Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA | ||
Descritores: | PRESUNÇÕES JUDICIAIS DESCARACTERIZAÇÃO ÁLCOOL NEXO DE CAUSALIDADE PENSÃO AOS ASCENDENTES E OUTROS PARENTES SUCESSÍVEIS PENSÃO BONIFICADA ÓNUS DA PROVA DESPESAS DE FUNERAL JUROS DE MORA | ||
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Data do Acordão: | 01/14/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DO TRABALHO DA COVILHÃ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 349.º, 351.º, 804.º E 805.º DO CÓDIGO CIVIL ARTIGOS 61.º, 65.º, 66.º DA LAT ARTIGO 138.º DO CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO | ||
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Sumário: | I) As presunções apenas são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada pelo tribunal e não já para contrariar ou modificar essa factualidade ou para suprir a falta de prova. II) Para a descaracterização de acidente de trabalho com fundamento em presença de álcool no sangue do sinistrado é necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência de nexo de causalidade entre esse estado e a verificação do acidente, ou seja, que o grau de alcoolemia foi a causa do acidente ou que, pelo menos, o influenciou. III) Os juros de mora relativos às quantias devidas a título de despesas de funeral são devidos desde o dia seguinte ao da ocorrência da morte. IV) Compete ao beneficiário, como facto constitutivo do seu direito a receber a pensão bonificada prevista no n.º 2 do artigo 61.º da LAT, alegar e provar a inexistência dos titulares referidos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 57.º da LAT. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra: I - A. , divorciada, desempregada, residente na Rua ..., ..., intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho, contra B. , SA, actualmente, BB., S.A., com sede na ..., –..., pedindo que seja reconhecido e declarado como de trabalho o acidente descrito nos autos e sofrido pelo trabalhador C., seu filho, e que a ré seja condenada a pagar-lhe uma pensão anual no montante de €1.472,72 (artigos 49º, nº 1, al. d), 57º, nº 1, al. d) e 61º, nº 2 da Lei 98/2009, de 04/09), acrescida de juros à taxa legal a partir do dia seguinte ao do falecimento (artigo 135º do Código do Processo do Trabalho), obrigatoriamente remível (artigo 75º da Lei 98/2009, de 04/09), bem como as despesas com o funeral de seu filho, no valor de € 2.700,00 (artigo 66º, nºs 1 e 2 da Lei 98/2009, de 04/09. Para tanto alega que, o sinistrado/falecido prestava serviço como servente da construção civil para a entidade empregadora “D., Lda”, auferindo a retribuição anual global de € 9 818,12 (€ 600,00 x 14 a título de retribuição base + € 5,86 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação) estando a mesma integralmente transferida para a seguradora dos autos por força da apólice nº .... No dia 30/03/2019, cerca das 16.00 horas, numa obra de construção civil em ... , ... , ..., o sinistrado quando se encontrava ao serviço da sua entidade empregadora, em exercício de funções e no período normal de trabalho, caiu de um andaime com cerca de sete metros de altura, sendo encontrado no solo, já sem vida, sendo o óbito verificado pelas 17.44 horas, desse mesmo dia. Segundo o relatório de autópsia constante da Refª7381911, a morte do sinistrado deveu-se às lesões traumáticas descritas nesse documento, denotando ter sido provocada por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devida a queda de andaime. A beneficiária reclama da seguradora, o pagamento de uma pensão anual no valor de € 1.472,72 (art.49º nº1º d) e 57º nº1 d) e 61º nº2 da Lei 98/2009 de 13/09) acrescida de juros a partir do dia seguinte ao do falecimento (art.135º do Código de Processo do Trabalho), sendo obrigatoriamente remível nos termos do art.75º da Lei 98/2009 de 04/09. A autora reclama, também, despesas com o funeral no valor € 2 700,00 (art.66º nº1 e nº2 da Lei 98/2009 de 13/09), conforme cópia da factura junta aos autos na Refª..... + Devidamente citada a ré apresentou contestação impugnando a factualidade apresentada pela autora, defendendo que o acidente