Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3598/23.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
PRESSUPOSTO
CULPA
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 487º, Nº2, º 799.º E 800.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 176.º DA PORTARIA Nº 1532/2008, DE 29 DE DEZEMBRO – REGULAMENTO TÉCNICO DE SEGURANÇA CONTRA INCÊNDIO EM EDIFÍCIOS.
Sumário: I – A responsabilidade civil tem como pressupostos um facto ilícito e culposo, um dano ou prejuízo daí resultante e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

II – Não existe obrigação de ressarcimento quando não se demonstrou que foi incumprida uma obrigação assumida por via contratual e quando não ficou demonstrado que o autor do facto danoso agiu culposamente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

A... S.A – SUCURSAL EM PORTUGAL, com o NIPC ...89 e sede na Av. ..., ... ...,

instaurou no Juízo Central Cível de Viseu acção comum contra

B..., S.A., NIPC ...78, com sede em Edifício ..., Rua ..., ..., Sala ...6, ... ..., e

AA, titular de cartão de cidadão nº ...20, com domicílio profissional em Edifício ..., Rua ..., ..., Sala ...6, ... ...,

pedindo, com fundamento no acervo factual melhor discriminado na petição inicial, que os réus sejam condenados solidariamente a reembolsar à autora a quantia de 47.246,16 € (quarenta e sete mil duzentos e quarenta e seis euros e dezasseis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos desde a interpelação (4.794,51 €) e vincendos ate efectivo e integral pagamento.


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Os réus contestaram, sustentando que o direito que a autora pretende fazer valer se encontra prescrito, mais impugnando, de forma motivada, parte da factualidade alegada no articulado inicial.

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Em resposta , a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da invocada excepção.

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Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho que julgou improcedente a invocada excepção de prescrição, após o que se procedeu à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

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Tendo sido realizada de audiência final, com observância do formalismo legalmente estabelecido, em 1/12/2024, foi proferida sentença cujo dispositivo apresenta o seguinte teor:

Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente, decide-se:

A) Condenar-se a sociedade “B..., S.A.” no pedido deduzido pela sociedade “A..., SA - Sucursal em Portugal”;

B) Absolver-se AA pedido deduzido pela sociedade “A..., SA - Sucursal em Portugal”;

C) Condenar-se as partes no pagamento das custas do presente processo, na proporção dos respetivos decaimentos, conforme previsto no art.º 527.°, do Código de Processo Civil.”.


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Não se conformando com a sentença proferida, a 1ª ré interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

1. Andou mal o Tribunal recorrido ao dar por provado que na reunião de obra do dia 5.02.2020 ficou decidido que os botões de extinção e inibição de incendio seriam colocados no exterior das salas, sendo tal de conhecimento de AA, pois esse facto consubstancia uma errada interpretação do conteúdo do documento em causa (uma ata) que descreve essa reunião.

2. No documento concreto a que alude o Tribunal recorrido, no seu ponto 10.º da ata, a C... (empresa responsável pela segurança) questionou sobre o local do botão de extinção e inativação de incêndios, sugerindo tanto a ‘C...’ como a ‘D...’ que esses engenhos ficassem localizados na parte exterior da sala, ao que o representante a da aqui Ré respondeu “Temos de confirmar”, o que afasta a aplicação da expressão “ficou decidido” e “sendo tal do conhecimento de AA”.

3. O Tribunal recorrido não poderia dar como provado o facto provado n.º 21 no sentido em que a Ré não deu o seu aval a que tivesse havido uma inversão do sentido (ativação/desativação) da botoneira colocada no lado exterior da sala, isto é, passar a ser o botão de ativação (ao contrário do previsto no projeto da autoria da Recorrente, que dizia que era o botão de bloqueio ou encravamento), pois não é o que consta da ata de reunião de obra.

4. O facto provado n.º 21 deve ser suprimido, pois trata-se de um erro grave já pois não há suporte documental (nem testemunhal) para dar aquele facto por assente, sendo certo que é um facto importante pois induz a ideia de que a Ré (i) aceitou a alteração ao projeto e que (ii) o co-Réu AA sabia que o botão de ativação do sistema estava do lado de fora da sala, o que, conforme resulta da ata de reunião de obra não corresponde à verdade.

5. Por referência ao contrato assinado entre a Dona de Obra e a Recorrente, quando se diz que uma fiscalização é “permanente” ou “residente” quer-se significar que haverá um representante diário na fiscalização em obra, pois, como resulta das regras de experiência comum, não se pretende dizer que haverá um fiscal por cada trabalhador que o empreiteiro tenha a laborar na empreitada, sendo esta uma interpretação aberrante do contrato, sem adesão á experiência comum da vida.

6. Mais do que a empresa de fiscalização, o Empreiteiro/Instalador, a C... e o técnico de segurança do Dono de Obra (BB) tinham o dever acrescido de assegurar que a regra de segurança de não ativar o botão automático de extinção de incêndio não era violada.

7. Não tendo sido o co-Réu AA a ativar o botão (nem ninguém do lado da fiscalização), nem tendo sido ativado por sua ordem, não pode ser assacada responsabilidade aos Réus.

