Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
291/18.0T8GRD-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
CADUCIDADE
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 1410.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O prazo previsto no art.º 1410 do C.C. inicia-se após a transmissão válida do bem objecto do direito de preferência e conta-se a parte da data em que o preferente preterido tomou conhecimento dos elementos essenciais da alienação do bem.
Decisão Texto Integral:




Acordam os Juízes da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de COIMBRA


RELATÓRIO

AA e BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação contra CC, DD e EE, peticionando que:

- sejam os Autores reconhecidos como donos e legítimos possuidores do prédio rústico sito ao ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...09 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...90;

- seja reconhecido aos Autores o direito de preferência sobre o prédio rústico, sito no mesmo lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, substituindo-se aos 2.º e 3.ª Réus na escritura de compra e venda outorgada no Cartório Notarial - ..., em 21-08-2017;

- sejam os Réus condenados a entregarem aos Autores o referido prédio rústico, livre e desocupado;

- seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que o 2.º e 3.ª Réus hajam feito a seu favor em consequência da compra do referido prédio, designadamente o constante da AP. ...62 de 24-07-2017.

Para tanto, alegam, em síntese, que são proprietários do prédio rústico sito ao ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...09 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...90, sendo que tal prédio confina, pelo lado ..., com o prédio rústico sito no mesmo lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, propriedade da 1ª R.

Mais alegam que tiveram conhecimento, por volta do Natal de 2017, que a 1.ª Ré havia vendido o referido prédio aos 2.º e 3.ª Réus, pelo preço de 2.500,00€, mediante escritura de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de ..., em 21-08-2017, sem que lhes tivesse sido concedido o direito de preferirem nesta venda, não gozando por sua vez, os 2.º e 3.ª Réus deste direito, por não serem proprietários de qualquer prédio confinante ao da 1.ª Ré.


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Regular e pessoalmente citada, a 1.ª Ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção, alegando que a venda do terreno ocorreu no ano de 1992, data em que lhe foi pago o preço da aquisição pelos demais RR. e não em 2017.

Os 2.º e 3.ª Réus, regular e pessoalmente citados, apresentaram contestação, invocando que adquiriram o prédio em questão em 1992, embora não tenham celebrado a respetiva escritura e que desde essa data têm exercido todos os atos de posse sobre o terreno e todos os direitos e obrigações próprias de proprietários.

Alegam ainda, a inexistência deste direito de preferência, por deterem melhor preferência e a excepção de prescrição do exercício deste direito.

Em reconvenção peticionam o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa.


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Notificados desta contestação, vieram os AA. apresentar réplica, na qual deduzem a excepção de abuso de direito pelos 2º e 3º RR e impugnação do pedido reconvencional formulado.

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Após foi proferido despacho saneador no qual, admitido o pedido reconvencional, se fixou o objecto do litígio e os temas de prova, relegando o conhecimento das excepções invocadas para decisão final.

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Realizada audiência de julgamento foi, após, proferida sentença que julgou “parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:

- Declara-se que o prédio rústico sito ao ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...09 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...90, pertence aos Autores AA e BB.

- Reconhece-se aos Autores o direito de preferência na venda do prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89;

- Declara-se a caducidade do referido direito e, em consequência, absolver os Réus do demais peticionado.


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B) Julga-se procedente o pedido reconvencional apresentado pelo 2.º e 3.ª Réus e, em consequência:

- Declara-se que o prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, pertence aos Réus DD e EE.


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C) Condena-se os Autores e os Réus, no pagamento das custas processuais, na proporção de 80% para os Autores e 20% para os Réus.”

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Inconformados com esta decisão, impetraram os AA. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1ª A sentença recorrida, na parte que julgou improcedente a acção, incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto, procedendo a uma inadequada subsunção dos factos ao direito, com o consequente erro na interpretação e aplicação do direito, além de enfermar de vícios que geram a nulidade da mesma.

2ª O objecto do litígio na presente acção reconduz-se à questão de saber se caducou ou não o direito de preferência na venda do prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89.

3ª Impõe-se saber se com a prolação da decisão tomada pelo Meritíssimo Juiz a quo, o qual julgou procedente o pedido reconvencional e declarou que o mesmo prédio rústico pertence aos RR. DD e EE, não estamos perante a nulidade do processado e da sentença, por violação da Lei (erro de julgamento na interpretação e aplicação da lei (art. 639º do CPC)),

4ª De direito, a matéria das Sociedades de Advogados encontra-se actualmente regulada, por um lado, no quadro mais geral das denominadas “sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais” (quadro não específico das sociedades de Advogados); e, por outro lado, no Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).

5ª Ao não ter sido validamente constituída e registada nos termos da lei, jamais poderão ser conferidos quaisquer mandatos judiciais, com o conteúdo e alcance do mandato previsto no art. 44º do CPC, àquela pretensa entidade “L...”;

6ª A qual, consequentemente, jamais poderia representar, quem quer que seja, ou fazer-se representar, por quem quer que seja, de alguma forma em Tribunal.

