Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
229/22.0GCTND.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROVA DO ELEMENTO SUBJETIVO
CASAL SEPARADO
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 152º CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. Perante a falta de confissão, todos os elementos de estrutura psicológica, como o conhecimento e a vontade de praticar um crime, terão de ser deduzidos de outros elementos, esses sim empiricamente observáveis e que funcionam, segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência.
2. No caso concreto do dolo, terá de ficar demonstrado que, de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social, o arguido não pôde ter deixado de representar e querer o resultado em causa.

3. A relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e os outros tipos de crime menos graves redunda numa situação de concurso aparente com a prevalência da norma do artigo 152.º do CP, seja mercê de uma relação de consunção (realização de um juízo valorativo material que conclua pela maior abrangência do conteúdo de ilicitude do tipo do artigo 152.º), seja por via de uma relação de especialidade (realização de juízo lógico-formal que conclua pela maior amplitude do tipo do artigo 152.º pela verificação de elementos não contemplados pelo tipo preterido).

4. Não existindo fórmula sacramental para descrever o dolo da violência doméstica, a circunstância de não constar dos factos provados da sentença recorrida que o arguido também sabia e queria ofender a saúde psíquica e emocional da vítima e a sua dignidade, ou segmento semelhante, não significa que não se tenha por preenchido o tipo subjectivo do crime, na medida em que, referindo-se tal matéria ao dolo de injuriar e ao dolo de ameaçar, lógica e necessariamente, se refere também ao dolo de maltratar psiquicamente.

5. O lastro de ilicitude deixado pelo comportamento passado de um arguido e que o fez autor de um crime de violência doméstica estende-se ao evento futuro discutido em novo processo, sendo esta nova conduta um prolongamento do clima de aviltamento anterior, reacendendo uma chama que, no fundo, nunca esteve, real e definitivamente, apagada.

6. Pode existir controlo e dominação mesmo entre casais separados de facto ou divorciados, mesmo após alguns anos passados sobre a ruptura.

7. A violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em casos em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de homens que tudo fazem para continuar diminuir as suas parceiras ou ex-parceiras ao nível do «objecto», vilipendiando-as no seu ânimo e na sua auto-estima.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

           

            1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Tondela, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, tendo, por sentença datada de 10 de Julho de 2023, sido decidido o seguinte (transcrição):
      «1) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, a), 2, 4 e 5 do Código Penal:
a) Na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, condicionada a regime de prova;
b) Nas penas acessórias de proibição de contactos com a assistente BB, por si ou interposta pessoa e por qualquer forma ou meio, a qual será fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, e uso e porte de armas, pelo período de 4 (quatro) anos, e frequência de programa específico de prevenção de crimes de violência doméstica.
2) Condenar o arguido AA a pagar à assistente/demandante BB a quantia de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros vincendos à taxa legal, a contar da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento».

2. Esta sentença surge na sequência do nosso acórdão datado de 22 de Novembro de 2023, no qual se decidiu:

«Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em anular a sentença recorrida, devendo proceder-se à reabertura da audiência e dar cumprimento ao estatuído no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP, continuando os autos a correr os seus termos processuais habituais»   

