Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
856/21.3JAPDL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
CRIME DE RECEPTAÇÃO
RECEBIMENTO DE QUANTIAS MONETÁRIAS POR TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
DOLO
CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO PECUNIÁRIO
DEPÓSITO IRREGULAR
TITULAR DA CONTA
CONTA COLECTIVA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
UTILIZAÇÃO POR TERCEIROS DE CONTA BANCÁRIA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 231.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 1205.º, 1206.º E 1142.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - A alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. estabelece uma conexão entre a matéria de facto provada e a decisão jurídica que nela assenta, pelo que não tem sentido invocar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sem apontar em concreto a omissão da matéria de facto que ocorre.

II - O conteúdo do crime de receptação consiste na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior, facto referencial, ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa.

III - A acção típica do crime de receptação traduz-se na dissimulação, recebimento em penhor, aquisição por qualquer título, detenção, conservação, transmissão ou contribuição para a sua transmissão, de coisa obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património.

IV - Quanto ao tipo subjectivo é necessário que, por um lado, o agente saiba efectivamente que a coisa provém de um crime contra o património e que, por outro, tenha a intenção de obter, para si ou para outrem, uma vantagem patrimonial.

V - Pratica o crime de receptação o arguido que recebe, por transferência bancária, quantias monetárias que se encontravam na posse de terceiro não identificado, o qual acedeu às mesmas contra a vontade da legítima titular, com vista à sua transferência para contas bancárias de outros sujeitos, nomeadamente do arguido, que se disponibilizaram para a utilização da sua conta.

VI - O dolo consiste no conhecimento de que a sua conta estava a ser usada como veículo de dissimulação de dinheiro pertencente a outrem por indivíduo que se estava a apropriar do mesmo ilegitimamente, por se tratar de dinheiro de proveniência criminosa.

VII - Não obsta à verificação do crime não ter ficado provado que a cedência da utilização da conta bancária por terceiro foi feita a troco do recebimento de alguma vantagem económica, conferida pelo agente que procedeu à transferência, porque o recebimento, pelo receptador, de uma recompensa monetária ou outra, conferida pelo agente do crime contra o património, não é elemento do tipo.

VIII - O depósito bancário pecuniário, contrato pelo qual uma ou mais pessoas entregam a uma instituição bancária uma determinada quantia em dinheiro, ficando este obrigado a devolver ao depositante, nas condições acordadas, a mesma importância, normalmente acrescida de juros, constituí um contrato de depósito que o Código Civil classifica como depósito irregular.

IX - São elementos essenciais do depósito irregular a entrega material ou electrónica, pelos depositantes, de uma quantia em dinheiro ao banco depositário e a restituição de quantia de igual montante, normalmente acrescida de juros.

X - Este contrato é, em parte, um negócio jurídico real «quoad constitutionem», pois exige, além do acordo das partes, um acto material de entrega dos fundos monetários, e «quoad effectum», porque implica a transferência da propriedade dos fundos para a instituição bancária, ficando o depositante (anterior proprietário dos fundos) na titularidade (por conversão do seu direito real) de um direito de crédito à devolução das importâncias depositadas, a qual tem como reverso a obrigação de restituição por equivalente.

XI - Tal significa que, com a celebração do depósito bancário, o banco passa a ser o titular do direito de propriedade sobre os valores depositados pelo cliente, ao passo que este fica seu credor na mesma medida, com direito à restituição daqueles valores.

XII - O titular de uma conta é a pessoa a quem pertencem os fundos depositados e é o responsável pela sua movimentação.

XIII - A conta colectiva é aquela que tem mais do que um titular e pode ser conta conjunta, quando a movimentação só pode ser válida e eficazmente efectuada através da intervenção simultânea de todos os titulares e em que só a restituição efectuada a todos os titulares tem carácter liberatório, ou conta solidária, quando qualquer um dos seus titulares a pode movimentar isoladamente, tanto a débito como a crédito.

XIV - A experiência comum, os usos sociais e as regras da lógica e de mínimos básicos de prudência ensinam à generalidade dos cidadãos quais são os perigos associados à utilização por terceiros, conhecidos ou desconhecidos, de contas bancárias de que são os legítimos titulares, ademais com a informação precisa sobre o NIB ou o IBAN.

XV - Faz parte do senso comum que uma conta bancária não é algo que se empreste para ser usado por outrem, mesmo por mera cortesia, sem qualquer tipo de restrição, como se fosse essa pessoa a titular da conta e perdendo esta o controle sobre as entradas e saídas de dinheiro, os montantes depositados, transferidos, ou aplicados noutros produtos financeiros, a partir dessa conta ou para essa conta bancária.

XVI - As presunções judiciais e o princípio in dubio pro reo são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.

Decisão Texto Integral: ²

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

1 - No processo nº 856/21.3JAPDL do Juízo Local Criminal de Castelo Branco - Juiz 2, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular a arguida …, imputando-lhe o MP, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de receptação p.p no artº 231°, n° 1 do Cód. Penal, consubstanciado nos factos descritos na acusação formulada nos autos, que aqui se dá por reproduzida.

A arguida …, apresentou contestação escrita, oferecendo o merecimento dos autos.

2- Realizado o julgamento, por sentença proferida em 24.10.2024, foram as arguidas condenadas, nos seguintes (transcritos) termos:

    Pelo exposto, o Tribunal decide:

A) Condenar a arguida pela prática de um crime de receptação, punido e previsto pelo disposto no artigo 231º, nº 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o total de € 1.000,00 (mil euros).

B) Condenar a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2UC, nos termos do artigo 513º do CPP, do artigo 8º do RCP e tabela III anexa a este diploma.

C) Declarar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial ilicitamente obtida no seguimento do mencionado em A) e, em consequência, condenar a arguida … no pagamento ao Estado do valor de € 890,00 (oitocentos e noventa euros).

3 – Inconformada com tal decisão, dela recorreu a arguida …, sendo que a motivação apresentada, terminou com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:

“…

3 - O Tribunal entende que os elementos subjetivos, bem como a ilicitude, com que a arguida atuou, se encontram assentes em resultado de uma análise conjugada e crítica entre os elementos objetivos que resultaram provados e as regras da experiência comum e do normal acontecer.

4 - Acrescenta o Tribunal a quo, num intento de afastar a dúvida quanto à arguida, que não se afigura que tal constitua uma mera coincidência ou, tão pouco, que as arguidas desconhecessem, pelo menos, que tais valores eram provenientes da prática de um crime patrimonial.

5 - A Recorrente remeteu-se ao silêncio, por ser um dos direitos consagrados que lhe assiste na qualidade de arguido.

6 - Salvo melhor e douta opinião, dos supra referidos depoimentos não se consegue fazer prova do cometimento do ilícito penal pelo qual a arguida foi condenado, por não se verificarem os elementos do tipo.

7 - O nº 1 do artigo 231º do C. Penal a nível subjetivo exige o dolo do agente, e que o mesmo tem de ser específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter para si ou para terceiro uma vantagem patrimonial.

8 - Pelo que, da matéria de facto dada como provada e da prova que serviu de convicção ao Tribunal não nos parece que esteja provada, a representação e conformação do agente com a realidade em causa, nem tão pouco que o agente tivesse qualquer conhecimento da proveniência ilícita dos bens.

9- Assim e por força do nº 1 do citado preceito legal o tipo fundamental da recetação consiste em o agente estabelecer uma relação patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pela intenção de alcançar uma vantagem patrimonial.

10 - É assim necessário o dolo do agente, e no caso do nº 1, pelo qual a arguida vem condenada, um dolo específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter uma vantagem patrimonial.

12 - Na verdade, dos presentes autos, salvo melhor e douta opinião, resulta tão só provado que na sequência do rastreamento das transferências bancárias, realizadas, voluntariamente, pela ofendida, tiveram destino na conta da arguida, provenientes do cometimento de um outro, suposto, ilícito penal, desconhecendo-se o autor do mesmo.

14 - Ora, com o devido respeito, e atento os requisitos de que a lei faz depender a verificação e concretização do crime de recetação, não vislumbramos que tal tenha ocorrido nos presentes autos.

15 - Tanto mais que, não se conseguiu apurar porque razão foram feitas  transferências para a sua conta, se a título oneroso ou gratuito, nem se logrou apurar se o mesmo tinha conhecimento direto da sua proveniência ilícita, nem mesmo sequer, a possível suspeita (que mesmo a existir se enquadraria no nº 2 e não no nº 1 do artigo 231º pelo qual a arguida vem condenada).

16 - Entende o douto Tribunal a quo e para fundamentar a existência do dolo, elemento necessário para a condenação pelo cometimento do ilícito penal em causa, que o dolo decorre da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

17- O elemento subjetivo no crime de recetação para se encontrar preenchido é necessário que o agente tenha conhecimento da proveniência ilícita da coisa e especifica-se na intenção do agente obter para si ou, para terceiro, vantagem patrimonial (dolo específico).

19- Ora, no caso dos autos, a arguida vem condenado pelo nº 1 do referido preceito legal e nesse sentido a factualidade provada, decorre do artigo 12º da douta acusação pública e que foi assente na factualidade dada como provada, nos seguintes termos, 12. “As arguidas agiram com o propósito de obter vantagem patrimonial para si e dissimular dinheiro ilicitamente obtido por outrem, querendo igualmente deter e assegurar a posse de tal dinheiro, bem sabendo da proveniência ilícita do mesmo, o que representaram, quiseram e conseguiram.” SIC.