se deveu à circunstância de o trabalhador se encontrar a trabalhar animado de uma TAS de 1,81 g/l que, necessariamente, determinou a falta de equilíbrio que culminou na sua queda fatal. *** II – Saneado o processo e seleccionada da matéria de facto assente e aquela que constituiu a base instrutória, procedeu-se à audiência de julgamento tendo, a final, sido proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte: “Pelo exposto o Tribunal decide julgar parcialmente procedente o pedido formulado pela autora A. , reconhece e declara como de trabalho o acidente descrito nos autos e sofrido por C. e condena a ré B. , S.A. a pagar-lhe: - A quantia anual de €981,81 (novecentos e oitenta e um euros e oitenta e um cêntimos), com início em 31/03/2019, - A quantia de €1.930,76 (mil novecentos e trinta euros e setenta e seis cêntimos) a título de subsídio por despesas de funeral; - São devidos juros sobre tais quantias, à taxa legal de 4%, desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento. - Mais se absolvendo a ré do mais peticionado”. **** III - Inconformada com esta decisão, dela apelou a beneficiária, alegando e concluindo: (…) **** V – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto: 1. A autora é mãe do sinistrado C. . 2. C. foi admitido ao serviço da sociedade D. , Limitada, sediada na ..., .... 3. Auferindo a retribuição anual global de € 9.818,12 (€ 600,00 x 14 de retribuição base + € 5,86 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação). 4. Entre “ D. , Lda.” e a Ré foi celebrado um contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho, titulado pela apólice ... e subordinado às condições particulares, gerais e especiais constantes do doc 2 junto com a contestação. 5. Através desse contrato a Ré comprometeu-se a, de acordo com as condições gerais e particulares da apólice, “garantir” a responsabilidade do seu segurado pelos “encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às Pessoas Seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva também ali identificada, independentemente da área em que exerçam a sua actividade”. 6. Uma das pessoas seguras por esse contrato era C. . 7. A retribuição anual de C. transferida para a Ré no âmbito do referido contrato de seguro era a de 600,00€ x 14 meses a título de retribuição base, acrescidos de 5,86€ x 22 dias x 11 meses a título de subsídio de alimentação, num total anual de 9.818,12€ (nove mil oitocentos e dezoito euros e doze cêntimos). 8. No dia 30/03/2019, cerca das 16h, C. encontrava-se a trabalhar numa obra que era levada a efeito pela “ D. , Lda.”, no lugar de ..., ... , do concelho de .... 9. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, C. encontrava-se ao serviço da sua entidade patronal no exercício das suas funções (pequenos trabalhos de reboco na fachada de um edifício) e dentro do seu horário de trabalho. 10. A obra em causa consistia na edificação de uma habitação, cuja cobertura se situava a uma altura de cerca de 7 metros do solo. 11. Para permitir a intervenção dos trabalhadores na fachada dessa casa, estavam montados junto à mesma, andaimes. 12. Esses andaimes dispunham de guardas exteriores, devidamente fixas, destinadas a reduzir o risco de queda de trabalhadores. 13. O C. encontrava-se sobre a plataforma superior de um desses andaimes, a uma altura de cerca de 6 metros do solo. 14. Nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar C. caiu da plataforma superior do andaime ao solo, de uma altura de pelo menos 6 metros. 15. Sendo o óbito verificado no próprio local do acidente por um médico do ... pelas 17 h 44 m nesse mesmo dia 30 de Março de 2019. 16. A morte de C. foi devida às lesões traumáticas descritas no relatório de autópsia junto aos autos na fase conciliatória, designadamente ferida contusa parietal posterior esquerda e fracturas dos ossos da cabeça (parietal e occipital esquerdos. 7. Tendo, por seu turno, tais lesões crânio-encefálicas, sido provocadas pelo referido acidente. 18. A autora está desempregada, dispondo unicamente de um rendimento mensal de € 156,45, a título de Rendimento Social de Inserção. 