7ª O Meritíssimo Juiz a quo, violando o regime estabelecido para a verificada falta de procuração nos autos, mandato, portanto, regulado no art. 48º e ss. do CPC, e sendo certo que não se estava perante um caso urgente, permitiu a continuação da prática de actos processuais manifestamente ilegais.

8ª Com todo o respeito, que é muito, parece-nos que a urgência do Meritíssimo Juiz a quo se prendia com o resultado do “movimento judicial” à data dos factos (!!!)

9ª A douta sentença a quo julgou procedente o pedido reconvencional, que declarou que o prédio em causa nos presentes autos pertence aos RR. DD e EE, por usucapião, está em manifesta contradição com tudo aquilo que pelos próprios 2º RR. foi declarado na escritura de compra e venda, configurar- se toda a reconvenção dos RR. de venire contra factum proprium.

10ª A sentença recorrida decidiu a acção com base em factos que não estão invocados nos articulados, e sobre os quais não houve possibilidade de se pronunciarem, pelo que, foi violado o art. 3º, n.º 3, do CPC.

11ª De direito, dispõe o art. 334° do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

12ª A este respeito, chamamos a atenção dos Venerandos Juízes Desembargadores desta Relação, para este olhar critico, que aqui procuramos realçar, e que choca existir um entendimento diferente do aqui defendido.

13ª Qualquer outro entendimento viola os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, plasmados nos arts 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.

14ª A exposição das razões de facto sobreleva a das razões de direito, visto o juiz só poder servir-se, em regra, dos factos alegados pelas partes (art. 5º, n.ºs. 1 e 2, do CPC), e não estar, pelo contrário, sujeito às alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3, do CPC).

15ª Na sua p.i., os AA., ora aqui recorrentes, alegaram factos conducentes à acção de preferência que, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 1380º do CC, e não outros.

16ª O art. 18º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 384/88, de 25/10, veio alargar o direito de preferência sobre prédios rústicos confinantes, abolindo o requisito da unidade de cultura como área mínima de qualquer dos prédios para a atribuição desse direito de preferência.

17ª O n.º 6 do já referido art. 1380º, enuncia que é aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º do CC, com as necessárias adaptações.

18ª Atento o disposto no artigo 416º do mesmo diploma, aplicável por remissão daquele n.º 6 do art. 1380º, querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto da venda e as cláusulas do respectivo contrato.

19ª O art. 1410º atribui ao confinante a quem não se dê conhecimento da venda o direito de haver para si a quota alienada, contando que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da acção.

20ª Os AA., ora aqui recorrentes, sempre se encontram a exercer o seu direito - propositura da presente acção - dentro do prazo conferido pelo art. 1410º, uma vez que a escritura que titulou o negócio foi realizado há menos de seis meses.

21ª São, pois, os seguintes os pressupostos do direito real de preferência do proprietário confinante: a) que os dois prédios sejam rústicos e destinados a cultura; b) que o preferente seja dono de um prédio confinante com o prédio alienado, e; c) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.

22ª Sendo que são requisitos da acção de preferência: a) que o obrigado à preferência não tenha cumprido a obrigação de comunicação imposta pelo art. 418º do CC, isto é, que ao confinante preferente não tenha tido dado conhecimento da projectada venda; b) que o preferente intente a acção no prazo de seis meses a contar do conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e; c) que o preferente deposite o preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da acção;

23ª Estão, pois, preenchidos todos os pressupostos do direito de preferência dos AA., ora aqui recorrentes, na aquisição do prédio vendido, assim como os requisitos da acção de preferência, nos termos dos factos alegados.

24ª Atenta a posição das partes, que nos articulados definiram os termos da acção, o Tribunal a quo, aquando do saneamento dos autos, considerou ser este prazo de caducidade (de seis meses) em que a presente acção também se focava

25ª Com total surpresa, a sentença recorrida decide a acção com base em factos que os AA., ora aqui recorrentes, não tinham invocado nos seus articulados, e sobre os quais não tiveram sequer a possibilidade de se pronunciar, no exercício do contraditório que legalmente lhe assiste, constatando-se a final que, indo para além daquilo que a os AA., ora aqui recorrentes, alegaram, o cumprimento do prazo de seis meses após a tal escritura de compra e venda.

26ª O Tribunal a quo proferiu, assim, uma decisão surpresa, o que lhe está constitucionalmente vedado, ao decidir matéria não alegada pelas partes e sem que aos AA., ora aqui recorrentes tenha sido dada a possibilidade de se pronunciar, o que viola frontalmente os princípios do dispositivo e do contraditório, conhecendo de questões que não podia ter conhecimento, o que gera a nulidade da sentença.