8. Não se fez prova, no caso sob judice, que demonstre que o sistema anti-incêndio esteve ligado durante o tempo restante da execução da obra, nem se fez prova de quem foi a pessoa que, de facto, ativou o sistema que deveria estar desligado e, por conseguinte, responsável pelo sinistro, por violação das regras de segurança (legis artis), pelo que, neste cenário, o Tribunal não poderia ignorar que no local havia Instalador/Empreiteiro que, por serem a entidade adjudicante da empreitada, as executantes, elas sim, tinham a obrigação específica de não trabalharem com o sistema ativado, aliás, sendo de presumir a sua culpa.

9. É errado dizer-se que “o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado, do que AA se deveria ter certificado” visto que é humanamente impossível, embora tenha sido contratada à Ré e ao Réu na pessoa de AA a tarefa de fiscalização, que exista um controlo total da empreitada a todo o minuto numa obra de tamanha dimensão, ao ponto de, naquela circunstância de tempo e de lugar, ter de se “certificar”.

10. Aquela expressão do facto provado n.º 22 “…do que AA se deveria ter certificado”, deve ser suprimida, tanto mais que a mesma não tem suporte em qualquer meio de prova, quer testemunhal, quer documental.

11. Do facto n.º 9 dado por provado, resulta que a Ré, aqui recorrente, era, de facto a responsável pela fiscalização, também, da implantação do projeto de segurança contra incêndios e segurança e saúde (PSS), mas deve ter-se cuidado na interpretação, pois, o que estava a ser implementado era o projeto de segurança para o Data Center, no fundo, o resultado final da obra que estava em curso no Data Center e parece que o Tribunal recorrido confundiu essa realidade com a segurança ao longo da execução da empreitada, o que é uma realidade completamente diferente.

12. O Tribunal não valorou adequadamente o relevante depoimento acima transcrito da testemunha CC, representante em obra do Dono de Obra, que, sem qualquer margem para dúvidas, disse claramente que era o Senhor BB (técnico de segurança residente no local, contratado pelo Dono de Obra) quem tinha a missão de ativar e desativar o sistema de extinção de incêndio.

13. Da passagem transcrita do depoimento dessa testemunha resulta inequívoca a responsabilidade pelo sinistro, o que ficou vincado nesta passagem absolutamente lapidar: “A execução, o desligar o sistema, era sempre feito pelo técnico residente da instalação, e ainda hoje é, porque essa ação tem que ser feita pelo técnico residente da instalação”.

14. Deve ser aditado aos factos provados o seguinte facto “A porta cuja contra folha AA abriu no dia 27.07.2020 era do tipo “corta-fogo” por ser o que resultou, claramente, dos depoimentos das pessoas ouvidas em Tribunal, designadamente, DD, CC e

15. O facto não provado “Na referida contra folha existia uma mola que havia sido retirada com desconhecimento deste” deve passar a facto provado.

16. A Ré, enquanto fiscalizadora, tem obrigação de fazer acompanhamento da obra de um modo diligente mas a mesma não se vinculou em termos tais que fique responsável, incondicionalmente, por qualquer sinistro que ocorra na empreitada, tanto mais que, há que referir que a obra é um empreendimento grande, de dimensão vasta, de ritmo dinâmico, o que torna difícil, senão humanamente impossível, o acompanhamento total e a todo o instante de todos os trabalhadores, equipamentos e instalações na obra.

17. Para que haja um nexo de causalidade entre o incumprimento e o dano é necessário que o dano seja consequência direta e adequada do incumprimento contratual, o que não é o caso, pois o dano resultou de uma cadeia de eventos, todos eles culpa exclusiva do empreiteiro/dono de obra da obra: (i) a instalação incorreta da botoneira ex adverso ao projeto (ii) a ausência de mola na porta, (iii) a ausência de um batente no chão que impedisse a porta de ir contra a parede e, principalmente, (iv) a não inibição do sistema de incêndio, sendo que a ação humana do 2º Réu AA foi apenas uma condição para o sinistro, não sendo causa direta e adequada.

18. O Tribunal a quo nem sequer dá por assente qual foi o procedimento do fiscal de obra que, tendo sido violado, permitiu a ativação do sistema automático de extinção de incêndio, limitando-se a afirmar, em jeito absolutamente conclusivo “o AA se deveria ter certificado”, o que não é uma técnica aceitável, pois que não se vislumbra qual é o facto concreto donde se extrai tal conclusão.

19. A conduta do co-Réu AA, em abstrato, seria sempre inidónea para a produção do resultado que se verificou, pelo que não está preenchido o requisito nexo de causalidade.

20. O facto gerador do dano - a abertura da porta - deixa de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado, como foi o caso, por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis: (i) sistema ativado durante a obra; (ii) porta corta-fogo sem mola, (iii) porta sem batente e (iv) botão de ignição colocado em local diferente do projetado).

21. Não estando demonstrado que tenha sido por indicação da Ré que o sistema foi ativado, nem estando demonstrado que foi o co-Réu AA quem ativou o sistema, não existe comportamento ilícito, pelo que não pode operar a responsabilidade civil.“.


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A autora contra-alegou, concluindo no sentido da improcedência do recurso.

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Questões objecto do recurso:

- Alteração da decisão proferida sobre a factualidade considerada provada e não provada;

- Enquadramento jurídico da causa, de acordo com o acervo factual que vier a ser julgado relevante.


