Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1026/20.3T9FIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: QUEIXA CRIME
PRAZO
EXTENSÃO DOS EFEITOS DA QUEIXA
INDIVISIBILIDADE DA QUEIXA
REGIME DE COMPARTICIPAÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 114º, 115º E 116.º, TODOS DO CP; ART 9 DO CC.
Sumário: I - Qualquer manifestação de vontade no processo, donde se possa concluir que o ofendido pretende procedimento criminal, cumpre os requisitos da apresentação de queixa.

II - Configura a apresentação de queixa a resposta do ofendido a uma notificação do Ministério Público onde diz «solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados...».

III - A interpretação conjugada dos art.ºs 114º e 115º/2 do CP leva a concluir que a intenção do legislador, devidamente expressa nessas normas, foi a de que basta que o ofendido apresente queixa contra qualquer dos agentes conhecidos do crime, antes que o prazo da sua apresentação tenha decorrido relativamente a qualquer deles, para que esta queixa se estenda a todos os outros, sem necessidade de contra eles apresentar outras queixas;

IV - Mas que, se, antes de o ofendido ter apresentado qualquer queixa, já tiver decorrido o prazo relativamente a qualquer dos agentes, esse prazo considera-se precludido quanto a todos eles;

V - Esta interpretação permite, por um lado, manter o campo de aplicação do art.º 114º do CP e, por outro, aplicar o princípio da indivisibilidade da acusação (art.º 115º/3 do CP), na medida em que obvia a que o ofendido espere que finde o prazo de apresentação da queixa relativamente a determinado agente, que queira proteger, e, depois, apresente queixa contra o/s outro/s, assim escolhendo a quem perseguir criminalmente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Cândida Martinho
Maria José Guerra
*

*

*


Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, nestes autos em que é Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferido despacho com, para além do mais, o seguinte teor:

“... Da (i)legitimidade do Ministério Público para a dedução da acusação contra ambos os arguidos:

Veio a arguida AA, em sede de contestação, invocar que a ofendida não apresentou queixa contra o coarguido BB, sendo que esta conhecia tal facto e nunca veio aos autos estender a queixa àquele, razão pela qual a arguida não pode ser perseguida criminalmente por tais factos.

Conclui dizendo que o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação contra os arguidos, que é nula.

Dado o correspondente contraditório, por requerimento de dia 11/04/2024 (referência 8806201), a ofendida pronunciou-se, indicando que a arguida se pretende eximir à sua responsabilidade, requestando a realização do julgamento.

Por seu turno, aberta a correspondente vista para o efeito, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu a improcedência da questão prévia da legitimidade suscitada pela arguida na sua contestação, alegando, em síntese, que, pese embora não o tenha feito, em momento inicial, por desconhecimento, quando a ofendida se apercebeu da existência de outro arguido, veio requerer, no dia 16/05/2023, a prolação de despacho de acusação contra ambos os arguidos, o que sempre terá de ser entendido como uma manifestação de procedimento criminal contra aquele. Ademais, referiu que a arguida, aquando da queixa, não detinha na sua posse todas as informações sobre quem era responsável pelo canídeo e que, no caso em apreço, não está em causa uma coautoria, mas antes a imputação de autorias materiais autónomas.

Por requerimento de dia 18/04/2024 (referência 8823349), veio a arguida responder mantendo a posição já assumida, em sede de contestação, bem como reiterar que a considerar-se que ao requerer a prolação de despacho de acusação contra os arguidos, estava a proceder criminalmente, tal não respeita as exigências formais da queixa. Conclui, novamente, pugnando pelo arquivamento dos autos.

Apreciando.

Antes de mais, cumpre chamar à colação as normas legais em causa.

Desde logo, o artigo 113.º, do Código Penal, estabelece no seu n.º 1, para o que releva, que “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresenta-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação”.

Por outro lado, o artigo 114.º, do Código Penal, dispõe, com a epígrafe “extensão dos efeitos da queixa”, que “a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”.

Com efeito, o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sendo que o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa – artigos 115.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.

Segundo FIGUEIREDO DIAS, a queixa é “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada” – in Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663.

No entanto, no que toca à forma da queixa, o Código Penal é omisso, devendo entender-se que poderá ter lugar por toda e qualquer forma que dê para perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. Nesta senda, o artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, acentua tal realidade ao estabelecer que, quando o procedimento criminal depender de queixa, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto do Ministério Público, para que este promova o processo – vide, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2012, de 18/04/2012, disponível em www.dgsi.pt.

Com efeito, o artigo 49.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, prevê que a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais. Daqui se retira, sem margem para dúvidas, que o mandatário judicial do titular do direito de queixa não necessita de dispor de poderes especiais, pois a lei apenas o exige para o mandatário não judicial, o que se compreende atendendo a que o “mandato judicial está revestido de maiores cautelas individuais e institucionais” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/05/2018, processo n.º 49/15.9GDEVR.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/09/2017, processo n.º 403/15.6GAPFR.P1 – este último, a contrario – , ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição atualizada, UCP, 2009, pág. 147).

Exercido que esteja o direito de queixa, detém-se, agora, este Tribunal, a analisar o funcionamento da extensão do mesmo.