3. Desta nova sentença recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição, com numeração agora árabe para melhor sistematização)
1. «A douta sentença verta uma total desconsideração pelo arguido desabonando os circunstancialismos referenciados nos factos alegados na contestação à acusação e ao PIC;
2. A circunstância de a fundamentação de facto sob escrutínio ser um mero repositório da súmula do que cada um dos intervenientes processuais e que a única testemunha disse em audiência de julgamento é claramente um método que está longe de consubstanciar uma análise crítica e motivada da prova produzida e da credibilidade atribuída a cada uma.
3. O Tribunal a quo teve conhecimentopor via documental e testemunhal - de todo o contexto factual prévio à conduta praticada pelo arguido, a qual é absolutamente relevante, quer para efeitos de matéria criminal, designadamente para a fundamentação da dosimetria da pena, nomeadamente o estado e a (hipotética) evolução clínica do arguido desde a separação do casal em 2017 até à data da prática dos factos julgados na douta sentença.
4. O Tribunal recorrido apenas referiu terem existido antecedentes criminais praticados pelo arguido contra a assistente, fazendo referência conclusiva do mesmo, o que não adianta ou não esclarece absolutamente sobre o que esteve na origem do sucedido e sua contextualização.
5. O Tribunal a quo não deu igual tratamento e valorização às declarações proferidas pelo arguido e pela assistente, sendo certo que do confronto com a prova produzida resulta a não observação das regras da imparcialidade.
6. A douta sentença verte um erro notório na apreciação da prova que deve determinar decisão diversa da recorrida, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 410º, nº2 b) e c) e 412º, nº3 a) e b) do CPP que assim foram violadas.
7. Os factos perpetrados pelo ora recorrente não se enquadram na previsão do art.152.º do C.P., podendo configurar, no limite, um crime de ameaça e difamação.
8. Do presente caso não se pode concluir que os factos praticados afetem de modo grave a saúde física, psíquica ou emocional da vítima, que essa afetação comprometa de igual modo gravemente o desenvolvimento (ou a revelação/manifestação), da sua personalidade (e da sua maneira de ser), e com isso ponha em causa (ou seja suscetível de pôr em causa), a dignidade da pessoa humana (ser livre e responsável), por forma a que se conclua que estamos perante um crime de violência doméstica.
9. Não decorre da sentença em crise, nomeadamente dos factos provados, que o Arguido, ora recorrente, tenha agido de forma a diminuir e afetar a dignidade da assistente, menos ainda, que tenha afetado a sua saúde física ou psíquica.
10. Os factos dados como provados, praticados pelo Arguido, apesar de graves atendendo ao teor difamatório da mensagem enviada à testemunha CC   não assumiram, objetivamente, contornos violentos.
11. Os factos provados – e as circunstâncias em que foram praticados – não são reveladores de qualquer especial gravidade ou crueldade por parte do arguido, sendo certo que não ficou demonstrado sequer que este tivesse especial ascendente sobre a assistente.
12. A conduta do arguido não preenche qualquer circunstância agravante prevista no nº 2 do art. 152º do C.P.
13. Não existindo qualquer desvalor na conduta do arguido, não se justifica a punição agravada prevista no nº 2 do art. 152º do CPP.
14. É forçoso concluir que os factos assentes, perpetrados pelo arguido/recorrente, não se enquadram na previsão do art. 152º do CP tal como refere o Tribunal a quo no ponto 5) dos factos provados.
15. Mais se deu como provado em 14) e 15) que o arguido é possuidor de diagnóstico de Demência em Outras Doenças e que o seu quadro clínico tem impacto funcional significativo no desempenho das atividades do arguido desde março de 2016.
16. À data da prática dos factos a Assistente tinha conhecimento que o arguido padecia da referida doença e conhecia – porque tal havia sido provado em sede de processos anteriores – a sua incapacidade motora e cognitiva.
17. A assistente tinha claro conhecimento da situação de incapacidade do arguido, tanto que em sede de inquirição (20230630102101_ 3625509_ 2871979) quando questionada pelo Mmº Juiz a quo respondeu (min. 00:19:30): “quando sai de casa ele tinha uma doença e depois disseram-me em 2020 que ele tinha a doença” – confirmando assim que não desconhecia que o arguido padece de uma doença incapacitante, dependendo de terceiros, e que como tal está impossibilitado de fazer qualquer viagem, nomeadamente uma viagem de 500km (que é a distancia que os separa tendo em conta a residência do arguido no Algarve e a residência da ofendida – desde a separação – em ....
18. À data da prática dos factos, a assistente não podia desconhecer a doença incapacitante do arguido atendendo a que, tal como decorre dos factos dados como provados, nomeadamente o ponto 9) e 10), no âmbito do processo 136/19...., o arguido foi “declarado inimputável em razão de anomalia psíquica” e, como tal, considerado como não perigoso, não lhe tendo sido aplicada qualquer medida de segurança, sendo que também tal medida nunca se verificou necessária pois o arguido está “preso” à sua cadeira de rodas e à sua residência.
19. Tribunal a quo não podia formar a sua convicção nas (falsas) declarações da assistente quando a mesma, quando questionada se, na data em que o arguido mandou a mensagem à filha de ambos, sabia que ele estava incapacitado fisicamente, com mobilidade reduzida e só se deslocando com ajuda de terceiros, a mesma respondeu que ((20230630102101_3625509_2871979) min. 00:20:10 a 00:20:13) “não sabia o estado dele”.
20. O testemunho da assistente não merece qualquer credibilidade uma vez que, pelo menos desde setembro de 2020 (data em que o arguido foi declarado inimputável), tem conhecimento da doença e do estado de incapacidade do arguido, sendo que a testemunha CC (filha do arguido e da assistente) tanto que quando questionada (gravação n.º 20230630110143_3625509_2871979) em instâncias do Mm.º Juiz a quo se na altura em que o arguido lhe enviou a mensagem já sabia que o pai estava doente a mesma respondeu (min. 00:09:19 a 00:09:20) que “tinha noção…”.
21. A ofendida sabia que à data da prática dos factos o arguido estava incapacitado de se locomover sozinho, i.é., precisa de apoio de terceiras pessoas, tanto que quando confrontada com a situação em instancias do Meritíssimo Juiz sobre se não sabia que o mesmo está quase acamado, a mesma respondeu (gravação n.º 20230630110143 _3625509 _2871979 -Min. 00:09:42 a 00:09:47) que a… eu não sabia da vida dele, mas eu acho que tinha assim uma pequena noção disso” mais referindo que tinha noção que o arguido se encontrava “mesmo mal de saúde”.
22. As declarações da ofendida não só demonstram, como contrariam as declarações da Assistente, tirando-lhes credibilidade quando a mesma refere que “não sabia o estado dele” [circunstância que o Tribunal a quo ignorou e não levou em conta para a formulação da sua convicção].
23. O Tribunal a quo desvalorizou olimpicamente – porque não o fez constar dos factos provados – que a assistente não está fisicamente com o arguido nem o vê há mais de 5 anos, sendo certo que quando questionada se depois de se ter mudado para ... esteve fisicamente com o arguido a mesma respondeu perentoriamente que “não, desde 2017!” (20230630102101_3625509_2871979) min. 00:17:45 a 00:18:45).
24. O facto de arguido e assistente não se verem ou terem qualquer contato há mais de 7 anos não é mencionado na douta sentença, sendo que tal é manifesta e absolutamente relevante para efeitos da dosimetria da pena e foi olimpicamente ignorado pelo Tribunal a quo.
25. O Tribunal a quo desconsiderou as declarações do  arguido quanto às suas questões pessoais e que consta do relatório social, dos quais se conclui que o arguido vive da pensão se invalidez que recebe no valor de 600€/700€ vivendo da ajuda da sua mãe para assegurar as despesas e encargos mensais, mais concretamente em pagamento de créditos contraídos durante o casamento com a ofendida e em medicamentos, não podendo o arguido ficar sem rendimentos.
26. O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção apenas e tão só com base nas declarações da Assistente que não merecem a credibilidade que lhe foi depositada pelo Tribunal a quo.
27. O estado do arguido e a forma como aquele se comportou com a assistente, i.é., a mensagem enviada pelo arguido para a sua filha CC, embora de conteúdo perturbador, não tinha a intenção de atingir a vítima e de lhe causar medo ou qualquer outro sentimento similar, tendo-se tratado de um “desabafo infeliz” face à frustração sentida pelo arguido pela ausência das suas filhas e a falta de contato ou qualquer interesse daquelas para com a sua pessoa.
28. O arguido padece de síndrome demencial, em estado grave, o que lhe causa séria perturbação de humor, labilidade emocional, desrealização pessoal com ideação suicida, tristeza e irritabilidade fácil, sendo certo que atendendo ao estado de incapacidade de locomoção do arguido, que é do conhecimento da assistente, não obstante as palavras proferidas, nunca as mesmas poderiam colocar em causa ou amedrontar a ofendida atendendo à inimputabilidade do mesmo – situação que deveria ter tido peso na decisão do Tribunal a quo e na ponderação do perfil do arguido.
29. A fundamentação de facto sob escrutínio é um mero repositório da súmula do que cada um dos intervenientes processuais e testemunhas disseram em audiência de julgamento, método que está longe de consubstanciar uma análise crítica e motivada da prova.
30. Após descrever o que cada um dos intervenientes referiu em audiência de julgamento (selecionando, porém, apenas partes dos depoimentos, sob um critério que não nos é possível sequer sindicar), o  Tribunal assenta a sua fundamentação apenas e tão só nas  declarações pouco credíveis da assistente.
31. A douta sentença padece ainda de erro na apreciação das provas/do erro de julgamento.
32. O arguido impugna a matéria de facto dada como provada nos autos, quer porque foram dados como provados factos que, na perspetiva do arguido, não resultam minimamente demonstrados pela prova produzida em julgamento, quer porque não foram atendidos outros factos que se apuraram em audiência de julgamento e que, por isso, deveriam ter sido considerados em sede de decisão de facto.
33. Por força da desconsideração significativa de factualidade relevante, entende-se que a matéria constante dos factos assentes, integradora dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de violência doméstica foi incorretamente julgada, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo.
34. O Tribunal recorrido deu como provado nos pontos 6), 7) e 8) que “no dia 25 de junho de 2022, entre as 21H02 e as 21H33, através do seu telemóvel com o nº...12, enviou para o telemóvel da filha CC, com o nº ...54, via rede social “Whatsapp” as seguintes mensagens escritas: “… devia ter partido os cornos à tua mãe… ainda vou a tempo não me sai da cabeça a grande filha da puta que é… meteu-me na cadeia não me esqueço… e ainda por cima mete-se com todos… a DD sabe quem é o pai… grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA… ela que à polícia mostrar as mensagens… odeio-te CC…” e que a menor, “ao tomar conhecimento das mensagens, foi de imediato mostrar as mesmas à mãe, aqui assistente BB” motivo pelo qual o arguido atuou “de forma deliberada, livre e consciente”, pretendendo e tendo conseguido “atingir e lesar a honra e consideração da ofendida BB, bem como causar lhe medo, atenta a forma como foram proferidas as expressões acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime”.
35. Para dar como provado este facto, o arguido não consegue descortinar qual o raciocínio lógico levado a cabo pelo Tribunal a quo, porque da decisão não consta qualquer fundamentação acerca deste facto, a não ser a mera descrição, não valorativa, das declarações da assistente que tem todo o interesse na decisão.
36. Era exigível que o arguido, lendo a decisão condenatória, pudesse saber, univocamente, qual foi para o julgador a sua convicção sobre os factos que justificaram a sua condenação, o que in casu não sucede.
37. A douta sentença refere que “A convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica das declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, na prova documental junta aos autos (designadamente certidões de nascimento e certidão da sentença proferida no processo n.º136/19....) e no depoimento da testemunha CC - filha do arguido e da assistente - e no certificado de registo criminal junto aos autos.”, afastando por completo a verificação do assento de nascimento da ofendida, do qual se retira que a mesma já havia refeito a sua vida, voltando a casar (casamento esse que durou 6 meses) e, pasme-se, terminou em processo de violência doméstica, cujo processo correu no Tribunal a quo e onde, pasme-se novamente, a ofendida pretendia também uma indemnização de €5.000,00 – informação que o Tribunal a quo tinha a obrigação de conhecer oficiosamente.
38.     A convicção do Tribunal a quo foi formada essencialmente com base nas declarações da Assistente, demonstra uma desconsideração total por toda a matéria discutida em sede de julgamento, tendo levado à aplicação de uma condenação excessiva face à sua própria convicção.
39. As declarações da Assistente encontram-se feridas de veracidade, tanto que:
i. Quando questionada (gravação n.º 20230630102101 _3625509 _2871979), em instâncias do Sr. Meritíssimo Juiz a quo, sobre se após o envio da mensagem o arguido tentou entrar em contacto, a Assistente referiu que (min. 00:10:40 a 00:11:00) “(…) não”, sendo que quando questionada se não houve mais nenhuma mensagem enviada por escrito ou por carta a assistente referiu que “(…) não! Ele não tem acesso a mais nada sem ser o número de telefone” (da filha, entenda-se).
ii. Quando, em instâncias do Sr. Juiz a quo, é questionado à Assistente se após a separação do arguido este alguma vez a ameaçou a mesma respondeu perentoriamente que (min. 00:24:25 a 00:00:24:35) “não!” – sendo certo que a assistente não merece qualquer credibilidade quando refere que vive com medo do arguido e que (min. 00:24:36 a 00:24:39) “não posso ter amigos, não posso ter nada” uma vez que a própria referiu ter refeito a sua vida, tendo voltado inclusive a casar com outra pessoa em 2021 e vindo a divorciar-se em fevereiro de 2022 (min. 00:00:40 a 00:01:18).
40. Na ausência de outros elementos de prova suscetíveis de corroborar as declarações da assistente - que é, enquanto demandante cível, parte interessada no desfecho da causa, sendo, por isso, expectável que a sua versão prime pela presença de detalhes a seu favor - não vemos como é que o Tribunal a quo pôde dar tais factos como provados.
41. Tal como tem vindo a ser evidenciado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores “a prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das acções serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.
42. A doutrina vem evidenciando “a diferença essencial entre o standard do processo civil e do processo penal reside essencialmente no requisito da não refutação, o qual é mais exigente no processo penal. A prova para além de toda a dúvida razoável exige uma comprovação qualificada e contundente em função do material probatório cognoscitivo carreado para o processo”.
43. No presente caso, para a prova dos factos tendentes à condenação do arguido, o Tribunal, sem se perceber porquê, porque tal não resulta da motivação de facto, baseou-se tão-somente nas declarações da assistente, inexistindo qualquer tipo de comprovação dessa prova.
44. É absolutamente relevante ter-se presente o quadro clínico do arguido, contexto que não pode ser desconsiderado pelo Tribunal a quo aquando da valoração da prova neste caso.
45. O arguido tem uma incapacidade superior a 90% de acordo com a tabela nacional de incapacidades do DL n.º 352/2007 de 23 de outubro.
46. O arguido está impedido de conduzir sendo certo que mesmo que não o tivesse a sua condição física também não o possibilitava – facto que também foi ignorado pelo Tribunal a quo ao valorar as declarações da assistente quando a mesma refere que, (gravação n.º 20230630102101_3625509_2871979) min. 00:24:25 a 00:24:35) “apesar do Sr. AA estar assim, de saber que ele vai piorar, ele vai meter-se num táxi e vem acima dar-me um tiro”.
47. A declaração da ofendida é desprovida de qualquer credibilidade e qualquer lógica, atendendo não só ao facto evidente do arguido ser totalmente incapaz de perpetuar tais “delírios” referidos pela Assistente atendendo ao seu estado de saúde, como ainda ao facto do arguido, em momento, algum ter ameaçado a Assistente.
48. O arguido é seguido em consultas de neurologia por esclerose múltipla, com sequelas motoras e cognitivas graves decorrentes dos surtos que teve, motivo pelo qual necessita de apoio permanente de terceiros para as suas atividades diárias.
49. O arguido nunca teve consciência do alcance que iria atingir ao enviar a referida mensagem.
50. O envio da referida mensagem ocorreu no calor das tentativas frustradas de tentar falar com a sua filha CC e a mesma não lhe atender o telemóvel, sendo que, face à hora do envio da mesma o arguido estaria sob o efeito da sua medicação ou num surto de alteração da mesma.
51. Pese embora decorra do exame pericial realizado ao arguido no âmbito dos presentes autos que “da avaliação do seu estado mental no momento resulta apresentar capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/ poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação”, andou mal o Tribunal ao quo ao considerar que, com a sua conduta, o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, pretendendo e conseguindo atingir e lesar a honra e consideração da ofendida uma vez que decorre do próprio exame pericial que “(…) apesar de no momento, o arguido manter a capacidade para discernir o lícito do ilícito, é muito provável que devido ao curso Recidivante-Remitente da sua Patologia o mesmo possa ter um agravamento clínico no futuro, e que o mesmo condicione o seu discernimento e o seu juízo crítico(…)”.
52. O Tribunal a quo ignorou in totum o estado clínico do arguido, o facto do mesmo ter sido declarado inimputável no âmbito do processo n.º 136/19...., sendo certo que atendendo à evolução no sentido de deterioração psíquica e física e à medicação que lhe é administrada, por vezes o arguido encontra-se em estados de agitações psicomotoras, perturbações de padrão de sono, alteração do curso de pensamento com discurso colérico frequente, impulsividade extrema, desencadeando comportamentos impulsivos sem controlo.
53. Não se pode desconsiderar que o envio da mensagem foi nada mais do que um ato irrefletido.
54. A assistente nunca esteve em perigo, nem tal facto resulta da matéria dada como provada.
55. O arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motor (que a vítima bem conhece).
56. O arguido é dependente de terceiros para todos os seus atos diários encontrando-se impossibilitado de sair da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto sem a ajuda de terceiros, nomeadamente da sua mãe, pelo que nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a assistente.
57. A ofendida conhece a situação do arguido pelo menos desde 2020 tal como a própria referiu em sede de declarações.
58. Andou mal o Tribunal a quo ao considerar que o arguido agiu deliberada e conscientemente uma vez que o arguido nunca pensou – nem tem capacidade para tal - que a vítima tivesse sido atingida pelas suas palavras irrefletidas.
59. O envio da mensagem para a sua filha, como supra se refere nunca poderá consubstanciar a prática do crime de violência doméstica, como supra se refere.
60. O arguido, em sede de declarações, reconheceu genericamente os factos que lhe vêm imputados, tendo referido que não se recorda de ter enviado a mensagem para a sua filha, contudo admitindo o seu envio uma vez que tal facto se encontra devidamente reproduzido, servindo como prova irrefutável – situação que, não obstante a condição física e mental do arguido, é bem demonstrativa da postura do arguido e que necessariamente fragilizam a credibilidade a conferir às declarações da assistente.
61. O Tribunal a quo não poderia ter decidido pela condenação do arguido, nos termos em que o foi e, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido do crime de violência doméstica de que vinha acusado porquanto a prova efetuada (existente) não se pode considerar como suficiente para sustentar a decisão do Tribunal a quo,
62. O princípio in dubio pro reo significa que, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, não apenas em relação aos elementos constitutivos do tipo de crime, mas também quanto aos tipos justificadores.”
63. Em caso de dúvida em matéria probatória absolve-se o arguido – o que também não ocorreu.
64. O princípio in dubio pro reo, na medida em que prescreve que em caso de dúvida quanto à matéria probatória a decisão deve ser a mais favorável ao arguido, é um corolário do princípio da presunção de inocência do arguido.
65. A douta decisão que ora se recorre o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo porquanto, a prova produzida e considerada pelo Tribunal a quo assenta somente sobre o depoimento da Assistente, tendo o mesmo sido pouco credível atendendo à imparcialidade da mesma e o seu interesse no processo, sendo suscetível de criar dúvidas tendo, ainda que perante essas dúvidas, o Tribunal a quo  decidido contra o arguido.
66. A prova produzida e, no limite, a aplicação do Princípio in dubio pro reo IMPUNHAM UMA DECISÃO DE ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO do crime de violência doméstica de que vinha acusado.
67. A violação do princípio do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, por forma mais que óbvia, que o coletivo optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.”
68. O princípio in dubio pro reo, como corolário importante na materialização do princípio da presunção de inocência apresenta-se-nos como limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, pois impede o julgador de tomar uma decisão segundo o seu critério no que respeita aos factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, uma vez que os factos favoráveis devem dar-se como provados, quer sejam certos ou duvidosos.
69. O Tribunal a quo violou o Princípio da Presunção da Inocência e o  princípio in dubio pro reo, pois declara que fundou a sua convicção quanto apenas e somente das declarações que a assistente relata como tendo sido resultado de uma mensagem enviada à menor CC (filha de ambos) – quando o mesmo nunca ameaçou a assistente, nem tem contacto com a mesma há mais de 5 anos.
70. Do depoimento da testemunha CC – pessoa a quem o arguido enviou a mensagem - é impossível sequer de deduzir, quanto mais de afirmar, que o arguido estivesse intenção de lesar a honra e consideração da assistente, bem como causar-lhe medo.
71. Perante o relato de quem efetivamente recebeu a mensagem – a testemunha CC – e de quem faz a sua interpretação, atribuindo a sua interpretação às palavras que alegadamente foram ditas, tal criaria obrigatoriamente a dúvida em qualquer homem médio, contudo o Tribunal a quo acatou o testemunho da assistente, decidindo contra o arguido com o fim de o condenar, ignorando a demais prova produzida que implicaria a sua absolvição!
72. O Tribunal recorrido violou assim, claramente o PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO, INCORRENDO POR ESSA VIA EM ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA.
73. O arguido nunca poderia ser condenado da prática do crime de Violência Doméstica.
74. Perante o discurso pouco credível e imparcial da assistente, as regras da experiência comum têm necessariamente de intervir, servindo elas como linha orientadora fundamental para apurar a realidade mais aproximada dos factos tanto quanto possível.
75. O Tribunal recorrido não só não valorou a globalidade da prova produzida a este propósito, de forma crítica e concatenada, como desconsiderou as mais básicas regras da experiência comum no que respeita a situações como as dos autos.
76. O Tribunal a quo ignorou vários elementos de prova que podem demonstrar (ou se não demonstram, o Tribunal a quo deveria explicar porquê, o que não sucede, como vimos) o que sucedeu no dia em causa nos autos e qual a intenção que presidiu à atuação do arguido.
77. Da conduta do arguido não resultou, face à sua relativa baixa gravidade, o facto de se ter tratado de um facto único, e condutas posteriores (que inexistem), que tivesse sido intenção deste maltratar física e psicologicamente a assistente, sua ex-mulher, causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher.
78. Sobre o âmbito de proteção do crime de violência doméstica pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-02-2013: “A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus-tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais. Assim sendo, podemos dizer que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afetada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afetem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.”
79. A conduta tipificada no crime de violência doméstica é um “estado de agressão permanente” por parte do sujeito ativo pelo que o que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus-tratos”.
80. Conforme salientado antes da revisão do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, o preenchimento deste tipo legal de crime não se basta, em princípio, com uma ação isolada, embora também não se exija a habitualidade da conduta.
81. O crime de violência doméstica realiza-se normalmente com a reiteração do comportamento de maus-tratos físicos ou psíquicos, em determinado período temporal, pelo que caso não se verifique essa reiteração, recair-se-á, pelo menos, e atendendo ao caso concreto, no domínio das ameaças e/ou da difamação.
82. A conduta do arguido, embora penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que terminou há, pelo menos, 7 anos, a isto acrescendo que em termos que, concretamente, não representaram um potencial de agressão que, em abstrato, tivesse superado ou transcendido a proteção oferecida pelos crimes de ameaças e de difamação, ou seja, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.
83. Na douta decisão o Tribunal a quo denota olvidar-se da grande dispersão temporal entre a última vez em que a Assistente teve contacto, por qualquer meio, com o arguido e a conduta descrita, condensadas num único evento ocorrido em junho de 2022, sendo a sua gravidade relativamente baixa.
84. Em sede de factualidade atinente ao elemento subjetivo do crime, a acusação limita-se a afirmar que o arguido agiu de forma “livre” e -com intenção de (?) – “forma deliberada, livre e consciente, pretendeu, e conseguiu atingir e lesar a honra e consideração da ofendida BB, bem como causar lhe medo, atenta a forma como foram proferidas as expressões acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime”; “a assistente sentiu-se humilhada, angustiada e abalada psicologicamente, sentimentos esses agravados pela circunstância dos outros factos de que foi vítima e pelos quais o arguido foi julgado e que a obrigaram, além do mais, a mudar as rotinas diárias e inclusivamente a mudar de casa mais do que uma vez, com as suas duas filhas”; “Estas novas mensagens fizeram com que a assistente voltasse a reviver o anteriormente sucedido e, nesse seguimento, passado a andar em sobressalto e com receio que o arguido, por si ou por intermédio de outra pessoa, pudesse fazer contra si e contra as suas filhas.”; “Desde então agravou-se igualmente o sentimento de segurança que se manifesta na sua vida diária e que faça com que tenha maior dificuldade em concentrar-se e em dormir, acordando inúmeras vezes durante a noite, sobressaltada.”
85. A mensagem cujo envio vem imputado ao arguido, em junho de 2022, dirigidas à assistente, não integram, por si só, o tipo legal de violência doméstica, não sendo esse (único) envio, pelo seu conteúdo,  conduta apta a por em causa a dignidade da ofendida, enquanto pessoa, enquanto mulher, capaz de a subjugar ou dominar, de configurar maus tratos, em suma, ofensas com a gravidade objetiva pressuposta pelo crime de violência doméstica, destinado a situações de sujeição da vítima a uma conduta maltratante especialmente intensa ou a uma constante ameaça, agressão ou humilhação.
86. O Tribunal a quo em sede de fundamentação da escolha e de medida da pena refere que “Já as necessidades especiais, e tendo por referência outros casos de semelhante natureza, entende-se que apesar do arguido ter um antecedente criminal da mesma natureza, a realidade é que ainda assim se considera que as necessidades de prevenção especial não são, neste concreto caso e nesta concreta fase temporal, particularmente elevadas, pois não atingiram um estalão de gravidade tal semelhante ao de outros casos e em que, não raras as vezes, o agressor põe em risco a própria vida da vítima.” acrescendo que “(…) a realidade é que não resultou provado que o arguido alguma vez tivesse empreendido algum ato que pudesse indiciar que tivesse sido sua intenção tirar efetivamente a vida à assistente. A tudo isto, acresce naturalmente a condição clínica do arguido que tornam improvável que este possa (ou sequer consiga) atentar contra a integridade física ou contra a vida da assistente, tanto mais que se encontra a residir a cerca de 500 quilómetros de distância (pois reside em ... e a assistente no concelho ...). Outrossim, não existe notícia de qualquer contacto presencial com a assistente há mais de cinco anos” tal como confirmado pela ofendida e, audiência de julgamento.
87. Atenta a sua própria fundamentação, não se vislumbra como pôde o Tribunal a quo ter procedido à aplicação da pena em que condenou o arguido, quando da leitura do que acima se deixa transcrito resulta necessariamente que o arguido não preenche o tipo legal do crime – impondo-se, por isso, decisão diversa à que veio a tomar.
88. Considerando que a factualidade descrita não preenche o tipo legal de violência doméstica, os crimes “parcelares” eventualmente em causa, as condutas penalmente relevantes, seriam essencialmente as ameaças, mais ou menos veladas, contidas na mensagem enviada pelo arguido à sua filha CC.
89. O elemento subjetivo do crime de ameaça, a consciência por parte do agente de que a sua conduta é suscetível de produzir medo ou inquietação ao destinatário e vontade de que tal se verifique - já que o crime se destina a proteger o bem jurídico da liberdade pessoal, de ação e decisão e, de forma mais abrangente, a paz individual -simplesmente não consta da acusação.
90. A acusação alude a “vergonha” e “humilhação”, a atentado à “honra” e, genericamente, à “saúde psíquica”, “mau trato psicológico”, o que é manifestamente inidóneo ao preenchimento do tipo legal de difamação, p. e p. pelo art. 180º, Cód. Penal.
91. O Tribunal a quo ignorou o teor integral do relatório pericial, bem como a contestação à acusação e ao PIC, não se pronunciando sobre os mesmos e limita-se a simplesmente apoiar a versão factual apresentada pela assistente, que não se apresenta, contudo, isenta de fragilidades.
92. A douta Sentença viola as mais elementares regras da experiência comum ao aceitar uma versão de alguém que não tem qualquer contacto com o arguido há mais de 5 anos, que inclusive já refez a sua vida junto de outra pessoa – tal como a própria refere (gravação n.º 20230630102101_3625509_2871979) min. 00:00:23 a 00:00:35) – não tendo deixado de fazer a sua vida normal, não tendo deixado de trabalhar nem tendo alterado as suas rotinas após ter tomado conhecimento da mensagem que o arguido enviou para a sua filha.
93. A assistente não passou a viver num ambiente de insegurança e medo após o envio da mensagem que o Arguido enviou para a filha CC, nem que tal facto tenha originado qualquer privação na liberdade da assistente, até porque após o envio da referida mensagem, nada mudou na sua rotina ou na rotina da assistente atendendo, tal como decorre das declarações da própria testemunha CC que ora se transcrevem:
Gravação n.º 20230630110143_3625509_2871979: Mm.º Juiz a quo (Min. 00:16:15 a 00:16:20): (…) a tua mãe depois desta mensagem continuou a trabalhar? Nessa parte, se fez a vida normal em termos profissionais
Testemunha CC (Min.  00:16:20 a 00:14:42): sim
Mm.º Juiz a quo (Min. 00:16:20 a 00:16:32):  fez … e vocês nesta altura ficavam em casa sozinhas? Que idade é que tinha a tua irmã DD?
Testemunha CC (Min. 00:16:32 a 00:16:38): a… eu acho que na altura tinha 18.
(…)
Mm.º Juiz a quo (Min. 00:16:43 a 00:16:51): na altura isto… receberam a mensagem… vocês ficaram em casa… não ficaram… a tua mãe foi trabalhar, não é? E vocês como é que foi?
Testemunha CC (Min. 00:16:51 a 00:16:52): ficámos na casa da minha avó
Mm.º Juiz a quo (Min. 00:16:53 a 00:16:57): da tua avó… mas já ficavam antes…
Testemunha CC (Min. 00:16:58 a 00:14:59): nós íamos lá passar férias e isso…
94. Cabia ao Tribunal a quo analisar o conjunto das circunstâncias anteriores, contemporâneas e mesmo posteriores à prática dos factos, de forma a aferir qual a efetiva intenção demonstrada pelo arguido – de acordo com as regras de experiência comum – face ao comportamento adotado e nas circunstâncias concretas em que os factos ocorreram.
95. Nem do depoimento da Assistente e da testemunha CC, nem do relatório clínico junto aos autos resulta que a assistente tenha corrido, em algum momento, perigo concreto para a sua vida e que a mesma tenha passado a viver sem liberdade e com medo, antes pelo contrário, resulta que a assistente não correu perigo de vida nem tão pouco que seja provável que o arguido leve a cabo qualquer conduta que coloque a assistente em perigo.
96. O Tribunal recorrido não emite, porém, qualquer pronúncia, limitando-se a optar por uma análise simplista e acrítica da prova, concluindo pela intenção de humilhar e abalar psicologicamente a Assistente.
97. A douta sentença é uma conclusão apressada que desconsidera todas as circunstâncias factuais que contextualizam o ocorrido e o próprio comportamento e condição física e médica do arguido.
98. A douta sentença desconsidera o que referimos e que assume relevância absolutamente decisiva para afastar a apontada intenção de infligir maus-tratos físicos ou psíquicos: o arguido nunca entrou em contacto direto com a assistente, o arguido e a assistente não têm contacto físico desde 2017, sendo totalmente improvável que o arguido levasse     a cabo quaisquer maus-tratos físicos e/ou psicológicos contra a Assistente atendendo à situação clínica do mesmo.
99. Face aos elementos supra expostos e aos demais elementos probatórios constantes dos autos, nunca seria, pois, possível concluir com um juízo de forte probabilidade que a verdadeira intenção do arguido fosse a de infligir maus tratos físicos ou psíquicos na assistente pelo que é manifesto que a conduta do arguido não é suscetível de integrar a prática de um crime de violência doméstica.
100. O Tribunal a quo deveria ter concluído apenas que a intenção do arguido era a de ofender formular juízos ofensivos sobre a assistente, objetivo que veio efetivamente a concretizar.
101. Atendendo aos elementos de prova e considerações factuais a que aludimos acima, deveriam ter, pelo menos, conduzido o Tribunal a uma situação de dúvida razoável que permitisse, quanto à factualidade em causa, o recurso ao princípio probatório “in dubio pro reu”.
102. Face à aplicação do Direito urge a alteração da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido face à qualificação jurídica do crime que vem imputado ao arguido.
103. Não existe, nem existiu, qualquer intenção de infligir mais tratos físicos e psicológicos na Assistente, consequentemente, manifesto que a conduta do arguido não é suscetível de integrar a prática de um crime de violência doméstica.
104. A factualidade dada como provada permite concluir que a atuação do arguido começa por integrar todos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do tipo de Difamação, p. e p. pelo artigo 180.º do Código Penal.
105. O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afetiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, atual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais, percebe-se que o bem tutelado – como é comummente apontado – , seja a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.
106. De acordo com o entendimento jurisprudencial, os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
107. Qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas ações para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
108. No caso concreto, inexiste qualquer abuso de poder ou situação de degradação da vítima bem como inexiste uma especial ofensa à dignidade humana, ainda que exista ofensa à dignidade humana
109. Os factos em causa nos autos consubstanciam um crime de difamação, praticado num só momento, não podendo estes perder sua qualificação primária e integrar, sem mais, a previsão legal mais gravosa do crime de violência doméstica pela circunstância da vítima ser o ex-cônjuge.
110. Para que haja uma decisão justa há que distinguir o crime de violência doméstica, do concurso dos crimes de ameaça e difamação, sendo que tal distinção, entre uma qualificação e outra(s), faz-se com recurso ao conceito de maus-tratos, conceito esse que exige a existência de desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e ainda à gravidade de tais manifestações.
111. A gravidade das manifestações tem de considerar-se diminuta.
112. O ato praticado pelo arguido, ainda que humilhante, não o é de molde a afetar e marcar o desenvolvimento e o dia-a-dia da Assistente.
113. A ofendida sabe que o Arguido padece de Esclerose Múltipla e Demência, vive a centenas de quilómetros da Assistente e desloca-se numa cadeira de rodas.
114. Ainda que se admita que o tipo legal, da violência doméstica, se possa preencher com uma ação isolada, não pode a ação provada nos autos considerar-se como consubstanciando a intensidade, crueldade e insensibilidade necessárias ao preenchimento do respetivo tipo.
115. As ofensas à dignidade consistiram em palavras insultuosas, que não têm a virtualidade de ultrapassar o amesquinhamento, o vexame e a humilhação inerentes aos crimes de injúria ou difamação.
116. O facto dado como provado em 6), consubstanciar a prática de um crime de difamação e, no limite, de ameaça.
117. A ameaça não poderia considerar-se adequada a afetar o bem-estar psicológico da Assistente, causando-lhe medo e ansiedade, inquietação ou prejudicando a sua liberdade de determinação.
118. Como consta na factualidade provada, não só o Arguido reside a centenas de quilómetros da Assistente, como se desloca numa cadeira de rodas e o seu quadro clínico tem impacto significativo no desempenho de todas as suas atividades.
119. O Tribunal a quo deveria considerar o facto concretamente apurado e vertido na alínea 6) dos factos provados como inidóneo e insuficiente para a lesão do bem jurídico protegido no crime de violência doméstica.
120. O crime de violência doméstica é um crime complexo, que não se confunde com o crime de ofensa à integridade física, injúrias, ameaças ou outro, contra as pessoas indicadas no artigo152.º do Código Penal.
121. O bem jurídico protegido através da punição do crime de violência doméstica é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos, nomeadamente os que afetem a dignidade pessoal.
122. O arguido que os factos dados como provados, praticados pelo mesmo, apesar de graves, não assumiram objetivamente, contornos violentos que possam ser subsumidos no crime pelo qual veio acusado e foi condenado pelo tribunal recorrido.
123. Não foram perpetrados pelo arguido maus-tratos físicos ou psíquicos, mas ainda que assim não se entenda, nenhuma atitude do arguido revela para com a ofendida qualquer crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar a vítima, como se demonstra ao longo do presente recurso.
124. O facto do arguido e a assistente terem sido casados no passado, sem algo mais que caracterize e os aproxime de uma situação de comunhão de vida, não pode preencher a qualidade exigida pelo tipo legal.
125. A punição das condutas descritas no artigo 152.º do Código Penal, visa salvaguardar a pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade e pretende prevenir consequências gravosas que possam surgir para a saúde física e psíquica e para o desenvolvimento normal e correto da personalidade do indivíduo.
126. Os atos praticados terão necessariamente de ser capazes de atingir precisamente a saúde física e psíquica do indivíduo de forma a afetar e marcar de forma indelével o desenvolvimento harmonioso do sujeito ofendido, pelo que terão de se revestir de reiteração e gravidade suficientes para o efeito, o que não aconteceu no caso em apreço.
127. As situações provadas que constam da sentença recorrida não têm um padrão de frequência nem intensidade desvaliosa, para se poderem enquadrar num modelo de comportamento que se inscreva na previsão do tipo legal de violência doméstica.
128. O comportamento do arguido não denota especial crueldade, insensibilidade ou uma vontade de subjugar a Assistente e de a afetar a sua saúde física e mental, pelo que não poderão os factos dados como provados integrar o ilícito de violência doméstica.
129. Da douta sentença não resulta qualquer factualidade provada que descrevam o relacionamento entre o arguido e a assistente pelo que não poderia o ponto 2) dos factos provados ser assim considerado, atendendo a que o arguido e a ofendida divorciaram-se em ../../2018, ficando desde então o arguido a residir em ... e a Assistente em ..., desde essa data, tal como a própria assistente confirmou.
130. Não existe na factualidade dada como provada, matéria que nos permita concluir que o arguido e a ofendida mantinham uma relação afetiva estável, de partilha e de cooperação entre duas pessoas, nos termos preconizados pela nossa doutrina e jurisprudência.
131. O que resulta provado de forma inequívoca, é que a relação amorosa do arguido e da assistente terminou em 2018 e que desde essa data o arguido e a Assistente não mais tiveram qualquer relação amorosa e/ ou de dependência ou qualquer contacto físico – antes pelo contrário atendendo a que a ofendida se sentia livre para refazer a sua vida pessoal, o que fez, tendo voltado a casar.
132. Da douta sentença e da prova produzida nada se apurou que permita concluir que o arguido e assistente, tinham à data dos factos um projeto de vida em comum, com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha da vida em comum e cooperação mútua, antes pelo contrário – o arguido e a assistente divorciaram-se em 2018 e não mais partilharam qualquer projeto de vida, nem tão pouco contactaram entre si, encontrando-se desde essa data, inclusive, o arguido impedido de contatar com as suas filhas.
133. O Tribunal a quo, devia valorar jurídico-penalmente os factos provados, considerando que, os mesmos não permitem concluir pela verificação dos elementos do tipo objetivo do ilícito do artigo 152.º do Código Penal, podendo, eventualmente, subsumir-se nas previsões incriminadoras dos artigos 181.º (crime de injúria) e no artigo 153.º (crime de ameaça) ambos do Código Penal, o que não se verificou.
134. O crime imputado ao arguido de violência doméstica, p.e.p pelo artigo 152.º, na 1 alínea a) do Código Penal, não deveria proceder uma vez que os seus pressupostos legais não se encontram preenchidos pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica que foi condenado, o que desde já se requerer com o presente recurso.
135. Não se provou em sede de julgamento a intensidade e a repetição da conduta do arguido, sendo que a ausência de prova a este respeito teria de beneficiar o arguido, à luz do princípio in dubio pro reo, - o que não aconteceu no caso em apreço.
136. O arguido, com a sua conduta, não criou perigo para a vida da assistente, nem existe qualquer factualidade que permita concluir que houve sequer representação mental por parte do arguido da colocação em perigo da vida da vítima, nem que houve uma conformação com esse possível resultado.
137. As circunstâncias em que os factos foram praticados nunca seriam suscetíveis de revelar, pois, a especial censurabilidade ou perversidade suscetível de qualificar o crime de violência doméstica, pelo que só poderá vir a ser imputada a prática do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, o que se requer.
138. Face à prova produzida, a conduta do arguido, e considerando que o arguido é imputável, (que pode eventualmente configurar crimes de difamação e ameaça) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica.
139. O arguido não provocou quaisquer danos na saúde psíquica da vítima, pelo que deviam ter sido retiradas todas as legais consequências.
140. A circunstância de o arguido e a assistente não coabitarem (não sendo, por si só, impeditiva da verificação da prática de maus-tratos psíquicos) reduz o impacto da conduta em causa (que seria, naturalmente, maior se agente e vítima convivessem diariamente na mesma habitação - o que não sucedeu.)
141. No presente caso, não temos uma “vítima” e um “agressor”, porquanto não existe uma relação de domínio, controlo ou de prevalência do agressor sobre a vítima, não existe uma relação de subordinação ou de subjugação da vítima em relação ao agressor, desde logo porque o arguido e a assistente não têm qualquer relação entre si, não tendo qualquer contacto há, pelo menos 7 anos!
142. Compulsados os factos e a fundamentação acima transcrita, facilmente se constata que, no caso, não foi tida em consideração toda a factualidade relevante relativa ao grau de culpabilidade do agente - já que foi desconsiderada, desde logo, a situação médica do arguido e a sua incapacidade de constituir qualquer ameaça.
143. Pelo que o Tribunal a quo não poderia ter decidido pela condenação do arguido, nos termos em que o foi e, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido do crime de violência doméstica de que vinha acusado porquanto a prova efetuada (existente) não se pode considerar como suficiente para sustentar a decisão do Tribunal a quo.

Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência:
a) Deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituído por outra, que absolva o Recorrente do crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts 30° n.º 2 e 152.º n.º 1 alínea a) do Código Penal todos do Código Penal,
b) Ser o arguido condenado pela prática de um crime de injúria p.e.p no artigo 181.º do Código Penal e de um crime de ameaça p.e.p. no art. 153º, do Código Penal, em pena suspensa na sua execução sem qualquer sujeição a regime de prova atendendo à debilidade e incapacidade de locomoção do arguido».

4. Respondeu o Ministério Público a este recurso, defendendo a sua improcedência.

5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, deixando escrito:

«Assim, os factos provados integram, a nosso ver, a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artº 153 nº 1 do CP e de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180 do mesmo diploma legal, mas não do crime de violência doméstica.

Ora, como o crime de difamação reveste natureza particular e não foi deduzida acusação particular, o arguido apenas poderá (e deverá) vir a ser condenado pela prática do aludido crime de ameaça.

Termos em que somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente nessa parte».
           
            6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
                       

             II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].

             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.

Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.

Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.

Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.

Assim, balizados pelos termos das prolixas conclusões formuladas – que só não serão convidadas a ser melhoradas, por força da decisão que se irá tomar a final -, as questões a decidir consistem em saber se:
1. existe o vício do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP;
2. houve uma incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento (erro de julgamento);
3. houve violação do princípio do in dubio pro reo;
4. houve uma errada qualificação jurídica dos factos apurados.

2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA (em transcrição)

2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte:
1) «O arguido AA casou com a ofendida BB em 06.10.2010, tendo-se divorciado em 28.10.2018.
2) Da relação nasceram duas filhas, a saber: CC, nascida a ../../2009 e EE, nascida a ../../2014.
3) O arguido reside em Rua ..., em ... e a assistente no concelho ....
4) O arguido foi julgado e condenado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na pessoa da assistente, no âmbito do processo nº60/17...., cujos termos correram pelo Tribunal Judicial ..., por factos cometidos em 08.03.2017, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, sentença transitada em julgado em 17.10.2018; a pena foi declarada extinta a 17.10.2021.
5) O arguido foi julgado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na pessoa da assistente, no âmbito do processo nº 136/19...., cujos termos correram por este Juízo de Tondela, por factos cometidos em 09.08.2019, tendo sido declarado inimputável em razão da anomalia psíquica, ao abrigo do disposto no artigo 20º, nº 1, do Código Penal.
6) Acontece, porém, que o arguido AA, no dia 25 de junho de 2022, entre as 21H02 e as 21H33, através do seu telemóvel com o nº...12, enviou para o telemóvel da filha CC, com o nº ...54, via rede social “Whatsapp” as seguintes mensagens escritas: “…devia ter partido os cornos à tua mãe…ainda vou a tempo…não me sai da cabeça a grande filha da puta que é…meteu-me na cadeia não me esqueço…e ainda por cima mete-se na cama com todos….a DD sabe quem é o pai…grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA…ela que vá à policia mostrar as mensagens…odeio-te CC…”.
7) A menor CC ao tomar conhecimento das mensagens, foi de imediato mostrar as mesmas à mãe, aqui assistente BB.
8) O arguido AA atuando de forma deliberada, livre e consciente, pretendeu, e conseguiu atingir e lesar a honra e consideração da ofendida BB, bem como causar-lhe medo, atenta a forma como foram proferidas as expressões acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
Mais se provou que,
9)  No processo n.º136/19...., deram-se como provados, além do mais, os seguintes factos: “(…) O arguido, nos últimos anos em que viveu com a vitima maltratou-a física e psicologicamente. 4. O arguido, no âmbito do processo comum singular nº 60/17...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Juiz ..., foi julgado e condenado pela prática do crime de violência doméstica por fatos praticados contra a vitima BB, na pena de 3 (três) anos de prisão suspensa na execução por igual período, acompanhada de regime de prova; na proibição de contactos com a vitima e na proibição de uso e porte de armas. 5. A sentença foi proferida em 10.04.2018, tendo transitado em julgado em 20.11.2018. 6. No dia 09 de Agosto de 2019, pelas 22H05, o arguido AA através do Messenger ligação https://www.facebook.com/profile.php? Id=...40, para o telemóvel do pai da vitima de nome FF, com o nº ...62, a seguinte mensagem escrita: “Boa noite, avise a sua filha que a mato de verdade, a puta meteu-me na prisão sem culpa nenhuma, eu prometo que mato essa puta, avise a merda da policia também grande porco, deste á luz uma grande vaca, se não fosse eu não tinha nada a puta…. 7. Acontece, porém, que o pai da vitima só em 26.08.2019, pelas 10H43, abriu a mensagem e leu o seu conteúdo, dando a conhecer àquela, neste dia/hora o conteúdo da mesma. 8. A vitima ao saber o conteúdo da mensagem ficou com medo que o arguido viesse a concretizar o mal que anunciava (…)”.
10) Nesse processo o arguido foi declarado inimputável não perigoso, não lhe tendo sido aplicada qualquer medida de segurança.  
11) Em razão dos factos descritos de 1) a 7), a assistente sentiu-se humilhada, angustiada e abalada psicologicamente, sentimentos esses agravados pela circunstância dos outros factos de que foi vítima e pelos quais o arguido foi julgado e que a obrigaram, além do mais, a mudar as rotinas diárias e inclusivamente a mudar de casa mais do que uma vez, com as suas duas filhas.
12) Estas novas mensagens fizeram com que a assistente voltasse a reviver o anteriormente sucedido e, nesse seguimento, passado a andar em sobressalto e com receio que o arguido, por si ou por intermédio de outra pessoa, pudesse fazer contra si e contra as suas filhas.
13) Desde então agravou-se igualmente o sentimento de segurança que se manifesta na sua vida diária e que faça com que tenha maior dificuldade em concentrar-se e em dormir, acordando inúmeras vezes durante a noite, sobressaltada.
14) O arguido é possuidor do diagnóstico de Demência em Outras Doenças a que corresponde o código F.02.8 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), secundário ao Diagnóstico de Esclerose Múltipla.
15) Este quadro clínico tem impacto funcional significativo no desempenho das atividades do arguido desde março de 2016.
16) Na data em que foi sujeito a exame pericial (08.09.2022), o arguido encontrava-se em período de remissão clínica parcial da Esclerose Múltipla, mantendo défices motores e cognitivos moderados, mas menos significativos do que em outros momentos da evolução da doença (tal como sucedeu na avaliação clínico-psiquiátrica efetuada a 23 de junho de 2020).
17) O arguido é seguido em consultas de neurologia por esclerose múltipla, com sequelas motoras e cognitivas graves decorrentes dos surtos que teve, motivo pelo qual carece de apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora (correspondente ao artigo 20.º e a parte do artigo 28.º, ambos da contestação).
18) Na data dos factos o arguido apresentava capacidade para distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação.
19) Apesar do arguido manter as aludidas capacidades, é muito provável que devido ao curso recidivante-remitente da sua patologia o mesmo possa ter um agravamento clínico no futuro, e que o mesmo condicione o seu discernimento e o seu juízo crítico, tal como sucedeu em junho de 2020.
20) O arguido vive com a mãe.
21) Tem uma pensão de invalidez de cerca de 600/700 mensais.
22) Suporta 75€ com cada uma das filhas a título de prestação de alimentos, embora atualmente se encontre a pagar esse valor diretamente ao Fundo de Garantia de Alimentos a Menores.
23) Suporta ainda uma despesa global mensal de cerca de 300€, com créditos às sociedades Oney, Cofidis e à Unicre.
24) Gasta em medicação uma quantia nunca inferior a 200€ mensais.
25)  Não tem outros antecedentes criminais para além do indicado no ponto 4».

