha cama.” “Só tens que lá estar. E a chave eu é que te a dei para a mão, eu é que te a peço. Cara a cara.” “Tu és mesmo podre pá. Tu tens uma boca tão podre.” “Que Deus te dê em dobro aquilo que tu fizeste à minha filha. Porque quando tu fores preso vais levar no cu na cadeia que é para saberes aquilo que é bom para a tosse.” “Lembra-te que eu conheço os traficantes todos em Marselha.” “Sou mulher da noite, sou mulher da rua. Ainda bem que sabes. (impercetível)” “Vais-me dizer isso cara a cara. Filha da puta que tu és.” “Eu tou aqui em Marselha. Tás em Marselha porque eu quero que tu estejas em Marselha.” “Tu és mesmo porco.” “Espera aí que eu já te faço a folha.” “Olha, e até tenho (impercetível). Eu não quero saber disso para nada. Fiz-te uma pergunta para tu me responderes. Tu mudaste o número da conta?” “Da tua. Para receberes o ordenado.” “Eu tou-te a perguntar se tu mudaste que é para eu saber aquilo que hei de fazer à minha vida.” “Porque eu tou aqui sem nada, eu tou aqui sem nada e tu podias-me dizer assim Mudei ou Não mudei.” “Nem o que é que não há. Perguntei-te, eu perguntei-te porque eu tenho a renda da casa para pagar aí, tu sabes que a renda da casa tá para pagar, é a única coisa que me dá aflição, é isso. Eu vou alugar uma casa aqui para largar a casa ao senhor DD e eu preciso de saber BB. Eu preciso de saber onde é que eu ponho os pés.” “Oh caralho , oh caralho . Oh BB Manel?” (…) “Também tu. Só te fiz uma pergunta. Responde àquilo que eu te estou a dizer, se faz favor. Àquilo que eu te perguntei para eu saber aquilo que hei de fazer, mais nada.” “Eu dei-te eu dei-te uma chapada na cozinha.” “Eu sou um demónio, sim. Sou um demónio, sim. E agora só quero saber de onde é que vem essa história que eu tenho e que as pessoas trabalham para mim. Eu agora quero saber de onde é que vem essa história.” “Eu não disse nada disso com a minha boca, não sejas aldrabão.” “(impercetível) caralho. Cala-te caralho, cala-te já. Cala-te já. Cala-te já. Cala-te já e ouve. Eu vou entregar a casa ao senhor DD.” “Vais levar uma filha da puta nos cornos (impercetível) já.” “Vai-te aliviar. Pois é. Oh oh olha que engraçado quando tu viras o bico ao prego.” “Olha, não há lá não há lá dinheiro, pois não? Não há lá dinheiro para eu ir pagar as minhas as contas lá, pois não?” “Eu não quero saber da tua depressão. Metes a tua olha, dá já meia-volta e enfias-a no cu. Tu tens a certeza que não vai cair dinheiro na conta para eu pagar as coisas lá, não tens?” “Não tens que saber se eu te vou fazer mal. Tu queres enfrentar, de certeza absoluta, a pessoa que tá comigo? Tu tens a certeza do que tu me tás a dizer?” “És mesmo javardo pá. Tu és mesmo javardo.” “Tu não vales mesmo nada.” “Andas aí com o FF tu é que ainda agora me vieste dizer que sabias que eu tinha alguém e que querias enfrentá-lo.” “Meia leca. Tu és mesmo meia leca. Tu és mesmo um meia leca.” “Eu vou-te dar uma chapada, até te faço fazer o pião. E agora podes (impercetível) que eu vou-te dar uma chapada.” “Meia leca.”