20- Ora com o devido respeito, por opinião diversa, parece-nos que tal factualidade não resulta do acervo provatório carreado para os autos, de forma a permitir entender o preenchimento dos requisitos do nº 1 do citado preceito legal.

24- Da factualidade provada verifica-se, salvo melhor e douta opinião, que os factos provados não são suficientes para condenar o Recorrente pelo crime de recetação, nos termos do nº 1 do artº 231º do C. Penal, o que significa que, beneficia o Recorrente do princípio do in dubio pro reo.

25- O princípio da presunção de inocência, consagrado no artº 32º nº 2 da CRPort., constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artº 18º nº 1 CRPort.) e surge articulado com o princípio da livre apreciação da prova produzida.

26- Dispõe o artº 127º CPPenal que a prova é apreciada livremente segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

27- O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º CPPenal não liberta o julgador das provas que se produziram nos autos, já que é com elas e com base nelas que terá de decidir, pois, quod non est in actis non est in mundo.

29 - Assim, a falta de prova sem dúvidas de outros elementos que seriam essenciais impõe aplicação do instituto do in dubio pro reo, pelo que se impõe absolver o Recorrente do crime pelo qual vem condenado.

30 - Esses vícios consubstanciam, assim, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova - alíneas a) e c), do nº 2, do artº 410º CPPenal.

4- O recurso da arguida …, foi admitido na 1ª instância, por despacho de 18.11.24.

5- O Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta, …

6- Nesta Relação, o Sr. Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, emitiu parecer …
7- Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P, não tendo sido oferecida resposta.

8- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - Questões a decidir

 Delimitação do objecto do recurso

As questões suscitadas pela arguida e recorrente …, segundo as conclusões da sua motivação, são as seguintes:

A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto - invocando que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, padecendo ainda a sentença recorrida, do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;

B) Violação do princípio in dubio pro reo;

III- Fundamentação de Facto

A decisão recorrida

Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:

I. FUNDAMENTAÇÃO

Da discussão da causa, com interesse para a decisão, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1.1. Factos Provados

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. … AA é titular das contas n.ºs …, sedeadas, respectivamente, no Banco … e ….
2. As arguidas … e …, são únicas titulares das contas com o IBAN … e IBAN …, sedeadas no Banco … e …, respectivamente.
3. No dia 18 de Outubro de 2021 desconhecido, através do número de telemóvel …, contactou … e sob o pretexto de que pretendia adquirir um roupeiro que esta havia colocado à venda na plataforma OLX, e que queria desde logo sinalizar a compra do mesmo, levou-a a fornecer as credenciais de acesso à aplicação MB WAY associada à conta bancária da ofendida.
4. A aplicação MB WAY é uma aplicação que pode ser instalada em telemóveis e, entre outras funcionalidades, permite a transferência de dinheiro, levantamentos e pagamentos de serviços referentes à conta bancária a que se encontra associada.
5. Na aplicação MB WAY a movimentação de dinheiro efetua-se mediante a autenticação por via do número de telefone associado ao cartão de débito e pela inserção de um código.
6. Na sequência do telefonema, no dia já indicado, esse desconhecido deu instruções à queixosa …, para lhe fornecer um código de levantamento MBWAY, ao que a mesma acedeu, fornecendo, ainda, os dados das suas contas bancárias, designadamente, os respetivos números das contas e números dos cartões.
7. Com efeito, como queixosa … não conhecia como funcionava a aplicação MB WAY, o suposto comprador fez com que introduzisse dados na caixa ATM que levaram à associação do cartão de débito daquele à referida aplicação, que ficou disponível no telemóvel do suposto comprador.
8. Ficando assim a pessoa que telefonou com acesso no seu telemóvel a uma conta MB WAY associada à conta bancária de contactou …, ficando aquele com a possibilidade de realizar operações.
9. A utilização da aplicação MB WAY, com a introdução do código respetivo, faz com que o sistema informático da SIBS reconheça a aplicação como associada a uma determinada conta bancária e através de dados informáticos realize a conferência do saldo disponível, o que permite a efetuação de transferências para outras contas ou levantamentos em numerário em máquinas ATM.
10. No dia 19 de Outubro de 2021, com o recurso à aplicação MB WAY e sem que possuísse autorização de … para introduzir o código de acesso à sua conta bancária por via informática, o suposto comprador efetuou várias transferências bancárias da conta bancária da ofendida, no montante total de …, para a conta bancária com o IBAN … de que a arguida … é a única titular e, no montante total de …, para a conta bancária com o IBAN …, sedeada no Banco …, de que a arguida ….
11. As arguidas forneceram os IBAN’s das suas contas bancárias, acima identificadas, a um terceiro, de modo a permitir a receção de fundos referentes à realização de transferências bancárias não autorizadas, para conta bancária de sua pertença, conhecendo as arguidas a origem ilícita de tais quantias, que fizeram suas, designadamente que as mesmas provinham da prática por outrem de crime de burla informática, que de outra forma as arguidas não as teriam conseguido obter.
12. As arguidas agiram com o propósito de obter vantagem patrimonial para si e dissimular dinheiro ilicitamente obtido por outrem, querendo igualmente deter e assegurar a posse de tal dinheiro, bem sabendo da proveniência ilícita do mesmo, o que representaram, quiseram e conseguiram.
13. As arguidas agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.

21. A arguida BB vive com o companheiro e tem 6 filhos, 3 dos quais (com 16, 23 e 24 anos de idade) de relacionamento anterior, os 3 filhos do casal (com 8, 9 e 10 anos de idade) estão sob responsabilidade parental da avó paterna.
22. O agregado familiar da arguida BB vive em moradia com reduzidas condições habitacionais e pela qual pagam uma renda no valor de € 50,00.
23. A arguida BB tem o 5.º ano de escolaridade.
24. A arguida BB nunca trabalhou.
25. O agregado familiar de BB não tem rendimentos.
26. A arguida BB não tem condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.

Quanto aos factos não provados, ficou consignado na sentença (transcrição):

Inexistem factos não provados.

O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos:

O Tribunal formou a sua convicção no depoimento prestado pela testemunha …, inspector da Polícia Judiciária, o qual, de forma objectiva, elucidativa e lógica, esclareceu as diligências que foram realizadas nos autos para chegar às contas destino e, respectivamente, aos seus titulares.

Mais se suportou o Tribunal no depoimento da testemunha …, vítima nos autos, a qual depôs de forma natural, distanciada e coerente.

O Tribunal teve, ainda, em atenção a prova documental junta aos autos, a qual foi analisada e ponderada de forma crítica, designadamente informações bancárias de fls. 32v.-33v., 36-37, 49-50, 52-53, 57-59, 61-62, 81-85, 106, 110-127 e talão bancário de fls. 48 e 51.

A matéria provada que diz respeito aos elementos subjectivos, bem como a ilicitude, com que as arguidas actuaram é resultado de uma análise conjugada e crítica entre os elementos objectivos que resultaram provados e as regras da experiência comum e do normal acontecer.

Concretizamos.

Nos presentes autos, a vítima foi contactada em 18.10.2021 e, no seguimento das conversas levadas a cabo por terceiro não identificado, as operações bancárias, mediante MBway ocorreram em 19.10.2021.

Da análise da prova documental junta aos autos, designadamente os extractos bancários e as informações relativas às contas das arguidas resulta que os valores indevidos entraram nas suas contas (em vários movimentos), precisamente, no dia 19.10.2021, sendo que tais valores são provenientes da conta bancária da vítima e no seguimento de operações através de MBway.

Ora, não se nos afigura que tal constitua uma mera coincidência ou, tão pouco, que as arguidas desconhecessem, pelo menos, que tais valores eram provenientes da prática de um crime patrimonial.

Vejamos.

Para a conta de … foram feitas 4 transferências, num total de € 2.500 e, para a conta da arguida … foram feitas 7 transferências, num total de € 890.00.

Estamos a falar de valores a cima do salário mínimo nacional, …. Não se afigura minimamente razoável que um cidadão comum receba na sua conta várias transferências bancárias, num total considerável e não saiba que a sua proveniência resulta da prática de um crime patrimonial.

Aliás, demostrativo de tal conhecimento é a circunstância das arguidas, na exacta data em que o dinheiro entra nas suas contas, procedem, de imediato, a várias operações de levantamento perfazendo (pasme-se a “coincidência”!) no respectivo total que havia entrado na conta, ou seja, num total de € 2.500 no caso da arguida … e de € 890,00 no caso da arguida ….

Tudo isto para concluir que tiveram de resultar como provados os elementos subjectivos descritos na acusação pública.

Os factos provados relativos às condições socio-económicas das arguidas são o resultado do teor dos relatórios sociais juntos aos autos.

Quanto à facticidade assente que se refere aos antecedentes criminais (ou ausência dos mesmos) é fruto da análise dos CRC juntos aos autos.

Analisando

A) Da impugnação da matéria de facto

Veio a arguida …, em sede de recurso, nas suas conclusões, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, alegando que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova - previsto no artº 410º nº2 al c) do CPP - e que os factos provados não são suficientes para condenar a arguida pelo crime de receptação nos termos do artº 231º/1 do CPP - padecendo como tal do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no artº 410º/2 al a) do C.P.P.