2.2. A matéria de facto NÃO PROVADA é a seguinte (transcrição):

         «Com relevância para a decisão a proferir não se provou que:
1) À data dos factos, o arguido não tinha capacidade para distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação.
2) Com a mensagem transcrita nos factos provados no ponto 6), o arguido não tinha a intenção de atingir a vítima e de lhe causar medo ou qualquer outro sentimento similar, sendo que a mesma se tratou de um “desabafo infeliz” face à frustração sentida pelo arguido pela ausência das suas filhas (correspondente ao artigo 15.º da contestação).
3) O estado clínico de que padece causaram-lhe séria perturbação de humor, labilidade emocional, desrealização pessoal com ideação suicida, tristeza e irritabilidade fácil (correspondente ao artigo 16.º da contestação).
4) Atendendo ao estado de incapacidade de locomoção do arguido, não obstante as palavras proferidas, nunca poderiam colocar em causa ou amedrontar a ofendida atendendo à inimputabilidade do mesmo (correspondente ao artigo 17.º da contestação).
5) O arguido está impedido de conduzir, sendo que a sua condição física à data dos factos também o impossibilitava de conduzir (correspondente ao artigo 19.º da contestação).
6) O envio da referida mensagem ocorreu em razão das tentativas frustradas de tentar falar com a sua filha CC e a mesma não lhe atender o telemóvel, sendo que, face à hora do envio da mesma o arguido estava sob o efeito da sua medicação ou num surto de alteração da mesma (correspondente ao artigo 23.º da contestação).
7) Atendendo à evolução no sentido de deterioração psíquica e física e à medicação que lhe é administrada, por vezes o arguido encontra-se em estados de agitações psicomotoras, perturbações de padrão de sono, alteração do curso de pensamento com discurso colérico frequente, impulsividade extrema, desencadeando comportamentos impulsivos sem controlo (correspondente ao artigo 24.º da contestação).
8) O envio da mensagem foi nada mais do que um ato irrefletido (correspondente ao artigo 25.º da contestação).
9) A vítima nunca esteve em perigo (correspondente ao artigo 26.º da contestação – a que se responde no seguimento do determinado no Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de se considerar que o mesmo constitui um juízo conclusivo).
10) O arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora (correspondente ao artigo 27.º da contestação – a que se responde no seguimento do determinado no Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de se considerar que o mesmo constitui um juízo conclusivo).
11) O arguido é dependente de terceiros para todos os seus atos diários (correspondente ao artigo 28.º da contestação).
12) O arguido não sai da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe, pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima (correspondente ao artigo 29.º da contestação – a que se responde no seguimento do determinado no Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de se considerar que o alegado pelo arguido neste artigo a partir de “pelo que (…)” constitui um juízo conclusivo).
13) O arguido nunca pensou – nem tem capacidade para tal - que a vítima tivesse sido atingida pelas suas palavras irrefletidas pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima – situação que a vítima conhece (correspondente ao artigo 30.º da contestação – a que se responde no seguimento do determinado no Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de se considerar que o alegado pelo arguido neste artigo a partir de “pelo que (…)” constitui novamente um juízo conclusivo)».

2.3. Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição):
          «A convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica das declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, na prova documental junta aos autos (designadamente certidões de nascimento e certidão da sentença proferida no processo n.º136/19....) e no depoimento da testemunha CC – filha do arguido e da assistente - e no certificado de registo criminal junto aos autos.
          Pois bem, relativamente aos factos dados como provados, cumpre desde logo assinalar que o arguido reconheceu genericamente os factos que lhe vêm imputados, sendo certo que, neste concreto caso, a prova se apresentava simples, na medida em que as expressões em apreço mostram-se documentadas nos autos.
          Além disso, atendeu-se às declarações consternadas da assistente BB que, além do mais, referiu que se lembrava das mensagens aqui em discussão, pois foi remetida pelo arguido à sua filha CC dois dias depois do dia de aniversário desta.
          Instada, esclareceu que depois desta mensagem não foram enviadas outras mensagens, porque ambas bloquearam o contacto do arguido.
          Reportando-se ao estado anímico e ao impacto que aquelas mensagens aportaram para o seu dia a dia, disse que depois de as ler sentiu medo, ansiedade e vergonha, por a filha ter lido aquela mensagem, afirmando ainda que, ainda hoje, sente que não tem a liberdade de viver descansada e pese embora se encontre separada do arguido desde  2017, altura em que saiu do Algarve, a realidade é que, com tudo o que sofreu, estas novas mensagens fizeram com que passasse a recear que o arguido se “metesse” num carro e viesse “cá em cima” e lhe “desse um tiro”, sendo que ainda hoje anda acompanhada pela APAV.
          Acrescentou que, depois do sucedido, anda sempre nervosa e com muito medo, dorme com as luzes acesas, por causa dos barulhos e com receio do que lhe possa acontecer.
          Também no trabalho, referiu, não se consegue concentrar, pois que estas mensagens fizeram-lhe lembrar tudo o que passou.
          Já a testemunha CC, afirmou ter sido a pessoa que deu conhecimento do teor da mensagem à mãe (aqui assistente), esclarecendo que depois disso esta alterou os seus comportamentos, passou a sair menos de casa e a ter mais cuidados com a segurança da casa e dificuldade em dormir.
          Pela forma sentida e detalhada como a assistente e a filha se apresentaram, mereceram a credibilidade do Tribunal.
          Os factos nãos provados ficam a dever a sua resposta ao seguinte.
          O facto não provado sob n.º1, ao relatório pericial elaborado neste processo, transcrevendo-se parte do seu teor para melhor compreensão:
          “A presente Perícia Psiquiátrica Médico-Legal foi solicitada pela Comarca de Viseu –Departamento de Investigação e Acção Penal – Secção de ..., no âmbito do Inquérito 229/22...., com os seguintes quesitos: “Aferir se à data dos fatos em causa nos presentes autos, tendo em consideração o crime em causa, o mesmo é considerado inimputável e se é perigoso, ou não, atenta a prática reiterada da difamação e ameaças de morte que faz à vítima, a fim de se aferir se haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança nos termos do artigo 91 e ss, do Código penal.”
          III. Avaliação Clínica e Parecer Psiquiátrico-Forense
          De acordo com a avaliação Clínico-Psiquiátrica efetuada (numa perspetiva médico-forense, tanto quanto possível) e reunidos os elementos indispensáveis à apreciação do presente caso, quer em termos de História Pregressa (incluindo os relativos à personalidade pré-mórbida), quer os apurados pelo Exame Mental propriamente dito, e documentos clínicos apresentados no âmbito do processo, podemos afirmar que o examinado é possuidor do diagnóstico de Demência em Outras Doenças a que corresponde o código F.02.8 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), secundário ao Diagnóstico de Esclerose Múltipla a que corresponde o código G35 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), sendo que o quadro clínico tem impacto funcional significativo no desempenho das atividades do examinado desde Março de 2016, aquando do diagnóstico de Esclerose múltipla do tipo Recidivante-Remitente.
          Na Esclerose Múltipla Recidivante-Remitente os doentes sofrem exacerbações clínicas seguidas por períodos de remissão com recuperação clínica variável entre as exacerbações clínicas.
          O examinado vem acompanhado pela mãe. Apresenta-se em cadeira de rodas e com limitações motoras dos quatro membros. O examinado apresenta-se vígil, calmo e colaborante durante a entrevista e responde a ordens verbais.
          O examinado apresenta disartria significativa e consequentemente limitações comunicacionais, mas a sua capacidade de compreensão da linguagem encontra-se preservada. Refere ter o bacharelato em engenharia eletrotécnica. O examinado está orientado na pessoa e situa-se no espaço e no tempo. Apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado. Consegue ler e escrever frases (em termos eletrónicos, apesar das dificuldades motoras).
          O examinado apresenta alterações cognitivas moderadas. Apresenta diminuição da capacidade de pensamento abstrato (não soube interpretar provérbios simples). Refere tristeza, labilidade emocional e períodos de maior ansiedade. Nega ideação auto ou heteroagressiva. Nega ideação suicida ou homicida. Sem sintomatologia do foro maniforme ou psicótico aparente. O sono e o apetite são descritos como normais. O examinado refere seguimento em regular em Consultas de Psiquiatria desde 2016, após o diagnóstico de Esclerose Múltipla.
          No momento mantem também acompanhamento regular em Consultas de Neurologia. É capaz de executar ordens simples e de média complexidade, mas não ordens complexas e que requeiram pensamento abstrato.
          Consegue efetuar cálculos aritméticos simples, mas não complexos (não conseguiu dividir 55 por 11). Conhece o dinheiro e tem noção do seu valor em pequenos e grandes montantes. É capaz de fazer trocos. Apresenta noção da proporção real e valor de bens ou serviços e mantem a noção do sentido de posse e propriedade. O examinado desempenha algumas atividades de vida diárias de forma independente já que apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado, mas carece do apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora. O examinado reside com a mãe há quatro anos, que lhe dá apoio nas atividades de vida diárias. Apresenta incontinência de esfíncteres.
          O examinado relata de forma coerente as ações descritas nos autos, referindo que está arrependido da realização das mesmas e que não as voltará a cometer.
          Da avaliação do seu estado mental no momento resulta apresentar capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação, sendo que seria essa a sua condição clínica na altura da ocorrência dos fatos de que está indiciado nos autos.
          IV. Conclusões
          1. O examinado é possuidor do diagnóstico de Demência em Outras Doenças a que corresponde o código F.02.8 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), secundário ao Diagnóstico de Esclerose Múltipla a que corresponde o código G35 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), sendo que o quadro clínico tem impacto funcional significativo no desempenho das atividades do examinado desde Março de 2016, aquando do diagnóstico de Esclerose múltipla do tipo Recidivante-Remitente. Na Esclerose Múltipla Recidivante-Remitente os doentes sofrem exacerbações clínicas seguidas por períodos de remissão com recuperação clínica variável entre as exacerbações clínicas.
          2. O examinado de momento, encontra-se em período de remissão clínica parcial da Esclerose Múltipla, mantendo défices motores e cognitivos moderados, mas menos significativos do que em outros momentos da evolução da doença.
          A avaliação clínico-psiquiátrica efetuada a 23 de junho de 2020 pelo Dr. GG terá sido realizada num período de exacerbação clínica com acometimento clínico significativo do examinado.
          3. O examinado relata de forma coerente as ações descritas nos autos, referindo que está arrependido da realização das mesmas e que não as voltará a cometer. Da avaliação do seu estado mental no momento resulta apresentar capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação, sendo que seria essa a sua condição clínica na altura da ocorrência dos fatos de que está indiciado nos autos.
          4. “Aferir se à data dos fatos em causa nos presentes autos, tendo em consideração o crime em causa, o mesmo é considerado inimputável e se é perigoso, ou não, atenta a prática reiterada da difamação e ameaças de morte que faz à vítima, a fim de se aferir se haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança nos termos do artigo 91 e ss, do Código penal.”
          Relativamente aos quesitos supracitados, o arguido deverá ser considerado imputável relativamente às ações descritas nos autos a 25 de junho de 2022, já que a essa data o mesmo apresentaria a capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação (o arguido relata de forma coerente as ações descritas nos autos, referindo que está arrependido da realização das mesmas).
         De momento o arguido não apresenta os condicionalismos clínicos para que possa ser considerado como inimputável, assim sendo considerações sobre a sua perigosidade seriam meramente opinativas e desrevestidas do necessário rigor técnico-científico.
         Contudo, e apesar de no momento, o arguido manter a capacidade para discernir o lícito do ilícito, é muito provável que devido ao curso Recidivante- Remitente da sua Patologia o mesmo possa ter um agravamento clínico no futuro, e que o mesmo condicione o seu discernimento e o seu juízo crítico, tal como sucedeu em junho de 2020, de acordo com a avaliação clínico- psiquiátrica efetuada a 23 de Junho de 2020 pelo Dr. GG e que terá sido realizada num período de exacerbação clínica com acometimento clínico significativo do arguido– itálico, destacados e sublinhados nossos.
         A resposta ao facto não provado sob n.º1 encontra, assim, a sua fundamentação no transcrito relatório pericial que de acordo com o disposto no artigo 163.º, n.º1 do Código do Processo Penal se presume subtraído à livre apreciação do julgador, tanto mais que, neste concreto caso, o julgador não dispõe de elementos nem conhecimentos científicos que lhe permitam divergir do juízo contido no parecer.
         Os factos não provados os sob n.º2, 4, 6, 8, 13 (isto é, que “2) Com a mensagem descrita nos factos provados no ponto 6) o arguido não tinha a intenção de atingir a vítima e de lhe causar medo ou qualquer outro sentimento similar, sendo que a mesma tratou-se de um “desabafo infeliz” face à frustração sentida pelo arguido pela ausência das suas filhas” – artigo 15.º da contestação -, 4) Atendendo ao estado de incapacidade de locomoção do arguido, que é do conhecimento da vítima, não obstante as palavras proferidas, nunca poderiam colocar em causa ou amedrontar a ofendida atendendo à inimputabilidade do mesmo – correspondente ao artigo 17.º da contestação – 6) O envio da referida mensagem ocorreu em razão das tentativas frustradas de tentar falar com a sua filha CC e a mesma não lhe atender o telemóvel, sendo que, face à hora do envio da mesma o arguido estava sob o efeito da sua medicação ou num surto de alteração da mesma. (correspondente ao artigo 23.º da contestação – 8) O envio da mensagem foi nada mais do que um ato irrefletido (correspondente ao artigo 25.º da contestação – 13) O arguido nunca pensou – nem tem capacidade para tal - que a vítima tivesse sido atingida pelas suas palavras irrefletidas pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima – situação que a vítima conhece. - correspondente ao artigo 30.º da contestação), encontram a sua resposta na prova produzida em julgamento, designadamente no teor da mensagem transcrita no ponto 6) dos factos provados, enviada para o telemóvel da própria filha (à data com 13 anos de idade), bem assim nos depoimentos desta e da própria vítima, o que inviabiliza, com o devido respeito por opinião contrária, a versão do arguido de acordo com a qual nunca foi sua intenção atingir a vítima e muito menos causar-lhe medo ou qualquer outro sentimento similar.
         Em ordem a melhor compreender o que ora se regista, não será despiciendo relembrar o teor da mensagem em apreço: “devia ter partido os cornos à tua mãeainda vou a temponão me sai da cabeça a grande filha da puta que é…meteu-me na cadeia não me esqueço…e ainda por cima mete-se na cama com todos….a DD sabe quem é o pai…grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA…ela que vá à policia mostrar as mensagens…odeio-te CC… (itálico, destacados e sublinhados nossos).
         Relativamente ao facto não provado sob n.º6 cumpre ainda esclarecer que não foi produzida igualmente prova consistente que a dita mensagem “foi remetida “no calor” das tentativas frustradas de tentar falar com a sua filha CC e a mesma não lhe atender o telemóvel, sendo que, face à hora do envio da mesma o arguido estaria sob o efeito da sua medicação ou num surto de alteração da mesma”.           
            O facto não provado sob n.º3 (isto é, que “o estado clínico de que padece causaram-lhe perturbação de humor, labilidade emocional, desrealização pessoal com ideação suicida, tristeza e irritabilidade fácil - correspondente ao artigo 16.º da contestação)”, importa assinalar que aquilo que resulta do relatório pericial é que o arguido "é possuidor do diagnóstico de Demência em Outras Doenças a que corresponde o código F.02.8 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), secundário ao Diagnóstico de Esclerose Múltipla a que corresponde o código G35 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), e apesar de resultar do relatório pericial que o arguido “refere[1] tristeza, labilidade emocional e períodos de maior ansiedade”, não decorre desse mesmo relatório que esses estados sejam causados pelos problemas clínicos de que padece.
         Dito de outra forma, não flui do aludido relatório pericial qualquer nexo de causalidade entre aqueles estados e a sua doença. Além disso, e contrariamente ao alegado pelo arguido na sua contestação, o relatório pericial refere expressamente que o arguido “nega ideação suicida”. E embora o arguido tenha apresentado um atestado médico para ensaiar a prova destes factos, certo é que apesar de ter sido emitido por um médico, a realidade é que o mesmo, por si só, não tem valor probatório suficiente para afastar e/ou sequer comprometer o resultado de um relatório pericial (atento o disposto no artigo 163.º, n.º1 do Código do Processo Penal).
            O facto não provado sob n.º5 (isto é, que “o arguido está impedido de conduzir, sendo que a sua condição física à data dos factos também o impossibilitava de conduzir - correspondente ao artigo 19.º da contestação), ausência de prova consistente nesse sentido.
         Embora o arguido tenha apresentado um documento com essa finalidade, a realidade é que o documento que juntou com a respetiva contestação foi emitido em 21.11.2019 e apenas permite afirmar que o arguido, naquela concreta data, isto é, em 21.11.2019, estava “inapto para a condução de veículos da seguinte categoria do Grupo 1:B”.
         Este documento não permite, salvo o devido respeito por opinião contrária, afirmar que o arguido, à data dos factos aqui em causa (no 2022, isto é, mais de três depois da emissão daquele documento) estivesse impedido de conduzir, quer veículos da categoria do Grupo 1:B, quer veículos de outras categorias.
            O facto não provado sob o n.º 7) (isto é, “atendendo à evolução no sentido de deterioração psíquica e física e à medicação que lhe é administrada, por vezes o arguido encontra-se em estados de agitações psicomotoras, perturbações de padrão de sono, alteração do curso de pensamento com discurso colérico frequente, impulsividade extrema, desencadeando comportamentos impulsivos sem controlo - correspondente ao artigo 24.º da contestação), sem prejuízo daquilo que resulta diretamente do relatório pericial, não foi feita prova consistente que devido à evolução da doença do arguido e à medicação que lhe é administrada, este, por vezes, “encontra-se em estados de agitações psicomotoras, perturbações de padrão de sono, alteração do curso de pensamento com discurso colérico frequente, impulsividade extrema, desencadeando comportamentos impulsivos sem controlo.
         Os factos não provados sob os n.º9 e 10) (isto é, 9) “A vítima nunca esteve em perigo -correspondente ao artigo 26.º da contestação – e 10) O arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora - correspondente ao artigo 27.º da contestação), não obstante se considerar que ambos encerram em si juízos conclusivos, ainda assim se entende que o depoimento da filha do arguido e o depoimento da vitima e bem assim o teor da própria mensagem que enviou naquele dia (25.06.2022) não permitem concluir que “a vítima nunca esteve em perigo”, pois foi o próprio arguido a remeter uma mensagem a dizer que “vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA”.
         Já no que concerne ao facto de “o arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora”, pois bem, relativamente a este concreto “facto”, poder-se-ia escrever muita coisa, todavia, nunca sem incorrer no risco de entrar, inevitavelmente, no campo da especulação.
         Todavia, aquilo que se apresenta incontroverso para este Tribunal é a afirmação do arguido a transmitir à sua filha de 13 anos de idade que ia “foder a vida” da mãe (aqui vítima) ou que não se “chamava AA”.
         Como é que o iria ou pretendia fazer, não integra tarefa do Tribunal, embora, como é sabido, um crime, incluindo o crime de violência doméstica, não depende da presença física do agente e da vítima, podendo ser praticado à distância e eventualmente com recurso a terceiras pessoas.
         Contudo, como se disse, não constitui, com o devido respeito, tarefa do Tribunal procurar desvendar ou sequer especular como é que o arguido pretenderia levar a cabo os seus desígnios, em todo o caso, aquilo que se nos afigura irrefutável, é que a condição físico-motora do arguido não constitui, nem constituiu, por si só, motivo suficiente para afirmar que o mesmo, em momento algum, poderia fazer “mal” à vítima (sobretudo psicológico), tal como, aliás, o presente caso constitui um bom exemplo disso mesmo, ao ameaçar a vítima por mensagem remetida diretamente para o telemóvel da filha e a apodá-la de “grande filha da puta” e afirmar que se metiana cama com todos” e que lhe ia “foder a vida” ou não se chamava AA.
         Isto é, a sua condição clínica não o impediu de fazer aquilo que fez e de, no próprio exame pericial, ter referido ao Exmo. Sr. Perito que “estava arrependido e que não as voltaria a cometer”, sem, no entanto, em momento algum, ter afirmado, como o fez agora em contestação, que a sua condição físico-motora não lhe permitiria fazer mal à vítima.
         Os factos não provados sob os n.º11 e 12 (isto é: 11) O arguido é dependente de terceiros para todos os seus atos diários - correspondente ao artigo 28.º da contestação – e que 12) O arguido não sai da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe, pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima - correspondente ao artigo 29.º da contestação) encontra a sua resposta no já referido anteriormente, pois apesar de resultar do relatório pericial que o arguido carece do apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora, a realidade é que evola igualmente do relatório pericial que essa dependência não é total, pois que aí se escreve que “o examinado desempenha algumas atividades de vida diárias de forma independente já que apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado”.
         O facto não provado sob n.º12) (que “o arguido não sai da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe, pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima”), além do que já se registou, a resposta a este “facto” fica igualmente a dever a sua fundamentação à ausência de prova mais consistente nesse sentido, pois tal como se acabou de assinalar, o relatório pericial apenas refere que o arguido carece de apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora, mas tal não significa, por si só, que o arguido não consiga sair da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe.
         Daí o juízo probatório negativo quanto a este facto.
         Esta é, em conformidade, a convicção do tribunal quanto à matéria de facto».