Segundo M. MIGUEZ GARCIA e J.M. CASTELA RIA, basta a apresentação contra um dos comparticipantes no crime para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes, sendo que basta o não exercício tempestivo do direito de queixa quanto a um dos comparticipantes para levar ao arquivamento do procedimento criminal aos demais comparticipantes, por exemplo, coautores, nesse crime – princípio da indivisibilidade da queixa (cfr. Código Penal parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 3ª edição atualizada, 2018, pág. 519).

A este propósito, sempre se dirá que “o efeito jurídico do não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes – extinção do procedimento quanto aos restantes – apenas ocorre quando o respetivo titular os conseguiu identificar” – vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11/01/2023, processo n.º 232/20.5T9SRT.C1, disponível em www.dgsi.pt.

Ainda neste particular, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/09/2010 (processo n.º 142/08.4GDSCD.C1, disponível em www.dgsi.pt), sufraga que o artigo 114.º, do Código Penal, não tem tanto a ver com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. Mais, o autor do crime até pode ser desconhecido do queixoso aquando da queixa, ou pode ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito, pelo que fundamental é tão-só a apresentação de queixa.

Consequentemente, o prazo de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, não releva, nos casos em que o ofendido desconhecia a identificação ou existência dos demais comparticipantes, pois que, nesse caso, a norma do artigo 114.º, do Código Penal, funciona, permitindo ao titular do direito de queixa alargar a mesma aos demais comparticipantes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26/09/2016, processo n.º 90/14.9GAMGD.G1, disponível em www.dgsi.pt).

No aresto aludido (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/09/2010), defende-se o seguinte: “ o M.P. tem legitimidade para praticar os atos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semipública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante no artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal (…). Averiguada em inquérito por crime semipúblico a existência de comparticipantes não denunciados, deve o M.P, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos”.

Realizado o enquadramento jurídico da questão em apreço, cumpre apreciar o caso concreto.

A 06/07/2020, a ofendida CC apresentou queixa contra AA, identificando-a como proprietária do cão pitbull.

Após, AA foi constituída e interrogada, nessa qualidade, a 26/08/2020, na qual relatou a situação ocorrida no dia em causa.

Por despacho de 26/04/2021 (referência 85211921), a Digna Magistrada do Ministério Público, refere que “melhor compulsados os autos, verifica-se que BB também era detentor do cão em causa nos presentes autos”, tendo o mesmo sido constituído arguido e interrogado nessa qualidade a 05/07/2021.

Após, por despacho de dia 20/04/2023 (referência 90712575), foi a ofendida notificada para indicar o valor dos danos sofridos.

Em sede de resposta, por requerimento de dia 16/05/2023 (referência 8070540), a ofendida CC, vem, entre o mais, “solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados”.

Da tramitação processual que antecede, não resulta, em momento algum, que a ofendida tivesse conhecimento de que o arguido BB fosse, de igual modo, responsável pelo canídeo. Aliás, quando notificada para reportar os danos sofridos, é perentória a requerer a prolação do despacho de acusação contra ambos, o que, necessariamente, tem de ser entendido, como uma manifestação da intenção de exercer o direito de queixa também quanto ao mesmo.

Mais, não era exigível à ofendida que soubesse, até tal momento, que este também era “dono do cão” ou “responsável pelo cão”, pois sempre identificou a arguida como única dona e responsável pelo mesmo.

Não se olvida que a notificação do Ministério Público deveria ter sido outra, e mais explicativa, no que toca ao instituto em análise – nomeadamente nos termos melhor densificados no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, acima referido.

No entanto, independentemente da discussão acerca do modo como o Ministério Público deveria ter dirigido à ofendida tais informações, ter-se-á de considerar que a resposta desta (a 16/05/2023), é apta a suprir a mesma, devendo, assim, entender-se como a manifestação do direito de queixa também contra o arguido – o que se afigura tempestivo, encontrando respaldo na lei e na jurisprudência – que, entende este Tribunal, nem admitir outra interpretação (sendo que o facto de ter sido realizada através da sua Mandatária judicial, sem poderes especiais, a nada obsta, conforme já aludido).


*

Pelo exposto, julga-se improcedente a questão prévia de ilegitimidade, suscitada pela arguida, decidindo-se pela legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, contra ambos os arguidos. ...”.

*

Não se conformando, a Arg. interpôs recurso desta decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“... 1-   A Meritíssima Juíz a quo errou na aplicação do direito e na apreciação de facto, quando, por douto despacho datado de 19/04/2024, não considerou a ilegitimidade do MP para a dedução da acusação contra ambos os arguidos.

2-         Desconsiderou, dessa forma, que a queixa crime tem de decorrer de um ato expresso de vontade, intencional, inequívoco, não se podendo presumir.

3-         Por isso errou, ao considerar que o expressado na alínea k) do requerimento da ofendida datado de 16/05/2023 deve entender-se como a manifestação do direito de queixa também contra o arguido BB.