Argumenta do seguinte modo: “salvo o devido respeito por opinião contrária, o princípio da livre apreciação da prova não atribui ao juiz um poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas. Sempre salvo o devido respeito, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, sendo antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem.”

Acrescentando ainda “entendeu o douto Tribunal a quo, para fundamentar a existência do dolo, imputado à actuação da arguida, elemento necessário para a sua condenação pelo cometimento do ilícito penal em causa, que o dolo decorre da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum”

Contudo veio lembrar, que o elemento subjetivo no crime de receptação a ela imputado, para se encontrar preenchido, é necessário que o agente tenha conhecimento da proveniência ilícita da coisa e exista especificada a intenção do agente obter para si ou, para terceiro, vantagem patrimonial (dolo específico).

Nesse sentido, Ac. TRP de  03-04-2013, proc. 310/12.4TDPRT.P1, “ no nº 1. o receptador tem ciência certa de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, actuando com a intenção de obter vantagem da perpetuação de uma situação antijurídica, no nº 2 do receptador admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência ilícita.”

Assim, reportando-se ao caso dos autos, sustentou não ser compreensível como poderia a arguida, face à prova carreada para os autos, ter conhecimento de que os valores depositados, na sua conta, eram provenientes da prática de um crime patrimonial, ou, que, por si, foram por si levantados.

Resumindo, veio sublinhar não haver factualidade provada, que possa consubstanciar o elemento subjectivo deste tipo de ilícito, porquanto o nº 1 do artigo 231º do C.P a nível subjetivo, exige o dolo do agente, e que o mesmo tem de ser específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter para si ou para terceiro uma vantagem patrimonial.

Defende pois que da matéria de facto dada como provada e da prova que serviu de convicção ao Tribunal não parece que esteja provada, a representação e conformação do agente com a realidade em causa, nem tão pouco que o agente tivesse qualquer conhecimento da proveniência ilícita dos bens. Tanto mais que, não se conseguiu apurar porque razão foram feitas transferências para a sua conta, se a título oneroso ou gratuito, nem se logrou apurar se o mesmo tinha conhecimento direto da sua proveniência ilícita, nem mesmo sequer, a possível suspeita (que mesmo a existir se enquadraria no nº 2 e não no nº 1 do artigo 231º pelo qual a arguida vem condenada).

No caso dos autos, a arguida vem condenada pelo nº 1 do artº 231º do C.P e nesse sentido, a factualidade provada, que integra o tipo subjectivo, decorre do que se mostra descrito no artigo 12º da acusação pública, a qual foi julgada assente e descrita na sentença nos seguintes termos,

12“As arguidas agiram com o propósito de obter vantagem patrimonial para si e dissimular dinheiro ilicitamente obtido por outrem, querendo igualmente deter e assegurar a posse de tal dinheiro, bem sabendo da proveniência ilícita do mesmo, o que representaram, quiseram e conseguiram.”

Igualmente ficou provado na sentença:

11.As arguidas forneceram os IBAN’s das suas contas bancárias, acima identificadas, a um terceiro, de modo a permitir a receção de fundos referentes à realização de transferências bancárias não autorizadas, para conta bancária de sua pertença, conhecendo as arguidas a origem ilícita de tais quantias, que fizeram suas, designadamente que as mesmas provinham da prática por outrem de crime de burla informática, que de outra forma as arguidas não as teriam conseguido obter.(…)

13. As arguidas agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.”

Entende a arguida recorrente que tal factualidade não resulta do acervo provatório carreado para os autos, de forma a permitir entender o preenchimento dos requisitos do nº 1 do citado preceito legal.

Neste sentido conclui a arguida … que no caso em apreço, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, porquanto se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado, ou são contraditados por documentos ou outros elementos de prova analisados em julgamento e também padece a sentença do vício da insuficiência da matéria de facto provada para  a decisão porquanto ali não aparecem descritos como provados, os factos necessários para se poder concluir que esta arguida agiu com o dolo específico deste tipo de crime.

Requer assim, que esses factos descritos como provados sob os pontos 11.12. e 13, sejam julgados não provados e seja proferida decisão jurídica em conformidade, absolvendo a arguida da prática do crime de receptação p.p no artº 231º/1 do C.P, que lhe foi imputado na acusação pública.

Quid júris?

Como se sabe, o apelidado “erro de julgamento” pode suscitar dois tipos de recurso:

- um, que visa a reapreciação da prova produzida em julgamento, ao abrigo do artº 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido amplo ou lato);

- e outro com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o artº 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido restrito).

Resulta expressa na motivação do recurso, a pretensão da arguida de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mas nessa impugnação, não procedeu de acordo com o disposto no artº 412º n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal, sendo evidente do corpo da motivação, que não se mostram cumpridos os ónus formais de que depende a reapreciação da prova ou impugnação em sentido lato.

Ao longo da motivação, a recorrente limita-se a impugnar a matéria de facto, mas expressando apenas a sua própria valoração e apreciação da prova testemunhal e documental que foi produzida em julgamento.

Ora um pedido de impugnação da matéria de facto nos termos do artº 412º/3 do C.P.P, tem de obedecer a determinados pressupostos legais para poder proceder.

Ou seja, no caso de impugnação alargada, a reapreciação da matéria de facto por este Tribunal da Relação, depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites nos termos do nº 3 e 4 do artº 412º do C.P.P.

No que respeita a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto, tem que dar cumprimento a um duplo ónus a saber:

- indicar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;

- indicar as provas, que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe.

Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artº 412º do C.P.P).

O que se pretende pois, é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos que o recorrente se propõe.

Isto é, impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões sobre o objecto do recurso, especificando o que no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (artº 412º/3/c) do C.P.P).

E tal sucede assim, porque o recurso da matéria de facto foi concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial.

Por outras palavras, não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento na primeira instância não tivesse existido.

É antes um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente descriminados pelas partes.

Ou seja, a intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica” no sentido de delimitada, restrita à indagação ponto por ponto da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.

Não basta que se diga que determinado facto está mal julgado, sendo necessário constatar-se esse mal julgado, face às provas que são especificadas e concluir-se que às mesmas, o julgador injustificadamente retirou credibilidade.

Atente-se que o artº 412º nº3, al. b), do C.P.P. menciona provas que imponham decisão diversa e nessa medida tal como o acima referido, a decisão recorrida só é de alterar, quando for evidente que as provas produzidas e analisadas em audiência, não suportam aquela, não devendo ser alterada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.

Ora no caso presente, a arguida impugnou de forma especificada na sua motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos julgados provados e descritos na sentença, sob os pontos 11., 12, e 13), mas não indicou quaisquer provas, que imponham decisão diversa da recorrida – sendo certo que a versão da arguida, ora apresentada em sede de recurso, pela especificidade própria do seu estatuto processual, não pode neste caso ser encarada como meio de prova, que imponha uma decisão diversa.

Atente-se que o julgamento na 1ª instância, foi realizado na ausência da arguida … e além do mais, como se sabe, o arguido mesmo quando está presente em julgamento, não está sujeito a juramento e nessa medida, se decidir prestar declarações sobre o objecto da acusação, não está sujeito ao dever de falar com verdade, no mesmo plano que qualquer outra testemunha.

Ora, apreciados os depoimentos das testemunhas que foram valorados pelo Tribunal de julgamento (…) e todos os outros meios de prova em conjunto (prova documental, nomeadamente os extractos bancários e informações relativas às contas bancárias da ofendida e das arguidas), segundo as regras da experiência comum (cfr o que ficou expresso na motivação da sentença), é evidente que deles não resulta corroborada a versão da arguida …, quanto aos factos que lhe foram concretamente imputados pelo MP na acusação, no que respeita à sua apropriação indevida, da quantia de 890,00 euros no circunstancialismo de tempo e de lugar descrito na acusação e pelo modus operandi que se mostra descrito na factualidade provada na sentença (factos provados sob os pontos em 1. a 13.)

Assim o que sucede, é que a arguida recorrente misturou e confundiu erro notório, com erro de julgamento, na medida em que não foi apresentado um único argumento dirigido a erro presente no texto do acórdão, como se impunha, nos termos do artº 410º nº 1 al. c) do CPP (como melhor se verá adiante) e também não se mostra cumprido o ónus de impugnação especificada nos termos exigidos pelo artº 412º nº 3 al. b) do CPP, pois que não existe, nem nas motivações, nem nas conclusões, qualquer transcrição ou ao menos uma referência aos minutos e segundos, conforme as menções das actas das sessões da audiência de discussão e julgamento, ou de algum trecho de depoimentos prestados por testemunhas, nem foi feita a menor alusão a algum excerto de algum documento, auto de apreensão, relatório ou qualquer outra prova recolhida para este processo.

Ora como já ficou dito, o pressuposto legal, de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, só será observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas determinam necessariamente que os factos que o Tribunal julgou provados devam ser considerados não provados e vice-versa.

E esses termos têm de se reconduzir a ilegalidade, impossibilidade lógica ou arbitrariedade da decisão.

Por outro lado a arguida, na sua motivação de recurso, não faz qualquer referência às provas que devem ser renovadas, nem expressa formalmente um pedido de renovação da prova, ao abrigo do artº 412º do C.P.P.

Assim sendo, impõe-se a conclusão que não obstante a sua pretensão de querer impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, a recorrente não deu integral cumprimento ao artº 412º/3 e 4 do C.P.P.