2.2. São estes os factos não provados (transcrição):
2.3.Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição): «Dos factos provados: O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, analisada e ponderada criticamente. Concretizando. Os factos dados como provados descritos nos pontos 1 a 4, de 6 a 7, 9 a 15, são resultado das declarações prestadas pelo assistente, os quais foram confirmados pela testemunha CC. Importa referir que tal factualidade foi a única que o assistente conseguiu confirmar com alguma precisão e, por isso, mereceu credibilidade nesta parte. Por sua vez, a testemunha CC, mãe do assistente, limitou-se a relatar aquilo que o filho lhe contou, nunca tendo presenciado quaisquer factos, à excepção da parte em que confirmou que era a arguida quem procedia ao pagamento da renda da casa onde o ex-casal vivia em Portugal, porquanto se trata de uma casa que é propriedade do companheiro da testemunha. Mais se suportou o Tribunal nas transcrições das chamadas juntas aos autos de fls 151 a 238. Quanto ao ponto 5 dos factos provados, trata-se de factualidade confirmada pelo assistente, o qual acabou por também esclarecer que concordou em ir dormir para o sofá e, mais tarde, para ter mais privacidade, acabou por ficar a dormir num anexo da habitação. A factualidade provada no ponto 8 é resultado da conjugação das declarações do assistente, da testemunha CC e, ainda, das pesquisas feitas na última sessão de julgamento. Aqui importa referir que, quer o assistente, quer a testemunha supra referida, apenas confirmaram tal facto depois de serem confrontados directamente pelo Tribunal, tratando-se de um tema que, de forma evidente, incomodou estes intervenientes processuais. Quanto aos factos descritos em 16 e 17, que dizem respeito ao elemento subjectivo e a ilicitude com que a arguida actuou, resulta da conjugação e análise critica dos factos objectivos dados como provados, analisados à luz das regras da experiência comum. Quanto ao facto referente à ausência de antecedentes criminais, o mesmo é resultado do teor do CRC junto aos autos. Para dar como provado os factos dos pontos 19 e 20, o Tribunal teve em atenção o auto de denúnica de fls 3 e ss, bem como a pesquisa determinada e realizada na última sessão de julgamento ao inquérito com o n.º 271/23..... Dos factos não provados Os factos que resultaram não provados são o resultado da ausência de prova a esse respeito e/ou por se mostrarem em contradição com os factos dados como provado. Passamos a concretizar. Em sede de declarações, o assistente não apresentou segurança, nem firmeza no que dizia. Todo o seu discurso foi genérico, sem concretizações, sem contextualizar o que dizia, nem do ponto de vista temporal, nem espacial. Por outro lado, o assistente chegou a entrar em contradições como, e a título de exemplo, quando iniciou o deu discurso a afirmar que a arguida não o deixava vir para Portugal e o obrigava a ficar em França para ganhar dinheiro, no entanto, e depois de questionado directamente e no seguimento da insistência das diferentes instâncias, acabou por afirmar que teve 3 anos sem vir a Portugal porque, nessa altura, não tinha direito a férias. Ressaltou, também, incongruências no discurso do assistente, na medida em que, uma vez mais, de forma genérica, afirmou que a arguida se apoderava de todo o seu dinheiro, fazendo crer que aquela se limitava a gastar o dinheiro para eventuais caprichos daquela, no entanto, acabaria por relatar que ele sempre confiou o seu salário à arguida e que era esta quem geria as despesas, designadamente garantindo o pagamento da renda. Aliás, tal facto é também evidente da própria gravação que consta da acusação pública, independentemente de a arguida não auferir um salário, certo é que esta tratava de gerir e tratar de despesas essenciais do agregado familiar (do qual o assistente fazia parte) como a renda da casa. Se por um lado, o assistente, nas suas declarações, afirmou que a arguida consumia álcool em excesso, acabou por admitir que também é dependente de canábis, desde os 13 anos de idade, e que consome diariamente, pelo menos, 5 cigarros por dia, sendo que era a arguida quem lhe garantia os consumos. O assistente não revelou qualquer firmeza no que relatava e, aliás, cada vez que era confrontado para concretizar em que contexto a relação do casal acabou por se deteriorar e porque se deu o ponto final, manifestou um constante constrangimento, sem conseguir concretizar factos e, não raras vezes, revelando uma intenção em não abordar o tema do alegado abuso sexual à filha da arguida, tema que, de forma evidente, contextualizou as palavras que a arguida dirigiu ao assistente. A tudo isto acresce que, no seguimento de insistência do Tribunal, o assistente acabou por relatar que a arguida lhe começou a falar mal e que deixaram de dormir juntos no mesmo quarto, circunstância que coincide temporalmente com a acusação que a arguida lhe fez no sentido do assistente ter abusado sexualmente de uma das suas filhas. Por todo o exposto, não mereceu credibilidade a versão traziada pelo assistente e, a qual, não se mostra suportada em mais nenhum meio de prova. Ainda neste seguimento, sublinha-se o facto da mãe do assistente, CC não ter presenciado nenhum facto e se ter limitado a relatar o que o filho lhe contou, depois de terminada a relação entre o casal. Aliás, a testemunha CC ressalvou que o único conhecimento directo que teve foram alguns telefonemas e vídeo-chamadas que a arguida e as filhas faziam ao assistente, em alguns dos períodos em que estavam em França e o assistente em Portugal, e nos quais elas diziam (quer a arguida, quer as filhas desta) “volta para perto de nós que temos saudades”. O depoimento de DD apresentou-se improfícuo na descoberta da verdade material, na medida em que a testemunha se limitou a relatar aquilo que o assistente e a sua companheira (a mãe do assistente) lhe contaram».