4-         A manifestação da intenção de queixa, para mais quando é feita por advogado, não pode ser equivoca, exigindo-se que seja minimamente concretizada. Dizer-se que deve ser proferida acusação contra os arguidos e que o autos devem prosseguir– para mais no contexto em que o foi - não configura apresentação de queixa contra eles ( tanto mais que já havia sido apresentada queixa contra a arguida recorrente ). É manifesto que a ofendida desconhecia ou não estava sensibilizada para a necessidade de fazer queixa contra o arguido BB, pelo que o solicitar a dedução de acusação contra os arguidos foi tão só uma manifestação para que o processo seguisse rapidamente os seus termos.

5-         Estando a ofendida representada por mandatária judicial, impunha-se que querendo deduzir queixa contra o arguido BB, fosse objetiva e inequívoca na sua comunicação, o que poderia fazer dizendo apenas que pretendia apresentar queixa contra o arguido BB pelos factos já denunciados contra a recorrente

6 – Nos crimes semipúblicos a queixa constitui uma condição formal de procedibilidade para o procedimento criminal. Diferentemente, a acusação é o corolário da fase investigatória posterior àquela. Nestes crimes a acusação não poderá existir sem prévia queixa deduzida pelo ofendido.

7-         A alínea k) do requerimento da ofendida datado de 16/05/2023 não foi uma manifestação intencional e inequívoca da dedução de queixa também contra o arguido BB, mas antes um corolário lógico do descontentamento pelo atraso processual que a ofendida invocou no seu requerimento.

8- Tanto assim é, que, notificada para se pronunciar sobre a matéria alegada na contestação, na qual estava em causa a falta de legitimidade do MP para perseguir criminalmente o arguido, a ofendida nada disse sobre a questão, nem sequer invocou a alínea K do seu requerimento, que desde logo reflete que nunca teve a intenção de fazer queixa através da referida alínea K) do requerimento de 16/05/2023, por para isso nunca ter sido notificada, nem estar sensibilizada para a sua necessidade.

9-         Mesmo que assim não fosse ( o que não se aceita ), através do despacho da ilustre magistrada do MP, datado de 07/09/2022, que em 29-09-2022 foi remetido para a ilustre mandatária da ofendida, esta tomou conhecimento da existência do segundo arguido nos autos, estando a identificação deste ao seu dispor através da consulta dos mesmos.

10        Iniciou-se, assim, nessa data, o prazo de seis meses previsto no artigo 115º do Código Penal para apresentação da queixa.

11-       Pelo que, aquando do requerimento da ofendida de 16/05/2023, já há muito se tinha caducado o direito de queixa contra o arguido BB.

12-       De facto, a interpretação conjugada dos artigos 114º e dos números 1, 2 e 3 do artigo 115º do CP conduzem a tal conclusão.

13-       Aplicando a interpretação que dimana do douto despacho recorrido, o facto de a ofendida no requerimento posterior àquele em que tem conhecimento da existência de um novo arguido continuar a apenas responsabilizar a arguida recorrente, significa também que a ofendida não tinha intenção de deduzir queixa contra o arguido BB.

14-       Ora, analisado na mesma perspetiva do despacho recorrido ( presumir o que é dito ou não ), isso configura uma renúncia pela prática de facto donde esta se deduz ( nº 1 do artigo 116 do CP ), o que expressamente se invoca.

15-       Concluindo, o não exercício tempestivo do direito da queixa contra o comparticipante BB aproveita à arguida recorrente, nos termos no nº 3 do artigo 115º do CP.

16-       Pelo que o MP não poderia ter deduzido acusação contra os arguidos, por falta de legitimidade para tal, estando a acusação eivada da nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 120 do CPP.

17-       Sustentam as conclusões acima expendidas, para além de outros, os seguintes: Ac. da Relação de Coimbra, de 23-05-2012, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 142/08.4GDSCD.C1, em 08.09.2010, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 74/09.9GAMDA.C1, em 01.06.2011, Acordão da Relação do Porto, de 2/11/2022 proc 379/19.0PAVFR.P1; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2012 de 21-05-2012;

18 – Com o douto despacho recorrido foram violadas, entre outras as seguintes normas:

Código Penal, artº 48º, art 114º e números 1, 2 e 3 do artigo 115º do CP; Constituição da República Portuguesa, artigo 219º nº 1.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, substituindo-se o douto despacho recorrido por outro que considere que a acusação deduzida pelo MP contra os arguidos carece de legitimidade, por falta de queixa da ofendida contra o comparticipante BB, ordenando-se o arquivamento dos autos, assim se fazendo inteira JUSTIÇA. ...”.


*

O Exm.º Magistrado do MP respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma:

“... 1. Estão os arguidos AA e BB acusados da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, posto que não tenham adoptado os deveres de vigilância e guarda, que podiam e deveriam ter adoptado, para evitar que uma cadela da raça pitbull, registada em nome da primeira arguida, se soltasse e circulasse na via pública sem açaimo, vindo a morder, na face, a ofendida CC.

2. Tal ilícito reveste natureza semipública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa (cfr. o artigo 148.º, n.º 4, do Código Penal).

3. A queixa é o requerimento feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada.

4. No que diz respeito à forma da queixa, o Código Penal revela-se omisso, devendo entender-se que poderá ter lugar por toda e qualquer forma que dê para perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto.