19. Na data do falecimento de seu filho, também só dispunha de um valor mensal de € 171,91, a título de Rendimento Social de Inserção. 20. As despesas com o funeral do sinistrado estão orçadas no valor de € 2.700,00. 21. Aquando do óbito o sinistrado era portador de TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,81 g/l (+/- 0,23 g/l). 22. Nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar e no momento em que caiu e sofreu as lesões corporais que lhe provocaram a morte, o C. estava a trabalhar com uma TAS de não menos de 1,58 g/l. 23. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a reduzir a sua acuidade visual, quer para perto, quer para longe, com incapacidade de se aperceber dos contornos e limites de objectos próximos. 24. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a limitar sua visão estereoscópica estava limitada, com incapacidade para avaliar as distâncias. 25. A taxa de álcool de que o C. era portador, nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar, era apta a afectar e reduzir as suas faculdades cognitivas e motoras. 26. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a diminuir os seus reflexos, bem como a sua coordenação psicomotora, determinando a lentidão de discernimento e dos tempos de reacção. 27. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a causar a C. um estado de euforia, o que poderia aumentar os seus níveis de autoconfiança, levando-o a não identificar e valorizar devidamente os riscos inerentes à atividade que realizava. 28. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a reduzir a capacidade de coordenação motora do C. , provando-o do domínio total dos seus movimentos. 29. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a lenificar o discernimento do C. , os seus movimentos, e a reduzir a capacidade de se aperceber, rapidamente, de algum perigo e de ao mesmo reagir prontamente. 30. A taxa de álcool de que o C. era portador, era apta a reduzir a capacidade de equilíbrio do C. , com perda de capacidade de se manter estático e sem oscilações do seu corpo. 31. Quando se encontrava a trabalhar sobre o andaime e a 6 metros de altura do solo, o C. sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas. 32. O C. , nessa altura, sabia que a sua capacidade motora e cognitiva estava afectada por força da ingestão de bebidas alcoólicas. 33. E sabia, que, em face do local onde se encontrava, existia o risco de queda em altura, caso se desequilibrasse. 34. O C. não se coibiu de prosseguir a execução de trabalhos a uma altura de 6 metros do solo e sobre um andaime, apesar de estar afectado com o já mencionado grau de álcool no sangue. 35. C. sabia que não poderia ingerir álcool em quantidades excessivas antes e durante a execução das tarefas inerentes à sua actividade profissional. Factos não provados: Além dos que resultam logicamente excluídos da matéria de facto provada, das alegações conclusivas ou jurídicas e da factualidade não relevante, de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis, não se provaram, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos: A. O C. , atenta taxa de alcoolemia de que era portador, encontrava-se em estado de euforia, de confusão mental e de total alheamento em relação ao que se passava ao seu redor e à actividade que realizava. B. A sua capacidade de discernimento, concentração e atenção estavam drasticamente reduzidas, pelo que não tinha a capacidade de manter a atenção na actividade que realizava, não tinha a percepção exacta da altura a que se encontrava do solo, nem das dimensões do andaime onde se encontrava e seus limites e não tinha capacidade para avaliar os riscos inerentes à actividade que realizava. C. Fruto dessa taxa de alcoolemia, o C. estava afectado por reacções de vertigem. D. Foram as limitações cognitivas e motoras, bem como os efeitos que afectavam o C. , decorrentes da taxa de alcoolemia de 1,81 GL/ que apresentava nesse momento, que estiveram na origem e deram causa à sua queda. E. Quando se encontrava sobre o andaime, a uma altura de 6 metros do solo, o C. , fruto do estado de embriaguez em que se encontrava, com a inerente