Limitou-se a arguida, na realidade. a requerer de forma abrangente e generalizada a renovação de toda a prova produzida, no que respeita à conduta analisada pelo Tribunal a quo - apropriação indevida da quantia monetária, no valor total de 890,00 euros, que lhe foi transferida para a sua conta bancária, proveniente da conta bancária da ofendida …, sem o conhecimento e contra a vontade desta ultima – que integra o objecto destes autos, o que no fundo equivale a requerer um segundo julgamento.

Ora tal indicação/pretensão, não só não cai fora da previsão do citado preceito, como o pedido de realização de um segundo julgamento, não é como se sabe, permitido no nosso sistema de recursos.

Embora a recorrente possa com base na sua própria visão/convicção probatória, discutir a convicção que o Tribunal de julgamento formou quanto à prova, há que evidenciar desde logo, que por ausência de imediação e de oralidade, o Tribunal de 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que possui a 1ª instância.

Este Tribunal da Relação, só pode alterar o ali decidido, se as provas indicadas pelo recorrente, impuserem decisão diversa da proferida (alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P).

E no caso em apreço, ainda que a prova produzida e examinada na audiência da 1ª instância, nos pontos indicados pela recorrente, pudessem permitir - pelo menos na opinião daquela - uma decisão em sentido diferente, claramente ela não impunha decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, como acima já ficou dito.

Neste termos, não tendo a arguida dado integral cumprimento aos ónus resultantes do preceituado no artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (artº 431º do CPP).

Ou seja, melhor dizendo, não tendo a arguida, dado cumprimento aos ónus resultantes do preceituado no artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. P, improcede a impugnação de facto nos termos do artº 412º do C.P.P e consequentemente, a alteração da matéria de facto (artº 431º do C.P.P) só seria possível, caso a sentença padecesse de algum dos vícios do artº 410º do C.P.P, o que também se constata não ocorrer, como de seguida se passa a demonstrar.

Com efeito, numa averiguação acerca da existência dos vícios que se encontram previstos no artº 410º/2 do C.P.P, constata-se a partir da leitura atenta do texto da sentença recorrida, que a mesma não padece de qualquer desses vícios aí enunciados, nomeadamente do erro notório sobre a apreciação da prova, ou de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, expressamente invocados pela arguida.

Vejamos então em concreto, como a sentença recorrida, não padece do alegado vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no artº 410º/2 a) do C.P.P, ao contrário do que veio invocar a recorrente.

A insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que se reporta a alínea a) do nº 2 do artº 410º do C.P.P é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Segundo Simas Santos e Leal-Henriques (in Recursos em Processo Penal, 7ª Edição, Editora Rei dos Livros, 2008, pág. 72) este vício existirá quando ocorrer uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Tal circunstância não acontece nos presentes autos, uma vez que a decisão recorrida apurou a matéria de facto suficiente, para integrar/sustentar a decisão de direito, pois sem dúvida que relativamente ao crime de receptação dolosa a factualidade provada e descrita nos pontos 1 a 13 permite concluir de forma clara e segura, estarem preenchidos pela condutaa da arguida BB, todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo de ilícito p.p no artº 231º/1 do CP, pelo qual foi a mesma condenada em autoria material.

Com efeito, foi a matéria de facto dada como provada que conduziu à decisão sobre a matéria de direito e consequentemente à condenação da arguida e também à determinação da escolha e medida da pena, não se verificando a alegada insuficiência da matéria de facto provada para a decisão – não valem assim os argumentos invocados, para tentar afastar a incriminação pelo crime de receptação dolosa na forma consumada, invocando que não se mostram apurados factos suficientes para a decisão de Direito.

Importa ainda lembrar, que o artº 410º/2/a) do C.P.P estabelece uma conexão entre a matéria de facto provada e a decisão jurídica que nela assenta e não entre a prova produzida e os factos provados e não provados.

Nestes termos, não tem qualquer sentido a invocação deste vício nos termos em que é feita pela arguida, quando não se aponta em concreto, qualquer omissão da matéria de facto que pudesse impedir a decisão jurídica, tal como ela foi proferida no que respeita ao crime de receptação dolosa em causa.

Nos termos do artigo 231º  n° 1, do Código Penal:

"Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias".

Nos termos do n° 4 do mesmo preceito legal, se o agente fizer da receptação modo de vida, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

O conteúdo deste ilícito, consiste na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior (facto referencial) ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa.

Assim, no que se refere ao tipo objectivo de ilícito, a acção típica traduz-se na dissimulação, recebimento em penhor, aquisição por qualquer título, detenção, conservação, transmissão ou contribuição para a sua transmissão, de coisa obtida por outrem, mediante facto ilícito típico contra o património.

Quanto ao tipo subjectivo, é necessário que, por um lado, o agente saiba efectivamente que a coisa provém de um crime contra o património e que, por outro, tenha a intenção de obter, para si ou para outrem, uma vantagem patrimonial.

In casu, encontram-se preenchidos todos os elementos típicos do ilícito em apreço e os mesmos constam expressos na factualidade provada.

Na verdade, a arguida recebeu por transferência bancária, quantias monetárias que se encontravam na posse de terceiro não identificado, o qual, havia acedido às mesmas, contra a vontade da legítima titular (a ofendida …), visando obter por essa actuação, mais valia patrimonial.

Tais quantias monetárias haviam entrado ilegitimamente na posse de terceiro não identificado (factos provados sob 3 a 8), conhecendo a arguida tal origem ilícita (isto é que provinham da prática de um crime contra o património de terceiro), quando as recebeu na sua conta bancária (factos provados sob 11 a 13).

 Assim, em face de tal factualidade, dúvidas não restam de que a conduta da arguida integra, objectivamente, a prática do crime de receptação, tipificado na norma legal supra referida.

Ao nível da imputação subjectiva dos factos à arguida, este crime é punido a título doloso.

In casu, ficou provado que a arguida … conhecia a proveniência ilícita de tais quantias monetárias, das quais um agente não identificado sse havia previamente apropriado (cfr o descrito nos pontos 3 a 8 da factualidade provada), por meio de factos criminosos (crime contra o património), a fim de posteriormente serem transferidas tais quantias, para contas bancárias de outros sujeitos (nomeadamente a conta bancária da arguida ora recorrente), que para tal se disponibilizaram e, assim por essa via, facultar-lhes uma vantagem patrimonial.

Mais se provou que a arguida sabia que a sua conduta era ilícita, e ainda assim quis actuar da forma descrita (factos provados sob 11 a 13).

Agiu pois a arguida, com dolo directo (artº 14º/1 do C.P), pelo que é indiscutível que se constituíu autora material do crime de receptação, p.p. pelo artº 231° n° 1, do Código Penal.

Tal como já acima ficou dito, os factos seleccionados como relevantes para a decisão recorrida, descritos na matéria de facto provada sob os pontos 1 a 11 (elementos objectivos deste tipo de ilícito agora em análise) e nos pontos 12. a 13. (elementos subjectivos do crime de receptação dolosa imputado à arguida) além de abrangerem todo o objecto do processo, são suficientes para decisão de direito proferida na 1ª instância, a qual se revela conter uma solução perfeitamente plausível.

Por outras palavras, tudo aquilo que segundo a lei, pode e deve ser valorado pelo juiz de julgamento, para efeitos de determinar se a arguida incorreu em responsabilidade penal, (isto é, se a sua conduta preencheu todos os elementos subjectivos e objectivos do crime de receptação dolosa que lhe foi imputado) e para fixar o quantum das respectiva pena concreta, foram oportunamente considerados e apreciados pelo Tribunal a quo no caso presente, como resulta da simples leitura do texto da decisão recorrida.

Tudo visto, é notório não padecer  sentença recorrido do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

Igualmente não vislumbramos na sentença qualquer erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº 2 c) do C.P.P.,

Este vício configura-se quando se retira de um facto dado como provado, uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.

O erro notório na apreciação da prova tem pois que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença, existe este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.

Ocorre este vício, quando se dão por provados factos, que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorrecta, quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” ou quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dubio”.

«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de  06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, in http://www.dgsi.pt).

O que não se confunde com eventual incongruência ou inadmissibilidade legal que o recorrente, com base na sua convicção, julgue encontrar entre a prova produzida e a decisão do tribunal, pois a verificar-se tal incongruência ou ilegalidade a mesma respeita ao mérito do julgamento em matéria de facto e ao modo como o Tribunal valorou e examinou as provas, não a vício manifesto da própria sentença, a partir do seu texto.

Fora deste quadro, e da invocação de vícios decisórios, a manifestação de divergência com o decidido, sem outra forma válida de impugnação, conduz a manifesta  improcedência do recurso.  

Alega a recorrente, que a sentença padece deste vício de erro notório na apreciação da prova, porquanto o Tribunal recorrido, nunca poderia ter julgado como provados os factos descritos sob os pontos 1. a 13 a partir da prova testemunhal e documental, que foi produzida em audiência.

Argumenta, não ser claro o percurso cognoscitivo e valorativo que levou à tomada da decisão por parte do Tribunal, quanto à prova daqueles factos em concreto, isto é, entende que não se faz aí referência ao percurso lógico e valorativo que levou a que da prova produzida se pudesse retirar em julgamento, a conclusão de que a arguida se apropriou indevidamente de quantias monetáras no valor total de 890,00 euros, que autorizou fossem transferidas para a sua conta bancária, bem sabendo que as mesmas tinham proveniência ilícita, isto é, que resultavam da prática de um crime contra o património, nos moldes descritos na factualidade provada, sob os pontos 1) e 13), pelo que na óptica da recorrente, o Tribunal a quo não fez um verdadeiro exame crítico das provas.