5. A ofendida CC apresentou queixa originariamente, em 06.07.2020, contra AA.

6. AA foi constituída arguida e interrogada, nessa qualidade, em 26.08.2020.

7. Na sequência das diligências de investigação desenvolvidas, a Digna Procuradora da República determinou que igualmente fosse constituído arguido e interrogado, nessa qualidade, BB [despacho de 26.04.2021], o que foi efectivado, pela GNR, em 05.07.2021.

8. No dia 16.05.2023, na sequência da notificação do despacho do MP, de 20.04.2023, para concretizar os danos patrimoniais sofridos com o episódio, e ao aperceber-se de que existia um outro arguido nos autos, a ofendida CC, através de peça processual subscrita pela sua Ilustre Mandatária, veio requerer, sob a alínea k), a prolação de despacho de acusação contra os arguidos (cfr. fls. 336 a 340).

9. Tal equivale, se bem se cogita, a uma manifestação de proceder criminalmente contra o arguido BB.

10. Não era exigível à ofendida que soubesse, até tal momento, que BB também era “dono do cão” ou “responsável pelo cão”, pois sempre identificou a arguida como única dona e responsável pelo mesmo.

11. Em situação de comparticipação, desconhecendo o queixoso, aquando da apresentação da queixa contra determinadas pessoas pela prática de crime, existirem outro(s) comparticipantes, cuja existência e identificação se veio a apurar no inquérito, a queixa apresentada contra aqueloutros é extensiva a este(s), atento o disposto no artº 114º do CP, não carecendo de apresentação de outra queixa expressamente contra o(s) mesmo, para que se considerem verificados os pressupostos do procedimento criminal contra todos os comparticipantes, com a subsequente dedução de acusação.

12. Resulta das disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal, que regulam o instituto da “queixa“, que não é obrigatório que resulte da denúncia, participação ou queixa a identificação dos agentes da infracção, sendo certo que a identificação do ou dos autores dos crimes há-de resultar, essencialmente, da actividade investigatória, mesmo nos casos como o presente em que o procedimento criminal só tem lugar mediante queixa.

13. No momento em que apresentou a queixa, a ofendida não tinha na sua posse toda a informação sobre quem tratava e era responsável pela vigilância do canídeo que a terá mordido no rosto, razão pela qual a queixa não identificou logo ambos os cidadãos que vieram, entretanto, a ser constituídos arguidos nestes autos.

14. Ora, mesmo para quem entenda que os efeitos da queixa originariamente apresentada pela ofendida contra a arguida AA não são extensivos a um segundo arguido, o que não terá sido sequer a intenção do legislador num caso destes contornos (em que só com as diligências de inquérito se apura matéria indiciária contra outro cidadão depois constituído arguido), sempre se dirá que, ao aperceber-se, depois, quando foi desencadeada a sua intervenção processual para um determinado acto, que existia um segundo arguido constituído, a ofendida manifestou inequivocamente que queria que o procedimento criminal seguisse, «maxime» com a elaboração de acusação, contra os dois arguidos.

15. Note-se, aliás, que não se acha imputada, no libelo, uma co-autoria, mas, outrossim, a imputação de autorias materiais autónomas, que concorreram, sem embargo, para a produção do resultado danoso.

16. Neste contexto, seria uma solução incompreensível, sob o ponto de vista jurídico, afora atentatória da potencial realização da justiça material, considerar-se operada a extinção do direito de queixa por equiparação de tal situação a um não exercício da queixa relativamente a comparticipantes no mesmo crime, posto que se não trate sequer de uma situação clássica de co-autoria, nem de um caso que ambos os agentes estivessem, «ab initio», cabalmente identificados, na perspectiva da ofendida.

Nestes termos, deve o recurso interposto improceder, por não assistir razão à recorrente na questão prévia por si suscitada, confirmando-se antes o douto despacho judicial sob censura, pois que assim se fará, com o douto suprimento de Vossas Excelências, a tão acostumada JUSTIÇA. ...”.


*

Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, com, para além do mais, o seguinte teor:

“... Visto o alegado em tal recurso, considera-se não dever o mesmo merecer provimento.

Com efeito, afigura-se dever ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, ao recusar a tese da arguida, segundo a qual o Ministério Público não teria legitimidade para exercer a acção penal quanto a qualquer um dos arguidos por si acusados, face à suposta ausência de atempada queixa contra um deles pela ofendida – isto, quanto mais não fosse, pelas razões aduzidas no próprio despacho impugnado, das quais resulta com clareza porque deverá considerar-se ter sido atempadamente manifestada, pela ofendida, a sua pretensão de que fosse exercido procedimento criminal contra ambos os arguidos nos autos.

Porém, ainda que assim não fosse, devendo considerar-se não ter a ofendida formulado atempada e devidamente queixa contra o arguido não recorrente, nunca a pretensão formulada no recurso ora interposto pela arguida deveria proceder.

Com efeito, salvo o devido respeito e melhor opinião, parece-nos que a pretensão formulada pela arguida, bem como a argumentação exarada no próprio despacho impugnado, a respeito da suposta necessidade de apresentação de queixa, por parte da ofendida, contra outros comparticipantes na prática do facto criminoso para além daqueles que tenha inicialmente indicado, caso os mesmos venham a ser identificados no decurso da investigação, assenta numa incorrecta interpretação das normas decorrentes do disposto no art. 114º e no nº 3 do art. 115º do Código de Processo Penal.