redução das suas capacidades cognitivas e motoras decorrente da TAS que apresentava, perdeu o equilíbrio, ao movimentar-se nesse andaime. E, por causa dessa perda de equilíbrio, o C. tombou para a zona exterior ao andaime e precipitou-se sobre o solo, de uma altura de 6 metros. G. Fruto do seu estado de embriaguez, o C. não foi capaz de realizar qualquer movimento tendente a impedir essa queda, como, por exemplo, agarrar-se a alguma componente do andaime. H. A queda do C. foi provocada pelos efeitos da taxa de alcoolemia que apresentava e foi influenciada pela mesma. I. Antes de iniciar a sua jornada laboral, o C. ocultou da sua entidade patronal o facto de ter ingerido bebidas alcoólicas. *** VI - As conclusões das alegações delimitam o objecto dos recursos. Assim, cumpre decidir se : 1. Se a matéria de facto deve ser alterada. 2. Se o acidente se encontra descaracterizado, não dando lugar à reparação. 3. Em caso negativo, se o valor da pensão devida à autora, mãe do sinistrado, deve ser calculada considerando 15% da retribuição deste. 4. Se os juros de mora sobre a quantia de € 1.930,76 atribuída a título de despesas de funeral, devem ser computados a partir do dia seguinte ao da morte do sinistrado
Da alteração da matéria de facto: Pretende a seguradora recorrente que a matéria de facto seja alterada do seguinte modo: - com base numa presunção judicial que se retira da factualidade dada como provada nos pontos 21 a 30 dos factos dados como provados, impunha-se que tivessem sido dados como provados os factos dos pontos A. a C. da matéria dada como não demonstrada. - com base numa presunção judicial que se retira da factualidade dada como provada nos pontos 8 a 17 e 21 a 30 dos factos dados como provados, impunha-se que tivessem sido dados como provados os factos dos pontos D. a H. da matéria dada como não demonstrada. Decidindo: No acórdão da RP de 24.01.18, procº 1070/16.5T8AVR.P1, citado pelo Exmº PGA, disponível em www.dgsi.pt/jtrp decidiu-se que (sumário) “II.A prova por presunções judiciais, que os artºs 349 e 351 do CC permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela. III - A falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção. IV - As presunções, apenas, são admissíveis para integração ou complemento da factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto ou mesmo suprir a falta de prova, já que estas não servem para substituir a prova dos factos com que a parte está onerada. V - Para que se conclua pela descaracterização de acidente de trabalho e subsequente não reparação do mesmo, além da prova da negligência grosseira do sinistrado, exige-se também, cumulativamente, que se prove a culpa exclusiva deste na sua verificação.VI - Ainda que se prove que o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,89g/l, na altura do acidente, que lhe diminui a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos, não se provando que aquele teor de alcoolemia contribuiu para a queda que sofreu, apenas, aqueles factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e aquela[1]”. É jurisprudência consolidada do nosso mais alto tribunal que quando o sinistrado apresenta álcool no sangue (ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais ou capacidades psico-motoras) torna-se necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre esse estado e a verificação do acidente, ou seja, que o grau de alcoolemia foi a causa do acidente, ou que, pelo menos, o influenciou (cfr a propósito Ac. STJ de 26.06.19, procº 763/16.1T8AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj. No caso não houve testemunhas do acidente. Apenas se sabe que o sinistrado caiu de cerca de seis metros de altura quando se encontrava em cima de um andaime, estatelando-se no solo e que apresentou, aquando do óbito, uma TAS, de 1,81 g/l (+/- 0,23 g/l) e no momento em que caiu e sofreu as lesões corporais que lhe provocaram a morte, uma TAS de não menos de 1,58 g/l. Daí que que, com base no depoimento da testemunha E. , médico, director clinico prestador de serviços à ré, onde tem funções de direcção clinica, que referiu que “…descreveu o processo