Desta forma, a arguida veio imputar à sentença recorrida, um erro notório na apreciação da prova, que foi utilizada pelo Tribunal a quo, para fundamentar os factos provados descritos nos pontos 11, 12 e 13, os quais foram impugnados especificadamente pela  recorrente.

E defende que tais factos têm de ser postos em causa, por não ter sido feita prova suficiente que permita com exatidão e imparcialidade que se exige, atribuir a si, o conhecimento da proveniência ilícita de tais quantias monetárias, que foram transferidas para a sua conta bancária, pelo que não se poderia concluir como fez erradamente o Tribunal a quo, que a sua actuação foi dolosa.

Termina pois pedindo que a sentença recorrida, seja alterada no que respeita a esta factualidade supra mencionada, e os factos provados sob o nº 11, 12 e 13, acima referidos, sejam julgados não provados.

Vejamos então se assiste razão à recorrente.

Extrai-se da motivação de recurso apresentada pela recorrente, que o cerne da sua discordância, assenta na valoração da prova efetuada pelo Tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador, que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.

No caso em apreço, a prova foi efectivamente apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não existindo qualquer erro, como alega a recorrente.

Examinados os factos provados descritos na sentença e a respectiva fundamentação, entendemos que não assiste qualquer razão à arguida e a sua argumentação, além de não ser relevante juridicamente, em termos de poder integrar o vício que invoca, de erro na apreciação da prova (porquanto é evidente que a recorrente se está a socorrer de elementos de prova externos ao próprio texto da decisão recorrida), tal alegação também não possui qualquer consistência.

Com efeito, a arguida recorrente, discordou da valoração que o Tribunal a quo efetuou da prova testemunhal e documental, mas sem apresentar quaisquer elementos de prova examinados em juízo, com idoneidade para comprovar esta sua versão.

De tudo o acima exposto se vê, que o seu recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto, assenta pois essencialmente numa discordância entre aquilo que o Tribunal a quo julgou como provado e aquilo que a recorrente entende ter resultado da sua própria apreciação da prova tesemunhal e documental produzidas.

Tal como bem foi sublinhado pelo MP na sua resposta, também nós entendemos que a apreciação que o Tribunal a quo efetuou, quer do depoimento das testemunhas, quer da restante prova documental, produzidas em julgamento, não nos merece qualquer reparo.

Isto porque, como já dissemos supra, existindo duas versões opostas, trazidas a juízo, sobre os acontecimentos descritos na acusação, perante as dúvidas suscitadas sobre qual é a versão verdadeira, prevalece aquela que o Tribunal aceitar como válida, desde que devidamente fundamentada a mesma, como efectivamente sucedeu neste caso.

Na realidade, se nos focarmos em concreto, na factualidade que foi dada como assente, claramente se vê, que o Tribunal a quo não se bastou com as declarações prestadas em juízo pelas testemunhas, mas foi igualmente ponderada toda a restante prova documental, cfr passagem a seguir transcrita (com sublinhados nossos):

“O Tribunal formou a sua convicção no depoimento prestado pela testemunha …, inspector da Polícia Judiciária, o qual, de forma objectiva, elucidativa e lógica, esclareceu as diligências que foram realizadas nos autos para chegar às contas destino e, respectivamente, aos seus titulares.

Mais se suportou o Tribunal no depoimento da testemunha …, vítima nos autos, a qual depôs de forma natural, distanciada e coerente.

O Tribunal teve, ainda, em atenção a prova documental junta aos autos, a qual foi analisada e ponderada de forma crítica, designadamente informações bancárias de fls. 32v.-33v., 36-37, 49-50, 52-53, 57-59, 61-62, 81-85, 106, 110-127 e talão bancário de fls. 48 e 51.

A matéria provada que diz respeito aos elementos subjectivos, bem como a ilicitude, com que as arguidas actuaram é resultado de uma análise conjugada e crítica entre os elementos objectivos que resultaram provados e as regras da experiência comum e do normal acontecer.

Concretizamos.

Nos presentes autos, a vítima foi contactada em 18.10.2021 e, no seguimento das conversas levadas a cabo por terceiro não identificado, as operações bancárias, mediante MBway ocorreram em 19.10.2021.

Da análise da prova documental junta aos autos, designadamente os extractos bancários e as informações relativas às contas das arguidas resulta que os valores indevidos entraram nas suas contas (em vários movimentos), precisamente, no dia 19.10.2021, sendo que tais valores são provenientes da conta bancária da vítima e no seguimento de operações através de MBway.

Ora, não se nos afigura que tal constitua uma mera coincidência ou, tão pouco, que as arguidas desconhecessem, pelo menos, que tais valores eram provenientes da prática de um crime patrimonial.

Vejamos.

Para a conta de … foram feitas 4 transferências, num total de € 2.500 e, para a conta da arguida … foram feitas 7 transferências, num total de € 890.00.

Estamos a falar de valores a cima do salário mínimo nacional, … Não se afigura minimamente razoável que um cidadão comum receba na sua conta várias transferências bancárias, num total considerável e não saiba que a sua proveniência resulta da prática de um crime patrimonial.

Aliás, demostrativo de tal conhecimento é a circunstância das arguidas, na exacta data em que o dinheiro entra nas suas contas, procedem, de imediato, a várias operações de levantamento perfazendo (pasme-se a “coincidência”!) no respectivo total que havia entrado na conta, ou seja, num total de € 2.500 no caso da arguida CC e de € 890,00 no caso da arguida ….

Tudo isto para concluir que tiveram de resultar como provados os elementos subjectivos descritos na acusação pública.

Os factos provados relativos às condições socio-económicas das arguidas são o resultado do teor dos relatórios sociais juntos aos autos.

Quanto à facticidade assente que se refere aos antecedentes criminais (ou ausência dos mesmos) é fruto da análise dos CRC juntos aos autos.”

Perante esta fundamentação da matéria de facto, podemos constatar que no fundo, o que ocorre aqui, é que a arguida discordou da leitura ou apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo e como é sabido, essa simples discordância, não pode servir de fundamento para motivar a procedência de um recurso.

Na verdade, como é do conhecimento geral, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consignado no artº 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Estamos pois em sede de um certo poder discricionário do Juiz quesó pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não se verificam notoriamente.

 Com efeito, citando a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 6.3.2002 in C.J II, 44:Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.

Desta forma, o Tribunal a quo, entendeu ser possível concluir, da análise da toda a prova produzida, estar suficientemente demonstrada sem qualquer dúvida, a factualidade que se encontra descrita na acusação, relativamente à apropriação indevida por parte da arguida, com vista à obtenção de vantagem patrimonial, de quantias monetárias, no valor total de 890,00 euros, que recebeu por transferência bancária na sua conta bancária, previamente por ela disponibilizada para esse efeito, ao agente (não identificado) que por via da prática de crime contra o património de terceiro, se apoderara das mesmas, bem sabendo a arguida, que tais quantias tinham proveniência ilícita e que a sua actuação era punida e censurada por lei”

De resto, como se sabe, a decisão da matéria de facto, tem de resultar da análise conjunta e avaliação crítica de toda a prova produzida em audiência e não apenas de segmentos fragmentados dessa mesma prova.

Por outro lado, de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.

Nessa medida a atribuição de maior ou menor força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.

A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgado, construída na base da imediação e da oralidade.

No seu recurso a arguida, em sede da impugnação da decisão de facto que suscitou não logrou pois, nem nas motivações, nem tão-pouco, nas conclusões, ilustrar minimamente em que base assenta o alegado “erro de julgamento”, quanto aos factos que segundo ela, o Tribunal recorrido considerou, no seu desacerto, julgar provados.

Na realidade, quanto aos factos provados sob os pontos 11. a 13 da sentença ficou assente que a arguida BB, sabia e estava ciente de que as quantias monetárias ali mencionadas e que foram transferidas para a sua conta bancária, haviam sido obtidas através da prática de crime contra o património de terceiro.

No que concerne ao nexo de imputação subjectiva, dos factos à arguida ora recorrente, que actuou, participando e contribuindo na dissipação do dinheiro ilegitimamente apropriado, cedendo a sua conta bancária, o seu NIB para esse efeito ao autor do crime praticado contra o património da … (ofendida nos autos), face ao que consta da motivação sobre a decisão da matéria de facto, dúvidas não se colocam, que o Tribunal de 1ª instância se alicerçou em prova indirecta, resultante da aplicação de regras de experiência comum e de dedução lógica aos factos conhecidos e resultantes da prova directa, através de testemunhas, e análise dos documentos, meios de prova analisados em julgamento. 

Como já se referiu, as presunções judiciais são meios de prova e um mecanismo de resolução de estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime, nomeadamente e em especial quanto ao dolo – como tem vindo a defender, grande parte da jurisprudência nos Tribunais da Relação e também com acuidade, o STJ.

Chamamos aqui à colação a jurisprudência plasmada no Ac. da Rel. do Porto de 23.2.83, segundo a qual, a intencionalidade, pertencendo ao dolo, respeita à “vida interior de cada um”, sendo “portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, dos quais o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimentos dos elementos (objectivos) integrantes da infracção. Pode, de facto comprovar-se a verificação do dolo, por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou regra geral da experiência” – cfr BMJ nº 324/620.