Isto na medida em que, conforme é referido na peça doutrinária citada no despacho impugnado, o princípio fundamental decorrente do disposto no referido art. 114º é o da indivisibilidade da queixa, que implica desde logo a desnecessidade de expressa formulação da mesma contra todos os comparticipantes na prática do crime, sejam estes conhecidos ou não pelo ofendido, mas também o seu correspondente inverso – ou seja, a verificação da caducidade do direito de queixa contra todos esses comparticipantes, logo que tal direito não possa ser exercido quanto a qualquer um deles, por força do disposto no nº 1 do art. 115º do C. Penal, mesmo que o ofendido ainda pudesse exercê-lo quanto a outros comparticipantes.[2]1

Assim, ao contrário do que parece ter sido entendido no Acórdão deste Venerando Tribunal que é citado na decisão impugnada, o nº 3 desse mesmo art. 115º não impõe que o ofendido venha a formular queixa contra todos e cada um dos comparticipantes na prática do crime que forem identificados no decurso da investigação, independentemente de quando a formulou inicialmente o ter feito contra algum ou alguns deles, ou mesmo contra desconhecidos, pois isso esvaziaria de sentido o comando inequivocamente decorrente do art. 114º do C. Penal.

Aquilo que esse nº 3 do art. 115º visa será apenas, como se disse, assegurar que o ofendido não possa decidir apresentar queixa apenas por se ter tardiamente apercebido de que um dos comparticipantes na prática do crime será alguém contra quem quererá realmente fazê-lo, ao contrário daquele que fora por si inicialmente identificado; ou, mais simplesmente, impedir que alguém que tenha deixado caducar o direito de queixa contra um dos comparticipantes, por si identificado, venha mais tarde a poder deduzir queixa contra um outro responsável, entretanto descoberto, “ressuscitando” assim a possibilidade de perseguição penal do inicialmente identificado, por aplicação “retroactiva” do disposto no art. 114º.

Logo, tendo no caso concreto a ofendida formulado queixa contra a ora recorrente, tanto bastou para tornar a mesma extensível ao outro comparticipante[3] na prática do crime, mesmo que se devesse considerar não ter a mesma, posteriormente, manifestado expressamente desejar procedimento contra este último.

Face ao exposto, não merecendo a decisão proferida no despacho impugnado censura, deverá a mesma ser mantida na íntegra. ...”.


*

É pacífica a jurisprudência do STJ[4] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[5], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

Tempestividade da queixa apresentada e legitimidade do MP, para deduzir acusação.


*

Cumpre decidir.

Entende a Arg. que a Assistente não exerceu tempestivamente o direito de queixa contra o co-arguido BB, pelo que se extinguiu o direito de queixa também contra si, nos termos do art.º 115º/3 do CP, pelo que falece legitimidade ao MP para deduzir acusação contra qualquer dos Arg..

Como se refere no despacho recorrido, “... Segundo FIGUEIREDO DIAS, a queixa é “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada” – in Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663. ...”.

“... A queixa não é senão a notícia de um crime semipúblico ou particular e a manifestação de vontade, da pessoa legitimada para tal, de que seja instaurado um processo para o processamento do agente do crime.

A queixa distingue-se da denúncia só na medida em que enquanto a denúncia é mera manifestação de ciência transmissão ao Ministério Público do conhecimento da prática de um crime, na queixa, além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para averiguação da notícia e procedimento contra o agente responsável. ...”[6].

Por isso, qualquer manifestação de vontade, no processo, donde se possa concluir que a Ofendida pretende procedimento criminal, cumpre os requisitos da apresentação de queixa.

A Ofendida, na resposta a uma notificação da MP, afirmou “... solicitar a prolação do despacho de acusação contra os arguidos e a prossecução dos autos para que os mesmos sejam julgados ...”.

Não se nos suscitam dúvidas de que, tal manifestação de vontade corresponde à apresentação de queixa.

Mas mesmo que assim não fosse, sempre a apresentação da queixa contra a Arg. bastava para estender os seus efeitos aos restantes denunciados.

É isso que resulta da interpretação conjugada dos art.ºs 114º e 115º/3 do CP.

Na verdade, na interpretação das leis a norma fundamental é o art.º 9º do CC[7], com a seguinte redacção:

Artigo 9.º Interpretação da lei

1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.

Nesta actividade, como diz Francesco Ferrara[8], “… As palavras hão-de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmónica de todo o contexto. …”.

Tentemos, pois, descortinar qual foi a intenção do legislador ao estabelecer ambas as normas, que tenha um mínimo de correspondência verbal na letra da lei[9].

Tais normas, têm, respectivamente, o seguinte teor:

“... A apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes. ...” e “... O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa. ...”.

Assim, “... Em caso de comparticipação no crime, a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes torna o procedimento criminal extensivo aos restantes (art. 114,° do CP).

De modo semelhante, a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa (arts. 115.º, n.º 3, e 116.º, n.º 3).

A justificação destas normas é evidente. Pretendem obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado. É a consagração do chamado princípio da indivisibilidade da queixa. ...” (sublinhado nosso)[10].