da afetação das capacidades sensitivas e cognitivas pelo álcool, que diminui o discernimento, capacidade reacção, do campo visual, alterações de equilíbrio e motricidade fina, a percepção das distância e da altura, poderia afectar a percepção da dimensão da plataforma – andaime – uma vez que proporciona uma percepção distorcida do que está à nossa volta, interferindo nos contornos limites dos objectos, mas no caso não sabe o que causou o acidente. A TAS de 1,8 é necessariamente limitadora e afecta decisivamente o equilíbrio, reacção, capacidade de reacção, causando inquietude, impaciência, euforia, redução drástica da capacidade de avaliar o risco” o tribunal tenha concluído que”, a 1ª instância tenha considerado apenas provado que “o sinistrado ficou afectado nas suas capacidades, em consequência da TAS de que era portador. Coisa que o próprio certamente sabia. Como saberia também, como qualquer pessoa normal, que as bebidas alcoólicas que ingeriu lhe diminuíam as capacidades e tornavam mais perigoso o exercício da actividade que se encontrava a realizar”. Ora, não é de descartar que a queda tenha sido provocada não pela influência do álcool mas sim devido exclusivamente ou não a outra causa, sendo que era à seguradora, na qualidade de responsável pela reparação, que incumbia provar que, considerando a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa adoptada pela nossa lei (artº 563º do C. Civil)[2], não fora o sinistrado se encontrar sob a influência do álcool o acidente não teria ocorrido. E como as presunções judiciais não servem para colmatar a falta de prova, sendo apenas admissíveis para integrar ou complementar a factualidade apurada nas respostas do tribunal à matéria controvertida e não já para contrariar ou modificar a matéria de facto, esta matéria deve manter-se inalterada, o que se decide. Da descaracterização: A recorrente chama à colação a verificação das causas de descaracterização prevista nas alíneas a) b) e c) do artº 14º da LAT. Em face da matéria de facto provada encontra-se liminarmente afastada a hipótese do acidente ter sido dolosamente provocado pelo sinistrado ou de tal acidente ter resultado da privação permanente ou acidental do uso da razão por parte do sinistrado. Por outro lado, a verificar-se qualquer uma destas circunstâncias nunca o acidente podia vir a ser atribuído a negligência grosseira do sinistrado, dada a exigência da exclusividade desta negligência para a eclosão do evento infortunístico. Na sentença decidiu-se a questão da descaracterização do seguinte modo “Resulta dos factos provados que aquando do óbito o sinistrado era portador de TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,81 g/l (+/- 0,23 g/l). Porém não se sabe, apesar disso, se a referida TAS teve efectivamente influência na ocorrência do concreto acidente do qual veio resultar a morte do sinistrado; e se teve, em que medida. Não é possível afirmar, com toda a certeza, que não existiu outra qualquer causa para a ocorrência do acidente, visto que ninguém o presenciou. Desconhece-se em absoluto de que modo e porque é que o sinistrado caiu, incluindo se houve ou não qualquer factor externo na origem dessa queda. Apesar de estar demonstrado que a TAS de que o sinistrado era portador era apta a diminuir a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos daquela, não se provando que aquele teor de alcoolemia contribuiu para a queda que sofreu, apenas, aqueles factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e aquela. O facto de o sinistrado estar alcoolizado não é susceptível de, só por si, descaracterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparação. É facto assente que a elevada TAS com que o sinistrado circulava tornava mais perigoso, o trabalho em altura, em suspensão, afectando-lhe necessariamente a generalidade dos sentidos e capacidades, designadamente as necessárias à manutenção do equilíbrio. Podendo nessa medida afirmar-se que estaria privado do livre exercício da sua vontade. Porém, também aqui se mostra necessário o estabelecimento de um nexo de causalidade entre esse estado de espírito e a verificação do acidente, que era ónus da R. provar, nos termos do art. 342 n.