Na verdade, ao ceder a sua conta bancária para nela receber transferências monetárias de contas bancárias de terceiros, e ao apoderar-se dessas quantias aí depositadas logo que entradas na sua conta, nenhuma dúvida resta de que a arguida … actuou, representando como certo e conformando-se com essa realidade, isto é, que tais quantias tinham origem na prática de actos ilícitos contra o património de terceiro e que a sua actuação visava dissimular a proveniência ilícita dessas quantias monetárias e simultaneamente retirar benefício com tal conduta, assim obtendo vantagem patrimonial (pois de outro modo nunca teria acesso a tais quantias).

Como é sabido de todos, o dolo (estando aqui em causa o dolo directo previsto no artº 14º/1 do CP) é um fenómeno psicológico que, situando na vida interior de cada um, só é observável diretamente por quem o experiencia.

Da sua natureza subjetiva, nasce a sua insusceptibilidade de apreensão directa por terceiros.

Assim como acontece em geral com os actos interiores ou factos internos, respeitantes à vida psíquica, que raramente se provam directamente, porque não são externamente observáveis, também a demonstração da existência do dolo é frequentemente feita por inferência ou dedução lógica, partindo dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos e demais circunstâncias que contextualizam a prática do crime.

E, assim se prova o dolo, com base em prova indirecta, tão válida quanto seria, caso o arguido tivesse confessado integralmente e sem reservas os factos.

«A prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.» (Ac. da Relação de Lisboa de 15.12.2015, processo 200/15.9PBOER.L1-5. No mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 18.03.2015, processo 400/13.6PDPRT.P1, de 31.10.20218, proc. 423/16.3PBVLG.P1, da Relação de Lisboa de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação do Porto de 10.11.2021, proc. 229/19.8GCVFR.P1in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Gonzalez Lagier in La Prueba de la Intención y el Principio de la Racionalidad Mínima, http://dialnet.unirioja.es/servlet/dcfichero_articulo?codigo=964175; Ana Maria Barata de Brito in A valoração da prova e a prova indireta, pág. 125, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_ProvaIndireta2020.pdf, Ragués i Vallès, in Considerationes sobre la prova del dolo, http://web.derecho.uchile.cl/cej/recej/recej4/archivos/PRUEBA%20DEL%20DOLO%20RAGUES%20_8_.pdf).

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do silêncio do arguido e das presunções judiciais e tendo presente o artigo 6º da CEDH no seu acórdão de 20.03.2001 (Caso Telfner c. Áustria), também considerou que «as presunções legais (de culpa) e o juízo que se faça do silêncio do arguido não são, em regra e só por si, incompatíveis com a presunção de inocência».

O artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição.

«A prova do dolo e da consciência da ilicitude dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, e, por isso, há que proceder à conjugação da demais factualidade julgada provada com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida para se poder concluir pela prova daqueles.

«Além da confissão do arguido, o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta).

A prova indirecta é aceitável e usada como alicerce da convicção em plano de igualdade com a prova directa, desde que verificados determinados pressupostos.

Exigir a prova directa implicaria o fracasso na luta contra o crime, ou para essa consequência se evitar, o recurso à confissão, o que significaria o levar ao máximo expoente o valor da prova vinculada, taxada, e a tortura enquanto efeito à vista se a confissão redundasse em insucesso ( cfr. Carlos Clement Durán, La Prueba Penal, 1999, págs. 575 e 696 , J.M. Ascensio Mellado, in Presunção de Inocência e Prueba Indiciária, 1992, citado por Clement Durán a págs. 583).

Para essa conclusão (por prova indirecta) acerca da actuação dolosa da arguida, no caso em apreço, muito contribuiu a reflexão sobre o que representa ser titular de uma conta bancária e as suas formas de movimentação, que a seguir aqui se deixa expresso.

Um depósito bancário pecuniário, em que uma ou mais pessoas entregam a uma instituição bancária uma determinada quantia em dinheiro, ficando este obrigado a devolver ao depositante, nas condições acordadas, a mesma importância e, por norma, acrescida de juros, constituí um contrato de depósito que o Código Civil classifica como depósito irregular (art. 1205º C.C.), mas, atenta a forte semelhança deste contrato com o mútuo, manda aplicar-lhe, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo (art. 1206º C.C. ).

São elementos essenciais do depósito irregular a entrega material ou electrónica pelos depositantes de uma quantia em dinheiro ao banco depositário e a restituição de quantia de igual montante, normalmente, acrescida de juros.

E é, em parte um negócio jurídico real  «quoad constitutionem», que exige, além do acordo das partes, um acto material de entrega dos fundos monetários, e «quoad effectum», pois implica a transferência da propriedade dos fundos para a instituição bancária, ficando o depositante (anterior proprietário dos fundos) na titularidade (por conversão do seu direito real) de um direito de crédito à devolução das importâncias depositadas, a qual tem como reverso a obrigação de restituição por equivalente (artigo 1206º e 1142º do CC), o que vale por dizer que, com a celebração do depósito bancário, o banco passa a ser o titular do direito de propriedade sobre os valores depositados pelo cliente, ao passo que este fica dele sendo credor na mesma medida, com direito à sua restituição (Antunes Varela, "Depósito Bancário", in "Revista da Banca", nº 21, p. 47; Paulo Ponces Camanho, "Do Contrato de Depósito Bancário", 1998, p. 209; José Maria Pires, "Direito Bancário", 2º vol., p. 168; Calvão da Silva, Direito bancário, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 347-349; António Menezes Cordeiro, Direito bancário, 6.ª ed., com a colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 604.

O titular de uma conta é a pessoa a quem pertencem os fundos depositados e é o responsável pela sua movimentação.

Quando a conta bancária tem mais do que um titular, designa-se por conta colectiva.

A conta colectiva pode revestir duas modalidades: conta conjunta, cuja movimentação só pode ser válida e eficazmente efectuada através da intervenção simultânea de todos os titulares, aquela «que só pode ser movimentada a débito pela actuação conjunta de todos os seus titulares» ( Paulo Ponces Camanho, "Do Contrato de Depósito Bancário", 139); conta solidária, em que qualquer um dos seus titulares a pode movimentar isoladamente, tanto a débito como a crédito.

Como na conta bancária solidária, qualquer dos credores (depositantes ou ti-tulares da conta) tem a faculdade de exigir, por si só, o reembolso de toda a quantia depositada, a prestação assim efectuada desonera o devedor (o banco depositário), do respectivo cumprimento para com todos os credores (art. 532.º CC). Isto, apesar da divisibilidade da prestação. Contrariamente, na conta conjunta, só a restituição efectuada a todos os titulares tem carácter liberatório.

«O contrato de depósito bancário (…), como contrato conexo com a (abertura de) conta bancária (contrato-matriz), beneficia do regime de movimentação acordado para o caso de ser uma conta colectiva (aberta ou ulteriormente colocada no nome de dois ou mais titulares): solidária (livremente movimentada a débito por qualquer um dos titulares), conjunta (apenas movimentada simultaneamente por todos os titulares) ou mista (alguns dos titulares podem movimentar a conta mas apenas em conjunto com outro ou outros dos titulares).

«Este regime de movimentação e funcionamento dos débitos em conta constitui declaração tácita sobre a solidariedade ou conjunção do direito de crédito à restituição perante o banco proprietário dos fundos depositados (arts. 512º, 1, 2ª parte – «cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles»; 513º – resulte «da vontade das partes» – e 217º do CCiv.).

«Sendo solidários estes direitos de crédito em face do banco proprietário, pode haver estipulação das partes sobre a quota-parte ideal que a cada um compita nas relações internas; nada se convencionando, presume-se que os credores «comparticipam em partes iguais no crédito», «sempre que da relação jurídica existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve obter o benefício do crédito» (art. 516º do CCiv.)» (Ac. do STJ de 11.07.2023, proc. 400/18.0T8PVZ.P1.S2, in http://www.dgsi.pt).

Além do mais, experiência comum, os usos sociais e as regras da lógica e de mínimos básicos de prudência ensinam à generalidade dos cidadãos, quais são os perigos associados à utilização de contas bancárias de que são os legítimos titulares, por terceiras pessoas, mais ou menos conhecidas, ou mesmo desconhecidas, ademais com a informação precisa sobre o NIB ou o IBAN do titular dessas contas bancárias.

Tudo isto para dizer, que faz parte do senso comum, a constatação de que uma conta bancária não é algo que se empreste para ser usado por outrem, sem qualquer tipo de restrição, como se fosse essa pessoa a titular da conta e perdendo esta última o controle sobre as entradas e saídas de dinheiro, os montantes depositados, transferidos, ou aplicados noutros produtos financeiros, a partir dessa conta ou para essa conta bancária.

Efectivamente, as contas bancárias com indicação dos correspondentes NIB ou IBAN não são coisas que se emprestem a terceiros, ou cuja utilização se disponibilize a terceira pessoa, para mais desconhecidas, apenas a pedido destas e a título de mera cortesia, como informam as regras básicas de senso comum, os usos e hábitos sociais enraizados, e ainda por razões óbvias de segurança jurídica patrimonial, que são do conhecimento generalizado de qualquer cidadão minimamente informado - sendo certo que não consta do processo, nem ficou provado no caso em apreço, que a arguida tivesse qualquer tipo de relação com o agente que procedeu à transferência bancária da conta bancária da ofendida para a conta bancária da arguida.