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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

1- A Autora se dedica-se à atividade seguradora, tendo como objeto social o exercício, por conta própria e/ou por conta de terceiros, de qualquer tip45o de operações de seguros e/ou cosseguros, em qualquer classe de seguros excluindo os seguros de vida, de qualquer tipo de operações de resseguros, excluindo as operações de resseguros de vida, no país onde a sucursal está constituída ou no estrangeiro, e de quaisquer atividades de natureza comercial, industrial, financeira, imobiliária ou de propriedade intelectual ou outras atividades que estejam diretamente associadas a esse objeto e que facilitem ou promovam a sua realização em conformidade com as leis e regulamentos aplicáveis;

2- No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou com a sociedade “D... SGPS, SA”, o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...03, por via do qual, garante todos os riscos de perdas ou danos materiais diretos, súbitos e acidentais, que sejam causados aos bens seguros tangíveis, localizados nos locais de risco seguros;

3- A sociedade “D... GEST, SA” faz parte do grupo “D... SGPS, SA”, sendo esta última responsável por adjudicar as empreitadas que são propostas pela D... SGPS, SA;

4- Do elenco dos bens seguros faz parte o prédio urbano, sito na freguesia ..., concelho e distrito ..., inscrito na matriz predial sob o art.º ...04.º e descrito na C.R.Predial ... sob o n.º ...90, sito no Lugar ..., designado pavilhão ou armazém destinado a atividade industrial, da propriedade da sociedade “D... GEST, SA”;

5- No imóvel identificado em 4- encontra-se instalado um “Data Center” da sociedade “D... SGPS, SA”;

6- No ano de 2019, a sociedade “D... GEST, SA” decidiu implementar no “Data Center” referido em 5-, uma nova linha de alimentação em BT, através da instalação de esteiras fixadas no tecto;

7- A realização dos trabalhos necessários à instalação da dita linha de alimentação foi adjudicada pela sociedade “D... GEST, SA” à sociedade “E...”;

8- A fiscalização dos trabalhos referidos em 7-, foi adjudicada pela sociedade “D... GEST, SA” à sociedade “B..., S.A.”, mediante apresentação de proposta de prestação de serviços de fiscalização no valor de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), acrescidos de IVA, aceite por aquela;

9 - Por força de tal adjudicação, obrigou-se a sociedade “B..., S.A.” à fiscalização permanente da obra junto das entidades executantes para as especialidades de engenharia, nomeadamente: instalações eléctricas, infra-estruturas de telecomunicações, instalações mecânicas, segurança contra incêndios e segurança e saúde (PSS);

10- Além disso, obrigou-se a sociedade “B..., S.A.”, além do mais, a:

- Acompanhar em permanência o desenvolvimento de projetos de execução em cada uma das matérias específicas de cada especialidade da obra;

- Garantir em permanência o cumprimento da legislação em vigor e, bem assim, as diretivas municipais no que concerne às normativas vigentes;

- Garantir em permanência a compatibilização e coordenação entre as diferentes atividades e de todas em conjunto, em cada um dos específicos campos das diversas especialidades a realizar pela entidade executante;         

- Garantir em permanência a compatibilização entre as diversas especialidades e as atividades de construção civil, conjuntamente com a restante equipa de produção da entidade executante;

- Acompanhar em permanência da execução dos trabalhos em todos os locais da área de construção, verificando tecnicamente as atividades e a utilização de materiais aprovados, bem como assegurar o cumprimento de todas as boas regras da arte;

11- Para o efeito do cumprimento das obrigações por si assumidas junto da sociedade “D... GEST, SA”, a sociedade “B..., S.A.” nomeou fiscal da obra o seu funcionário AA, o qual exerceu tal cargo em representação, sob as ordens, instruções e direção desta sociedade;

12- No dia 27.07.2020, no decurso de trabalhos de execução da obra supra referida no interior de uma das salas dos servidores, AA procedeu à abertura para o exterior de uma contra folha de uma porta, no intuito de auxiliar os funcionários da sociedade “E...” na retirada de material do seu interior;

13- Porém, fruto da força imprimida por aquele, a contra folha da porta fez um percurso de 180.º graus, indo embater numa “botoneira” do sistema contraincêndio, instalada no lado direito da parede (no sentido do exterior para o interior), nas proximidades da dita porta;

14- A dita contra folha não dispunha de mola com vista a controlar a intensidade de abertura, o que era do conhecimento de AA;

15- Por força te tal embate na “botoneira” foi ativado o sistema automático de extinção de incêndio, mediante a dispersão de gás “Novec 1230”, no valor de € 48.724,36 (quarenta e oito mil setecentos e vinte e quatro euros e trinta e seis cêntimos);

16- Em consequência direta e necessária do descrito de 12- a 15-, a sociedade “D... GEST, SA” acionou junto da Autora o seguro referido em 2-, tendo esta despendido na reposição do gás “Novec 1230” a quantia de € 47.246,16 (quarenta e sete mil duzentos e quarenta e seis euros e dezasseis cêntimos);

17- A quantia referida em 16-, resultou da subtração do montante da franquia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) ao montante total dos prejuízos de € 48.746,16 (quarenta e oito mil setecentos e quarenta e seis euros e dezasseis cêntimos);