27ª É pacífico que o princípio do dispositivo (art. 5º do CPC), ainda que mitigado com as mais recentes alterações processuais, impede o juiz de se substituir às partes no delinear e no configurar da lide.

28ª Ocorreu a violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão surpresa, representa uma nulidade processual - que expressamente se invoca - pois que a omissão influiu na decisão da causa (art. 195º, n.º 1, do CPC).

29ª Por outro lado, não podendo o juiz conhecer de factos e/ou excepções não alegadas pelas partes na exclusiva disponibilidade destas (art. 608º, n.º 2, do CPC), ao conhecer das questões supra referidas, o juiz conheceu de questões que não podia tomar conhecimento e, nessa exacta medida, a sentença é nula – nulidade que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos (artº 615º, n.º 1, al. d), do CPC).

30ª Ocorreu erro de julgamento da matéria de facto (art. 640º do CPC).

31ª O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter dado como provado os pontos que deu, e ao ter dado como não provado as alíneas que deu.

32ª Tais factos são infirmados, desde logo, pelos depoimentos das testemunhas, mas, sobretudo, pela prova documental, que o Tribunal a quo não valorou adequadamente.

33ª Como resulta da motivação da sentença recorrida, nenhuma das testemunhas dos RR., ora aqui recorridos, se pronunciam CONCRETAMENTE, e muito menos lograram fazer prova, acerca dos caracteres da posse – pública, pacífica, de boa-fé – que alegam.

34ª Factos que deveriam, então, ter sido julgados ao contrário, para a boa decisão da causa.

35ª Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, a A./recorrida não logrou fazer prova do que alegou.

36ª Resta que os AA., ora aqui recorrentes, seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...09 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...90, prédio que confina com o prédio rústico vendido pela 1ª Ré aos 2.º e 3.º Réus.

37ª Resulta da repartição do ónus da prova que ocorreu erro de julgamento na interpretação e aplicação da lei (art. 639º do CPC).

38ª Com o respeito devido, é firme convicção da ora aqui recorrente que a sentença recorrida errou na interpretação e valoração dos factos, procedeu a uma inadequada subsunção dos factos ao direito, e consequentemente incorreu em erro na interpretação e aplicação da lei.

39ª Ao decidir de modo diverso, a sentença recorrida, além de outros, os arts. 577º, al. i), 580º, n.º 2, 581º e 621º do CPC; arts. 334º do CC e 577º, al. i), 580º, n.º 2, 581º e 621º do CPC; arts. 3º, n.º 3, 5º, n.ºs 1 e 3, e 615º, n.º 1, al. d), do CPC; arts. 639º e 640º do CPC, os quais deverão ser interpretados nos termos preditos.

NESTES TERMOS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO, JULGADO PROVADO E, POR VIA DISSO, PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA E SUBSTITUINDO-A POR DOUTO ACÓRDÃO QUE JULGUE TOTALMENTE IMPROCEDENTE A ACÇÃO DE PREFERÊNCIA, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.

ASSIM DECIDINDO, SERÁ FEITA JUSTIÇA!


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Foram interpostas contra-alegações pelos RR., tendo concluído da seguinte forma:

“A – Os Recorridos estão validamente representados nos autos, pelo que não existe qualquer nulidade do processado e da sentença, por violação da Lei (erro de julgamento na interpretação e aplicação da lei. Mas tendo sido apresentada procuração através da qual os RR/Recorridos ratificam todo o processado pelo referido advogado no processo n.º 291/18...., que corre termos no Juízo de Competência Genérica ... – Tribunal Judicial da Comarca ..., ficou sanada essa hipotética falta;

B - Os recorridos DD e EE compraram e pagaram a totalidade do preço à Recorrida FF, passando a exercer a posse pública, pacífica e de boa fé sobre o prédio em causa nos autos há mais de 20 anos, - desde finais de 1992, - cf. nºs 4., 5. e 6. dos factos dados como provados. Pelo facto de terem realizado apenas a escritura de compra e venda 26 anos depois, não invalida esse negócio, nem tão pouco extingue os caracteres da posse e consequente direito de usucapir dos recorridos DD e EE.

Inexiste pois, abuso de direito, por comportamento contraditório – venire contra factum proprium (arts. 334º do CC e 577º, al. i), 580, n.º2, 581º 621º do CPC), conforme invocado pelos Recorrentes.

C – É absolutamente inequívoco que a Sentença a quo em momento algum se pronunciou por factos e pedidos não alegados e discutidos nos autos, antes fê-lo em respeito pelo alegado e peticionado pelos AA. e RR., absolvendo e condenado as partes nos termos e com respeito pela prova produzida, pelo que é infundada a invocação da “decisão surpresa”. Só estaríamos perante uma decisão surpresa se, a mesma, comportasse uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando lhes não era exigível que a houvessem perspetivado no processo. Objectivamente não é o caso dos presentes autos, não existiu violação dos princípios do dispositivo e do contraditório e não foi proferida de uma decisão surpresa pelo que, também por aqui, deve improceder o recurso em apreciação.