Basta pensar aliás, que até a contitularidade da mesma conta bancária, assenta em relações da mais estrita confiança entre as pessoas visadas, tem de ser expressamente autorizada e comunicada à instituição bancária depositária - exactamente para garantir, entre outros valores a integridade dos depositantes - e também que a actividade bancária tem associado um segredo profissional que de todos os cidadãos é conhecido.

Para além destas considerações de elementar prudência, e cuidado, no domínio das relações sociais e dos usos de comércio adaptados à actividade bancária de todos conhecidos, também não se pode ignorar o contexto social e económico em que a arguida BB vivia, cfr o provado em 22. a 26. – a arguida nunca trabalhou, o seu agregado familiar não possuia rendimentos e vivia em condições económicas precárias - incompatível com a movimentação registada em 19.10.2021 na conta bancária de que era a única titular, de várias quantia no montante total de 890,00 euros, que fez suas – cf o provado em 11.

Daí que nada adianta à arguida, vir neste recurso, alegar a inexistência de factos na sentença, donde se possa retirar ter ficado provado o seu conhecimento acerca da proveniência ilícita de tais quantias – isto é, que sabia derivarem as mesmas da prática de um crime contra o património e que delas se apoderou e fez suas, da forma descrita na sentença.

 Essa demonstração de que agiu com dolo directo e com intenção de obter para si ou terceiro, uma vantagem patrimonial, com a sua actuação descrita na sentença, está efectivamente expressa na motivação da decisão sobre a matéria de facto, através do recurso à prova por presunção, sendo para nós evidente também, para além de qualquer dúvida razoável, que a arguida …, não podia ignorar que a sua conta bancária, estava a ser usada como veículo de dissimulação de dinheiro pertencente a outrem e que se estava ilegitimamente a apropriar do mesmo, por se tratar de dinheiro com uma proveniência criminosa.

Por outro lado, nem se diga como veio alegar a arguida para sua defesa, não ter ficado provado que a cedência da utilização da sua conta bancária por terceiro, foi feita a troco do recebimento de alguma vantagem económica, conferida pelo agente que procedeu à transferência.

Mesmo que assim seja, essa não prova, é inócua para o caso presente, na medida em que o recebimento pelo receptador, de uma recompensa monetária ou outra, conferida pelo agente do crime contra o património, não é elemento do crime de receptação pelo qual a arguida foi condenada.

Daí que nada temos a censurar à decisão recorrida, ao considerar demonstrado o dolo da arguida - nos termos em que o mesmo é exigido na norma incriminadora, que descreve o crime de receptação p.p no artº 231º/1 do C.P -, com base em máximas de experiência e critérios de dedução  lógica a partir da análise do comportamento exterior da arguida recorrente que se encontra descrito na factualidade provada, cfr o referido na motivação da decisão de facto.

A partir da análise atenta e crítica da prova documental existente nos autos (extractos bancários e informações relativas ás contas bancárias da ofendida e da arguida) e dos depoimentos prestados em julgamento, a explicação plausível para o comportamento da arguida, à luz das máximas de experiência comum e das regras básicas da lógica das coisas é precisamente aquela que o Tribunal a quo encontrou e deixou expressa na sentença recorrida: a arguida … sabia da proveniência ilícita do dinheiro que foi transferido para a sua conta bancária e foi para esse efeito que cedeu a utilização da sua conta a terceiro da forma como o fez.

Precisamente para obviar a esses como a outros riscos de utilização abusiva e indevida de depósitos bancários à ordem, para ocultar e dissipar dinheiro proveniente da prática de crimes, é que, além de múltiplas outras restrições legalmente impostas à actividade bancária pelos mais diversos mecanismos de regulação e supervisão, está prevista legalmente a possibilidade de várias pessoas serem contitulares de uma mesma conta bancária ou, mesmo não sendo contitulares, serem autorizadas a movimentá-la por quem seja delas titular, através de cláusulas expressamente introduzidas para tais finalidades, no contrato de depósito celebrado com a instituição bancária e que visam assegurar a segurança jurídica de todos os intervenientes, quanto à integridade do seu património e o rigor e a credibilidade da actividade bancária.

Naturalmente, que essa titularidade conjunta ou a mera autorização de gestão dos fundos existentes na conta bancária constituem negócios jurídicos, cuja validade e eficácia depende da sua redução a escrito, precisamente, para garantir esses níveis de confiança absolutamente essencial ao tráfego jurídico, comercial, bancário e financeiro.

Estas são regras tão antigas quanto a actividade bancária e de aplicação universal, pelo que, à reivindicação de desconhecimento da proveniência criminosa do dinheiro que aceitou manter temporariamente depositado na conta bancária de que era a única titular, com indicação expressa do seu NIB ou até a justificação que costuma também ser apresentada neste tipo de situações, de que apenas pretendiam ajudar a pessoa que lhe fez o pedido de cedência daquela conta para depósito e correspondente NIB, o que cumpre contrapor é a seguinte pergunta:

- se assim fosse, porque é que então, não acordou a arguida com a sua instituição bancária, uma adenda ou alteração ao contrato de depósito inicialmente celebrado, de forma a integrar essa outra pessoa, na contitularidade da conta bancária, ou conceder-lhe autorização de movimentação da sua conta bancária?

Esse é que seria o comportamento expectável de alguém, que estando de boa fé e genuinamente convencido da legalidade da cedência da sua conta bancária e respectivo NIB e/ou IBAN e sua subsequente utilização, quisesse apenas ajudar outrem a movimentar dinheiro ganho de forma legítima, num contexto de conhecimento pessoal, de confiança e de intuito altruísta.

Esta questão assim formulada, fica pois sem uma outra resposta lógica e racional que não seja a de que a arguida recorrente, não concedeu autorizações escritas e acordadas com a instituição bancária visada, nem alterou a titularidade dos depósitos no contrato de abertura da sua conta bancária, precisamente, por estar consciente dos fins ilícitos e penalmente censuráveis que iriam ser prosseguidos com a utilização da sua conta bancária e dos seus NIB e IBAN, o que vale por dizer, que sabia que o dinheiro que iria e veio a ser depositado na sua conta bancária, não pertencia à pessoa que ordenou aquela transferência e bem assim, que a conta bancária de que era a única e exclusiva titular, iria constituir um mecanismo de ocultação e integração no circuito legítimo do mercado e do tráfego jurídico e bancário de dinheiro obtido através da prática de crime contra o património de outrem.

Neste seguimento e tal como foi sublinhado pelo M.P na 1ª instância e nesta Relação, também nós entendemos, que a convicção da Srª Juíza que presidiu ao julgamento realizado na 1ª instância, se mostra devidamente explicitada, num processo lógico dedutivo, conforme às regras da experiência comum e dos normais acontecimentos da vida e assente numa análise conjugada de provas legítimas, sendo como tal inatacável, porque devidamente enquadrada no artº 127º do C.P.P.

Resulta claramente que a recorrente pretende é pôr em causa o processo de valoração da prova efectuado pelo Tribunal a quo, querendo na verdade, que a mesma prova seja valorada de acordo com a sua própria apreciação, esquecendo-se, contudo, que a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga – artº 127º do C. P. Penal  e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão.

Livre apreciação essa todavia, que não significa livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos, expressos através da motivação.

Sendo assim, não assiste razão à arguida neste segmento do recurso e ao impugnar a matéria de facto da forma supra referida, pareceu esquecer a suficientemente detalhada fundamentação, elaborada pelo Tribunal de 1ª Instância, na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Aí foram expressamente indicados os meios de prova tomados em consideração, deu-se conta da relevância que foi atribuída a cada um deles, ficando assim devidamente fundamentada a decisão de considerar provados, os factos supra mencionados, que integram o tipo objectivo e subjectivo do crime de receptação dolosa p.p no artº 231º/1 do CP.

O Tribunal recorrido não violou assim, as regras da experiência comum nem da lógica, ao valorar os depoimentos supramencionados, nos termos em que o fez.

Em nosso entender, no caso em apreço, face à motivação da decisão de facto, expressa na sentença final condenatória, o Tribunal a quo reportou-se expressa e detalhadamente à ponderação de toda a prova produzida (prova testemunhal e prova documental) num raciocínio lógico e inteligível, donde resulta terem sido examinadas criticamente, todas as provas que serviram para formar a sua convicção.

A convicção assim formada pelo Tribunal a quo não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgado, construída na base da imediação e da oralidade.

Por todas as considerações acima referidas, o Tribunal a quo logrou concluir da análise crítica de toda a prova examinada em audiência, haver sido produzida suficiente e consistente prova, no sentido de permitir de forma fundada e sem quaisquer dúvidas, imputar à arguida, a prática em autoria material de um crime de receptação dolosa p.p no artº 231º/1 do C.P tal como o descrito na acusação pública.

Entendemos na realidade, como acima já dissemos, que essa apreciação se mostra devidamente fundamentada na sentença, de forma coerente e lógica, de acordo com as normas legais e as regras da experiência comum, estando pois estruturada de forma respeitadora dos diversos critérios legais e designadamente do artº 374º/2 e artº 127º do C.P.P.

Não se vislumbra assim repete-se, da matéria de facto julgada provada e da respectiva fundamentação acima reproduzidas, qualquer apreciação da prova que resulte ser manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, denunciando a existência de um erro notório evidente para um cidadão comum ou um jurista com preparação normal.

