Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | QUEIXA CRIME PRAZO EXTENSÃO DOS EFEITOS DA QUEIXA INDIVISIBILIDADE DA QUEIXA REGIME DE COMPARTICIPAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 03/12/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.ºS 114º, 115º E 116.º, TODOS DO CP; ART 9 DO CC. | ||
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Sumário: | I - Qualquer manifestação de vontade no processo, donde se possa concluir que o ofendido pretende procedimento criminal, cumpre os requisitos da apresentação de queixa.
II - Configura a apresentação de queixa a resposta do ofendido a uma notificação do Ministério Público onde diz «solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados...». III - A interpretação conjugada dos art.ºs 114º e 115º/2 do CP leva a concluir que a intenção do legislador, devidamente expressa nessas normas, foi a de que basta que o ofendido apresente queixa contra qualquer dos agentes conhecidos do crime, antes que o prazo da sua apresentação tenha decorrido relativamente a qualquer deles, para que esta queixa se estenda a todos os outros, sem necessidade de contra eles apresentar outras queixas; IV - Mas que, se, antes de o ofendido ter apresentado qualquer queixa, já tiver decorrido o prazo relativamente a qualquer dos agentes, esse prazo considera-se precludido quanto a todos eles; V - Esta interpretação permite, por um lado, manter o campo de aplicação do art.º 114º do CP e, por outro, aplicar o princípio da indivisibilidade da acusação (art.º 115º/3 do CP), na medida em que obvia a que o ofendido espere que finde o prazo de apresentação da queixa relativamente a determinado agente, que queira proteger, e, depois, apresente queixa contra o/s outro/s, assim escolhendo a quem perseguir criminalmente. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Relator: João Abrunhosa Adjuntos: Cândida Martinho Maria José Guerra * * * Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: No Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, nestes autos em que é Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferido despacho com, para além do mais, o seguinte teor: “... Da (i)legitimidade do Ministério Público para a dedução da acusação contra ambos os arguidos: Veio a arguida AA, em sede de contestação, invocar que a ofendida não apresentou queixa contra o coarguido BB, sendo que esta conhecia tal facto e nunca veio aos autos estender a queixa àquele, razão pela qual a arguida não pode ser perseguida criminalmente por tais factos. Conclui dizendo que o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação contra os arguidos, que é nula. Dado o correspondente contraditório, por requerimento de dia 11/04/2024 (referência 8806201), a ofendida pronunciou-se, indicando que a arguida se pretende eximir à sua responsabilidade, requestando a realização do julgamento. Por seu turno, aberta a correspondente vista para o efeito, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu a improcedência da questão prévia da legitimidade suscitada pela arguida na sua contestação, alegando, em síntese, que, pese embora não o tenha feito, em momento inicial, por desconhecimento, quando a ofendida se apercebeu da existência de outro arguido, veio requerer, no dia 16/05/2023, a prolação de despacho de acusação contra ambos os arguidos, o que sempre terá de ser entendido como uma manifestação de procedimento criminal contra aquele. Ademais, referiu que a arguida, aquando da queixa, não detinha na sua posse todas as informações sobre quem era responsável pelo canídeo e que, no caso em apreço, não está em causa uma coautoria, mas antes a imputação de autorias materiais autónomas. Por requerimento de dia 18/04/2024 (referência 8823349), veio a arguida responder mantendo a posição já assumida, em sede de contestação, bem como reiterar que a considerar-se que ao requerer a prolação de despacho de acusação contra os arguidos, estava a proceder criminalmente, tal não respeita as exigências formais da queixa. Conclui, novamente, pugnando pelo arquivamento dos autos. Apreciando. Antes de mais, cumpre chamar à colação as normas legais em causa. Desde logo, o artigo 113.º, do Código Penal, estabelece no seu n.º 1, para o que releva, que “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresenta-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação”. Por outro lado, o artigo 114.