18- O montante total dos prejuízos (€ 48.746,16) resultou da soma do valor do gás “Novec 1230” disperso (€ 48.724,36) com a quantia de € 21,80 (vinte e um euros e oitenta cêntimos) despendida com a pressurização do Cilindro IG-c/100;

19- A sociedade “B..., S.A.” foi a responsável pela elaboração do projeto de EL do “Data Center” referido em 5-, no qual se inclui o sistema automático de extinção de incêndio;

20- No referido projeto de EL a “botoneira” que foi acionada pela acção de AA encontra-se no interior da sala dos servidores;

21- Na reunião de obra do dia 5.02.2020 foi decidido que os botões de extinção e de inibição do sistema automático de extinção de incêndio seriam colocados no exterior das salas, junto das respetivas portas, o que era do conhecimento de AA;

22- Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5-, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado, do que AA se deveria ter certificado;

23- No dia 27.01.2021 a sociedade Autora reclamou junto da sociedade “B..., S.A.” o pagamento da quantia referida em 16-, tendo esta sociedade declinado a responsabilidade pelo descrito de 12- a 15-, dos factos provados e, assim, a responsabilidade pelo pretendido pagamento;


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2.2. Factos não provados.

Pelo Tribunal a quo foi considerado não provado que:

- A porta cuja contra folha AA abriu no dia 27.07.2020 fosse do tipo “corta-fogo”;

- Na referida contra folha existia uma mola que havia sido retirada com desconhecimento deste.


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2.3. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

No presente recurso, defende o apelante que deve ser alterada a decisão, proferida pela 1ª instância, que incidiu sobre a matéria vertida nos pontos 21 e 22 dos factos provados, bem como a que se reporta à factualidade considerada não provada.

Analisemos, pois, o acervo factual que está na génese da impugnação deduzida pela recorrente, a motivação exarada pelo Tribunal recorrido a propósito dessa factualidade e os elementos probatórios que, no entender da recorrente, impõem uma decisão diversa relativamente à matéria em apreço.


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Pontos 21 e 22 dos factos assentes.

Consta no ponto 21 dos factos provados que “Na reunião de obra do dia 5.02.2020 foi decidido que os botões de extinção e de inibição do sistema automático de extinção de incêndio seriam colocados no exterior das salas, junto das respetivas portas, o que era do conhecimento de AA;”.

Por sua vez, no ponto 22 é referido que “Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5-, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado, do que AA se deveria ter certificado;”.

No que diz respeito ao ponto 21, a apelante sustenta que a correspondente matéria deve ser suprimida, passando a integrar os factos não provados, sendo que em relação ao ponto 22 é defendido que deve ser eliminada a expressão “de que AA se deveria ter certificado”.

O Tribunal a quo motivou a factualidade em apreço – motivação que também abrange outra matéria carreada para os autos – da seguinte forma:

“(…) Depoimento e declarações de parte de AA, o qual, de forma serena, pausada, clara, esclarecida e isenta – e, dessa forma, com credibilidade –, confirmou o descrito de 5-, 6-, 2.ª parte, 7-, 8-, 1.ª parte, 11-, 12-, 13-, 14-, 1.ª parte, 15-, 1.ª parte, 19- e 22-, 1.ª parte, dos factos provados.

Quanto ao mais deposto e declarado, concretamente, no relativo ao desconhecimento de que a contra folha que abriu no dia 27.07.2020 não dispunha de mola; que não era da sua responsabilidade averiguar se o sistema automático de extinção de incêndio estava desligado; e que avisou em reuniões de obra para o facto de a “botoneira” não respeitar o projetado não mereceu credibilidade, porquanto, revelou hesitação, falta de clareza, de segurança e isenção, sendo inclusivamente contrariado pelos demais elementos probatórios juntos aos autos.

Com efeito, no que ao desconhecimento da inexistência de mola na dita contra folha da porta, basta atentar devidamente nas fotos juntas a fls. 55v, para se poder concluir, com segurança, que a contra folha não dispunha de mola; não dispunha no dia 27.07.2020 assim como não dispunha no dia 25.08.2020, aquando da peritagem levada a cabo pela sociedade “F...”, sendo, ainda, de concluir, pelo número e localização de várias placas de aviso afixadas (junto do limite superior) e pela inexistência de furação na folha e respetiva caixilharia, que a dita contra folha nunca dispôs de mola, o que, por apelo às regras da experiência comum, não podia ser ignorado por AA, atenta a duração e as específicas funções que desempenhou naquele local.

Acresce, relativamente ao seu entendimento de ausência de responsabilidade quanto ao facto de o sistema automático de extinção de incêndio estar ligado, tal é contrariado frontalmente pelo conteúdo do documento junto aos autos a fls. 70v. e ss (contrato de prestação de serviços de fiscalização da obra), pois que, conforme consta dos factos dados como provados em 9- e 10-, a sociedade Ré obrigou-se à fiscalização permanente da obra junto das entidades executantes nomeadamente no que se refere à segurança contra incêndios e segurança e saúde, cabendo-lhe, além do mais, acompanhar em permanência o desenvolvimento de projetos de execução em cada uma das matérias específicas de cada especialidade da obra; garantir em permanência o cumprimento da legislação em vigor; garantir em permanência a compatibilização e coordenação entre as diferentes atividades e de todas em conjunto, em cada um dos específicos campos das diversas especialidades a realizar pela entidade executante; garantir em permanência a compatibilização entre as diversas especialidades e as atividades de construção civil e acompanhar em permanência da execução dos trabalhos em todos os locais da área de construção, verificando tecnicamente as atividades e a utilização de materiais aprovados, bem como assegurar o cumprimento de todas as boas regras da arte.