             3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. NOTA PRÉVIA

No recurso intentado relativamente à 1ª sentença que se anulou, a defesa arguiu duas nulidades de sentença, a saber:
· 1ª- falta de fundamentação da matéria de facto [artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPP];
· 2ª- omissão de pronúncia relativamente a factos da contestação, não dados como provados ou não provados [artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPP].

Esta Relação conheceu-as, indeferindo ambas.

No conhecimento da 2ª nulidade, deixou-se escrito:
«Sabemos que não são todas as alegações do arguido que têm de ser indagadas pelo tribunal, mas somente aquelas que revistam interesse para decidir, num dos sentidos admitidos juridicamente como possíveis.
Diremos que os factos da contestação dos autos são irrelevantes para a discussão da causa, porque não são importantes para verificar do preenchimento ou não do tipo de ilícito em apreciação, resolvida que foi também a questão da imputabilidade criminal do arguido (facto provado nº 17 e único facto não provado).
Não ficou assim limitado o direito da defesa do arguido (muitos dos factos alegados nessa contestação não são mais do que a negação do dolo do arguido, constante da acusação pública).
Ora, em conclusão, não vislumbramos na sentença, a este nível, qualquer indício de nulidade».
Acabou a Relação por, oficiosamente, detectar uma outra nulidade, essa sim existente, assim decidindo, em suma:

«Dispõe o artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º do mesmo diploma.

O MP, nos nossos autos, acusou o arguido da prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de violência doméstica, «p. e p. pelos artigos 30º, nº 2 e 152º, nº 1, alínea a) do Código Penal».

O Juiz do processo recebeu tal acusação, por despacho de 20/4/2023, «pelos factos e disposições legais dela constantes, cujo teor se dá aqui por reproduzido».
Fez-se o julgamento em 30/6/2023, onde não é feita qualquer menção à incriminação dos autos.
Surge, entretanto, a sentença recorrida que começa por dizer no Relatório o seguinte:

«Para julgamento em processo comum, e perante Tribunal Singular, o Ministério Público acusou AA, desempregado, natural da freguesia ... (...), concelho ..., nascido a ../../1978, filho de HH e de II, residente em Rua ..., em ....

Imputando-lhe os factos descritos na acusação de fls. 196 a 198, integrativos da prática, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, alínea a) e nº 2, 4 e 5 do Código Penal».

Nem uma palavra sobre a continuação criminosa imputada na acusação (certamente, por lapso aí levada pelo MP, diremos nós, assente que se tratou apenas de um facto imputável ao agente).
E aparece miraculosamente a imputação do nº 2 do artigo 152º, nunca invocado na acusação.
E foi por essa norma do nº 2 – que agrava a moldura penal abstracta de 1 a 5 anos (do nº 1) para 2 a 5 anos de prisão - que acabou por vir a ser condenado o arguido.
Note-se, contudo, que na fundamentação de Direito, pouco ou nada é dito que justifique esta agravação (pela presença de uma criança menor de idade neste circuito de ilicitude, acredita-se).
Ou seja, o arguido veio a ser condenado por crime diverso, em termos de tipificação, do constante da acusação que define a vinculação temática do processo penal.
Ora, tal não podia ter acontecido, no mais rigor dos trâmites processuais de um Estado de Direito.
Se quisesse fazer esta alteração – não de factos, mas de qualificação jurídica -, o tribunal deveria ter usado o mecanismo do artigo 358º, nº 1, por remissão do nº 3 do mesmo normativo.
E a verdade é que nada convolou e nada comunicou à defesa».
E, por isso, anulou a sentença.
«Face ao exposto, só há que declarar a nulidade da sentença, com a seguinte consequência:

- nulidade da sentença recorrida, devendo, na 1ª instância, proceder-se à reabertura da audiência, dando-se aí cumprimento ao estatuído no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP, continuando os autos a correr os seus termos processuais habituais.

Deverá a nova sentença a proferir aproveitar para melhor discutir se estamos ou não perante uma continuação criminosa, como vem imputado pelo MP na acusação, explicitando de forma mais rigorosa a razão pela qual invoca o nº 2 do artigo 152º do CP (e não só o seu nº 1), revendo também a redacção a dar ao facto provado nº 11, assente que a demandante/assistente não se poderá ter sentido angustiada pela ocorrência dos factos provados nºs 2 e 3».
Nada mais.
Nada menos.
Daí que não seja verdade que esta Relação tenha também dirigido à 1ª instância uma ordem para suprir esta 2ª nulidade: «tomar expressa posição sobre os factos alegados na contestação sob os nºs 15, 16, 17, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30» (cfr. texto do relatório desta nova sentença).
Tudo isso tinha ficado já resolvido na apreciação da 1ª nulidade arguida pela defesa, tendo nós decidido indeferir a mesma.
Com certeza devido a uma leitura incorrecta e menos atenta do nosso aresto foi a 1ª instância levada a produzir mais fundamentação de facto, desnecessária, pois então, mas ainda assim possível face ao facto de ter redigido uma nova sentença.
Com esta explicação prévia, passamos a conhecer do recurso intentado pelo arguido relativamente a esta 2ª sentença, assente que o tribunal de ... fez a comunicação do artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, tal como se ordenou, nada tendo sido requerido, em termos de oposição, pelo Ministério Público, pela assistente e pelo arguido, não incorrendo em mais nenhuma nulidade, nomeadamente, a de falta de fundamentação da matéria de facto como aqui e ali se insinua no recurso (refira-se que, ao contrário do que se defende em recurso, o tribunal levou em linha de conta as condições de vida e de saúde do arguido para efeitos de dosimetria da pena).

3.2. IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.2.1. Em sede de impugnação da matéria de facto, é sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer dessa questão de facto por duas formas:

- pela impugnação ampla (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada - cfr. artigo 431º do CPP;

- pela análise dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.

Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves – hoje Juiz Conselheiro - nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)».

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP.

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto.

Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.

E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Já a segunda situação se refere a vícios intrínsecos ao texto literal do sentenciado.

3.2.2. Deixemos, por ora, esse erro de julgamento e cuidemos dos vícios que podem levar a um reenvio para novo julgamento, ao abrigo do artigo 426º do CPP.

De facto, estabelece o art. 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
· A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
· A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
· Erro notório na apreciação da prova.

Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.

Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso.

Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada.

Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.

3.2.3. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP?

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[2].

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[3].

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).

O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.

Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.

Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[4].

Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

A defesa expressamente invoca o vício da alínea c).

Ora, lendo a sentença, ela é perfeitamente escorreita.

Apenas acreditou na palavra da assistente e das testemunhas que indicou, retirou dessa factualidade toda a legitimidade interna para poder condenar o arguido pelo crime em causa.

A defesa invoca que foi violado o princípio do «in dubio pro reo».

Sobre isso, escrever-se na nota de rodapé que antecede:

Há erro notório «na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».

Ora, aqui o tribunal, mal ou bem (veremos a seguir quando abordarmos o erro de julgamento), não teve dúvidas em dar aqueles factos como provados, explicando porquê, não se podendo assim dizer que tenha incorrido no expresso vício de erro notório na apreciação da prova.

Já existe esse erro (quase um lapsus calami, tal a sua ostensividade) na formulação do facto nº 11 (erro para o qual se alertou no nosso 1º aresto mas que o tribunal ignorou), facto esse que deverá ter a seguinte redacção [sendo permitido a este tribunal suprir o erro, por apelo à letra do artigo 431º, alínea a) do CPP]:

11) Em razão dos factos descritos de 1, 4, 5, 6 e 7[5], a assistente sentiu-se humilhada, angustiada e abalada psicologicamente, sentimentos esses agravados pela circunstância dos outros factos de que foi vítima e pelos quais o arguido foi julgado e que a obrigaram, além do mais, a mudar as rotinas diárias e inclusivamente a mudar de casa mais do que uma vez, com as suas duas filhas.

Assim, acabamos a concluir que, para além deste tópico erro assinalado, inexistem quaisquer outros vícios do artigo 410º/2 do CPP, tendo a sentença toda a coerência interna que se lhe exigia.

3.2.4. E há erro de julgamento?

Uma palavra inicial sobre a PROVA.

O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.

Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.

Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.

Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.

Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.

A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência

            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.

            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.

É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.

As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).

            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº3 do citado artigo 412º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).


*

Ora, a defesa defende que houve erro de julgamento.

Não concordamos.

Analisando a repetitiva peça recursiva, não vislumbramos nenhum cumprimento, mesmo que mínimo, do ónus de impugnação especificada exigido pelo artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP (apenas alude no artigo 97º a um trecho do depoimento da filha CC – a que corresponde a Conclusão nº 93 - e a nada mais).

Ora, se a sua intenção era impugnar a matéria de facto por esta vida do erro de julgamento, deveria ter alegado muito mais, com ligação à prova gravada.

Na realidade, a peça recursiva alega que os factos 6, 7 e 8 foram mal julgados mas não faz a devida e legal impugnação (diga-se, em abono da verdade, que este homem reconhece na sua essência que enviou a mensagem em causa).

No fundo, limita-se a dizer que o tribunal deu demasiado crédito às declarações da   assistente e de sua filha CC, não compreendendo também como se deu como provado o elemento subjectivo do delito, assente que, para si, o tribunal «ignorou vários elementos de prova que podem demonstrar (ou se não demonstram, o Tribunal a quo deveria explicar porquê, o que não sucede, como vimos) o que sucedeu no dia em causa nos autos e qual a intenção que presidiu à atuação do arguido».  

Olhando para a fundamentação de facto feita pelo tribunal recorrido, encontramos as fontes em que ele se baseou:
· «a convicção do tribunal alicerçou-se na análise crítica das declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, na prova documental junta aos autos (designadamente certidões de nascimento e certidão da sentença proferida no processo n.º136/19....) e no depoimento da testemunha CC – filha do arguido e da assistente - e no certificado de registo criminal junto aos autos»;
· «o arguido reconheceu genericamente os factos que lhe vêm imputados, sendo certo que, neste concreto caso, a prova se apresentava simples, na medida em que as expressões em apreço mostram-se documentadas nos autos;
· «atendeu-se às declarações consternadas da assistente BB que, além do mais, referiu que se lembrava das mensagens aqui em discussão, pois foi remetida pelo arguido à sua filha CC dois dias depois do dia de aniversário desta.
· «reportando-se ao estado anímico e ao impacto que aquelas mensagens aportaram para o seu dia a dia, disse que depois de as ler sentiu medo, ansiedade e vergonha, por a filha ter lido aquela mensagem, afirmando ainda que, ainda hoje, sente que não tem a liberdade de viver descansada e pese embora se encontre separada do arguido desde  2017, altura em que saiu do Algarve, a realidade é que, com tudo o que sofreu, estas novas mensagens fizeram com que passasse a recear que o arguido se “metesse” num carro e viesse “cá em cima” e lhe “desse um tiro”, sendo que ainda hoje anda acompanhada pela APAV»;
· «acrescentou que, depois do sucedido, anda sempre nervosa e com muito medo, dorme com as luzes acesas, por causa dos barulhos e com receio do que lhe possa acontecer.
· «já a testemunha CC, afirmou ter sido a pessoa que deu conhecimento do teor da mensagem à mãe (aqui assistente), esclarecendo que depois disso esta alterou os seus comportamentos, passou a sair menos de casa e a ter mais cuidados com a segurança da casa e dificuldade em dormir»;
· «pela forma sentida e detalhada como a assistente e a filha se apresentaram, mereceram a credibilidade do Tribunal».

            Como tal, nada disto veio infirmar a defesa com o seu recurso, não aludindo a prova que imponha a este tribunal decisão diversa (nos termos do artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP].