D – O recurso apresentado pelos AA. foi extemporâneo pois, sabendo-se que o objeto do recurso é definido essencialmente pelas suas conclusões, incluindo nos casos em que seja deduzida a impugnação da decisão da matéria de facto, pese embora os Recorrentes, aludam na motivação do seu recurso de apelação aos depoimentos testemunhais que foram prestados, não suscita nas conclusões ou sequer na respetiva motivação a alteração de qualquer segmento da decisão da matéria de facto, não aproveita ao recorrente a extensão do prazo prevista no n.º 7 do art. 638.º do CPC, sendo, por isso, extemporâneo o recurso que foi apresentado para além dos 30 dias previstos no n.º 1 do art. 638.º.

Na verdade, os recorrentes só poderiam beneficiar do prazo adicional de 10 dias se tivessem fundamentado o seu recurso na impugnação da prova gravada, o que não aconteceu. - cf o disposto no n.º 7 do art. 638.º do CPC.

Por falta desse fundamento/requisito, na data de apresentação do recurso, o mesmo era já extemporâneo.

E - Os Recorrentes, alicerçando o seu recurso numa “hipotética” impugnação da matéria de facto dada como assente, não cumpriram o ónus imposto nas alíneas a) a c) do Art.º 640.º, do Código de Processo Civil. É consabido que, sob pena de rejeição, os ónus do art.º 640º, do CPC, devem ser observados pontual e rigorosamente, por forma a evidenciar os pretensos erros, os respectivos fundamentos e a possibilitar a apreciação destes e eventual correcção daqueles pelo Tribunal de recurso. Contentando-se os Recorrentes a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, e isto relativamente às questões de facto que diz impugnar, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1 do artigo 640º, do CPC. Os Recorrentes também não explicam quais os fundamentos da decisão recorrida que estão em oposição nem explicam que tenha ocorrido alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Não vislumbramos tal vício na decisão recorrida, nem os Requerentes explicam, como possa considerar-se verificada para defenderem que existiu erro de julgamento da matéria de facto (art.640º do CPC), nem quais os meios probatórios (constante do processo) que impunham decisão diversa da recorrida quanto aos referidos pontos e alíneas impugnadas.

Improcedente, deve também ser considerada esta matéria recursiva.

F – Para “fundamentar” o seu recurso quanto à existência de erro de julgamento na interpretação e aplicação da lei, os Recorrentes limitam-se dizer que “… a sentença recorrida errou na interpretação e valoração dos factos, procedeu a uma inadequada subsunção dos factos ao direito, e consequentemente incorreu em erro na interpretação e aplicação da lei.” Determinam esse sentido, exclusivamente, na sua “firme convicção”.

Venerandos Juízes Desembargadores, as convicções pessoais dos Recorrentes, sem que estejam suportadas por fundamentação de facto e de direito é matéria irrelevante para os efeitos que pretendem, pelo que deve, também nesta parte, improceder o recurso sob vossa superior apreciação.

Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, por não provada, e, consequentemente, confirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo com todos efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, "maxime" os mencionados pelo recorrente.”


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Por despacho de 04/12/21, veio a Srª Juíza a quo, pronunciar-se sobre a invocada nulidade da sentença e sobre a irregularidade do mandato, considerando não existir a primeira e estar sanada a segunda, pela junção de novas procurações com ratificação do processado.


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Por outro lado, não são igualmente objecto de recurso, questões que tenham, entretanto, sido resolvidas por despacho transitado, proferido em primeira instância. É o caso da irregularidade do mandato suscitada em sede de recurso e objecto de despacho proferido aquando da sua admissão.
No caso em apreço, suscitada a irregularidade do mandato pelos AA., por a alegada sociedade de advogados referida nas procurações juntas pelos RR., não se mostrar constituída nem registada, foi proferido despacho em 09/06/21, em cumprimento do disposto no artº 48 nº2 do C.P.C., que determinou a notificação do Ilustre Advogado para juntar procurações em seu nome pessoal e a ratificação do processado pelos mandantes, sendo concedido para o efeito, o prazo de cinco dias.
Tendo sido juntas aos autos por requerimentos de 09/06 e 16/06, novas procurações a favor do Sr. Advogado que subscreveu os actos processuais praticados em nome dos RR. e interveio nas diligências realizadas nos autos, contendo estas os requisitos constantes dos artºs 43 a), 44 e 45 do C.P.C., com ratificação do processado, proferido despacho que considerou sanada esta irregularidade do mandato e ratificados os atos processuais praticados em nome do mandante a questão, ora colocada, mostra-se prejudicada nos termos acima referidos e assim afastada deste recurso.
Nestes termos, as questões que se impõe decidir, são as seguintes:
a) Se se verificam os requisitos para a impugnação da matéria de facto prevista no artº 640 do C.P.C.;
b) Se o eventual incumprimento do ónus imposto ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. determina a rejeição do recurso por extemporaneidade, por não ser aplicável o prazo alargado constante do nº7 do artº 638 do C.P.C.;  
c) Se a sentença proferida é nula nos termos previstos no art 615 nº1 d) do C.P.C.;
d) Se não decorreu o prazo de caducidade para o exercício do direito de preferência dos AA.