º, do Código Penal, dispõe, com a epígrafe “extensão dos efeitos da queixa”, que “a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”. Com efeito, o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sendo que o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa – artigos 115.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal. Segundo FIGUEIREDO DIAS, a queixa é “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada” – in Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663. No entanto, no que toca à forma da queixa, o Código Penal é omisso, devendo entender-se que poderá ter lugar por toda e qualquer forma que dê para perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. Nesta senda, o artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, acentua tal realidade ao estabelecer que, quando o procedimento criminal depender de queixa, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto do Ministério Público, para que este promova o processo – vide, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2012, de 18/04/2012, disponível em www.dgsi.pt. Com efeito, o artigo 49.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, prevê que a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais. Daqui se retira, sem margem para dúvidas, que o mandatário judicial do titular do direito de queixa não necessita de dispor de poderes especiais, pois a lei apenas o exige para o mandatário não judicial, o que se compreende atendendo a que o “mandato judicial está revestido de maiores cautelas individuais e institucionais” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/05/2018, processo n.º 49/15.9GDEVR.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/09/2017, processo n.º 403/15.6GAPFR.P1 – este último, a contrario – , ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição atualizada, UCP, 2009, pág. 147). Exercido que esteja o direito de queixa, detém-se, agora, este Tribunal, a analisar o funcionamento da extensão do mesmo. Segundo M. MIGUEZ GARCIA e J.M. CASTELA RIA, basta a apresentação contra um dos comparticipantes no crime para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes, sendo que basta o não exercício tempestivo do direito de queixa quanto a um dos comparticipantes para levar ao arquivamento do procedimento criminal aos demais comparticipantes, por exemplo, coautores, nesse crime – princípio da indivisibilidade da queixa (cfr. Código Penal parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 3ª edição atualizada, 2018, pág. 519). A este propósito, sempre se dirá que “o efeito jurídico do não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes – extinção do procedimento quanto aos restantes – apenas ocorre quando o respetivo titular os conseguiu identificar” – vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11/01/2023, processo n.º 232/20.5T9SRT.C1, disponível em www.dgsi.pt. Ainda neste particular, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/09/2010 (processo n.º 142/08.4GDSCD.C1, disponível em www.dgsi.pt), sufraga que o artigo 114.º, do Código Penal, não tem tanto a ver com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. Mais, o autor do crime até pode ser desconhecido do queixoso aquando da queixa, ou pode ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito, pelo que fundamental é tão-só a apresentação de queixa. Consequentemente, o prazo de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, não releva, nos casos em que o ofendido desconhecia a identificação ou existência dos demais comparticipantes, pois que, nesse caso, a norma do artigo 114.º, do Código Penal, funciona, permitindo ao titular do direito de queixa alargar a mesma aos demais comparticipantes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26/09/2016, processo n.