3.1. Debrucemo-nos, então, sobre a sentença preferida pelo tribunal de Castelo Branco, verificando se houve o uso de prova proibida que consubstancie os vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP (na lógica da defesa), de forma a considerar-se que, afinal, a arguida deverá ser absolvida da prática de um crime do artigo 153º e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal, doravante CP, até por força do princípio constitucional do «in dubio pro reo».
3.2. É sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas formas: Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação. Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova. E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. Deixemos esse erro de julgamento já que não cumpre a defesa o ónus da impugnação especificada, a que alude o artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP (nunca invocando prova gravada) e cuidemos dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, os únicos invocados (sempre eles seriam de conhecimento oficioso, note-se).
3.3. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente o recurso intentado, explorando, de forma mais demorada, cada um dos vícios oficiosos ínsitos no nº 2 do artigo 410º do CPP. Na realidade, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP. Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa. Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso. Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada. Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.
3.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP? A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1]. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2]. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97). O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3]. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si. O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando: a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
3.5. A recorrente alude a DOIS vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova – cfr. conclusão 37ª). Ora, pelas razões acima expostas, a este nível, não é possível a esta Relação recorrer aos demais elementos constantes dos autos, para sindicar a formação da convicção do julgador, tendo apenas, para apreciar os fundamentos do recurso, o texto da decisão recorrida, designadamente a “fundamentação da decisão da matéria de facto”, podendo e devendo até fazer esta análise do sentenciado de forma oficiosa, como já vimos[4] [5]. Para se analisar a decisão recorrida nestes termos há que analisar o seu texto literal e a sua concordância lógica entre o acervo probatório dado como provado e não provado e a respectiva motivação. E é nessa motivação que reside o cerne de todo o problema e a verdadeira arte de julgar num verdadeiro Estado de Direito onde os tribunais aplicam as leis de forma fundamentada e credível. Cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista – e um juiz, todos os dias, conquista esse respeito sentenciando de forma justa e motivada com base em provas válidas, num juízo de convicção que, depois de ser criado, tem de ser devida e suficientemente explicado ao mundo. Neste ponto, e aqui chegados, foquemo-nos na questão da prova e da sua leitura em sede de julgamento para a criação de uma convicção (e aí o juiz convencido tem de se transformar, de forma sábia e suficiente, em juiz convincente)[6]. Inexiste, assim tal vício da alínea a). Resta analisar o cerne do recurso – a questão da possível prova proibida.
3.5.2. Indague-se então – foi usada prova proibida? Foi cometido um erro notório na apreciação da prova? Tem sido uniformemente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que os nºs 1 e 2 deste preceito legal consagram proibições absolutas de prova, o que implica que, em caso algum, as provas obtidas através de tais procedimentos poderão ser tidas em conta pois jamais poderão ser utilizadas, nem mesmo com o consentimento do próprio titular, uma vez que atentam contra direitos indisponíveis. Já as proibições de prova a que se reporta o nº 3 são proibições relativas, dado que, caso as provas sejam recolhidas com prévia autorização ou consentimento dos titulares dos direitos ali previstos, as mesmas são válidas e eficazes e são susceptíveis de valoração, podendo fundamentar a convicção do Tribunal, na fixação da matéria de facto. Incidem sobre os processos de obtenção de provas à custa da intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, que, apesar da sua tutela constitucional, mantêm a natureza de direitos disponíveis. Assim, só se verificará a proibição de valoração, se e quando, as provas forem obtidas à custa da ofensa a tais direitos à reserva da vida privada, do domicílio, da correspondência ou das telecomunicações e sem o consentimento[8] dos respectivos titulares para o efeito. Ora, a questão que aqui se coloca prende-se com a definição do valor probatório dessa gravação e não propriamente com a violação de proibição de prova. Na realidade, as normas processuais convocadas pelo recorrente permitem distinguir duas distintas realidades, a que corresponde tratamento jurídico diferenciado, embora se possam