Do elenco das obrigações de fiscalização assumidas pela Ré incluiu-se obviamente, como bem sabia o 2.º Réu, a obrigação de certificação que o sistema automático de extinção de incêndio se encontrava desligado durante a execução dos trabalhos.

Por último, quanto à localização da “botoneira” e ao facto de ter avisado em reuniões de obra que aquela não respeitava o projeto, igualmente se demonstra que o depoente faltou à verdade, pois que, do registo da reunião de obra do dia 5.02.2020 (junto a fls. 180v a 182), onde AA esteve presente, resulta claro que a colocação do botão de extinção (ativação) e de inibição (desativação) do dito sistema automático foi acordada por todos os intervenientes e que, perante a dúvida do dono da obra quanto ao local tecnicamente correto para o botão de inibição, o 2.º Réu referiu que em princípio seria do lado de fora da sala, o que sucedeu efetivamente.

-Declarações de DD – legal representante da 1.ª Ré – o qual, de forma segura, esclarecida e clara – e, por isso, credível –, confirmou o descrito de 6-, 7-, 8-, 1.ª parte, 9-, 11-, 19-, 20-, 22-, 1.ª parte, e 23- dos factos provados.

Quanto ao mais declarado, concretamente no que se refere ao facto da “botoneira” se encontrar colocada no exterior da sala dos servidores e à ausência de responsabilidade da sua empresa pela certificação de que o sistema automático de extinção de incêndios se encontrava desligado durante os trabalhos, não mereceu credibilidade, pois que, revelou hesitação e pouca convicção no declarado.

Além disso, as suas afirmações são contrariadas pelo registo da reunião de obra do dia 5.02.2020 (junto a fls. 180v a 182), onde o seu funcionário AA esteve presente, onde foi abordada a questão da colocação do botão de extinção (ativação) e de inibição (desativação) do dito sistema automático no exterior, o que foi acordado por todos os intervenientes e que, perante a dúvida do dono da obra quanto ao local tecnicamente correto para o botão de inibição, o 2.º Réu referiu que em principio seria do lado de fora da sala, o que sucedeu efetivamente.

No que tange à responsabilidade da 1.ª Ré pela fiscalização do sistema automático de extinção de incêndios e certificação de que estava desligado durante os trabalhos, tal resulta claro do conteúdo do contrato de prestação de serviços de fiscalização da obra, junto aos autos a fls. 70v. e ss., conforme dado como provado em 9- e 10-. (…)

- Depoimento de CC – gestor de edifícios da sociedade D... – o qual, com clarividência, segurança, isenção e de forma clara – e, por isso, com credibilidade –, com relevância para a decisão, confirmou o descrito em 2-, 3-, 4-, 6-, 7-, 8-, 1.ª parte, 9-, 11-, 16-, 19- e 22-, dos factos provados. (…)

Atendeu-se, ainda, ao conteúdo dos documentos fls.13 a 52, 52v. a 70, 70v. a 74, 75v., 76, 76v., 77., 77v. a 80., 80v. a 99, 119v. 120 e 158 a 223v., o que permitiu igualmente a prova do descrito em 1- a 10-, 15- a 17- e 19- a 21- e 23-, dos factos provados.”.

Em 21/10/2024, foi junto aos autos um documento que consubstancia uma acta de reunião ocorrida no dia 5/2/2020, tendo sido neste suporte documental que a 1ª instância se baseou para dar como provada a factualidade que o ponto 21 incorpora.

A apelante sustenta que o referido suporte documental não permite concluir que o acervo fáctico descrito no ponto 21 ocorreu, indicando, paralelamente elementos probatórios de natureza testemunhal que alegadamente infirmam a matéria em causa.

O que resulta do documento em apreço ?

No capítulo “Temas tratados/Acções a desenvolver” consta o seguinte:

10. C...: Na sala de CPD verificamos que o botão de extinção está no lado de fora da sala, a meio das duas portas, e o botão de inibição está do lado de dentro da sala. Será para manter assim.

D...: O botão de extinção fica do lado de fora da sala ao lado da porta principal, o de inibição como manda a regra.

C...: Nós normalmente colocamos do lado de fora da sala.

D...: Como é que manda a regra.

B...: Temos de confirmar, mas em princípio é do lado de fora.”.

Segundo julgamos, o Tribunal recorrido fez uma leitura da acta em questão que, em parte, tem correspondência com o respectivo teor, embora – e aqui concorda-se com a apelante – a matéria referente à colocação dos botões do sistema automático de extinção de incêndio não tenha ficado solucionada a título definitivo, atenta a reserva manifestada pela empresa a quem incumbia a fiscalização da obra (a ora recorrente).