Apenas uma consideração final para dizer ainda o seguinte:

Em nosso entender, da leitura do texto da sentença recorrida, considerando os meios de prova produzida em julgamento, e a respectiva análise que é feita na fundamentação sobre a matéria de facto, não é possível dar como provado, mesmo por recurso à prova indireta (por presunção), que a arguida … soubesse exactamente qual o concreto crime contra o património praticado pelo terceiro não identificado, responsável pela transferência das quantias monetárias para a conta bancária da arguida, após terem as mesmas saído da conta bancária da AA, da forma descrita em 3. a 8.

A arguida sabia necessariamente que tais quantias monetárias que recebeu na sua conta tinham proveniência ilícita, resultante da prática de um crime contra o património (pelasa razões já acima enunciadas), mas nenhuma prova foi produzida no sentido de indicar com a certeza que a lei exige, que esse seu conhecimento abrangia também qual o “tipo em concreto de crime contra o património” que fora praticado pelo agente, que passou o dinheiro à arguida receptadora (se era um crime de burla informática, de furto ou outro qualquer crime contra o património).

Desta forma, concluimos que em face da prova produzida em audiência de julgamento, é de manter inalterado tudo o que consta do elenco de factos provados descritos na sentença, à excepção da menção no facto nº 11 a seguir indicada: “designadamente que os mesmos provinham da prática por outrem de crime de burla informática”,  factualidade esta que se deve considerar não provada, sem prejuízo da manutenção da restante factualidade provada que se mantém inalterada e sem que tal alteração implique qualquer modificação no sentido da imputação ilícita que foi feita na acusação e na decisão condenatória proferida na 1ª instância.

Em resumo, com a ressalva feita à factualidade provada descrita sob o nº 11, nada há a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, mais concretamente, no que se refere ao depoimento das testemunhas ouvidas em juízo.

Concluindo, nada a apontar portanto, quanto aos factos provados descritos na sentença recorrida, (com a ressalva do desrito no facto nº 11 que deve ser reformulado) os quais se mostram bem julgados, de acordo com a prova produzida em audiência e como tal, a matéria de facto não pode ser alterada no sentido pretendido pela arguida, considerando-se definitivamente fixada (à excepção de parte da factualidade descrita sob o ponto 11).

Improcede, assim, a impugnação feita pela arguida recorrente quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, encontrando-se a sentença bem fundamentada, não padecendo igualmente de nenhuma ilegalidade ou nulidade, tendo sido proferido de acordo com a lei constitucional e processual, sem qualquer violação nomeadamente do artº 32º/2 da C.R.P e artº 374º/2 do C.P.P.

B) Da alegada violação do princípio in dubio pro reo

Relacionado com a valoração da prova, alegou ainda a recorrente, ter havido violação do princípio do “in dubio pro reo”, que invoca a seu favor para obter uma absolvição.

Para o efeito, argumentou: (conclusões 24 a 29):

Da factualidade provada verifica-se, salvo melhor e douta opinião, que os factos provados não são suficientes para condenar o Recorrente pelo crime de recetação, nos termos do nº 1 do artº 231º do C. Penal, o que significa que, beneficia o Recorrente do princípio do in dubio pro reo.

O princípio da presunção de inocência, consagrado no artº 32º nº 2 da CRPort., constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artº 18º nº 1 CRPort.) e surge articulado com o princípio da livre apreciação da prova produzida.

Dispõe o artº 127º CPPenal que a prova é apreciada livremente segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º CPPenal não liberta o julgador das provas que se produziram nos autos, já que é com elas e com base nelas que terá de decidir, pois, quod non est in actis non est in mundo.

O princípio do in dubio pro reo, constitui um princípio provatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.

Assim, a falta de prova sem dúvidas de outros elementos que seriam essenciais impõe aplicação do instituto do in dubio pro reo, pelo que se impõe absolver a Recorrente do crime pelo qual vem condenado (…).”

Vejamos.

Em face do que já acima referimos aquando da análise da impugnação da matéria de facto, não é minimamente aceitável a tese vertida no recurso, que se revela totalmente inconsistente, dado que a convicção do Tribunal a quo se mostra alicerçada em factos objectivos e concretos, que o julgador não teve dúvidas em dar como provados.

Na verdade, este princípio in dubio pro reo tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido.

É um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica.

Trata-se de um princípio, que traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena, sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido e que não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais.

Por isso, não podemos deixar de realçar que a violação de tal princípio, só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim, condenasse a arguida, pelo crime de receptação dolosa p.p no artº 231º/1 do C.P.

O que não foi o caso.

Tal como as presunções judiciais são meios de prova, também o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art. 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova.

Ambos são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.

O princípio in dubio pro reo pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida do julgador, cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido.

A prova por presunção, através da inferência lógico-dedutiva, a partir de indícios ou factos circunstanciais ou colaterais ao objecto do processo, resolve essa dúvida contra o arguido, superando a aplicação do in dubio pro reo, pois permite afirmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, para além de qualquer dúvida razoável.

Assim, a concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indirecta, através de presunções judiciais em Direito Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição.

Mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação do princípio in dubio por reo, só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o non liquet persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas directas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo, inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais.

Ora, tal como já acima ficou dito, em nosso entender, foi apreciada conjunta e criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, no que concerne à matéria de facto considerada provada, em relação à qual o Tribunal de 1ª instância, não ficou com qualquer dúvida.

Por outras palavras, o Tribunal a quo, tendo apreciando criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto, convenceu-se, sem margem para dúvidas, de determinados factos que constam elencados na factualidade provada, na sentença recorrida.

Relativamente à discordância factual da recorrente, quanto à convicção do Tribunal a quo, o que já acima vimos é que a mesma não tem qualquer base de sustentação, pois a simples leitura da matéria de facto provada e respectiva fundamentação constantes da sentença recorrida, não revelam que a referida convicção do Tribunal a quo seja notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum.

No fundo, e a nosso ver, repetimos, o que a recorrente pretende sindicar é a forma como o Tribunal valorou a prova produzida em audiência de julgamento, valoração que como já acima dissemos, o Tribunal de 1ª instância é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artº 127º do C. P. Penal.

Porém, resultando da fundamentação da sentença recorrida, não ter a convicção do Tribunal de julgamento assentado em raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou ter sido elaborada a decisão ora impugnada, com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios gerais sobre a produção da prova (nomeadamente sobre a proibição da valoração da prova indirecta), nem a existência de qualquer dúvida insanável, então não é possível concluir também pela violação do princípio in dubio pro reo.

A decisão proferida, tendo em conta o seu teor, mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, não contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro, que seja patente para qualquer cidadão, não denotando a existência de qualquer sombra de dúvida, na apreciação da prova por parte do julgador.

Por outro lado, a dúvida da recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia conduzir à constatação da violação de tal princípio, pois que o mesmo é afinal, uma regra de que apenas o próprio julgador se deve socorrer quando tem dúvidas.

Não basta com efeito, que exista um depoimento ou um documento que à recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se poder concluir que a sua valoração pelo Tribunal a quo, redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.

Uma coisa é a dúvida da recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste último pode conduzir à aplicação de tal princípio.

Analisar criticamente a prova, significa justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador, dentro do seu critério de livre apreciação.

Tudo visto, defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo”, como fez a recorrente, carece pois de fundamentos sustentáveis.

Efectivamente, no caso em apreço, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal, quanto ao crime de receptação dolosa imputado à arguida …, não se vislumbra que o Tribunal a quo tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas tivessem existido.

«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004 in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos

Resulta assim claro, que o preceituado no artº 127º CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal de julgamento chegou, se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).

Face ao que acima ficou dito, torna-se de difícil compreensão a argumentação da recorrente no que respeita à incorrecta aplicação deste princípio in dubio pro reo, pelo Tribunal a quo, por tal alegação não se encontrar minimamente fundamentada, nem ter qualquer correspondência com a realidade factual apurada.

Sem necessidade de mais considerandos, concluímos que também neste ponto o recurso ora em análise, não será provido.

Assim sendo, o recurso da arguida improcede na íntegra.

IV – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:

a) Alterar - em conformidade com a prova produzida no julgamento em 1ª instância -, a factualidade provada descrita sob o ponto 11 da sentença em relação à arguida …, ali ficando a constar apenasA arguida (…) forneceu o IBAN da sua conta bancária, acima identificada, a um terceiro, de modo a permitir a recepção de fundos referentes à realização de transferências bancárias não autorizadas, para conta bancária de sua pertença, conhecendo a arguida a origem ilícita de tais quantias, que fez suas, que de outra forma a arguida não as teria conseguido obterpor não se ter provado que a arguida tivesse conhecimento exacto sobre qual o exacto tipo de crime contra o património, que esteve na origem da transferência das quantias monetárias, que recebeu na sua conta bancária, sem prejuízo de provar a existência do dolo directo, que presidiu à sua actuação, nos termos acima descritos.

b) Julgar não provido o recurso interposto pela arguida … e em consequência, manter a decisão condenatória, nos termos acima mencionados.

 c) Condenar a arguida em taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) Ucs.


Lisboa, 8 de Outubro de 2025

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(Ana Paula Grandvaux)

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(Helena Lamas)

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(Rosa Pinto)