traduzir num resultado comum, qual seja o não aproveitamento da prova recolhida contra o regime legal imposto. Assim, as regras de proibição de prova obtida por intromissão na vida privada sem o consentimento do respetivo titular, consagradas no artigo 126º, nº 3, do CPP, dirigem-se às instâncias formais de controlo, designadamente aos investigadores e autoridades judiciárias, mormente ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução – tratam-se de normas que visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, definindo os limites de interferência na vida privada com o objectivo de recolher prova, e que constituem orientações a observar no âmbito do processo penal. Já no tocante às provas obtidas por particulares e à tutela da vida privada, não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, antes o legislador remete para a tipificação dos ilícitos penais previstos no CP, na tutela do referido direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167º, nº 1, do CPP. Por isso, a validade da prova fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal. Ou seja, a validade da prova questionada no presente recurso está condicionada à inexistência de actividade criminosa na sua obtenção, por isso, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação da conversa estabelecida entre a arguida e o assistente se for de concluir que a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas nessa chamada telefónica configura um ilícito penal. Quanto a gravações de telefonemas (o nosso caso), leia-se o artigo 167º do CPP: “1. As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal. 2. Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro”. O estatuído no nº 1 significa que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só podem ser usadas em processo penal, como meio de prova, se na sua obtenção não tiver sido violada qualquer disposição legal substantiva, nomeadamente no que se reporta a normas que protejam os direitos pessoais em concretização dos preceitos constitucionais ínsitos nos arts. 26º, nº 1 e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa. Aqui chegados, é este o raciocínio que deve ser feito: Não sendo o direito à palavra um direito absoluto[9] (tal como sucede com todos os direitos, liberdades e garantias fundamentais), encontra-se sujeito às restrições, nos termos previstos no nº 2 do art. 18º da CRP, que estiverem expressamente previstas na Constituição e que se mostrem indispensáveis à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Recorde-se o teor do artigo 199º, nº 1 do CP: “1– Quem sem consentimento: a)- Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b)- Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias”. Portanto, o citado artigo 167º do CPP estabelece “uma conexão entre a ilicitude penal substantiva e a inadmissibilidade da prova em processo penal, constituindo a não ilicitude penal substantiva da reprodução mecânica condição essencial para a prova ser admissível - o que não significa que seja, efectivamente, admitida, pois existe, ainda, o crivo de outros critérios gerais sobre a admissibilidade probatória; assim, se for de concluir que a conduta traduzida na gravação áudio em causa configura um ilícito penal, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso não configure um ilícito penal, tendo sido admitida e a tal não obstando os critérios gerais sobre admissibilidade probatória, será prova válida e sujeita à livre apreciação, nos termos do artigo 127.º do CPP” (cfr. Acórdão do TRL de 23.5.2023, Pº 924/20.9PBCSC.L1-5). Ou seja: a validade e eficácia da prova obtida por gravação da voz e das palavras ditas por outrem, fora dos casos de consentimento, nos termos previstos no artigo 126º, nº 2 do CPP, fica condicionada à inexistência de relevância penal do modo de obtenção e uso da gravação. Essa atipicidade penal pode, ainda, resultar de uma causa de justificação, mais precisamente, do estado de necessidade. O aresto mencionado na nota de rodapé nº 7 disserta assim: “No domínio do Direito Penal o direito de necessidade, como causa de justificação da ilicitude, encontra-se previsto no art.º 34º do CP, nos seguintes termos: «Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos: a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro; b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.» O estado de necessidade (em sentido amplo) em direito penal, reporta-se a situações que não sendo de legítima defesa, se caracterizam pela existência de um conflito de interesses e pela circunstância de só ser possível salvar certos interesses ou valores ameaçados ou em risco de perda ou de lesão, à custa do sacrifício de outros interesses juridicamente protegidos, traduzindo esse sacrifício, um comportamento que preenche um tipo legal de crime. À luz da teoria da diferenciação, consoante o interesse protegido seja de maior importância que o interesse violado, ou de valor igual ao daquele que se salva, ou mesmo de valor inferior, mas ao agente não era exigível outro comportamento, assim o estado de necessidade exclui a ilicitude, como previsto no art.º 34º do CP, ou só exclui a culpa, como quando se preenche a previsão do art.º 35º do mesmo código (cfr. Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, trad. da 5ª edição, 2002, pág. 317. Eduardo Correia, II, p. 82). São pressupostos do estado de necessidade como excludente da ilicitude: Circunscrição do seu âmbito de aplicação aos interesses privados do próprio agente ou de terceiro, estando, portanto, excluídos os interesses públicos; O perigo deve ser actual, objectivo e real e ser causado por acção humana ou por acontecimentos naturais e não deve provir do titular do interesse que está em perigo (distingue-se da legítima defesa por poder provir de acontecimento natural); Adequação do facto lesivo para afastar o perigo; Superioridade do interesse a salvaguardar em relação ao interesse sacrificado, pois que o direito de necessidade assenta no princípio do interesse preponderante (a cláusula da ponderação prevista no artigo 34.º, al. b). A análise comparativa entre os interesses jurídicos a sacrificar e a proteger deve partir de critérios que incluem a penalidade, a intensidade da lesão do bem jurídico, o grau de perigo e a autonomia pessoal do sacrificado. «É desde logo evidente que se não pode tratar de critérios puramente económicos, mas jurídicos: como tal eles devem retirar-se, antes de tudo, da lei e da força com que esta protege os diversos bens, conexionando todavia os critérios estritamente legais com outros de natureza ético-social, a que não se pode renunciar» (Eduardo Correia, in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral Volume I e II, edição da AAFDL, p. 234). Razoabilidade da imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse em função da natureza ou valor do interesse colocado em risco. Em termos subjectivos, que o agente conheça a situação de conflito e actue com a consciência de salvaguardar o interesse preponderante, ainda que não seja exigido «animus salvandi» (não se exige que o agente tenha vontade de defender o interesse preponderante). Tal como sucede com todos os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nem o direito à imagem, nem o direito à palavra são direitos absolutos, antes estando sujeitos às restrições, nos termos previstos no art.º 18º nº 2 da CRP, que estiverem expressamente previstas na Constituição e que se mostrem indispensáveis à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. «Na íntima relação que coexiste entre o regime de admissibilidade de prova por reprodução mecânica - artigo 167º do Código de Processo Penal e o crime de gravação e fotografia ilícita - artigo 199º do Código Penal pode-se dizer, de forma redutora, que a gravação, ou fotografia, que não é crime, é admissível como prova», (…) «o direito à palavra e o direito à imagem não são, nem devem ser, sacralizados como núcleo essenciais da vivência pessoal, e da comunidade, que se sobreponham a todo e qualquer tipo de ponderação de outros valores» (…) «age no exercício de um direito e, portanto vê excluída a ilicitude do seu comportamento, o agente cuja conduta é autorizada por uma disposição de qualquer ramo de direito» (Ac. do STJ de 28.9.2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2, in http://www.dgsi.pt). Por regra, a captação e conservação em registos áudio ou audiovisuais, indevida e não autorizada de imagens ou palavras corresponde objectivamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas. O objectivo de reunir provas, por si mesmo, não afasta a natureza criminosa do acto, a não ser que a captação corresponda à defesa de um interesse protegido, numa situação de direito de necessidade, o que acontecerá sempre que a gravação constitua o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de protecção contra a vitimização pela prática de crimes que, não fora essa captação da voz e/ou da imagem, ficariam impunes, caso em que nem as gravações, nem as fotografias ou filmes serão meios proibidos de prova e antes deverão ser valorados à luz do princípio da livre apreciação previsto no art.º 127º do CPP. «(…) A elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. «É o que sucederá nos casos em que a necessidade de protecção da vida privada dos intervenientes se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que a coberto do foro íntimo do casal são praticados ilícitos criminais (…)» (Ac. da Relação do Porto de 24.09.2020, proc. 308/16.3GAVFR.P2. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 24.02.2016, proc. 2638/12.4TALRA.C1; da Relação de Guimarães de 29/04/2014, proc. 102/09.8GEBRG.G2; da Relação de Évora de 29.03.2016, proc. 558/13.4GBLLE.E1; da Relação do Porto de 23.10.2013, proc. 585/11.6TABGC.P1; de 27.01.2016, proc.1548/12.0TDPRT.P1 e de 06.11.2019, proc. 457/17.0PAVFR.P1, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4ª ed, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, p. 463 e Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora em 1992, p. 242 e seguintes). «A não ser assim, acabaria por aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima, o que representaria uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, se não mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais. Tanto mais que para além do interesse em proteger a esfera pessoal ou patrimonial da assistente de atentados ilícitos, estará igualmente em causa projeção do direito fundamental de acesso dos particulares ao direito e a tutela jurisdicional efetiva que a CRP reconhece no art.