º 90/14.9GAMGD.G1, disponível em www.dgsi.pt). No aresto aludido (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/09/2010), defende-se o seguinte: “ o M.P. tem legitimidade para praticar os atos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semipública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante no artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal (…). Averiguada em inquérito por crime semipúblico a existência de comparticipantes não denunciados, deve o M.P, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos”. Realizado o enquadramento jurídico da questão em apreço, cumpre apreciar o caso concreto. A 06/07/2020, a ofendida CC apresentou queixa contra AA, identificando-a como proprietária do cão pitbull. Após, AA foi constituída e interrogada, nessa qualidade, a 26/08/2020, na qual relatou a situação ocorrida no dia em causa. Por despacho de 26/04/2021 (referência 85211921), a Digna Magistrada do Ministério Público, refere que “melhor compulsados os autos, verifica-se que BB também era detentor do cão em causa nos presentes autos”, tendo o mesmo sido constituído arguido e interrogado nessa qualidade a 05/07/2021. Após, por despacho de dia 20/04/2023 (referência 90712575), foi a ofendida notificada para indicar o valor dos danos sofridos. Em sede de resposta, por requerimento de dia 16/05/2023 (referência 8070540), a ofendida CC, vem, entre o mais, “solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados”. Da tramitação processual que antecede, não resulta, em momento algum, que a ofendida tivesse conhecimento de que o arguido BB fosse, de igual modo, responsável pelo canídeo. Aliás, quando notificada para reportar os danos sofridos, é perentória a requerer a prolação do despacho de acusação contra ambos, o que, necessariamente, tem de ser entendido, como uma manifestação da intenção de exercer o direito de queixa também quanto ao mesmo. Mais, não era exigível à ofendida que soubesse, até tal momento, que este também era “dono do cão” ou “responsável pelo cão”, pois sempre identificou a arguida como única dona e responsável pelo mesmo. Não se olvida que a notificação do Ministério Público deveria ter sido outra, e mais explicativa, no que toca ao instituto em análise – nomeadamente nos termos melhor densificados no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, acima referido. No entanto, independentemente da discussão acerca do modo como o Ministério Público deveria ter dirigido à ofendida tais informações, ter-se-á de considerar que a resposta desta (a 16/05/2023), é apta a suprir a mesma, devendo, assim, entender-se como a manifestação do direito de queixa também contra o arguido – o que se afigura tempestivo, encontrando respaldo na lei e na jurisprudência – que, entende este Tribunal, nem admitir outra interpretação (sendo que o facto de ter sido realizada através da sua Mandatária judicial, sem poderes especiais, a nada obsta, conforme já aludido). * Pelo exposto, julga-se improcedente a questão prévia de ilegitimidade, suscitada pela arguida, decidindo-se pela legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, contra ambos os arguidos. ...”. * Não se conformando, a Arg. interpôs recurso desta decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões: “... 1- A Meritíssima Juíz a quo errou na aplicação do direito e na apreciação de facto, quando, por douto despacho datado de 19/04/2024, não considerou a ilegitimidade do MP para a dedução da acusação contra ambos os arguidos. 2- Desconsiderou, dessa forma, que a queixa crime tem de decorrer de um ato expresso de vontade, intencional, inequívoco, não se podendo presumir. 3- Por isso errou, ao considerar que o expressado na alínea k) do requerimento da ofendida datado de 16/05/2023 deve entender-se como a manifestação do direito de queixa também contra o arguido BB. 4- A manifestação da intenção de queixa, para mais quando é feita por advogado, não pode ser equivoca, exigindo-se que seja minimamente concretizada. Dizer-se que deve ser proferida acusação contra os arguidos e que o autos devem prosseguir– para mais no contexto em que o foi - não configura apresentação de queixa contra eles ( tanto mais que já havia sido apresentada queixa contra a arguida recorrente ). É manifesto que a ofendida desconhecia ou não estava sensibilizada para a necessidade de fazer queixa contra o arguido BB, pelo que o solicitar a dedução de acusação contra os arguidos foi tão só uma manifestação para que o processo seguisse rapidamente os seus termos. 5- Estando a ofendida representada por mandatária judicial, impunha-se que querendo deduzir queixa contra o arguido BB, fosse objetiva e inequívoca na sua comunicação, o que poderia fazer dizendo apenas que pretendia apresentar queixa contra o arguido BB pelos factos já denunciados contra a recorrente 6 – Nos crimes semipúblicos a queixa constitui uma condição formal de procedibilidade para o procedimento criminal. Diferentemente, a acusação é o corolário da fase investigatória posterior àquela. Nestes crimes a acusação não poderá existir sem prévia queixa deduzida pelo ofendido. 