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DA TEMPESTIVIDADE DO RECURSO


Nas suas contra-alegações invocam os recorridos a intempestividade deste recurso, por o recorrente não suscitar nas conclusões ou sequer na respetiva motivação a alteração de qualquer segmento da decisão da matéria de facto e por, em qualquer caso, não estarem reunidos os requisitos previstos pelo artº 640 do C.P.C. para a sua admissão, concluindo afinal pela não verificação dos pressupostos para o alargamento do prazo geral constante do artº 638 nº1 do C.P.C., permitido apenas para os casos em que a parte pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, conforme decorre do nº 7 deste preceito.

Os recorrentes, notificados da decisão proferida em 02/09/21, vieram interpor recurso em 21/10/21, no termo do prazo de 40 dias permitido pelo nº7 do artº 638 do C.P.C., invocando para o efeito a pretensão de impugnação da matéria de facto, com recurso à reapreciação de prova (testemunhal) gravada.

Ora, a decisão sobre a tempestividade do recurso, exige a apreciação prévia dos requisitos de admissibilidade do recurso com fundamento na impugnação da matéria de facto com reapreciação de prova gravada, que se não confundem com os requisitos de admissibilidade formal desta impugnação previstos estes no artº 640 do C.P.C.

Com efeito, sobre os requisitos de reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios estatui que, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2, al. a) deste preceito legal).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(...) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”[3]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;”[4]

Por outro lado, não basta fazer uma impugnação genérica da matéria de facto, com remissão para meios de prova igualmente genéricos e sem os delimitar em relação a cada facto. As exigências contidas neste preceito impõem que “esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.[5]

Expostos estes considerandos, efectivamente o recorrente não cumpre o ónus de impugnação que lhe era imposto por via do citado artigo 640 do C.P.C. Não o cumpre nas suas alegações, pois que apesar de manifestar a pretensão de impugnação dos pontos 4 a 6 dos factos provados e das alíneas a) a e) dos não provados, indica prova gravada, consistente em alegada confissão da primeira R. e em depoimento da testemunha GG e num documento, extracto bancário, com vista a infirmar apenas o facto constante do ponto 4, sem nada mais referir, de concreto, em relação à restante matéria impugnada. Não o cumpre nas suas conclusões, pois que destas não resulta a concreta especificação dos factos impugnados e muito menos o sentido que o tribunal de recurso lhes haveria de conferir, caso considerasse procedente a impugnação. Nestas conclusões, fizeram os apelantes constar, ao contrário do que se impunha para cumprimento do disposto no artº 640 do C.P.C. que o tribunal a quo errou “ao ter dado como provado os pontos que deu, e ao ter dado como não provado as alíneas que deu (…) nenhuma das testemunhas dos RR., ora aqui recorridos, se pronunciam CONCRETAMENTE, e muito menos lograram fazer prova, acerca dos caracteres da posse – pública, pacífica, de boa-fé – que alegam. (…) Factos que deveriam, então, ter sido julgados ao contrário, para a boa decisão da causa.” (conclusões 31 a 34).

Delimitando as conclusões o objecto do recurso, nestas vem o recorrente proceder a uma impugnação genérica de toda a matéria de facto, considerada provada e não provada, com base em prova testemunhal gravada prestada nos autos.

No entanto, conforme decorre expressamente do artº 640 do C.P.C., a impugnação da matéria de facto não pode ser feita em termos genéricos, manifestando afinal a parte um inconformismo, sem concretização, em relação à totalidade da decisão do tribunal recorrido, que a este tribunal está vedado conhecer, porque não devidamente especificados os factos impugnados, nem os concretos meios de prova, que imporiam decisão diversa.

Conforme defende ABRANTES GERALDES[6], “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto, que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões (…) Deve ainda especificar na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…) deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.”

Não sendo cumprido este ónus, imposto pelo artº 640 do C.P.C. para a admissibilidade do recurso quanto à matéria de facto, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento.

Com efeito, do disposto nos artºs 639 nº2 e 3 do C.P.C., resulta a possibilidade de prolacção deste despacho nos casos em que estas conclusões se apresentem como deficientes, obscuras ou complexas ou quando nelas não se tenha procedido às especificações constantes do nº2: quando não tenham sido indicadas as normas jurídicas violadas, ou o sentido com que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ser interpretadas ou quando, invocando-se erro na determinação da norma aplicável, não seja indicada a norma jurídica que deveria ter sido aplicada e não o foi.