º 20º da CRP, pois as mais das vezes a fotografia ou filme são determinantes na prova do ilícito típico» (Ac. da Relação de Évora de 29.03.2016, proc. 558/13.4GBLLE.E1 in http://www.dgsi.pt). Diversamente do que foi exarado no texto da sentença recorrida, a ponderação, terá de orientar-se expressamente para as singularidades da situação, fazendo nomeadamente relevar o significado do interesse punitivo, a gravidade da violação legal, a dignidade de tutela e a carência de tutela do interesse lesado. Caberá ao juiz irá ponderar à luz do caso concreto qual o interesse preponderante entre o direito à palavra do ofendido e a importância da prova frente à gravidade do crime, para que assim conclua sobre a sua admissibilidade ou não. Ora no caso em concreto a ofendida procedeu à gravação de pelo menos, três conversas em três datas distintas – 6 e 25 de Junho de 2020 e 1 de Julho de 2020 – que manteve com o arguido, com o intuito de demonstrar a teor das mesmas e como o conteúdo das afirmações proferidas pelo arguido e dirigidas à assistente, assim como aquelas que dirigiu ao filho de ambos, são susceptíveis de integrarem os crime de difamação e injúria pelos quais formulou acusação particular. Ora, neste contexto, mostram-se preenchidos os requisitos do Estado de Necessidade. Efectivamente, a situação de perigo para a reputação, honra e bom nome em que a assistente se encontrava não foi criada por si, mas pela conduta do arguido. Afigura-se inequívoco que a superioridade de interesses não é a que resulta da comparação entre os bens jurídicos tutelados pelos crimes de difamação e injúria e o direito à palavra e à imagem visado pela incriminação contida no art.º 199º do CPP. Do que se trata é de optar entre deixar completamente impunes comportamentos notoriamente delituosos, em nome da protecção do direito à palavra, considerando-os meios proibidos de prova, ou seja, a garantia da prossecução das finalidades do Direito Penal no combate ao crime e na administração da Justiça e um interesse privado do arguido que, por muito relevante e digno de protecção que seja, por princípio, neste caso, terá de ceder, porque a gravação das suas afirmações é a única forma de demonstrar os crimes de difamação e injúria que praticou na pessoa e contra a pessoa da assistente. Assim sendo, as gravações das conversas do arguido, efectuadas pela assistente e cujas transcrições se encontram exaradas de fls. 65 a 71 e 174 a 183 não se encontra ferida de nulidade e é admissível como meio de prova legítima em processo penal». Não temos nenhuma dificuldade em aplicar este raciocínio ao nosso processo. No caso que ora se analisa, as gravações em causa – em número de 4 - documentam comunicações telefónicas entre a arguida e o assistente, nas quais se materializou a conduta ilícita da primeira, subsumível ao crime de ameaça pelo qual veio a ser condenada. Perante tais circunstâncias surge justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente, sem o consentimento do autor daquele ilícito criminal, pois que, como considerou o STJ, «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime»[10]. No seguimento de tal entendimento, não sendo possível concluir pelo cometimento por parte do assistente de um crime mediante a gravação da comunicação telefónica havida com a arguida, também não há razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação. Também recentemente a Relação de Lisboa decidiu, em aresto datado de 2.7.2024 (Pº 2 33/24.4KRSXL-A.L1-5), o seguinte: «I.–A proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime. II.–Num contexto em que está fortemente indiciada da preocupação do agressor em agredir física e verbalmente a ofendida longe dos olhares de outras pessoas e que se fez valer da sua profissão para controlar a vida da ofendida e das pessoas que com ela se relacionam, a que acresce a sua postura de vitimização e acusação face à ofendida bem como a personalidade que procurou transmitir ao tribunal, é forçoso concluir que a gravação da “palavra falada” do agressor, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para demonstrar a verdadeira personalidade deste e consequentemente a veracidade da versão dos factos por si apresentada (a violência, a agressividade e a linguagem obscena a que era sujeita). III.–É inadmissível sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que através da gravação da “palavra falada” do agressor pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor, atuando a mesma ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude». Vejam-se ainda: - Acórdão desta Relação de Coimbra de 10.7.2013, no Pº 407/10.7TAGRD.C1: «1.- Quando a vítima seja interlocutora e destinatária da comunicação telefónica ou outra comunicação técnica equiparada, considera-se justificada a divulgação do teor da conversa telefónica pelo sistema de alta voz (a que é semelhante a mensagem sonora) quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaças, ou injurias e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças e, com o tal não constitui prova proibida».