Estas normas têm que ser lidas sequencial e articuladamente.

Isto é, a segunda norma tem que ser lida depois da primeira e, quer uma, quer outra têm que ter um campo de aplicação próprio.

Mas a leitura que a maioria esmagadora da jurisprudência vem fazendo, torna inaplicável o art.º 114º, na medida em que considera que, sempre que o Ofendido não apresente queixa contra todos os agentes conhecidos, a falta de queixa aproveita a todos eles[11].

Entendemos, por isso, que a interpretação conjugada dessas normas leva a concluir que a intenção do legislador, devidamente expressa nessas normas, foi a de que basta que o Ofendido apresente queixa contra qualquer dos agentes conhecidos do crime, antes que o prazo da sua apresentação tenha decorrido relativamente a qualquer deles, para que esta queixa se estenda a todos os outros, sem necessidade de contra eles apresentar outras queixas.

Mas que, se, antes de o Ofendido ter apresentado qualquer queixa, já tiver decorrido o prazo relativamente a qualquer dos agentes, esse prazo se considera precludido quanto a todos eles[12].

Esta interpretação permite, por um lado, manter o campo de aplicação do art.º 114º do CP e, por outro, aplicar o princípio da indivisibilidade da acusação (art.º 115º/3 do CP), na medida em que obvia a que o Ofendido espere que finde o prazo de apresentação da queixa relativamente a determinado agente, que queira proteger, e, depois, apresente queixa contra o/s outro/s, assim escolhendo a quem perseguir criminalmente.

É, pois, improcedente o recurso.


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos inteiramente a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.


*

Notifique.

D.N..