            Quanto ao elemento subjectivo do delito, disserta assim o tribunal, a propósito da explicação da não prova de alguns factos da Contestação:
            «Os factos não provados os sob n.º2, 4, 6, 8, 13 (isto é, que “2) Com a mensagem descrita nos factos provados no ponto 6) o arguido não tinha a intenção de atingir a vítima e de lhe causar medo ou qualquer outro sentimento similar, sendo que a mesma tratou-se de um “desabafo infeliz” face à frustração sentida pelo arguido pela ausência das suas filhas” – artigo 15.º da contestação -, 4) Atendendo ao estado de incapacidade de locomoção do arguido, que é do conhecimento da vítima, não obstante as palavras proferidas, nunca poderiam colocar em causa ou amedrontar a ofendida atendendo à inimputabilidade do mesmo – correspondente ao artigo 17.º da contestação – 6) O envio da referida mensagem ocorreu em razão das tentativas frustradas de tentar falar com a sua filha CC e a mesma não lhe atender o telemóvel, sendo que, face à hora do envio da mesma o arguido estava sob o efeito da sua medicação ou num surto de alteração da mesma. (correspondente ao artigo 23.º da contestação – 8) O envio da mensagem foi nada mais do que um ato irrefletido (correspondente ao artigo 25.º da contestação – 13) O arguido nunca pensou – nem tem capacidade para tal - que a vítima tivesse sido atingida pelas suas palavras irrefletidas pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima – situação que a vítima conhece. - correspondente ao artigo 30.º da contestação), encontram a sua resposta na prova produzida em julgamento, designadamente no teor da mensagem transcrita no ponto 6) dos factos provados, enviada para o telemóvel da própria filha (à data com 13 anos de idade), bem assim nos depoimentos desta e da própria vítima, o que inviabiliza, com o devido respeito por opinião contrária, a versão do arguido de acordo com a qual nunca foi sua intenção atingir a vítima e muito menos causar-lhe medo ou qualquer outro sentimento similar.
            Em ordem a melhor compreender o que ora se regista, não será despiciendo relembrar o teor da mensagem em apreço: “devia ter partido os cornos à tua mãeainda vou a temponão me sai da cabeça a grande filha da puta que é…meteu-me na cadeia não me esqueço…e ainda por cima mete-se na cama com todos….a DD sabe quem é o pai…grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA…ela que vá à policia mostrar as mensagens…odeio-te CC… (itálico, destacados e sublinhados nossos).
            (…)
           
            Os factos não provados sob os n.º9 e 10) (isto é, 9) “A vítima nunca esteve em perigo - correspondente ao artigo 26.º da contestação – e 10) O arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora - correspondente ao artigo 27.º da contestação), não obstante se considerar que ambos encerram em si juízos conclusivos, ainda assim se entende que o depoimento da filha do arguido e o depoimento da vitima e bem assim o teor da própria mensagem que enviou naquele dia (25.06.2022) não permitem concluir que “a vítima nunca esteve em perigo”, pois foi o próprio arguido a remeter uma mensagem a dizer que “vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA”.
            Já no que concerne ao facto de “o arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora”, pois bem, relativamente a este concreto “facto”, poder-se-ia escrever muita coisa, todavia, nunca sem incorrer no risco de entrar, inevitavelmente, no campo da especulação.
            Todavia, aquilo que se apresenta incontroverso para este Tribunal é a afirmação do arguido a transmitir à sua filha de 13 anos de idade que ia “foder a vida” da mãe (aqui vítima) ou que não se “chamava AA”.
            Como é que o iria ou pretendia fazer, não integra tarefa do Tribunal, embora, como é sabido, um crime, incluindo o crime de violência doméstica, não depende da presença física do agente e da vítima, podendo ser praticado à distância e eventualmente com recurso a terceiras pessoas.
            Contudo, como se disse, não constitui, com o devido respeito, tarefa do Tribunal procurar desvendar ou sequer especular como é que o arguido pretenderia levar a cabo os seus desígnios, em todo o caso, aquilo que se nos afigura irrefutável, é que a condição físico-motora do arguido não constitui, nem constituiu, por si só, motivo suficiente para afirmar que o mesmo, em momento algum, poderia fazer “mal” à vítima (sobretudo psicológico), tal como, aliás, o presente caso constitui um bom exemplo disso mesmo, ao ameaçar a vítima por mensagem remetida diretamente para o telemóvel da filha e a apodá-la de “grande filha da puta” e afirmar que se metiana cama com todos” e que lhe ia “foder a vida” ou não se chamava AA.
            Isto é, a sua condição clínica não o impediu de fazer aquilo que fez e de, no próprio exame pericial, ter referido ao Exmo. Sr. Perito que “estava arrependido e que não as voltaria a cometer”, sem, no entanto, em momento algum, ter afirmado, como o fez agora em contestação, que a sua condição físico-motora não lhe permitiria fazer mal à vítima».

Já o sabemos: quando não existe confissão, a prova do dolo tem de ser feita por inferência, resultando da conjugação da prova de factos objectivos com as regras da normalidade e da experiência comum[6], sendo do conhecimento geral que:

«Os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera descrição do iter criminis do arguido, ou seja, da narração da ação típica que lhe é objetivamente imputada, a não ser que se afirmem circunstâncias excecionais, suscetíveis de contrariar esse entendimento Cf., neste sentido, e entre outros, o acórdão do TRE, de 11.07.2013, proferido no processo nº 126/12.8GAMAC.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre».

Como bem sintetiza Inês da Cruz Gonçalves, em https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/60938 (dissertação de Mestrado na Escola de Direito do Minho):

«A conduta criminal é dotada de uma faceta íntima que a limita em sede de prova: os estados subjetivos. Entre eles, destaca-se o dolo, na medida em que constitui o principal elemento subjetivo do tipo penal, que representa o conhecimento e a vontade de realização do facto descrito no tipo legal de crime. Como fenómeno psicológico interno, só observável diretamente por quem o experiencia, o dolo, assim como qualquer outro estado subjetivo, é de difícil apreensão, o que na maioria das vezes dificulta a sua prova e respetiva imputação. Não obstante, a presente dissertação pretende demonstrar que esta condição de interioridade que caracteriza os estados subjetivos, e em especial o dolo, não impede a sua prova, limitando apenas os seus meios de prova. Embora seja reconhecida a possibilidade de o arguido confessar a sua conduta dolosa, acreditamos que o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta), razão pela qual esta será o principal objeto do nosso estudo. Sendo assim, perante a falta de confissão, todos os elementos de estrutura psicológica, como o conhecimento e a vontade de praticar um crime, terão de ser deduzidos de outros elementos, esses sim empiricamente observáveis e que funcionam, segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência. No caso concreto do dolo, terá de ficar demonstrado que, de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social, o arguido não pôde ter deixado de representar e querer o resultado em causa. Para isso, o julgador poderá guiar-se por alguns indicadores externos do dolo revelados pela conduta externa do agente, no entanto, o mais importante é que o juiz tenha em consideração as circunstâncias concretas que envolveram o crime, evitando assim cair no erro de tentar presumir o dolo pela simples materialidade do crime».

Portanto, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.

Salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, com frequência, é ignorado pelos recorrentes], e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam um decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.

A inobservância do ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3, b) e c) e 4 do CPP, inviabiliza a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pela via da impugnação ampla da matéria de facto.

Ora, nada do que aduz a defesa vem impor tal mudança factual.

Nem sequer será necessário provar qualquer outra factualidade que contextualize este clima de desarmonia entre este ex-casal, sendo apenas factos instrumentais que não apagam a ilicitude dos factos nºs 6, 8, 11, 12 e 13 (acto de «violência doméstica», na perspectiva do tribunal recorrido, e suas consequências no «animus» da assistente, ora vítima).

Em síntese, no nosso caso, o tribunal recorrido, usando métodos lícitos de valoração da prova produzida, criou uma convicção (descredibilizou a versão do arguido e credibilizou a versão da assistente e de sua filha, estando no seu direito de o fazer).

E explicou-a devidamente em sentença.

Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova directa produzida, e com eco na decisão proferida.

Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco o recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por ele indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do CPP, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.

Repete-se: o recurso da matéria de facto visa sempre a reparação de erros de facto e, como se tem afirmado sem dissensão na jurisprudência e na doutrina, não é um segundo julgamento.

Assim, o que se pede à Relação (o que se pode pretender por via do recurso) não é que se proceda à reapreciação das provas na medida em que o fez o juiz de julgamento. E há que aceitar a existência de uma margem de insindicabilidade da decisão (da matéria de facto) do juiz de primeira instância, resultado da impressão causada no julgador que só a imediação, em primeira instância, possibilita ao nível mais elevado.

Visa-se, pois, por via do recurso, identificar, demonstrar e conseguir reparar erros de decisão.

Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.

Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.

Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.

Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».

O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido[7].

No nosso caso, esses erros não são detectáveis, constatando-se uma correspondência total entre a prova efectivamente produzida em julgamento e a realmente percebida pelo tribunal de julgamento e mostrando-se esta correctamente apreciada na sentença de acordo com todas as regras legais e princípios de prova.

Estamos ainda a falar, convém não esquecer, de alguém que foi considerado nestes autos imputável em termos criminais (não obstante a sorte de outro seu antecedente processo), face à prova inequívoca dos factos nºs 14 a 19, não eficazmente impugnados pela defesa.

3.2.5. Cai por terra, assim, esta impugnação de facto, ficando o acervo de factos provados e não provados tal como consta da sentença recorrida, não havendo ainda qualquer indício de que foi violado o princípio constitucional de presunção da inocência do arguido.

3.3. DO DIREITO
É ESTE o âmago do recurso.
O tribunal entendeu condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2, 4 e 5 do CP.
E explicou porquê.

«Dispõe o artigo 152.º, n.º1 do Código Penal que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um ano a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, determinando o n.º2 que “a) se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

A redação mais relevante deste preceito é a que decorre das alterações carreadas pela Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro.

Porém, não obstante a alteração da redação, certo é que a mesma não alterou o ilícito nos seus elementos fundamentais, isto é, não alterou o bem jurídico e o tipo objetivo e subjetivo de ilícito, tendo apenas alargado os sujeitos passivos do mesmo, alargando o número de pessoas que podem ser vítimas deste crime.

Por outro lado, a alteração ao Código Penal de 2007, autonomizou o ilícito penal, atendendo à multiplicidade de bens jurídicos que coexistiam na anterior redação do artigo 152º do Código Penal onde, a par dos maus tratos agora tratados como violência doméstica, coexistiam os maus tratos a menores em ambiente educacional e os maus tratos no trabalho, mediante a infração de regras de segurança, do emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas ou na sobrecarga com trabalhos excessivos.

Deste modo, as grandes alterações incrementadas com a reforma de 2007, foram sobretudo a de se ter autonomizado em três diferentes ilícitos o que antes apenas se encontrava previsto no artigo 152º (atualmente, artigos 152º, 152º-A e 152º-B, correspondente aos crimes de violência doméstica, maus tratos e violação de regras de segurança, respetivamente) e o facto de se ter alargado o leque de pessoas que podem ser vítimas deste crime.

A violência doméstica é um crime doloso, de execução não vinculada, podendo ser praticado por uma diversidade de comportamentos que podem variar entre a violência psicológica mental, nela se incluindo as agressões verbais, humilhações, perseguições, provocações, ameaças, clausura, privação de recursos físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos.

Em muitos casos (ou na maioria dos casos) chega a existir efetiva agressão física, que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, espancamentos, até a morte.

E muito embora já tenhamos perfilhado a posição de que um único ato para poder ser considerado mau trato e, assim, preencher o tipo objetivo, teria de ser grave, mediante uma ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, a realidade é que a lei verdadeiramente nada exige nesse sentido.

Na verdade, tal como esclarecidamente se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.10.2021, “na redação do atual art. 152º do CP, para o preenchimento do tipo, não se exige o requisito «intensidade» da ofensa, que constava da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da reforma de 2007 do Código Penal, mas que não foi a que vingou na sua redação final. IV– O bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao art. 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica– itálico, destacados e sublinhados nossos.

Feita esta breve sinopse do ilícito criminal em causa, atentemos então no caso sub judice.

No caso concreto, atenta a factualidade dada como provada, entende-se que o arguido praticou o crime em apreço.

De facto, resultou provado que o arguido AA casou com a ofendida BB em 06.10.2010, tendo-se divorciado em 28.10.2018.

Dessa relação nasceram duas filhas, a saber: CC, nascida a ../../2009 e EE, nascida a ../../2014.

Além disso, o arguido foi julgado e condenado pela prática do crime de violência doméstica, praticado na pessoa da ofendida, no âmbito do processo nº60/17...., do Tribunal Judicial ..., por fatos cometidos em 08.03.2017, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, sentença transitada em julgado em 17.10.2018.

O arguido foi julgado pela prática do crime de violência doméstica, praticado na pessoa da ofendida, no âmbito do processo nº 136/19...., do Tribunal Judicial ..., por fatos cometidos em 09.08.2019, tendo sido declarado inimputável em razão da anomalia psíquica, ao abrigo do disposto no artigo 20º, nº 1, do Código Penal.

Neste último processo resultou provado que: “(…) O arguido, nos últimos anos em que viveu com a vitima maltratou-a física e psicologicamente. 4. O arguido, no âmbito do processo comum singular nº 60/17...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Juiz ..., foi julgado e condenado pela prática do crime de violência doméstica por fatos praticados contra a vitima BB, na pena de 3 (três) anos de prisão suspensa na execução por igual período, acompanhada de regime de prova; na proibição de contactos com a vitima e na proibição de uso e porte de armas. 5. A sentença foi proferida em 10.04.2018, tendo transitado em julgado em 20.11.2018. 6. No dia 09 de Agosto de 2019, pelas 22H05, o arguido AA através do Messenger ligação https://www.facebook.com/profile.php? Id=...40, para o telemóvel do pai da vitima de nome FF, com o nº ...62, a seguinte mensagem escrita: “Boa noite, avise a sua filha que a mato de verdade, a puta meteu-me na prisão sem culpa nenhuma, eu prometo que mato essa puta, avise a merda da policia também grande porco, deste á luz uma grande vaca, se não fosse eu não tinha nada a puta…. 7. Acontece, porém, que o pai da vitima só em 26.08.2019, pelas 10H43, abriu a mensagem e leu o seu conteúdo, dando a conhecer àquela, neste dia/hora o conteúdo da mesma. 8. A vitima ao saber o conteúdo da mensagem ficou com medo que o arguido viesse a concretizar o mal que anunciava (…)”.

Acontece, porém, que o arguido AA, no dia 25 de junho de 2022, entre as 21H02 e as 21H33, através do seu telemóvel com o nº...12, enviou para o telemóvel da filha CC, com o nº ...54, via rede social “Whatsapp” as seguintes mensagens escritas: “…devia ter partido os cornos à tua mãe…ainda vou a tempo…não me sai da cabeça a grande filha da puta que é…meteu-me na cadeia não me esqueço…e ainda por cima mete-se na cama com todos….a DD sabe quem é o pai…grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA…ela que vá à policia mostrar as mensagens…odeio-te CC…”.

A menor CC (à data com 13 anos de idade) ao tomar conhecimento das mensagens, foi de imediato mostrar as mesmas à mãe e ofendida BB.

Outrossim, resultou demonstrado que o arguido AA atuando de forma deliberada, livre e consciente, pretendeu, e conseguiu, atingir e lesar a honra e consideração da ofendida BB, bem como causar-lhe medo, atenta a forma como foram proferidas as expressões acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

De modo que, atendendo à valoração global dos factos, entende-se que o arguido incorreu na prática do crime de que vinha acusado, porquanto se mostram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa, pois muito embora esteja em causa um único ato, a realidade é que o mesmo foi perpetrado num contexto muito particular, na medida em que foi levado a cabo pouco tempo depois da extinção de uma pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de violência doméstica sobre a aqui assistente (17.10.2021) e depois de ter sido sujeito a outro julgamento por factos de semelhante natureza.

Não está aqui em discussão uma simples mensagem isolada, mas antes, e ao invés, uma conduta similar a outras anteriores por parte do arguido e que em muito condicionaram a assistente, enquanto mulher, mãe e enquanto pessoa, obrigando-a, além do mais, a ter que mudar diversas vezes de casa, com as suas filhas, e a mudar as suas rotinas diárias.

Acresce que, importa igualmente não ignorar que se está perante um crime de mera atividade (o preenchimento do ilícito típico basta-se com o desvalor da ação, independentemente do resultado, ou seja, tal como decorre da norma em causa, basta a inflição de maus tratos, privações da liberdade e/ou ofensas sexuais[8]) e, quanto ao bem jurídico, não obstante as divergências doutrinas a esse respeito[9], segue-se o entendimento perfilhado por Nuno Brandão[10], que o considera como crime de perigo abstrato[11], referindo que: Não há nenhuma exigência legal expressa de que a lesão da integridade física ou a produção de perturbações ao nível da saúde psíquica da vítima constituam elementos do tipo-de-ilícito. Uma exegese do preceito conforme com as intenções político-criminais que lhe subjazem e com o polifórmico substrato criminológico do fenónemo da violência doméstica aponta antes para o entendimento de que a ofensa ao bem jurídico tipicamente relevante não deva pressupor a verificação da sua lesão. (...)

              É, com efeito, o perigo para a saúde do objeto de ação alvo da conduta agressora que constitui motivo da criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto. (…) creio (…) que o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolonguem no tempo”, como sucede, aliás, neste caso, porquanto se apurou que o arguido foi condenado no processo nº60/17...., cujos termos correram pelo Tribunal Judicial ..., por factos cometidos em 08.03.2017, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo.

Continuando, acrescenta aquele autor que “Estas classificações (perigo/dano, resultado/mera atividade) assumem importância desde logo porque, configurando-o como crime de perigo abstrato, será indiferente para o preenchimento do tipo a alegação e prova de que a conduta do agente efetivamente lesou ou sequer colocou em perigo o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, presumindo a lei, de forma inilidível, tal facto.”

Ademais, tal como refere Nuno Brandão - in obra citada, p. 17 - , “ficariam fora da tutela típica da violência doméstica consumada os atos de violência física que não determinassem uma lesão do corpo ou da saúde da vítima e as ações na esfera espiritual do ofendido que, podendo embora afetar o seu bem-estar psíquico, não tivessem como consequência um transtorno da sua saúde psíquica ou mental” – citando, de seguida e paradigmático de tal situação, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/07/2008 (Proc. n.º 07P3861) e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/02/2007 (Proc. 0616665).

O bem jurídico protegido pela norma incriminatória reconduz-se primacialmente à tutela da saúde do(s) Ofendido(s) em contexto relacional íntimo, entendida em sentido lato como estado de equilíbrio físico, psíquico e emocional – em igual sentido, ver Susana Figueiredo, op. cit., pp. 99-114.