Com efeito, tendo o assunto sido tratado pelos respectivos intervenientes, a recorrente, tendo admitido que a colocação de ambos os botões poderia ser feita no exterior, ficou de confirmar esse posicionamento.

Certo é que – conforme refere o Tribunal recorrido – o que veio a acontecer é que os botões foram efectivamente colocados no exterior, não existindo qualquer documento posterior – ou qualquer outro elemento probatório – que nos dê conta de uma oposição, manifestada pela ré, relativamente a essa colocação.

No entanto, atento o que se encontra plasmado na acta em apreço, julgamos que a factualidade provada deve reflectir o que resulta do respetivo teor, pelo que se determina que o ponto 21 dos factos provados passe a ter a seguinte redacçâo:

21 – Em reunião ocorrida no dia 5/2/2020, tendo sido abordada a forma como os botões de extinção e de inibição do sistema automático de extinção de incêndio deveriam ser colocados na sala de CPD, foi referido que essa colocação seria feita no exterior da sala, junto da respetiva porta, sendo que AA, presente nessa reunião, ficou de confirmar esse posicionamento.


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No ponto 22 dos factos provados é mencionado, como já se referiu, que ““Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5-, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado, do que AA se deveria ter certificado;”.

A apelante discorda da referência, inserida na parte final do ponto 22, à certificação, por parte de AA [1], de que o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado.

Assiste-lhe razão.

Com efeito, afigura-se ser de natureza conclusiva o segmento, vertido no ponto 21, que se reporta a uma alegada conduta da pessoa encarregada de fiscalizar a obra, uma vez que não existe suporte factual que nos permita concluir que recaía sobre a mesma a obrigação de averiguar, previamente à abertura da porta descrita nos autos, se o sistema automático de extinção de incêndio se encontrava desactivado.

A referida obrigação, a existir, teria de possuir natureza legal ou contratual, sendo certo que a decisão impugnada não contém os critérios fácticos subjacentes à conclusão que vem plasmada nos autos.

Deste modo, determina-se que o ponto 22 dos factos provados passe a apresentar a seguinte redacção:

22 - Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado.

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Factos não provados.

Na decisão impugnada consta que não se provou que “A porta cuja contra folha AA abriu no dia 27.07.2020 fosse do tipo “corta-fogo” e que ”Na referida contra folha existia uma mola que havia sido retirada com desconhecimento deste.”   

A motivação exarada pelo Tribunal a quo, a propósito desta matéria, é a seguinte:

No que se refere aos factos dados como não provados, resultaram os mesmos da ausência de prova da sua verificação, seja por as testemunhas ouvidas os não terem confirmado ou não o terem feito de uma forma considerada credível, inexistindo nos autos qualquer outro elemento probatório da sua verificação.”,

A recorrente, com fundamento nas declarações prestadas pelo seu representante (DD) e nos depoimentos das testemunhas CC e EE, defende que a factualidade em apreço deve ser considerada provada.

Vejamos.

No que concerne ao primeiro facto – porta de tipo “corta-fogo” –, a correspondente matéria resulta inequivocamente do depoimento da testemunha CC [2], tendo sido também confirmada pelo representante da ré no âmbito das declarações que prestou [3].

Não existe qualquer elemento objectivo, carreado para os autos, que coloque em causa o que foi relatado pela mencionada testemunha [4] a propósito desta factualidade

Assim, contrariamente ao defendido pelo Tribunal recorrido, entende-se que a matéria em causa deve ser considerada provada.

O mesmo não pode dizer-se do restante acervo que a 1ª instância incluiu nos factos não assentes, uma vez que os meios probatórios indicados pela recorrente – designadamente, o depoimento da testemunha CC – não permitem demonstrar tal matéria.

Trata-se de factualidade não presenciada pelas testemunhas e pelo representante da ré, sendo irrelevantes as considerações que os mesmos teceram a propósito de uma mola que supostamente deveria estar colocada na porta referenciada nos autos.

Em face do exposto, determina-se o aditamento aos factos provados do ponto 12-A, com a seguinte redacção:

12-A - A porta cuja contra folha AA abriu no dia 27/7/2020 era de tipo “corta-fogo.     


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2.4. Enquadramento jurídico.

Com base na factualidade que, originariamente, integrava a sentença recorrida, sustentou a 1ª instância que a ora apelante incorreu em responsabilidade civil contratual, considerando verificados os pressupostos que determinam o pagamento, por parte da mesma, da importância que vinha peticionada em sede de articulados.

Foi correctamente salientado, na decisão em apreço, que a obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil implica a existência de um facto ilícito e culposo, do qual tenham resultado danos, e um nexo causal entre o facto e os danos ou prejuízos que se produziram na esfera jurídica de determinada pessoa.

A propósito desta matéria, tem sido pacífico o entendimento jurisprudencial que considera necessária a verificação (cumulativa) dos referidos pressupostos, sem os quais não pode concluir-se que exista obrigação de ressarcimento decorrente desta fonte obrigacional.

Com efeito, no Acórdão do STJ de 30/4/2019 (Aresto que se encontra disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ba1b4a9b1ad4e6eb802583ec004c80fe?OpenDocument), referiu-se que “O direito de indemnização pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil que são: o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.”.