7- A alínea k) do requerimento da ofendida datado de 16/05/2023 não foi uma manifestação intencional e inequívoca da dedução de queixa também contra o arguido BB, mas antes um corolário lógico do descontentamento pelo atraso processual que a ofendida invocou no seu requerimento. 8- Tanto assim é, que, notificada para se pronunciar sobre a matéria alegada na contestação, na qual estava em causa a falta de legitimidade do MP para perseguir criminalmente o arguido, a ofendida nada disse sobre a questão, nem sequer invocou a alínea K do seu requerimento, que desde logo reflete que nunca teve a intenção de fazer queixa através da referida alínea K) do requerimento de 16/05/2023, por para isso nunca ter sido notificada, nem estar sensibilizada para a sua necessidade. 9- Mesmo que assim não fosse ( o que não se aceita ), através do despacho da ilustre magistrada do MP, datado de 07/09/2022, que em 29-09-2022 foi remetido para a ilustre mandatária da ofendida, esta tomou conhecimento da existência do segundo arguido nos autos, estando a identificação deste ao seu dispor através da consulta dos mesmos. 10 Iniciou-se, assim, nessa data, o prazo de seis meses previsto no artigo 115º do Código Penal para apresentação da queixa. 11- Pelo que, aquando do requerimento da ofendida de 16/05/2023, já há muito se tinha caducado o direito de queixa contra o arguido BB. 12- De facto, a interpretação conjugada dos artigos 114º e dos números 1, 2 e 3 do artigo 115º do CP conduzem a tal conclusão. 13- Aplicando a interpretação que dimana do douto despacho recorrido, o facto de a ofendida no requerimento posterior àquele em que tem conhecimento da existência de um novo arguido continuar a apenas responsabilizar a arguida recorrente, significa também que a ofendida não tinha intenção de deduzir queixa contra o arguido BB. 14- Ora, analisado na mesma perspetiva do despacho recorrido ( presumir o que é dito ou não ), isso configura uma renúncia pela prática de facto donde esta se deduz ( nº 1 do artigo 116 do CP ), o que expressamente se invoca. 15- Concluindo, o não exercício tempestivo do direito da queixa contra o comparticipante BB aproveita à arguida recorrente, nos termos no nº 3 do artigo 115º do CP. 16- Pelo que o MP não poderia ter deduzido acusação contra os arguidos, por falta de legitimidade para tal, estando a acusação eivada da nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 120 do CPP. 17- Sustentam as conclusões acima expendidas, para além de outros, os seguintes: Ac. da Relação de Coimbra, de 23-05-2012, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 142/08.4GDSCD.C1, em 08.09.2010, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 74/09.9GAMDA.C1, em 01.06.2011, Acordão da Relação do Porto, de 2/11/2022 proc 379/19.0PAVFR.P1; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2012 de 21-05-2012; 18 – Com o douto despacho recorrido foram violadas, entre outras as seguintes normas: Código Penal, artº 48º, art 114º e números 1, 2 e 3 do artigo 115º do CP; Constituição da República Portuguesa, artigo 219º nº 1. Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, substituindo-se o douto despacho recorrido por outro que considere que a acusação deduzida pelo MP contra os arguidos carece de legitimidade, por falta de queixa da ofendida contra o comparticipante BB, ordenando-se o arquivamento dos autos, assim se fazendo inteira JUSTIÇA. ...”. * O Exm.º Magistrado do MP respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma: “... 1. Estão os arguidos AA e BB acusados da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, posto que não tenham adoptado os deveres de vigilância e guarda, que podiam e deveriam ter adoptado, para evitar que uma cadela da raça pitbull, registada em nome da primeira arguida, se soltasse e circulasse na via pública sem açaimo, vindo a morder, na face, a ofendida CC. 2. Tal ilícito reveste natureza semipública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa (cfr. o artigo 148.º, n.º 4, do Código Penal). 3. A queixa é o requerimento feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada. 4. No que diz respeito à forma da queixa, o Código Penal revela-se omisso, devendo entender-se que poderá ter lugar por toda e qualquer forma que dê para perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. 