- Acórdão da Relação do Porto de 27.6.2018, no Pº 277/15.7GCETR.P1: «É lícita, e meio de prova permitido, a gravação, realizada com o conhecimento do arguido, da conversa telefónica, através da qual aquele comete o crime de ameaça e injúria».
- Acórdão da Relação de Coimbra de 6.3.2013[11], no Pº 119/11.2GDAND.C1: «Não constitui prova proibida a divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaça ou injúria e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias, sendo por essa razão permitido o depoimento de quem a ouviu».
Concluímos pois:
Mais se dirá que o tribunal não se limitou a motivar a sua convicção apenas com base nas transcrições das gravações – ouviu TAMBÉM o assistente BB que foi o destinatário das ameaças naqueles telefonemas (sendo aqui indiferente saber quem ligou a quem[13]), o qual poderia tão-somente reproduzir oralmente algumas dessas ameaças, sem recurso às transcrições de gravações (como o terá feito nos 29 minutos que durou a sua inquirição na sessão de julgamento datada de 16.9.2024). Invariavelmente, as ameaças julgadas em tribunal são proferidas oralmente – cara na cara - e documentadas depois em julgamento pelas vítimas também de forma oral. Aqui, além do testemunho oral da vítima (que as ouviu, não cara a cara mas por telefone), temos também a ajuda das transcrições das gravações efectuadas pela própria vítima. Diga-se a finalizar que não se criou qualquer dúvida sobre a questão de saber se foi ou não a arguida a proferir estas ameaças telefónicas. Ficou provado que foi. E a defesa não trouxe aos autos qualquer relevante acervo probatório que prove o contrário. Em suma: Analisando o texto literal da sentença, descortinamos algum erro notório na apreciação da prova? Como tal, inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova, tal como foi gizado pela defesa.
3.6. E nem sequer foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da inocência da arguida – colado ao da livre apreciação da prova – na medida em que o tribunal não acreditou na outra versão alternativa. No fundo, o que a recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ela própria entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. A recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações em julgamento (nunca invocando real e efectivo erro de julgamento, já o vimos). Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte: «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum». Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253). Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada. Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009: «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal». Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela. Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados. E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade. Atente-se que o artº 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa. Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos. Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa». O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido. Não ficou o Tribunal de Castelo Branco em estado de dúvida. Mesmo, considerando que «tal factualidade foi a única que o assistente conseguiu confirmar com alguma precisão e, por isso, mereceu credibilidade nesta parte». Ou seja, neste ponto, para o tribunal recorrido, o depoimento do BB (assistente) foi escorreito e preciso, podendo o tribunal considerar um depoimento fiável em certos trechos e já não noutros, desde que explique a razão dessa diferença de critério de aferição da credibilidade do depoente. E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133). Em suma: Não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”: tem de ser uma dúvida razoável, objectiva, que impeça a convicção do tribunal. E tal como acontece com os vícios da sentença, a que alude o nº 2 do artº 410º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há-de resultar do texto da decisão recorrida, constatando-se que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de, na motivação da convicção, reconhecer que não tem suporte probatório bastante. Ora, o mesmo princípio não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, sendo antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa – contudo, daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. Portanto, e em conclusão, se ESTE tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida decidiu contra o arguido, pelo que não tem qualquer base de sustentação a imputação de violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, não violados in casu, o mesmo acontecendo relativamente ao artigo 32º/2 da CRP.
3.7. Aqui chegados, e não se descortinando da decisão recorrida, ao contrário do que sustenta a recorrente, a existência de qualquer vício probatório, desde logo porque ela é minuciosa no exercício da análise factual e permitiu ao tribunal julgador concluir pela existência de prova quanto à possibilidade de imputação a esta arguida da prática de um dos crimes referidos na acusação pública, improcedem as arguições de vícios da matéria de facto, devendo manter-se a matéria factual tal como foi redigida na sentença recorrida.