Por sua vez, no Acórdão desta Relação (Coimbra) de 27/1/2023 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1 c61802568d9005cd5bb/4497ad04072a7bf78025894e00581fcd?Open Document), esclarece-se que “A responsabilidade contratual tem como pressupostos a verificação de um facto voluntário, da ilicitude, da culpa (que se presume) e de um nexo de causalidade entre facto e dano.”.

Revertendo para a decisão impugnada, verifica-se que os fundamentos que a integram, no que diz respeito à problemática que está no cerne do litígio, são os seguintes:

“(…)da factualidade apurada, importa concluir que os pressupostos da obrigação de indemnizar da 1.ª Ré, em sede responsabilidade contratual, se encontram preenchidos.

Efetivamente, quanto ao facto voluntário, deu-se como provado que o 2.º Réu, atuando em representação, sob as ordens, instrução e direção da 1.ª Ré, no exercício de fiscal da obra, procedeu à abertura de uma contra folha de uma porta, fazendo com que mesma se deslocasse para o exterior em cerca de 180.º graus indo embater numa “botoneira” do sistema contra incêndio, instalada no lado direito da parede (no sentido do exterior para o interior), nas proximidades da dita porta, bem sabendo que a dita contra folha não dispunha de mola com vista a controlar a intensidade de abertura e, assim, da elevada probabilidade de ir embater na dita “botoneira” e ativar o sistema automático de extinção de incêndio.

No que se refere à ilicitude, os factos dados com provados permitem concluir que o 2.º Réu violou com a sua conduta deveres básicos e/ou elementares de cuidado/segurança a que estava obrigado por força das funções que exercia, com a agravante de sobre si recair justamente a obrigação de fazer respeitar junto dos trabalhadores o cumprimento dos referidos deveres, como decorre dos factos provados em 9- e 10-.

Tais deveres, cremos, seriam respeitados por um fiscal de obra medianamente sagaz, competente e diligente, que teria certamente se certificado, como era sua obrigação, que no referido dia o sistema automático de extinção de incêndio estava desligado e, bem assim, aberto a contra folha com a força adequada e não de uma forma totalmente desproporcionada, ao ponto de a mesma abrir em 180º com força suficiente para acionar a “botoneira” de ativação do dito sistema automático de extinção de incêndio, cuja concreta localização igualmente bem conhecia.

No que se refere à culpa, é a mesma de presumir, nos termos previstos no art.º 799.º e 800.º, do Código Civil, tanto mais que a 1.º Ré não logrou ilidir a presunção legal de culpa do 2.º Réu, pese embora os louváveis esforços desenvolvidos para tal desiderato, pois que imputou a terceiros responsabilidades que apenas à mesma cabiam, como decorre dos factos dados como provados em 9-, 10-, 19-, 20-, 21- e 22-.

Relativamente ao dano e ao nexo causal entre o facto e o dano, os mesmos encontram-se provados, como decorre dos factos descritos de 15- e 16-, dos factos provados.

Nestes termos, é de concluir que todos os referidos pressupostos da responsabilidade contratual se mostram verificados.”.

Se bem compreendemos a posição defendida pelo Tribunal a quo, a responsabilidade da ré decorre da circunstância de a mesma ter assumido um conjunto de obrigações ao nível da fiscalização da obra que estava a ser executada no centro de dados que se encontra na titularidade da “D...”, obrigações que se encontram descritas no ponto 10 dos factos assentes da seguinte forma:

“(…) obrigou-se a sociedade “B..., S.A.”, além do mais, a:

- Acompanhar em permanência o desenvolvimento de projetos de execução em cada uma das matérias específicas de cada especialidade da obra;

- Garantir em permanência o cumprimento da legislação em vigor e, bem assim, as diretivas municipais no que concerne às normativas vigentes;

- Garantir em permanência a compatibilização e coordenação entre as diferentes atividades e de todas em conjunto, em cada um dos específicos campos das diversas especialidades a realizar pela entidade executante;

- Garantir em permanência a compatibilização entre as diversas especialidades e as atividades de construção civil, conjuntamente com a restante equipa de produção da entidade executante;

- Acompanhar em permanência da execução dos trabalhos em todos os locais da área de construção, verificando tecnicamente as atividades e a utilização de materiais aprovados, bem como assegurar o cumprimento de todas as boas regras da arte.”.

A referida matéria, se atentarmos na forma como o acervo factual foi fixado em 1ª instância, tem de ser conjugada com o ponto 22 dos factos assentes (redacção originária), do qual resulta que “Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5-, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado, do que AA se deveria ter certificado;”.

Ora, considerando a factualidade expressa nos autos, não pode concluir-se, salvo melhor entendimento, que recaía sobre o fiscal da obra a obrigação de se certificar que o sistema automático de extinção de incêndio estava desligado.

Tal dever não resulta, expressamente, das obrigações contratuais que se encontram plasmadas no ponto 10 dos factos provados, sendo certo que também não resulta da factualidade que integra o ponto 22, por ter sido alterada, nesta sede, a decisão que incidiu sobre a matéria de facto [5].

Não tendo sido assumida uma obrigação, por via contratual, com as características apontadas [6], poderá, mesmo assim, entender-se que o fiscal da obra (2º réu) actuou de forma negligente, em virtude de ter aberto a porta que veio a embater no dispositivo que acionou o sistema de extinção de incêndio ?