Da conjugação deste preceito com o disposto no artº 640 nº2 a) do C.P.C. que determina a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de aperfeiçoamento ou inclusão da parte omitida, resulta que o despacho de aperfeiçoamento das conclusões está restrito a estes fundamentos, não sendo extensível aos fundamentos de impugnação ou ao cumprimento dos requisitos previstos no artº 640 do C.P.C.

Assim, volvendo aos ensinamentos de Abrantes Geraldes[7], “A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no artº 639º e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652º, nº1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº3 do artº 639.”  

Pelo acima exposto, verifica-se que efectivamente não estão preenchidos os requisitos previstos no artº 640 nº1 e 2, a), do C.P.C. para a impugnação da matéria de facto, nem é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento, impondo-se sempre a rejeição do recurso nesta parte.

Questão diversa é se o incumprimento deste ónus de impugnação com reapreciação de prova gravada, impõe a rejeição total do recurso, pela não aplicabilidade do nº7 do artº 638 do C.P.C.

Ora, a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto com fundamento na reapreciação da prova gravada, não determina de per si a rejeição da totalidade do recurso por extemporâneo, por não poder o recorrente beneficiar do prazo alargado do nº7 do artº 638 do C.P.C.

Os fundamentos de admissibilidade do recurso com fundamento na reapreciação da prova gravada e os de admissibilidade desta impugnação, são distintos e não confundíveis.

É certo que se trata de questão controvertida, perfilhando-se a este respeito três posições: uma que defende que a rejeição do recurso por não cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640 nº2 a) do C.P.C. impõe sempre a rejeição da totalidade do recurso se apresentado no prazo previsto no artº 638 nº7, por não poder beneficiar deste prazo; outra que defende que só pode beneficiar deste prazo o recorrente que nas suas conclusões deduza impugnação da matéria de facto indicando a reapreciação da prova gravada e a especificação dos factos impugnados, não bastando a sua inclusão nas alegações; outra que defende que sempre que seja indicado como objecto de recurso a reapreciação de prova gravada, independentemente de, nas alegações ou nas conclusões, serem cumpridos os requisitos exigidos pelo artº 640 do C.P.C., é aplicável o prazo alargado do nº 7 do artº 638 do C.P.C., por não serem confundíveis os pressupostos de tempestividade do recurso e os de admissibilidade da impugnação da matéria de facto.

Desde já manifestamos que aderimos a esta última posição, tendo em conta as diferentes razões que presidem ao disposto no artº 638 nº7 do C.P.C. e ao art. 640 do C.P.C.

Com efeito, do disposto neste preceito legal resulta que o recorrente que deduza impugnação da matéria de facto, com fundamento na reapreciação de prova gravada, beneficia do acréscimo de 10 dias ao prazo geral para interposição de recurso previsto no nº1 deste preceito, passando assim este prazo contínuo para os 40 dias, justificado pela necessidade de audição da prova gravada que se pretende ver reapreciada e pelo eventual esforço de transcrição de depoimentos (cfr. previsto no artº 640 nº2 a) do C.P.C.)

No entanto, ao contrário do que alegam os recorridos, este prazo previsto no nº7 do artº 638 do C.P.C., não está dependente nem do mérito da impugnação, nem do cumprimento adequado dos ónus impostos ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. 

São questões distintas. Os prazos para interposição de recurso, constituem pressupostos necessários à sua admissibilidade, sem o cumprimento dos quais a decisão proferida não é mais susceptível de impugnação, transitando em julgado.

O ónus de cumprimento dos requisitos formais previstos no artº 640 do C.P.C., destina-se a permitir a reapreciação da prova pelo tribunal superior, delimitando cabalmente o objecto do recurso, sem prejuízo do dever inquisitivo que resulta para o tribunal ad quem nos artºs 640 nº2 b) e 662 nº1 e 2 do C.P.C. e, o seu incumprimento tem como consequência apenas a rejeição do recurso nessa parte (artº 640 nº2 a) do C.P.C.) ou o não conhecimento da totalidade da impugnação da matéria de facto.

Ora, conforme se refere em Ac. do STJ de 28/04/16[8] “não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matèria de facto e a tempestividade do recurso de apelação (…) A tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição.”

No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 06/06/2018[9], defende que “Se o recorrente, ao explanar e ao desenvolver os fundamentos da sua alegação, impugnar a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, pugnando pela sua alteração/modificação, mas omitindo nas conclusões qualquer referência a essa decisão e a essa impugnação, essa questão não faz parte do objeto do recurso. (…) Apesar de não haver lugar à reapreciação da prova gravada, por não fazer parte do objeto da apelação, continua a justificar-se o alongamento do prazo, por mais 10 dias, para a interposição da apelação, se na alegação o recorrente tiver impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente, indicando e transcrevendo os trechos dos depoimentos gravados que, no seu entender, impõem a alteração da matéria de facto”.