3.8. Quanto ao DIREITO, é inequívoco que da factualidade provada resulta que a arguida ameaçou de morte o seu ex-companheiro por diversas vezes, tendo agido dolosamente (cfr. factos nºs 9 a 15 – elementos objectivos do tipo de crime – e 16 e 17 – elementos subjectivos do tipo de crime), e isto independentemente da prova da possível perturbação da arguida, originada pela suspeita de que uma das suas filhas teria sido abusada sexualmente pelo BB, seu ex-companheiro. Não faz qualquer sentido repristinar agora o crime de violência doméstica de que foi absolvido a arguida (concordando-se em absoluto com as explanações feitas pelo tribunal quanto à descaracterização do crime de violência doméstica agravada), cabendo a este tribunal de recurso apenas responder às questões avançadas em sede de recurso e não em «parecer» do MP, nesta ou noutra instância. A possível perturbação psíquica da arguida poderá apenas relevar para efeitos de determinação da medida da pena (como aliás relevou no caso concreto[14]). No que tange à pena não tem este tribunal de incidir a sua atenção sobre ela pois o recurso é totalmente omisso sobre ela.
3.9. Improcede, assim, o recurso. III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:
Custas pela arguida recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Coimbra, 9 de Abril de 2025
Relator: Paulo Guerra Adjunto: Sara Reis Marques Adjunto: Maria da Conceição Miranda
[1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [5] São, portanto, vícios de conhecimento oficioso, que se traduzirão em nulidades da decisão: nuns casos, conduzirão à anulação integral do julgamento, noutros apenas à anulação da decisão, impondo sempre a reformulação desta, pela primeira instância, por via do reenvio parcial ou total, ou pelo tribunal de recurso, se este puder decidir da causa, eliminando ele próprio o vício – esta eliminação poderá acontecer, em regra, por duas vias: a primeira pelo artigo 410º do CPP; a segunda pelos artigos 412º, nºs 3, 4 e 6 (… audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa), e 430º, nº 1, do CPP, no caso destes dois últimos artigos, desde que haja sido impugnada a decisão da matéria de facto por essa via). [7] João de Matos-Cruz Praia, em “Proibições de prova em processo penal: algumas particularidades no âmbito da prova por reconhecimento e da reconstituição do facto”, in Julgar Online, adianta que: «Os meios de obtenção da prova (artigos 171º e ss. do CPP) são os procedimentos utilizados para a aquisição dos meios de prova, não podendo esses procedimentos, salvo nos casos expressamente previstos, conduzir a uma interferência nos direitos fundamentais nem violar formalidades “processuais” que sejam ainda condições constitucionais para a admissibilidade da prova». [9] «O qual “ se desdobra no direito à voz e no direito às concretas palavras proferidas num determinado contexto” – Natália Vidal de Lucena in “Da Valoração das Gravações Produzidas por Particulares como Meio de Prova no Processo Penal”, Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, ..., Universidade de Coimbra, pág. 40» - cfr. aresto da Relação de Lisboa de 2.7.2024 - Pº 233/24.4KRSXL-A.L1-5 - , assim sumariado da dgsi, em situação algo análoga à nossa : «I.–A proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime. II.–Num contexto em que está fortemente indiciada da preocupação do agressor em agredir física e verbalmente a ofendida longe dos olhares de outras pessoas e que se fez valer da sua profissão para controlar a vida da ofendida e das pessoas que com ela se relacionam, a que acresce a sua postura de vitimização e acusação face à ofendida bem como a personalidade que procurou transmitir ao tribunal, é forçoso concluir que a gravação da “palavra falada” do agressor, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para demonstrar a verdadeira personalidade deste e consequentemente a veracidade da versão dos factos por si apresentada (a violência, a agressividade e a linguagem obscena a que era sujeita). III.–É inadmissível sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que através da gravação da “palavra falada” do agressor pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor, atuando a mesma ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude». [14] Lê-se na sentença recorrida: «Em sede de medida concreta da pena, há que ponderar, ainda, o grau de ilicitude do facto, que se reputa de moderado, tendo em conta um juízo global da conduta da arguida. Tais expressões foram proferidas num contexto de “fúria” da arguida, na sequência de alegados abusos sexuais dirigidos pelo assistente à filha da arguida e que motivaram um processo crime que ainda se encontra em investigação. O Tribunal não pode não pode ficar alheio a tal contexto, o qual, se por um lado, não retira o alcance que as expressões têm, do ponto de vista da sua censura penal, por outro lado, atenuam a ilicitude da conduta da arguida para efeitos de determinação concreta da pena a aplicar» (transcrição). |