5. A ofendida CC apresentou queixa originariamente, em 06.07.2020, contra AA. 6. AA foi constituída arguida e interrogada, nessa qualidade, em 26.08.2020. 7. Na sequência das diligências de investigação desenvolvidas, a Digna Procuradora da República determinou que igualmente fosse constituído arguido e interrogado, nessa qualidade, BB [despacho de 26.04.2021], o que foi efectivado, pela GNR, em 05.07.2021. 8. No dia 16.05.2023, na sequência da notificação do despacho do MP, de 20.04.2023, para concretizar os danos patrimoniais sofridos com o episódio, e ao aperceber-se de que existia um outro arguido nos autos, a ofendida CC, através de peça processual subscrita pela sua Ilustre Mandatária, veio requerer, sob a alínea k), a prolação de despacho de acusação contra os arguidos (cfr. fls. 336 a 340). 9. Tal equivale, se bem se cogita, a uma manifestação de proceder criminalmente contra o arguido BB. 10. Não era exigível à ofendida que soubesse, até tal momento, que BB também era “dono do cão” ou “responsável pelo cão”, pois sempre identificou a arguida como única dona e responsável pelo mesmo. 11. Em situação de comparticipação, desconhecendo o queixoso, aquando da apresentação da queixa contra determinadas pessoas pela prática de crime, existirem outro(s) comparticipantes, cuja existência e identificação se veio a apurar no inquérito, a queixa apresentada contra aqueloutros é extensiva a este(s), atento o disposto no artº 114º do CP, não carecendo de apresentação de outra queixa expressamente contra o(s) mesmo, para que se considerem verificados os pressupostos do procedimento criminal contra todos os comparticipantes, com a subsequente dedução de acusação. 12. Resulta das disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal, que regulam o instituto da “queixa“, que não é obrigatório que resulte da denúncia, participação ou queixa a identificação dos agentes da infracção, sendo certo que a identificação do ou dos autores dos crimes há-de resultar, essencialmente, da actividade investigatória, mesmo nos casos como o presente em que o procedimento criminal só tem lugar mediante queixa. 13. No momento em que apresentou a queixa, a ofendida não tinha na sua posse toda a informação sobre quem tratava e era responsável pela vigilância do canídeo que a terá mordido no rosto, razão pela qual a queixa não identificou logo ambos os cidadãos que vieram, entretanto, a ser constituídos arguidos nestes autos. 14. Ora, mesmo para quem entenda que os efeitos da queixa originariamente apresentada pela ofendida contra a arguida AA não são extensivos a um segundo arguido, o que não terá sido sequer a intenção do legislador num caso destes contornos (em que só com as diligências de inquérito se apura matéria indiciária contra outro cidadão depois constituído arguido), sempre se dirá que, ao aperceber-se, depois, quando foi desencadeada a sua intervenção processual para um determinado acto, que existia um segundo arguido constituído, a ofendida manifestou inequivocamente que queria que o procedimento criminal seguisse, «maxime» com a elaboração de acusação, contra os dois arguidos. 15. Note-se, aliás, que não se acha imputada, no libelo, uma co-autoria, mas, outrossim, a imputação de autorias materiais autónomas, que concorreram, sem embargo, para a produção do resultado danoso. 16. Neste contexto, seria uma solução incompreensível, sob o ponto de vista jurídico, afora atentatória da potencial realização da justiça material, considerar-se operada a extinção do direito de queixa por equiparação de tal situação a um não exercício da queixa relativamente a comparticipantes no mesmo crime, posto que se não trate sequer de uma situação clássica de co-autoria, nem de um caso que ambos os agentes estivessem, «ab initio», cabalmente identificados, na perspectiva da ofendida. Nestes termos, deve o recurso interposto improceder, por não assistir razão à recorrente na questão prévia por si suscitada, confirmando-se antes o douto despacho judicial sob censura, pois que assim se fará, com o douto suprimento de Vossas Excelências, a tão acostumada JUSTIÇA. ...”. * Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, com, para além do mais, o seguinte teor: “... Visto o alegado em tal recurso, considera-se não dever o mesmo merecer provimento. Com efeito, afigura-se dever ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, ao recusar a tese da arguida, segundo a qual o Ministério Público não teria legitimidade para exercer a acção penal quanto a qualquer um dos arguidos por si acusados, face à suposta ausência de atempada queixa contra um deles pela ofendida – isto, quanto mais não fosse, pelas razões aduzidas no próprio despacho impugnado, das quais resulta com clareza porque deverá considerar-se ter sido atempadamente manifestada, pela ofendida, a sua pretensão de que fosse exercido procedimento criminal contra ambos os arguidos nos autos. Porém, ainda que assim não fosse, devendo considerar-se não ter a ofendida formulado atempada e devidamente queixa contra o arguido não recorrente, nunca a pretensão formulada no recurso ora interposto pela arguida deveria proceder. Com efeito, salvo o devido respeito e melhor opinião, parece-nos que a pretensão formulada pela arguida, bem como a argumentação exarada no próprio despacho impugnado, a respeito da suposta necessidade de apresentação de queixa, por parte da ofendida, contra outros comparticipantes na prática do facto criminoso para além daqueles que tenha inicialmente indicado, caso os mesmos venham a ser identificados no decurso da investigação, assenta numa incorrecta interpretação das normas decorrentes do disposto no art. 114º e no nº 3 do art. 115º do Código de Processo Penal. Isto na medida em que, conforme é referido na peça doutrinária citada no despacho impugnado, o princípio fundamental decorrente do disposto no referido art. 114º é o da indivisibilidade da queixa, que implica desde logo a desnecessidade de expressa formulação da mesma contra todos os comparticipantes na prática do crime, sejam estes conhecidos ou não pelo ofendido, mas também o seu correspondente inverso – ou seja, a verificação da caducidade do direito de queixa contra todos esses comparticipantes, logo que tal direito não possa ser exercido quanto a qualquer um deles, por força do disposto no nº 1 do art. 115º do C. Penal, mesmo que o ofendido ainda pudesse exercê-lo quanto a outros comparticipantes.[2]1 Assim, ao contrário do que parece ter sido entendido no Acórdão deste Venerando Tribunal que é citado na decisão impugnada, o nº 3 desse mesmo art. 115º não impõe que o ofendido venha a formular queixa contra todos e cada um dos comparticipantes na prática do crime que forem identificados no decurso da investigação, independentemente de quando a formulou inicialmente o ter feito contra algum ou alguns deles, ou mesmo contra desconhecidos, pois isso esvaziaria de sentido o comando inequivocamente decorrente do art. 114º do C. Penal. Aquilo que esse nº 3 do art. 115º visa será apenas, como se disse, assegurar que o ofendido não possa decidir apresentar queixa apenas por se ter tardiamente apercebido de que um dos comparticipantes na prática do crime será alguém contra quem quererá realmente fazê-lo, ao contrário daquele que fora por si inicialmente identificado; ou, mais simplesmente, impedir que alguém que tenha deixado caducar o direito de queixa contra um dos comparticipantes, por si identificado, venha mais tarde a poder deduzir queixa contra um outro responsável, entretanto descoberto, “ressuscitando” assim a possibilidade de perseguição penal do inicialmente identificado, por aplicação “retroactiva” do disposto no art. 114º. Logo, tendo no caso concreto a ofendida formulado queixa contra a ora recorrente, tanto bastou para tornar a mesma extensível ao outro comparticipante[3] na prática do crime, mesmo que se devesse considerar não ter a mesma, posteriormente, manifestado expressamente desejar procedimento contra este último. Face ao exposto, não merecendo a decisão proferida no despacho impugnado censura, deverá a mesma ser mantida na íntegra. ...”. * É pacífica a jurisprudência do STJ[4] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[5], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes: Tempestividade da queixa apresentada e legitimidade do MP, para deduzir acusação. * Cumpre decidir. Entende a Arg. que a Assistente não exerceu tempestivamente o direito de queixa contra o co-arguido BB, pelo que se extinguiu o direito de queixa também contra si, nos termos do art.