Igualmente na doutrina RUI PINTO[10], defende que para o acréscimo deste prazo “é irrelevante se o recorrente cumpre adequadamente o ónus de especificação previsto no artigo 640”.

É esta a solução que se nos afigura mais compatível com a norma do artº 638 nº7 do C.P.C., impondo-se apenas a consideração do recurso como extemporâneo nos casos em que das alegações ou conclusões, pese embora manifestada a intenção de recorrer da matéria de facto com recurso a prova gravada, não constasse nem de umas, nem de outras, a concreta e efectiva impugnação, nem qualquer menção aos depoimentos gravados que justificariam a alteração da decisão.

No caso em apreço, os recorrentes indicam como objecto do recurso a impugnação de facto com reapreciação da prova gravada, transcrevem nas suas alegações os excertos em que se baseiam, mas incumprem afinal o ónus que lhes é imposto pelo artº 640 do C.P.C., de especificação dos concretos factos impugnados nas conclusões e a indicação nas alegações, em relação a cada facto, dos meios de prova que imporiam decisão diversa. Impondo o não cumprimento deste ónus, o não conhecimento do recurso quanto à matéria de facto, não determina, no entanto, a rejeição da totalidade do recurso por extemporaneidade, entendendo-se aplicável o prazo previsto no artº 638 nº7 do C.P.C.

Nada obsta, pois, à apreciação do recurso quanto aos fundamentos de direito nele, invocados, rejeitando-se, no entanto, o seu conhecimento no que se reporta à matéria de facto.


***

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:


“Com relevo para a decisão da causa ficou provado que:

1. Encontra-se registado a favor da Autora BB (casada com AA, no regime de comunhão de adquiridos) a propriedade sobre o prédio rústico sito ao ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...09 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...90, com uma área total de 2.700m2.

2. Encontra-se registado a favor do Réu DD (casado com EE) a propriedade sobre o prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, com uma área total de 800m2.

3. O terreno descrito em 1 confronta, a poente, com o terreno descrito em 2.

4. Os 2.º e 3.ª Réus adquiriram, em finais do ano de 1992, o terreno descrito em 2 à 1.ª Ré, tendo pago o valor acordado nessa mesma data, sendo que só a 21-08-2017 foi celebrado, no Cartório Notarial de ..., documento intitulado «escritura publica de compra e venda».

5. Desde essa data, os 2.º e 3.ª Réus procedem à limpeza do referido terreno, pagam os tributos exigidos e construíram muro e vedação nesse terreno, o que faziam à vista de toda a gente e sem a oposição ou intromissão de quem quer que fosse e de forma ininterrupta.

6. Os Autores tiveram conhecimento do negócio referido 4, por altura da sua celebração.

7. Encontra-se registado a favor dos Réus DD e EE a propriedade sobre o prédio rústico sito ao ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...12 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...63.


*

 Facto não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, nomeadamente que:

a) Os Autores desde há muito tempo pretendiam adquirir o prédio descrito em 2, tendo contactado a 1.ª Ré por várias vezes para o efeito.

b) Os Réus tinham conhecimento da intenção dos Autores em adquirir o referido prédio.

c) Os proprietários dos prédios confinantes com o prédio alienado manifestaram o seu desinteresse no exercício do respetivo direito legal de preferência.

d) O terreno descrito em 6 é contíguo ao terreno descrito em 2.

e) Os Autores tiveram conhecimento do negócio referido em 4 por volta do Natal do ano de 2017.


*

A restante matéria constante dos articulados, não referida, quer nos factos provados quer nos não provados, contém matéria de direito, conclusiva e genérica ou matéria de facto sem relevo para a decisão da causa, razão pela qual não consta da presente decisão.”


***


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Nas suas conclusões vêm os recorrentes invocar a nulidade da sentença, alegando que nesta o tribunal a quo emitiu pronúncia sobre questões não invocadas nos autos, adquiriu “factos que os AA., ora aqui recorrentes, não tinham invocado nos seus articulados, e sobre os quais não tiveram sequer a possibilidade de se pronunciar, no exercício do contraditório que legalmente lhe assiste, constatando-se a final que, indo para além daquilo que a os AA., ora aqui recorrentes, alegaram, o cumprimento do prazo de seis meses após a tal escritura de compra e venda., e proferiu uma decisão surpresa, proibida por via do artº 3 nº3 do C.P.C., violando “frontalmente os princípios do dispositivo e do contraditório, conhecendo de questões que não podia ter conhecimento, o que gera a nulidade da sentença”. Fundam a arguida nulidade no disposto no artº 615 nº1 d) do C.P.C. (conclusões 26ª a 28ª).