Estão aqui em causa, particularmente, a proteção da integridade física (capítulo III onde a norma se insere) e psíquica, da vida, da liberdade pessoal, da liberdade e autodeterminação sexuais, da honra e da reserva da vida privada.

Secundariamente e de modo reflexo, o legislador quis tutelar ainda a pacífica convivência familiar, doméstica e para-familiar, considerando que a violência, quando perpetrada por agente(s) ligado(s)s à(s) sua(s) vítima(s) por laços de parentesco, familiaridade ou convivência próxima, é merecedora de particular censura – como expôs Maria Elisabete Ferreira .

O tipo objetivo do n.º 1, nas palavras do legislador “maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns”, inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal, sexual e económica, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

Violência pode ser entendida como qualquer forma de uso da força, coação ou intimidação contra terceiro ou toda a forma de ação que, de algum modo, lese a integridade, os direitos e necessidades dessas pessoas – utilizando, grosso modo, o conceito fornecido por Celina Manita (coord.), in “Violência Doméstica: Compreender para Intervir - Guia de boas práticas para profissionais de instituições de apoio a vítimas”, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2009, disponível em www.researchgate.net.

Do ponto de vista jurídico, diversos ilícitos típicos podem preencher o crime de violência doméstica, como sejam os crimes de ofensa à integridade física, injúria, ameaça, coação, crimes sexuais, entre outros.

A principal distinção destes para o crime de violência doméstica reside na relação interpessoal existente entre vítima e agressor, conforme resulta do elenco do artigo 152.º n.º 1 do Código Penal.

Com efeito, não obstante, na jurisprudência maioritária, se continuar a  entender que, para que se verifique a previsão legal do artigo 152.º do Código Penal, a conduta do agente deve evidenciar um tratamento cruel, degradante ou desumano pela pessoa da vítima ou um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma – o que, demonstra a realidade social, efetivamente sucede muitas das vezes – a realidade é que o legislador bastou-se na consagração legal do tipo objetivo com a existência de maus tratos/privações/ofensas e o elemento relacional típico.

Na verdade, seguindo o entendimento de Susana Figueiredo, com o qual se concorda, esta “constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal. Posição esta que, estamos disso cientes, acarreta uma alteração de paradigma radical (…).

Tal conceção tradicional do núcleo familiar ou parafamiliar está, estamos disso convictos, na origem de uma resistência e hesitação jurisprudenciais no que à caraterização do conceito de “maus tratos” refere, conduzindo à prática de lhe afivelar, no caso de se tratar de um ato isolado, exigências atípicas, quer ao nível do tipo subjetivo (desejo de controlo, de prevalência ou de domínio; intuito de achincalhar, de desrespeitar; ânimo de crueldade; as repristinadas atitudes internas de “malvadez" e “egoísmo”), quer ao nível do tipo objetivo (gravidade e intensidade da ofensa)”.

Concluindo que “inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente suscetível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152.º, n.º 1.

Tal posição, em nosso entendimento, terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública.

Por outro lado, o previsível alargamento do âmbito de aplicação do artigo 152.º (nomeadamente quanto a atos de violência de pequena magnitude) que tal posição indubitavelmente comporta poderá e deverá ser contrabalançado, quer a jusante, ao nível da fixação da pena (medida concreta da pena; atenuação especial da pena; penas de substituição; juízo concreto de necessidade, adequação e proporcionalidade das penas acessórias às exigências preventivas especiais), quer, a montante, e no plano adjetivo, ao nível do recurso a mecanismo de consenso, oportunidade e diversão como a suspensão provisória do processo uma vez verificados os seus pressupostos especiais para o caso da Violência Doméstica.” (itálicos, destacados e sublinhados nossos).

Efetivamente, aquilo que é sinalizado por esta autora é que a doutrina e jurisprudência dominante têm feito uma “tentativa de interpretação corretiva”, contrária ao princípio da legalidade previsto no artigo 1.º do Código Penal.

De modo que, sem outros arrazoados, entende-se que o arguido incorreu na prática do assinalado crime».


Já a defesa entende que «os factos perpetrados pelo ora recorrente não se enquadram na previsão do art. 152.º do C.P., podendo configurar, no limite, um crime de ameaça e difamação», defendendo ainda que «a conduta do arguido não preenche qualquer circunstância agravante prevista no nº 2 do art. 152º do C.P.».

Vejamos.

No que tange ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos:
O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima);
No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias);
Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada);
Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[12], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações);
Contudo, no seu essencial é um crime de perigo abstracto, no que ao nosso caso se refere;
Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»[13]);
Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[14];
Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante);
Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões).

Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência:
ü Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos.

As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro.
ü Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo.
ü Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima.
ü Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”., “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido.
ü Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés.
ü Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro».

Aludamos ainda ao seguinte:

Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.

O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.

É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade.

Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.

Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo nº 662/13.9GDMFR).

Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.

Aqui chegados, diremos que o crime de violência doméstica, pelo menos de forma residual, constitui também um crime específico próprio, justificando a subsunção de algumas condutas que não encontrariam tutela em sede dos demais tipos de crime previstos no nosso Ordenamento.

Neste aspecto, Taipa de Carvalho destaca, “situações de maus tratos psíquicos (como, p. ex., humilhações, ameaças não abrangidas pelo art. 153º, ou o chamado “assédio moral”) que, embora possam in se não configurar uma autónoma infracção”, podem configurar, “quando reiteradas, um mau trato psíquico abrangido pela ratio e pela letra do art. 152º”.

Nestes casos, é, portanto, “a especial relação – que, no presente ou no passado, existe ou existiu entre o agente a vítima – que fundamenta a ilicitude e a punição do agente”.

Também Nuno Brandão fala de microviolência continuada, onde «a opressão de um dos (ex-) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação» (cfr. Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno - Manual pluridisciplinar CEJ/CIG, 2ª edição, 2020, Coordenação de Paulo Guerra e Lucília Gago).

Em termos subjectivos, caracterizou o tribunal o dolo do arguido como directo.

No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica.

E explicou porquê.

Este homem, já condenado por igual delito no passado, veio a reiterar esse comportamento ameaçador para com a sua ex-mulher, enviando uma aterradora mensagem por Whatsapp à filha CC que logo a deu a conhecer à sua destinatária principal (a mãe).

Dizia a mensagem:
· “…devia ter partido os cornos à tua mãe…
· ainda vou a tempo…
· não me sai da cabeça a grande filha da puta que é…
· meteu-me na cadeia não me esqueço…
· e ainda por cima mete-se na cama com todos….
· grande filha da puta vou-lhe foder a vida ou não me chamo AA…ela que vá à policia mostrar as mensagens».

E note-se que esta mensagem foi enviada a uma sua ex-mulher (cfr. facto provado nº 1 e artigo 152º, nº 1, alínea a) do CP], tendo sido do imediato conhecimento da filha de ambos, então com 13 anos de idade (cfr. facto provado nº 2), estando assim, perfectibilizada a agravação do nº 2, alínea a) do artigo 152º do CP.

Damos o nosso pleno assentimento à tese do tribunal quando, atendendo à valoração global dos factos, entende que o arguido incorreu na prática do crime pelo qual veio a ser condenado, porquanto se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime em causa.

Voltamos ao Mº Juiz de ...:

«Embora esteja em causa um único ato, a realidade é que o mesmo foi perpetrado num contexto muito particular, na medida em que foi levado a cabo pouco tempo depois da extinção de uma pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de violência doméstica sobre a aqui assistente (17.10.2021) e depois de ter sido sujeito a outro julgamento por factos de semelhante natureza.

Não está aqui em discussão uma simples mensagem isolada, mas antes, e ao invés, uma conduta similar a outras anteriores por parte do arguido e que em muito condicionaram a assistente, enquanto mulher, mãe e enquanto pessoa, obrigando-a, além do mais, a ter que mudar diversas vezes de casa, com as suas filhas, e a mudar as suas rotinas diárias».

Está aqui em causa o envio de uma mensagem por uma rede social, mensagem essa que chegou ao conhecimento da sua real e definitiva destinatária – a ex-mulher do arguido, ora assistente BB.

Já foi decidido, por aresto da Relação do Poro, datado de 22/5/2013 (Pº 74/07.3PASTS.P1) que:
1. «As mensagens, depois de recebidas, deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência, em nada se distinguindo de uma carta remetida por correio físico.
2. Tendo sido já recebidas, se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador ou no telemóvel, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo, visto o disposto no art. 194º, n.º 1 do C. Penal.
3. A junção voluntária aos autos feita pela pessoa que recebeu a mensagem, dispensa a intervenção de qualquer autoridade judiciária, designadamente do JIC».

Nas mensagens enviadas à assistente, na sequência de outro anterior quadro idêntico em termos de ilicitude (pelo qual foi devidamente condenado em 2018 – Pº 60/17....), o arguido proferiu declarações ou usou expressões lesivas da honra e consideração da assistente, tendo também, no último caso, proferido frases, que, em bom rigor, consubstanciam a declaração do propósito de a ofender corporalmente ou mesmo de lhe tirar a vida (na sequência de outras similares dadas como provadas no Pº 136/19...., no qual foi dado como inimputável em termos criminais).

No caso concreto em apreço, estamos confrontados com uma conduta plural, quanto ao número de ocorrências em que se desdobra e quanto aos bens jurídicos vulnerados (difamações e ameaças), mas uma pluralidade reduzida à sua expressão mais simples, algo no limite, um atentado à dignidade pessoal da assistente, no quadro da relação pós-conjugal que a liga àquele, suficientemente relevante (ainda que, neste domínio, possam ocorrer e ocorram efectivamente situações muito mais graves), que constituiu a «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal previsto no nº 1 do art. 152º do CP e os tipos de crime que tutelam especificamente certos bens jurídicos pessoais.

Há muito que está ultrapassada a tese de que o conceito de maus-tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões, intoleráveis, brutais e pesadas.

O crime de Violência Doméstica pode, desde logo, entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afetação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto).

Recorde-se, a propósito, que o crime em causa reconduz-se a um crime de execução livre susceptível de abarcar condutas dirigidas, prima facie, a bens tão diversos como a integridade física, a liberdade, a autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada.

Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica.

São estes os casos dos crimes[15] de:
· Maus tratos (152.º-A, n.º 1, no caso de o agente coabitar e ser titular da guarda da vítima),
· Ofensa à integridade física simples (artigo 143.º),
· Ofensa à integridade física qualificada [apenas a modalidade do artigo 145.º/1 a)],
· Ameaça, simples e agravada (artigos 153.º e 155.º/1),
· Coação (artigo 154.º),
· Perseguição (artigo 154.º-A)[16],
· Sequestro (apenas a modalidade do artigo 158.º/1),
· Coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163.º/2),
· Lenocínio (apenas a modalidade do artigo 169.º/1),
· Fraude sexual (artigo 167.º),
· Lenocínio (artigo 169.º),
· Importunação sexual (artigo 170.º),
· Abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 172.º/3),
· Abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172.º/2 e 3),
· Atos sexuais com adolescentes (artigo 173.º),
· Recurso à prostituição de menores (artigo 174.º),
· Aliciamento de menores para fins sexuais (artigo 176.º-A),
· Difamação (artigo 180.º),
· Injúria (artigo 181.º),
· Violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190.º),
· Introdução em lugar vedado ao público (artigo 191.º),
· Devassa da vida privada (artigo 192.º),
· Violação de correspondência ou de telecomunicações (artigo 194.º) e
· Gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º).

A relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e estes outros tipos de crime menos graves redunda numa situação de concurso aparente com a prevalência da norma do artigo 152.º do CP, seja mercê de uma relação de consunção (realização de um juízo valorativo material que conclua pela maior abrangência do conteúdo de ilicitude do tipo do artigo 152.º), seja por via de uma relação de especialidade (realização de juízo lógico-formal que conclua pela maior amplitude do tipo do artigo 152.º pela verificação de elementos não contemplados pelo tipo preterido)[17].

Nem se venha também dizer que o tribunal não deu como provado, senão o dolo genérico da ameaça e da difamação (cfr. facto nº 8).

Fazemos aqui nossas as dissertações do hoje Juiz Conselheiro Heitor Vasques Osório que, no aresto desta Relação, datado de 12/4/2018 (Pº3/17.6GCIDN.C1):

«Pretende, no entanto, o arguido que o mesmo não sucede com o tipo subjectivo do mesmo crime, pois não consta da acusação e também não consta dos factos provados da sentença que tenha agido voluntariamente, com conhecimento de que as suas condutas são aptas a ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima.
Vejamos.

Os §§ 20 e 21 da acusação têm a seguinte redacção, respectivamente:

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida, bem como de molestá-la fisicamente e de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, e não se abstendo de praticar os actos descritos na residência dela;

- Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

A matéria do primeiro destes parágrafos, com ligeiras alterações, passou para o ponto 16 dos factos provados da sentença, que tem a seguinte redacção:

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida, bem como de provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal resultado, como efectivamente causou, e não se abstendo de praticar os actos descritos na residência de ambos.

A matéria do segundo parágrafo transitou, ipsis verbis, para o ponto 17 dos factos provados da sentença.

Já sabemos que o dolo é o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.

O elemento intelectual do dolo – o conhecimento do facto – traduz-se na representação pelo agente, no momento em que pratica a acção, de todos os elementos do tipo de ilícito objectivo, sendo necessário e suficiente o conhecimento tido por indispensável para que a sua consciência ético-jurídica possa solucionar, correctamente, a questão da ilicitude da conduta, sendo que, relativamente aos elementos normativos do tipo, é irrelevante o desconhecimento do seu exacto sentido e qualificação, bastando o conhecimento correspondente ao cidadão comum, a valoração paralela na esfera do leigo.

O elemento volitivo do dolo – a vontade de praticar o facto – significa que, além daquele conhecimento, o agente dirige a sua vontade para a realização do tipo de ilícito objectivo ou, pelo menos, que a sua vontade se conforma com tal realização. E aqui, perante as várias atitudes psicológico-volitivas do agente relativamente à realização do tipo objectivo, a lei distingue entre dolo directo (art. 14º, nº 1 do C. Penal), dolo necessário (nº 2 do mesmo artigo) e dolo eventual (nº 3 do mesmo artigo).

Já numa outra perspectiva, podemos distinguir entre dolo genérico, a intenção de cometer o facto no sentido do conhecimento e vontade de o praticar, e o dolo específico, a intenção de cometer o facto, associada a um determinado fim visado pelo agente (nesta caso, a lei usa, habitualmente, a expressão, «com intenção de …»).

No caso da violência doméstica, o tipo descrito no art. 152º, nº 1, a) do C. Penal não exige a verificação de um dolo específico, sendo suficiente para o preenchimento do tipo subjectivo o dolo genérico, traduzido no conhecimento e vontade de infligir maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge, com consciência da sua censurabilidade desta conduta. A este propósito, escreveu Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 520) ser necessário o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica e o conhecimento e vontade da conduta (caso, p. ex., das ofensas sexuais) e do resultado (caso, p. ex., das ofensas corporais), consoante os comportamentos subsumíveis ao âmbito teleológico-normativo do art.152º configurem tipos de crimes formais ou materiais.

Já sabemos que a lei não define o conceito de maus tratos, físicos ou psíquicos, mas que na categoria dos maus tratos psíquicos se devem incluir, além do mais, as injúrias e as ameaças.

Preenchendo as repetidas condutas do arguido o tipo objectivo dos crimes de injúria e de ameaça, face ao que supra se deixou dito, parece-nos evidente que o dolo relativo a estes tipos de ilícito teria, necessariamente, que constar, como consta, quer da acusação, quer da factualidade provada da sentença.

Integrando as injúrias e as ameaças o conceito de maus tratos psíquicos o dolo de injuriar e o dolo de ameaçar significa então, lógica e necessariamente, o dolo de maltratar psiquicamente.

Com ressalva do respeito devido por opinião diversa, não existem fórmulas sacramentais para definir o dolo da violência doméstica, nem este tem que ser, necessariamente, descrito por referência ao bem jurídico tutelado, pois este apenas orienta a interpretação do tipo em questão.
Na verdade, a afirmação do dolo não exige a consciência reflexiva. Queremos com isto significar que o agente tem que conhecer que injuria e ameaça e portanto, que maltrata, e tem que querer injuriar e ameaçar e portanto, querer maltratar. Pode, porventura, até saber e querer que a relação de domínio que exerce sobre a vítima é apta a afectar a saúde física, psíquica e moral desta e, por este meio, a sua dignidade mas, caso assim não suceda – muitas vezes não o saberá, quanto mais não seja, por meras razões culturais – nem por isso deixará de ter actuado dolosamente.

Acresce que a relação de domínio que vimos referindo será sempre uma conclusão de facto a extrair da imagem global do facto dada pelas condutas concretas em causa.

Em suma, não existindo, repetimos, fórmula sacramental e mais ou menos estanque, para descrever o dolo da violência doméstica, a circunstância de não constar dos factos provados da sentença recorrida que o arguido também sabia e queria ofender a saúde psíquica e emocional da vítima e a sua dignidade, ou segmento semelhante, não significa que não se tenha por preenchido o tipo subjectivo do crime, através da matéria de facto levada aos pontos 16 e 17 dos factos provados, na medida em que, referindo-se tal matéria ao dolo de injuriar e ao dolo de ameaçar, lógica e necessariamente, se refere também ao dolo de maltratar psiquicamente.

Correcta é, portanto, a qualificação jurídica dos factos provados feita na sentença em crise».