º 2 do Código Civil, por se tratar de facto impeditivo dos direitos invocados pela A.. Como se considerou nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2006 e de 26/05/19941[3], para descaracterizar um acidente de trabalho, quando o sinistrado apresenta álcool no sangue (ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais ou capacidades psico-motoras) torna-se necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre estado e a verificação do acidente E como se disse já, a matéria de facto apurada é omissa em relação ao modo como se deu o acidente, não permitindo afirmar, sem margem para dúvidas, que a queda do sinistrado se deveu ao estado alcoolizado em que se encontrava. Ou dito de outro modo, que se o A. não se encontrasse em tal estado, o acidente não teria de todo em todo ocorrido. Não se provando que, o teor de alcoolemia (1,81g/l +/- 0,23 g/l) que o sinistrado apresentava, aquando do acidente sofrido, contribuiu para a sua queda, após sujeição a prova, não é legítimo extrair que o acidente não teria ocorrido se não fosse o estado alcoolizado em que se encontrava o sinistrado e, desse modo, concluir pela descaracterização daquele. Daí que não se possa concluir pela descaracterização do sinistro, com base no disposto na al. b) do n.º 1 do art. 14º, dado não se ter provado que o acidente proveio exclusivamente de “negligência grosseira” do sinistrado, caso assim se pretendesse traduzir o estado de embriaguez em que se colocou. Neste conspecto, não tendo esta ré logrado demonstrar, como lhe competia, o nexo de causalidade entre a queda e a concreta TAS de que o trabalhador era portador, eventualmente integrantes da previsão nas alíneas c) e d) do citado artigo 7º da citada Lei, importa concluir, sem necessidade de considerandos adicionais pela inverificação da descaracterização do sinistro. Por tudo o exposto, a obrigação de reparar cabe à companhia de seguros para quem a entidade empregadora havia transferido a responsabilidade emergente de eventuais danos que pudessem advir de acidente de trabalho de trabalhadores ao seu serviço, importando averiguar, agora, qual o montante da pensão devida à autora”. Mantendo-se inalterada a matéria de facto, este enquadramento merece o nosso inteiro acolhimento nada mais havendo a acrescentar por despiciendo.
Do valor da Pensão: Dispõe o artº 61º da LAT: “(Pensão aos ascendentes e outros parentes sucessíveis) 1 - Se do acidente resultar a morte do sinistrado, o montante da pensão dos ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis é, para cada, de 10 % da retribuição do sinistrado, não podendo o total das pensões exceder 30 % desta. 2 - Na ausência de titulares referidos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 57.º, os beneficiários referidos no número anterior recebem, cada um, 15 % da retribuição do sinistrado, até perfazerem a idade de reforma por velhice, e 20 % a partir desta idade ou no caso de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho”. Na sentença considerou-se que “… a autora não alegou nem provou a inexistência desses outros beneficiários (mais precisamente cônjuge, pessoa que vivesse com o sinistrado em união de facto, ex-cônjuge, cônjuge judicialmente separado à data da morte do sinistrado e com direito a alimentos, filhos, ainda que nascituros e/ou adoptados), como lhe competia, já que este corresponde a facto constitutivo ou essencial à procedência da pretensão de obter a pensão de 15% que reclama”. A autora entende que a prova da inexistência de outros beneficiários se trata de um facto impeditivo do direito da autora pelo que competia a ré provar esse facto nos termos do nº 2 do artº 342º do CPC Decidindo: O ónus da prova consiste na necessidade de observância de determinado comportamento, não para a satisfação do interesse de outrem, mas como pressuposto de obtenção de uma vantagem para o próprio, a qual pode inclusivamente cifrar-se em evitar a perda de um benefício antes adquirido (A. Varela, Obrigações, 35). O ónus da prova de um facto impende sobre quem aproveita esse facto, tendo