*****

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

*****



[1] Arguido/a/s.
[2] Algo que seria possível suceder, uma vez que, conforme prevê o nº 1 desse mesmo art. 115º, o início do prazo de caducidade depende do conhecimento não apenas da prática do crime, mas também da identidade dos seus autores – o que se compreende, pois a lei quer atribuir ao titular do direito de queixa o poder de decidir se quererá ou não formulá-la contra determinadas pessoas (ainda que lhe vede seleccionar, dentre os vários comparticipantes, aqueles contra quem quererá ou não exercer procedimento).
[3] Devendo entender-se que esta expressão abrange, para além da co-autoria propriamente dita, todos os outros casos de participação criminosa, como a instigação e a cumplicidade, mas também as situações de autorias paralelas ou concorrentes, como terá aqui sido aqui o caso (mais vulgar em sede de crimes negligentes, mas também configurável quanto a crimes dolosos, desde logo aqueles que sejam cometidos por omissão)
[4] Supremo Tribunal de Justiça.
[5]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[6] Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª ed., Editorial Verbo, 2009, pág. 63.
[7] Código Civil.
[8] In “Interpretação e aplicação das leis”, Arménio Amado – Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pp. 139/140.
[9] Quanto à interpretação das normas jurídicas, importa ter em conta, para além doutras, as seguintes doutrina e jurisprudência:
- Parecer n.º 26/1998, de 24-09-1998 do CCPGR, relatado por Esteves Remédio, do qual citamos: “... A matéria da interpretação da lei tem sido objecto de repetida atenção por parte do Conselho Consultivo ([16]).
Escreveu-se no parecer nº 61/91:
«5.2.1 - O limite da interpretação é a letra, o texto da norma (x).
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma ‘tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal’ (x1).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático ‘compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o [lugar sistemático] que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico’ (x2).
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.
5.2.2 - Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.
Na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo (x3).
Ou seja: há interpretação declarativa quando o sentido da lei cabe dentro da sua letra, quando o intérprete fixa à norma, como seu verdadeiro sentido, o sentido ou um dos sentidos literais, nada mais fazendo que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo (x4).
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões que têm vários significados: tal distinção, como adverte FRANCESCO FERRARA (x5), não deve confundir-se com a de interpretação extensiva ou restritiva, pois nada se restringe ou se estende quando entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que parece mais adaptado à mens legis.»  ...”;
- acórdão da RP de 28-05-2008, relatado por Ernesto Nascimento, no proc. 1715/08, in JusNet 7545/2008, do qual citamos: “... Como interpretar esta evolução legislativa?
Na interpretação das normas jurídicas, o argumento literal, não deve ser desprezado e deve-lhe mesmo ser concedido peso decisivo, na tarefa, por vezes árdua, de procurar o sentido da norma querido pelo legislador.
O texto é o ponto de partida da interpretação, quando o sentido para que nos remete não seja paradoxal.
Por um lado, apresenta-se com uma função negativa:
a de eliminação daqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras da lei, e, por outro,
com uma função positiva, nos seguintes termos:
primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma - com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador;
quando, como é de regra, as normas, fórmulas legislativas, comportam mais que um significado, então a função positiva do texto produz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis; e que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita; ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto, nem sempre exacto, de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento", cfr. João Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 12ª reimpressão, 2000, pág. 182.
Em termos de regras de interpretação, dispõe o art. 9º-1 do Cód. Civil, que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos jurídicos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada".
Por outro lado, dispõe o nº 2 da mesma norma que "não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
"Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados", nº 3 da mesma norma. ...”;
- acórdão Da RP de 09-06-2010, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 60/09, in JusNet 3587/2010, do qual citamos: “… Como escreveu Manuel de Andrade (In "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", 1963, pág. 26) "Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva" ... "O legislador é plenamente livre para investigar a melhor regulamentação a estatuir, ao passo que o intérprete tem de mover-se sempre no quadro do texto e do sistema e sem perder de vista outros dados - e em especial as sugestões do texto - que, não sendo de todo irrefragáveis, podem ser altamente persuasivos".
Ou ainda, como se escreveu no Parecer n.º 92/81 da Procuradoria-Geral da República, de 8-10-2001 (6) "é das mais elementares regras da hermenêutica dever o intérprete esforçar-se por situar a norma interpretanda num quadro lógico com as demais disposições legais, nomeadamente as que respeitem a institutos e figuras afins ou paralelos";
- acórdão do STJ de fixação de jurisprudência 4/2015, de 24-03-2015, relatado por Pires da Graça, no proc. 533/12.6T3AMD.L1-A.S1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... Como salienta o acórdão fundamento:
"É indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que parece evidente um "claro teor literal" (JESCHECK, sublinhado neste ponto pelo acórdão do STJ de 14.3.2013, no proc. 287/12.6TCLSB.L1.Sl).
E a interpretação há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, levando em conta todos os elementos de interpretação - gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) -, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao "sentido possível" do texto (letra) da lei."
Com efeito, resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Refere BAPTISTA MACHADO[ Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss.], a propósito da posição do nosso Código Civil perante o problema da interpretação:
"I - O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]
II - Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso". Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.
III - Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
IV - Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas".
Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais correctas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correcta. Este modelo reveste-se claramente de características objectivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorrecto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstracto: sábio, previdente, racional e justo. Só que não convém exagerar a tónica objectivista, pois já vimos ser ponto assente que a nossa lei não tomou partido entre as duas correntes (a subjectivista e a objectivista).
Pode, porém, acontecer que a interpretação mais natural e directamente condizente com a fórmula verbal não corresponda à solução mais acertada. Nesta hipótese, as duas presunções entrarão em conflito. Por qual das interpretações optar?
Manuel de ANDRADE propõe para esta hipótese a procura de um certo ponto de equilíbrio, nos seguintes termos: "Dentre os dois sentidos, cada um deles o mais razoável sob um dos aspectos considerados, deve preferir-se aquele que menos se distanciar da razoabilidade sob o outro aspecto". É esta uma directriz equilibrada, sem dúvida; mas é óbvio que apenas será de observar se o "impasse" se mantiver depois de exauridos os outros elementos de interpretação mencionados pelo art. 9.º e que ainda falta referir.
V - O n.º 1 do art. 9.º refere mais três desses elementos de interpretação: a "unidade do sistema jurídico", "as circunstâncias em que a lei foi elaborada" e as "condições específicas do tempo em que é aplicada".
Tomemos em primeiro lugar estes dois últimos elementos. Entre eles não existe qualquer hierarquia ou melhor, como diz A. VARELA, "nenhum significado especial possui a ordem por que são indicados esses dois factores".
O primeiro destes factores, "as circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada", representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os factores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa. Por vezes o conhecimento destes factores é mesmo indispensável para se poder atinar com o sentido e alcance da norma - sobretudo quando esta é já antiga e foi fortemente condicionada por factores de conjuntura.