Na sentença recorrida, para além da problemática relativa à obrigação – inexistente, como vimos – de verificar se o sistema (de extinção de incêndio) se encontrava desligado, é referido que foi utilizada uma força “desproporcionada” na abertura da porta, facto que, no entender do Tribunal a quo, está na origem do incidente em apreço [7].

A questão tem de ser encarada à luz do art. 487º, nº2, do Código Civil, o qual estabelece que “A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.” [8].

Considerando os elementos presentes nos autos, não se afigura, também sem prejuízo de melhor entendimento, que se possa concluir, de forma categórica, que o referido fiscal actuou de forma negligente.

Vejamos porquê.

Em primeiro lugar, nenhuns factos carreados para o processo nos dão conta da forma como a referida botoneira (que permite o acionamento manual do sistema de extinção de incêndio) foi instalada.

Com efeito, apenas conhecemos, em termos muito genéricos, o local onde ocorreu a instalação, ignorando-se por que motivo a empresa responsável pela empreitada escolheu uma zona que entrava em conflito – o incidente veio a demonstrá-lo – com a porta da sala de CPD.  

A este propósito, deve referir-se que a legislação em vigor – Portaria nº 1532/2008, de 29 de Dezembro, a qual aprovou o Regulamento Técnico de Segurança contra Incêndio em Edifícios (SCIE) – impõe que o sistema de acionamento (manual) seja colocado no exterior da instalação a proteger, o que ocorreu no caso vertente, tudo sem prejuízo, como parece óbvio, de ser escolhida uma zona que não colida com elementos construtivos.

Com efeito, o art. 176º, nº6, do referido regulamento dispõe que “Em local adequado e facilmente acessível, próximo da área protegida pela instalação, mas exterior a ela, deve ser colocado, pelo menos, um dispositivo que permita accionar o disparo manual, devidamente sinalizado.” [9].

Em segundo lugar, nada sabemos, em termos factuais, acerca do modo como foi levada a efeito a fiscalização da obra, não podendo presumir-se, na ausência de elementos concretos, que o 2º réu, incumprindo as respectivas obrigações, deveria ter detectado a falha ou o erro existente.

Em terceiro lugar, não recaindo sobre o fiscal da obra a obrigação de verificar se o sistema de extinção de incêndio se encontrava desligado, e não existindo elementos fácticos que nos levem a crer que o mesmo tinha perfeito conhecimento de que a abertura da porta, naquele local concreto, poderia colidir com a botoneira, não se pode concluir que existiu negligência da sua parte.

Não se verificando um dos pressupostos essenciais da responsabilidade civil – culpa do autor do facto danoso –, o recurso merece provimento, devendo decidir-se em conformidade.


***

III – DECISÃO.

Nestes termos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte condenatória, indo, consequentemente, a apelante (1ª ré) absolvida do pedido formulado pela apelada (autora).

Custas pela apelada.


Coimbra, 13 de Maio de 2025

(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Cristina Neves

(1ª adjunta)

Hugo Meireles

(2º adjunto)



[1] 1º réu nos autos em epígrafe.
[2] Procedeu-se à audição integral, em sede de recurso, do referido depoimento.
[3] Também se procedeu, no âmbito do presente recurso, à audição integral das referidas declarações.
[4] A testemunha é gestor de edifícios da D... - entidade proprietária do imóvel onde ocorreu o incidente que está no cerne do litígio , tendo demonstrado conhecer as características do local em apreço.
[5] A redacção do ponto 22 passou a ser a seguinte: Por motivos de segurança, durante os trabalhos no “Data Center” referido em 5-, o sistema automático de extinção de incêndio devia estar desligado.
[6] Não
[7] Voltam-se a referir, para melhor compreender a questão, os fundamentos exarados pela 1ª instância: “Tais deveres, cremos, seriam respeitados por um fiscal de obra medianamente sagaz, competente e diligente, que teria certamente se certificado, como era sua obrigação, que no referido dia o sistema automático de extinção de incêndio estava desligado e, bem assim, aberto a contra folha com a força adequada e não de uma forma totalmente desproporcionada, ao ponto de a mesma abrir em 180º com força suficiente para acionar a “botoneira” de ativação do dito sistema automático de extinção de incêndio, cuja concreta localização igualmente bem conhecia.”.
[8] Conforme se salienta no Acórdão desta Relação (Coimbra) de 18/2/2025 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/15f412c146998b4680258c3c003 cd7ec?OpenDocument&Highlight=0,culpa,dilig%C3%AAncia,bom,pai,fam%C3%ADlia,indemniza%C3% A7%C3%A3o), “Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, perante as circunstâncias de cada caso – art. 487.º, n.º 2: o critério legal de apreciação da culpa tem em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a uma pessoa normal.”.
Perfilhando o mesmo entendimento, menciona-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/4/2013 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/18ADD94A5666CD5380257C8600454F0F), que “A culpa deve ser aferida em face das circunstâncias concretas do caso e pela diligência de um bom pai de família ou homem médio, ou seja, a diligência relevante é a de um homem normal, médio, perante o circunstancialismo próprio do caso concreto.”.

[9] O sublinhado é nosso.