por referência o direito invocado. São constitutivos os factos necessários à procedência da pretensão do autor. São impeditivos os factos contemporâneos à constituição do direito mas que obstam a essa constituição. Por outro lado, desde que se trate de factos constitutivos do direito invocado, quer esses factos sejam positivos ou negativos, é ao requerente que compete fazer sua prova pois o artº 342º do C. Civil não dá relevância à distinção entre factos positivos e factos negativos na distribuição do ónus da provar A inexistência de outros parentes sucessíveis do sinistrado, nomeadamente os mencionados nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 57.º da LAT (facto negativo), não constitui um facto impeditivo do direito da Autora, mas sim um facto constitutivo do seu direito a uma pensão de 15% da retribuição, ao invés dos 10% previstos no número anterior. Como a autora não alegou e provou a inexistência de outros beneficiários, a pensão tinha de ser fixada, como o foi, em 10% da retribuição do sinistrado. Acrescente-se ainda que o teor do despacho do Srº Procurador proferido na fase não contenciosa (Refª 31964854) e a omissão de resposta a esse despacho por parte do pai do sinistrado, não dispensa a autora de alegar e provar o facto constitutivo do seu direito à pensão no valor de 15% da remuneração do sinistrado por inexistência de outro de outros beneficiários, sendo que até o podia ter feito em sede julgamento no circunstancialismo previsto no artº 72º do CPT.
Dos juros: Do presente relator[4] decidiu-se no Ac. de 15.09.2016, procº 131/14.0TTGRD.C1 que “no que concerne (…) às despesas de funeral já a lei não estabelece qualquer data de vencimento (cfr. artºs 65º e 66º da LAT, respectivamente). Daí que os juros devidos deverão ser calculados a partir da data em que o responsável pela reparação se constituiu em mora. A mora do devedor, como se sabe, consiste no atraso culposo no cumprimento da obrigação. O devedor incorre em mora quando, por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a ainda a prestação a ser possível (artº 804º nº 2 do CC). Mas o devedor só se constitui em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir tal como decorre do disposto no nº 1 do artº 805º do CC, salvo nas situações previstas no nº 2 do citado preceito em que há mora independentemente de interpelação. Um dos casos previstos na lei em que a constituição em mora dispensa a interpelação refere-se às obrigações provenientes de facto ilícito (al. b) do citado nº 2). Conforme ensina Pedro Romano Martinez in Direito do Trabalho, 3ª edição, p. 809 “a responsabilidade civil objectiva por acidentes de trabalho, não obstante constituir um ius singulare, continua a assentar nos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana (ius commune) cujas regras, quando não sejam especialmente afastadas, encontram aplicação” Ainda que se possa questionar a aplicação das regras comuns sobre a responsabilidade civil subjectiva (v. ob. citada p. 809 e 810) nos casos de acidente de trabalho ocorridos por culpa do empregador ou do seu representante (artº 18º da LAT), sempre a responsabilidade por acidentes de trabalho se caracteriza como responsabilidade extracontratual ou aquiliana e, portanto, enquadrável na citada al. b) do nº 2 do artº 805º do CC. Daí que o devedor só se constitua em mora desde a citação[5], a menos que, sendo o crédito líquido, já haja mora anterior (nº 3 do artº 805º do CC). Este o regime geral sobre a mora debitoris. Todavia, não se pode olvidar que nos encontramos no domínio da reparação infortunística onde regem normas especiais atento os interesses que se visam tutelar. Lê-se no Ac. da RP de 29.05.2006, procº 0610535 in www.dgsi.pt que “o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1990-02-02 - P. 2285 - definiu a seguinte doutrina, conforme o sumário que se transcreve: O artº 138º do Código de Processo do Trabalho é uma norma especial em relação ao regime geral do Código Civil (artºs 804º e 805º) no que respeita à obrigação de pagamento de juros de mora. Tem carácter imperativo, pelo que há lugar à fixação de juros de mora desde que se verifique atraso no pagamento de pensões e indemnizações, independentemente de culpa no atraso imputável ao devedor. [cfr. Prontuário de Legislação do Trabalho, CEJ, Actualização n.