O segundo dos dois elementos, as circunstâncias vigentes ao tempo em que a lei é aplicada, tem decididamente uma conotação actualista e, talvez deva afirmar-se, a referência que o art. 9.º lhe faz significa que o legislador aderiu ao actualismo. Com efeito, este não é de forma alguma incompatível com a utilização de elementos históricos como meios auxiliares da interpretação da lei. A posição historicista, essa é que seria incongraçável com a consideração das circunstâncias do tempo de aplicação da lei para efeitos de determinar o sentido decisivo com que esta deve valer.
Não tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico", de que falaremos a seguir.
Cumpre ainda anotar que, quanto mais uma lei esteja marcada, no seu conteúdo, pelo circunstancialismo da conjuntura em que foi elaborada, tanto maior poderá ser a necessidade da sua adaptação às circunstâncias, porventura muito alteradas, do tempo em que é aplicada. O que bem mostra que a consideração, para efeitos interpretativos, da occasio legis (circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada) tem em vista uma finalidade bem diversa da consideração, para os mesmos efeitos, das condições específicas do tempo em que é aplicada. Acolá trata-se muito especialmente de conferir à letra (ao texto) um sentido possível (quando o texto de per si seja totalmente equívoco) ou de identificar o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei; aqui trata-se, por um lado, de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor e, por outro lado, de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra.
VI - Com isto abeiramo-nos de um último factor ou ponto de referência da interpretação: "a unidade do sistema jurídico". Dos três factores interpretativos a que se refere o n.º l do art. 9.º, este é sem dúvida o mais importante. A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica.
Como diz LARENZ, "a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica". A isto há que acrescentar que, se o legislador actual insuflou de espírito novo o ordenamento jurídico ou o regime de uma dada matéria, se altera o termo de referência para a compreensão da fórmula verbal de uma norma antiga que se mantenha em vigor.
 [...] A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha. Mas uma incompletude relativamente a quê? Uma incompletude relativamente a algo que protende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma "incompletude contrária a um plano" [...].
Tratando-se de uma lacuna jurídica, dir-se-á, pois, que ela consiste numa incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global. Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica".
PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA [Código Civil Anotado, Volume I (artºs 1º a 761º), 4ª edição revista e actualizada, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 58.],  anotam que "[...] o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada (nota vincadamente actualista).
O facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis).
2. Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios, de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3."
Por seu lado, FIGUEIREDO DIAS [Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, Limitada, -1974, p. 95.],  elucida: "2. Nas suas linhas essenciais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia: trata-se aí, como em geral, da necessidade de uma actividade - prévia em relação à aplicação do direito e que, por isso mesmo, em nada contende com o carácter não subsuntivo desta operação - tendente a descortinar o conteúdo de sentido ínsito em um certo texto legal. Só convirá aqui relembrar dois pontos já devidamente acentuados: é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição."
E como refere este mesmo Distinto Professor [Direito Penal. Parte Geral I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2ª ed. Coimbra Editora, 2007,8.º Cap., § 20] "O legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário se apresentam polissémicas. Por isso o texto legal se toma carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primazia da teleologia legal, de concretização, complementação ou desenvolvimento judicial), oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em direito penal". ...”;
- acórdão do STJ de 29-04-2015, relatado por Santos Cabral, no proc. 85/14.2YFLSB, in www.dgsi.pt, do qual citamos:
“... Assim sendo, também ... se aplica a norma fundamental da hermenêutica jurídica radicada no art. 9º do Código Civil que incide sobre a interpretação da lei. “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
É nessa lógica que, também neste domínio, têm aplicabilidade as palavras de Manuel de Andrade Cfr. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, pp. 21 e 26. quando afirmava que interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.
Interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva. Neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 6ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1965, Vol. I., p. 145. Cfr. Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I., pp.58/59 de Pires de Lima e Antunes Varela onde se afirma que o sentido de a lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Assim, e repetindo as palavras de Baptista Machado, a letra assume-se, naturalmente, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa, qual seja, “a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei” Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, pp. 187 ss..
Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se, como refere Francesco Ferrara de vários meios: “Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.” Cfr. Interpretação e Aplicação das leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª ed., Coimbra, 1978, pp. 127 ss e 138 ss. Ora, nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico, por seu turno, compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional, ou teleológico, consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. A propósito deste critério realça Ferrara que “É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios.
Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas que brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa Idem, p. 141. ...”;
-
[10] Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., Editorial Verbo, 2008, pág. 264/265.
[11] Vajam-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos:
- da RC de 08-09-2010, relatado por Jorge Jacob, no proc. 142/08.4GDSCD.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “... 5. O M.P. tem legitimidade para praticar os actos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal. 6. Averiguada em inquérito por crime semi-público a existência de comparticipantes não denunciados, deve o M.P., antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos. ...”
- da RL de 09-11-2022, relatado por Conceição Miranda, no proc. 4980/20.1T9LSB.L1-3, in www.dgsi.pt., de cujo sumário citamos: “... A apresentação de queixa apenas contra o mandante é configurada na lei como desistência, quer da queixa quer da acusação, que aproveita aos restantes. Logo o procedimento criminal não podia prosseguir contra qualquer dos comparticipantes, por se verificar a falta da condição de procedibilidade prevista no nº. 3 do artigo 115º. do Código de Processo Penal. ...”
[12] Nesse sentido, veja-se o acórdão da RL de 13-04-2016, relatado por Carlos Almeida, no proc. 2903/11.8TACSC.L1-3, do qual citamos: “... Para que o Ministério Público tenha legitimidade para promover um processo por um crime semi-público, como é o furto simples, é necessário que o ofendido ou uma das outras pessoas para o efeito indicadas na lei lhe dêem conhecimento dos factos pelos quais pretendem que seja exercida a acção penal - artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - «no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores» - n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal -, sob pena de esse direito se extinguir.
Caso exista uma pluralidade de pessoas responsáveis pelo crime, «[a] apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes» - artigo 114.º do Código Penal -, assim como «[o] não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também não puderem ser perseguidos sem queixa» - artigo 115, n.º 3, do mesmo diploma legal.
Da conjugação destas normas resulta que, no caso de existir uma pluralidade de pessoas responsáveis pela prática de um crime semi-público, o prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa se conta a partir do momento em que o titular desse direito tiver tido conhecimento do facto e, pelo menos, da identidade de um dos seus agentes.
Se, nesse prazo, o titular do direito de queixa não exercer esse direito, o mesmo extingue-se, não obstante apenas ter tido conhecimento da existência ou da identidade dos outros comparticipantes mais tarde ou de, no prazo de 6 meses, não ter mesmo chegado a conhecer a identidade dos restantes responsáveis.
Extinto o direito de queixa quanto a um dos comparticipantes, extinto fica o direito quanto aos restantes.
Se, pelo contrário, o titular tiver exercido o direito de queixa dentro do prazo de 6 meses, contado a partir do conhecimento do facto e da identidade de um dos comparticipantes, essa queixa estende-se aos restantes. ...”.