Aplicamos esta tese, sem uma vírgula sequer a mais, ao nosso caso, assente ainda que o tribunal acrescentou, ao dolo do arguido exposto no facto nº 8, as circunstâncias dos factos nºs 11,12 e 13 que dão uma imagem mais global do pavor em que passou a viver – voltou a viver - esta ex-mulher do arguido, receando males maiores.

O lastro de ilicitude deixado pelo seu comportamento passado e que o fez autor de um crime de violência doméstica no Pº 60/17 estende-se ao evento dos nossos autos, reacendendo uma chama que, no fundo, nunca esteve, real e definitivamente, apagada.

Damos, pois, o nosso acordo à subsunção jurídica feita pelo tribunal recorrido, assente que estamos muito longe de considerar, como o faz a defesa, que estes comportamentos têm apenas abrigo penal nos crimes menos graves da difamação e da ameaça, antes a tendo, a nosso ver, à luz da análise global da atmosfera que se foi vivendo entre este homem e esta mulher, tóxica q.b., na categoria mais ampla da «violência doméstica, devido a comportamentos atribuídos ao elemento masculino do casal (pelos quais já foi julgado em tribunal no passado).

Aqui podemos afirmar que a conduta do arguido representa – continua a representar - um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima (cfr. factos provados nºs 11-13).

Logo, segundo os critérios acima expostos, estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP, tendo como vítima a sua ex-companheira.

O MP nesta Relação invoca que:

«Das plúrimas discussões teóricas e jurisprudenciais (e releia-se o que acima se escreveu sobre isso) resulta unânime que um dos elementos caracterizadores do crime de violência doméstica é o de que a acção do agressor - v.g. os maus-tratos psíquicos infligidos - esteja associada a uma posição de controlo ou de dominação que pretende exercer sobre a vítima e da qual decorre uma maior vulnerabilidade desta, o que na presente situação manifestamente não acontece, considerando, desde logo, esse longo tempo decorrido em vidas separadas e, também, a condição física e psíquica do condenado. Poderão ter sido cometidos outros crimes - v.g. a difamação e a ameaça -, mas não o de violência doméstica».

Discordamos.

Embora separados, continua a haver uma ligação entre este homem e esta mulher, a tal ponto que o legislador parece continuar a tutelar o próprio relacionamento entre casais divorciados, tanto mais que o normativo em causa estendeu a cobertura legal aos ex-cônjuges, sendo aqui absolutamente irrelevante a condição física do arguido (já não o será a condição psíquica, como é bem de ver, mas, no nosso caso, o arguido foi considerado imputável em termos criminais, arredando-se a aplicação do artigo 20º do CP, nada tendo a defesa trazido aos autos que possa colocar em causa essa conclusão aposta nos factos provados nºs 8 e 14 a 18).

Pode existir controlo e dominação mesmo entre casais separados de facto ou divorciados, mesmo após alguns anos passados sobre a ruptura.

E diga-se que a violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em tantos casos como este em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de homens que tudo fazem para diminuir as parceiras ao nível do «objecto», vilipendiando-as no seu ânimo e na sua auto-estima.

Ao contrário do que se sustenta em recurso, os factos provados e as circunstâncias em que foram praticados (face à natural ligação entre estes factos e os julgados em dois anteriores processos em que figura o AA igualmente como arguido, tendo como vítima a mesma sua ex-mulher), são reveladores de uma especial gravidade ou crueldade por parte deste agente, existindo um específico desvalor da sua acção, capaz de agravar a sua conduta nos termos do nº 2 do artigo 152º (a filha menor de 13 anos é o receptáculo directo e imediato destas mensagens tão cruéis dirigidas à sua mãe).

Não se duvida que a assistente tinha conhecimento da doença do seu ex-marido (sabia com certeza que o seu ex-marido até tinha sido declarado inimputável no Pº 136/19) mas o medo tem destas coisas[18] - teima em instalar-se, traumatizados que estamos por condutas ilícitas anteriores que marcaram toda uma nossa vida conjugal.

Nem se diga que o arguido era incapaz, mercê do seu estado de saúde, de amedrontar esta mulher.

O facto de estarem ambos a viver em locais distantes um do outro – e o tribunal deixa escrito na fundamentação da pena que «não existe notícia de qualquer contacto presencial com a assistente há mais de cinco anos» - não impede que o achincalhamento da pessoa da BB, por parte do arguido, possa continuar.

Como bem lembrou o tribunal, a propósito da fundamentação da não prova de alguns dos factos da contestação (com bold de nossa autoria):

                «Já no que concerne ao facto de “o arguido nunca poderia fazer mal à vítima atendendo à sua condição físico-motora”, pois bem, relativamente a este concreto “facto”, poder-se-ia escrever muita coisa, todavia, nunca sem incorrer no risco de entrar, inevitavelmente, no campo da especulação.

                Todavia, aquilo que se apresenta incontroverso para este Tribunal é a afirmação do arguido a transmitir à sua filha de 13 anos de idade que ia “foder a vida” da mãe (aqui vítima) ou que não se “chamava AA”.

                Como é que o iria ou pretendia fazer, não integra tarefa do Tribunal, embora, como é sabido, um crime, incluindo o crime de violência doméstica, não depende da presença física do agente e da vítima, podendo ser praticado à distância e eventualmente com recurso a terceiras pessoas.

                Contudo, como se disse, não constitui, com o devido respeito, tarefa do Tribunal procurar desvendar ou sequer especular como é que o arguido pretenderia levar a cabo os seus desígnios, em todo o caso, aquilo que se nos afigura irrefutável, é que a condição físico-motora do arguido não constitui, nem constituiu, por si só, motivo suficiente para afirmar que o mesmo, em momento algum, poderia fazer “mal” à vítima (sobretudo psicológico), tal como, aliás, o presente caso constitui um bom exemplo disso mesmo, ao ameaçar a vítima por mensagem remetida diretamente para o telemóvel da filha e a apodá-la de “grande filha da puta” e afirmar que se metia “na cama com todos” e que lhe ia “foder a vida” ou não se chamava AA.

                Isto é, a sua condição clínica não o impediu de fazer aquilo que fez e de, no próprio exame pericial, ter referido ao Exmo. Sr. Perito que “estava arrependido e que não as voltaria a cometer”, sem, no entanto, em momento algum, ter afirmado, como o fez agora em contestação, que a sua condição físico-motora não lhe permitiria fazer mal à vítima.

                Os factos não provados sob os n.º11 e 12 (isto é: 11) O arguido é dependente de terceiros para todos os seus atos diários - correspondente ao artigo 28.º da contestação – e que 12) O arguido não sai da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe, pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima - correspondente ao artigo 29.º da contestação) encontra a sua resposta no já referido anteriormente, pois apesar de resultar do relatório pericial que o arguido carece do apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora, a realidade é que evola igualmente do relatório pericial que essa dependência não é total, pois que aí se escreve que “o examinado desempenha algumas atividades de vida diárias de forma independente já que apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado”.

                O facto não provado sob n.º12) (que “o arguido não sai da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe, pelo que, nunca o arguido poderia ser uma ameaça para a vítima”), além do que já se registou, a resposta a este “facto” fica igualmente a dever a sua fundamentação à ausência de prova mais consistente nesse sentido, pois tal como se acabou de assinalar, o relatório pericial apenas refere que o arguido carece de apoio de terceiros na maioria das atividades que requeiram coordenação motora, mas tal não significa, por si só, que o arguido não consiga sair da sua cama, da sua cadeira, do seu quarto, sem a ajuda da sua mãe».

               

Nem sequer se diga que inexiste tipicidade no comportamento criminal do arguido (à luz do crime do artigo 152º do CP) pelo facto de o tribunal ter assim dissertado na fase da determinação da medida da pena, em termos das necessidades de prevenção especial:

«Já as necessidades especiais, e tendo por referência outros casos de semelhante natureza, entende-se que apesar do arguido ter um antecedente criminal da mesma natureza, a realidade é que ainda assim se considera que as necessidades de prevenção especial não são, neste concreto caso, e nesta concreta fase temporal, particularmente elevadas, pois não atingiram um estalão de gravidade tal semelhante ao de outros casos e em que, não raras as vezes, o agressor põe em risco a própria vida da vítima.

Neste concreto caso, está em causa o sentimento de segurança da assistente e o direito de esta não viver com receio das condutas do arguido e muito embora a vítima já tivesse sido ameaçada de morte (por factos já apreciados e julgados noutro processo), a realidade é que não resultou provado que o arguido alguma vez tivesse empreendido algum ato que pudesse indiciar que tivesse sido sua intenção tirar efetivamente a vida à assistente.

A tudo isto, acresce naturalmente a condição clínica do arguido que tornam improvável que este possa (ou sequer consiga) atentar contra a integridade física ou contra a vida da assistente, tanto mais que se encontra a residir a cerca de 500 quilómetros de distância (pois reside em ... e a assistente no concelho ...)».

Crime há, portanto.

Estamos perante, lembremos, um crime de perigo abstracto[19], assente, na linha do doutrinado por Nuno Brandão, profusamente citado na sentença recorrida, que será indiferente para o preenchimento do tipo a alegação e prova de que a conduta do agente efetivamente lesou ou sequer colocou em perigo o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, presumindo a lei, de forma inilidível, tal facto.

A pena é que já não será tão grave, como à partida, poderia ser, caso houvesse mais necessidades preventivas.

Como tal, e sem necessidade de mais argumentos, aderimos com facilidade à subsunção jurídico-penal feita pelo tribunal recorrido, entendendo que, no caso concreto, com base no quadro global apurado, só poderia este homem ser de novo condenado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na sequência de ilicitude passada e de condenação passada, aí residindo o desvalor do seu comportamento, elevado à gravidade do tipo do artigo 152º do CP (agravado pela intersecção nesta ilicitude com a pessoa de uma criança de 13 anos que a tudo assiste).

3.4. Improcede, assim, todo o recurso, sempre insistente na mesma linha de argumentação, só restando a este tribunal validar a muito bem elaborada sentença condenatória exarada nos autos, não se tendo por violados os normativos, legais e constitucionais, ínsitos na motivação de recurso, assente ainda que, nem de forma subsidiária, é contestada a pena aplicada, a qual temos por correcta e adequada.

                               

                III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em:
· 1º- proceder à alteração da redacção do seguinte facto da sentença recorrida (a sublinhado as alterações):
o Assim, o facto provado nº 11 passará a ter a seguinte redacção:

«11) Em razão dos factos descritos de 1, 4, 5, 6 e 7[20], a assistente sentiu-se humilhada, angustiada e abalada psicologicamente, sentimentos esses agravados pela circunstância dos outros factos de que foi vítima e pelos quais o arguido foi julgado e que a obrigaram, além do mais, a mudar as rotinas diárias e inclusivamente a mudar de casa mais do que uma vez, com as suas duas filhas».
· 2º- julgar improcedente o recurso intentado por AA, mantendo a condenação de 1ª instância nos seus exactos termos.

                Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].


Coimbra, 24 de Abril de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra

Adjunto: Cristina Pêgo Branco

Adjunto: Ana Carolina Cardoso


[1] Isto é, a expressão “refere” serve, salvo melhor opinião, para registar que foi o arguido a “referir” e não o Sr. Perito a concluir.
[2] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[3] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[4] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.

Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.

Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.

Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.

Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.

No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.

Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[5] Não se vê como é que pelos factos nºs 2 e 3 a assistente se deva sentir humilhada e incomodada.
[6] Dito de outra forma: temos entendido que a experiência comum e a normalidade das coisas ensinam que a uma conduta humana objectiva corresponde uma atitude subjectiva em conformidade, a menos que existam indícios concretos de que pode não ser assim, os quais, no caso, não se detectam.
[7] Como bem se deixou exarado no acórdão datado de 22/5/2013 (Pº 74/ 07.3PASTS.P1): «O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.
Emanação da garantia constitucional da presunção de inocência, o princípio in dubio pro reo, enquanto dirigido à apreciação dos factos objectos de um processo penal, leva a que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor do arguido.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 1998/Nov./04 [in BMJ 481/265], “Se, por força da presunção de inocência, só podem dar-se por provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável”.

Desta arte: verificado que se mostre que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.
Vale dizer: «Não tem qualquer sentido falar em violação do princípio “in dubio pro reo”, se do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal recorrido ficou com dúvidas sobre a prática do facto pelo recorrente e solucionou essa dúvida contra ele».
Ou dizer, ainda: a eventual violação do princípio in dúbio pro reo só pode ser aferida em sede de recurso quando da decisão impugnada resulte, de forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tendo chegado a um estado de dúvida “insuperável”, neste estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Se na fundamentação da sentença oferecida pelo Tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

Manifestamente, lida a motivação, resulta, sem sombra de dúvida, que o Tribunal decidiu na firme convicção dos factos, dizer, sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, pelo que improcede o argumento deduzido».
Tal como nesse caso, no nosso não houve quaisquer dúvidas do tribunal.
[8] Em sentido idêntico, ver Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2013, Relatora: Des. Maria do Carmo Silva Dias, Proc. n.º 413/11.2GBAMT.P1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/05/2016, Relatora: Des. Filipa Macedo, Proc. n.º 249/14.9PAPTS.L1-5, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Para o confronto das várias posições, ver e-book “Violência Doméstica – Implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual Pluridisciplinar”, 2.ª Ed., CEJ, dezembro 2020, pp. 127-128, com a inclusão frequente na tipologia de crime de dano, quanto ao bem jurídico.
[10] In “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (especial), 2010, pp. 17-18, disponível em www.julgar.pt. Em sentido concordante, Miguez Garcia e Castela Rio, op. cit., p. 648 e Susana Figueiredo, op. cit., p. 114.
[11] Isto é, presume-se, em função da experiência, que certas condutas são estatisticamente perigosas, proibindo-se por isso a sua prática; o conteúdo do crime esgota-se na conduta e na conduta pensada em abstrato.
[12] Cfr. E-book CEJ/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). 

[13] Escreveu a sentença recorrida: «Com efeito, não obstante, na jurisprudência maioritária, se continuar a entender que, para que se verifique a previsão legal do artigo 152.º do Código Penal, a conduta do agente deve evidenciar um tratamento cruel, degradante ou desumano pela pessoa da vítima ou um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma – o que, demonstra a realidade social, efetivamente sucede muitas das vezes –, a realidade é que o legislador bastou-se na consagração legal do tipo objetivo com a existência de maus tratos/privações/ofensas e o elemento relacional típico».
[14] Seguimos de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de Maria Elisabete Ferreira – “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal.
Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica.
Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma.
A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação.
Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (Inês Ferreira Leite), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (Teresa Morais), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (Taipa de Carvalho, Nuno Brandão, André Lamas Leite), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, o crime de Violência Doméstica.
Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152º, nº 1.
Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública».
[15] Colocando-se a bold os crimes em apreço nos autos, reconduzíveis ao conceito mais amplo de violência doméstica.

[16] No âmbito do crime de violência doméstica, cabem, de facto, também as condutas e comportamentos que causam, inclusivé através do envio de sms, maus tratos psíquicos configurados como stalking (com punição autónoma agora pelo artigo 154º-A do CP, desde 2015, caso não sejam englobadas num contexto mais global de aviltamento da condição da ex-mulher, vítima em causa).

[17] Cfr. Manual de Violência Doméstica, coordenado pelo CEJ e CIG, já aqui referenciado.
[18] «O MEDO vai ter tudo, tudo/Penso no que o medo vai ter e tenho medo/ Que é justamente o que o medo quer…», de Alexandre O´Neill.

[19] A palavra a Susana Figueiredo, Docente do CEJ, no Manual CEJ/CIG:

«(…) O mesmo contexto familiar, para-familiar, ou emocional passou, por opção legal, a não ser considerado, de per se, como “justificador” de quaisquer atos de violência ocorridos no seu seio atenta a sua cientificamente reconhecida danosidade social, mas antes como meio especialmente potenciador da emergência de atos de violência cuja prevenção se optou por realizar num momento de antecâmara da lesão efetiva do bem jurídico tutelado.

Esta constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal. Posição esta que, estamos disso cientes, acarreta uma alteração de paradigma radical (…).

Tal conceção tradicional do núcleo familiar ou parafamiliar está, estamos disso convictos, na origem de uma resistência e hesitação jurisprudenciais no que à caraterização do conceito de “maus tratos” refere, conduzindo à prática de lhe afivelar, no caso de se tratar de um ato isolado, exigências atípicas, quer ao nível do tipo subjetivo (desejo de controlo, de prevalência ou de domínio; intuito de achincalhar, de desrespeitar; ânimo de crueldade; as repristinadas atitudes internas de “malvadez" e “egoísmo”), quer ao nível do tipo objetivo (gravidade e intensidade da ofensa).

Inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente suscetível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152.º, n.º 1.

Tal posição, em nosso entendimento, terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública.

Por outro lado, o previsível alargamento do âmbito de aplicação do artigo 152.º (nomeadamente quanto a atos de violência de pequena magnitude) que tal posição indubitavelmente comporta poderá e deverá ser contrabalançado, quer a jusante, ao nível da fixação da pena (medida concreta da pena; atenuação especial da pena; penas de substituição; juízo concreto de necessidade, adequação e proporcionalidade das penas acessórias às exigências preventivas especiais), quer, a montante, e no plano adjetivo, ao nível do recurso a mecanismo de consenso, oportunidade e diversão como a suspensão provisória do processo uma vez verificados os seus pressupostos especiais para o caso da Violência Doméstica».
[20] Não se vê como é que pelos factos nºs 2 e 3 a assistente se deva sentir humilhada e incomodada.