º 115º/3 do CP, pelo que falece legitimidade ao MP para deduzir acusação contra qualquer dos Arg.. Como se refere no despacho recorrido, “... Segundo FIGUEIREDO DIAS, a queixa é “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada” – in Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663. ...”. “... A queixa não é senão a notícia de um crime semipúblico ou particular e a manifestação de vontade, da pessoa legitimada para tal, de que seja instaurado um processo para o processamento do agente do crime. A queixa distingue-se da denúncia só na medida em que enquanto a denúncia é mera manifestação de ciência transmissão ao Ministério Público do conhecimento da prática de um crime, na queixa, além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para averiguação da notícia e procedimento contra o agente responsável. ...”[6]. Por isso, qualquer manifestação de vontade, no processo, donde se possa concluir que a Ofendida pretende procedimento criminal, cumpre os requisitos da apresentação de queixa. A Ofendida, na resposta a uma notificação da MP, afirmou “... solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados ...”. Não se nos suscitam dúvidas de que, tal manifestação de vontade corresponde à apresentação de queixa. Mas mesmo que assim não fosse, sempre a apresentação da queixa contra a Arg. bastava para estender os seus efeitos aos restantes denunciados. É isso que resulta da interpretação conjugada dos art.ºs 114º e 115º/3 do CP. Na verdade, na interpretação das leis a norma fundamental é o art.º 9º do CC[7], com a seguinte redacção: “Artigo 9.º Interpretação da lei 1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”. Nesta actividade, como diz Francesco Ferrara[8], “… As palavras hão-de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmónica de todo o contexto. …”. Tentemos, pois, descortinar qual foi a intenção do legislador ao estabelecer ambas as normas, que tenha um mínimo de correspondência verbal na letra da lei[9]. Tais normas, têm, respectivamente, o seguinte teor: “... A apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes. ...” e “... O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa. ...”. Assim, “... Em caso de comparticipação no crime, a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes torna o procedimento criminal extensivo aos restantes (art. 114,° do CP). De modo semelhante, a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa (arts. 115.º, n.º 3, e 116.º, n.º 3). A justificação destas normas é evidente. Pretendem obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado. É a consagração do chamado princípio da indivisibilidade da queixa. ...” (sublinhado nosso)[10]. Estas normas têm que ser lidas sequencial e articuladamente. Isto é, a segunda norma tem que ser lida depois da primeira e, quer uma, quer outra têm que ter um campo de aplicação próprio. Mas a leitura que a maioria esmagadora da jurisprudência vem fazendo, torna inaplicável o art.º 114º, na medida em que considera que, sempre que o Ofendido não apresente queixa contra todos os agentes conhecidos, a falta de queixa aproveita a todos eles[11]. Entendemos, por isso, que a interpretação conjugada dessas normas leva a concluir que a intenção do legislador, devidamente expressa nessas normas, foi a de que basta que o Ofendido apresente queixa contra qualquer dos agentes conhecidos do crime, antes que o prazo da sua apresentação tenha decorrido relativamente a qualquer deles, para que esta queixa se estenda a todos os outros, sem necessidade de contra eles apresentar outras queixas. Mas que, se, antes de o Ofendido ter apresentado qualquer queixa, já tiver decorrido o prazo relativamente a qualquer dos agentes, esse prazo se considera precludido quanto a todos eles[12]. Esta interpretação permite, por um lado, manter o campo de aplicação do art.º 114º do CP e, por outro, aplicar o princípio da indivisibilidade da acusação (art.º 115º/3 do CP), na medida em que obvia a que o Ofendido espere que finde o prazo de apresentação da queixa relativamente a determinado agente, que queira proteger, e, depois, apresente queixa contra o/s outro/s, assim escolhendo a quem perseguir criminalmente. É, pois, improcedente o recurso. ***** Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos inteiramente a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC. * Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). *****
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