º 35, Novembro de 1990, com anotação de Cruz de Carvalho] Daí que se venha entendendo que os juros de mora sejam devidos mesmo que o sinistrado ou beneficiário não os tenha pedido, independentemente de interpelação, por se tratar de direitos de existência e exercício necessários, pelo que o Tribunal deve fixá-los oficiosamente, se não forem pedidos. Trata-se de um regime excepcional ou especial em que a mora não depende da demonstração da culpa do devedor, bastando que se verifique o atraso no pagamento, desde que não imputável ao credor, parecendo tratar-se de uma mora objectiva. Por outro lado, sendo um regime especial, afasta a aplicação das regras do direito civil também quanto à questão da liquidez da dívida, pois o facto de o crédito não estar liquidado por razões de natureza processual e de orgânica judiciária, por exemplo, não impede a constituição em mora – cfr. o disposto nos Art.ºs 804 e 805.º, ambos do Cód. Civil. Assim, trata-se mais de reintegrar - com os juros - o valor do capital na data do vencimento da prestação, do que propriamente da punição do devedor relapso, na ideia de que as prestações derivadas do acidente de trabalho têm natureza próxima dos alimentos, cujo valor deve ser mantido aquando do recebimento. Assim, verificado atraso no pagamento, são devidos juros, desde que a mora não seja imputável a culpa do credor. Repare-se que se o sinistrado, por exemplo, tendo discordado do resultado do exame médico efectuado na fase conciliatória, requerer exame por junta médica, o retardamento do pagamento das prestações derivado do processado mais complexo a que deu causa, gera juros de igual forma, porque a mora, embora imputável ao credor, não o é a título de culpa, derivando apenas de vicissitudes processuais e de orgânica judiciária”[6]. O artº 138º do antigo CPT corresponde ipsis verbis ao actual artº 135º pelo que não perdeu actualidade o entendimento de que atrás se deu nota. (…) No que concerne ao subsídio por despesas de funeral o seu valor é igual ao montante das despesas efectuadas com o mesmo, com o limite de quatro vezes o valor de 1,1AS, aumentado para o dobro se houver trasladação. Para o cálculo deste subsídio é necessário saber previamente a importância em que importou o funeral, sendo que só no dia 30.04.2014 o serviço fúnebre foi facturado no valor de € 2.65,00 (cfr. factura de fls. 33). Seja como for, considerando o que acima ficou dito, mais concretamente que a mora nos casos de prestações por acidente de trabalho dispensa a verificação da liquidez da dívida e da culpa do devedor, a data de constituição em mora deve também fixar-se no dia seguinte ao da morte” Seguindo o decidido no citado acórdão entende-se que, nesta parte a apelação deve proceder. *** VI - Termos em que se decide julgar o recurso da autora parcialmente procedente e o da ré totalmente improcedente em função do que se altera a sentença na parte relativa ao pagamento de juros, passando a parte dispositiva da sentença a ter seguinte redacção: “- São devidos juros sobre tais quantias, à taxa legal de 4%, desde dia seguinte ao da morte até integral pagamento” no mais se confirmando a sentença impugnada. * Custa o recurso da autora a cargo desta e da ré na proporção do decaimento. Custas no recurso da ré a suportar totalmente por esta. * (…) * Coimbra 14 de Janeiro de 2022 * (Joaquim José Felizardo Paiva) (Jorge Manuel da Silva Loureiro) (Paula Maria Mendes Ferreira Roberto) [1] Negrito nosso. [2] A teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe que o facto concreto apurado seja, em geral e em abstracto, adequado e apropriado para provocar o dano. A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes : uma formulação positiva e uma formulação negativa. Na formulação negativa, o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª ed., págs 921, 922 e 930 ; Pedro Nunes de Carvalho, Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, pág. 61). |