Cumpre-nos assim, rejeitada a arguição de intempestividade deste recurso, apreciar a existência de nulidade da decisão proferida, com fundamento em excesso de pronúncia e violação do contraditório.

A respeito das nulidades da sentença, dispõe o artº 615 nº 1 do C.P.C. que esta enferma de nulidade, no que ao caso importa, quando:

“d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;” (negrito nosso)

A nulidade invocada está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Como refere ALBERTO DOS REIS[11], “O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes.

            (...)

Também não pode condenar em objeto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a presta um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).»
Quer isto dizer que o juiz está limitado pela pretensão material do A., o efeito jurídico que ele visa alcançar com a acção. Nestes termos, conforme se refere em Ac. do S.T.J. de 07/04/16 [12] “o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.
Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.
E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.”

Acrescenta-se ainda neste Acórdão o seguinte: “Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo atualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efetiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma ação reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exatamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…”[13]

Com efeito, conforme resulta do disposto no artº 5º nº3 do C.P.C., o juiz “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.” A este respeito refere ainda Tomé Gomes[14] o seguinte “A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídico que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa. Quando muito, importará ouvir previamente as partes sobre a solução divergente, na medida em que tal se mostre necessário a evitar uma decisão-surpresa, nos termos do nº3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.»

Não estando o tribunal limitado pelas alegações das partes no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas está, conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[15], “dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objecto do processo.”

Quer isto dizer que o Juiz está limitado pela pretensão material formulada pela parte, mas já não pela qualificação jurídica efectuada por esta, impondo-se-lhe, no entanto, previamente à decisão, com outro fundamento jurídico não equacionado pelas partes, que lhes conceda o direito ao contraditório, consagrado no nosso ordenamento jurídico, como um princípio estruturante deste ordenamento e essencial à defesa de um Estado de Direito.

Trata-se de princípio expressamente previsto em disposição normativa do nosso regime processual civil, com consagração normativa por via do disposto no D.L. nº 329-A/95 de 12 de Dezembro, que alterando o anterior artº 3, nele fez consagrar expressamente que “ O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de, agindo com a diligência devida, sobre elas se pronunciarem.”

Este nº 3, manteve-se sem alteração substancial de redacção após a alteração introduzida pelo D.L. 180/96 de 25/09, substituindo-se apenas, conforme consta do preâmbulo deste diploma, “no n.º 3 do artigo 3.º, e no que se refere à prévia audição das partes para as precaver contra decisões surpresa, o critério fundado na «diligência devida» pelo da «manifesta desnecessidade» da audição, em consonância com o que, em sede de nulidades, já resulta do n.º 1 do artigo 207.º do Código de Processo Civil.” Redacção que se manteve com a entrada em vigor do N.C.P.C., aprovado pela Lei 41/2013, sendo dispensada este dever de audição prévia da parte, apenas em casos de manifesta desnecessidade.

Consagrou-se, assim, por via normativa e de forma expressa, o princípio constitucional da proibição da indefesa, previsto no artº 20 nº1, associada à regra do contraditório, não devendo ser proferida nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, a possibilidade de sobre ela se pronunciarem[16].

Já para MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[17] o “direito ao contraditório, que é, em si mesmo, uma decorrência do princípio da igualdade das partes estabelecido no art.º 3º-A – possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre ela, ou seja, um direito de resposta”.

Nestes termos, deve ser conferido, previamente a qualquer decisão, a possibilidade de “cada uma das partes ser chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de uma e outra.”,[18] por só se assim se assegurar o direito de acesso aos tribunais, mediante a observância de um processo equitativo.  

Assim o tem entendido a jurisprudência do nosso tribunal constitucional, mormente no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000), que pela sua pertinência se transcreve: “O direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras [cf. o Acórdão n.º 86/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 741 e segs.)].

É que - sublinhou-se no Acórdão n.º 358/98 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão n.º 249/97 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Maio de 1997) - o processo de um Estado de direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos". A ideia de que, no Estado de direito, a resolução judicial dos litígios tem de fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no Acórdão n.º 404/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º vol., pp. 391 e segs.). E, no Acórdão n.º 62/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18.º vol., pp. 153 e segs.) - depois de se sublinhar que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório "possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de direito" - acrescentou-se que, por outro lado, esses princípios constituem "directas emanações do princípio da igualdade". As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas "em prazo razoável" e "mediante um processo equitativo" (cf. o n.º 4 do citado artigo 20.º).”
Nesta medida, o direito a um processo equitativo, efectiva-se mediante a observância de uma estrita igualdade entre as partes, observada ao longo do processo, e ainda mediante a observância do princípio do contraditório, exigindo-se que, conforme referido no acórdão acima citado, o juiz não possa “em regra, tomar qualquer providência contra determinada pessoa sem que ela seja previamente ouvida. Excepcionalmente, porém, pode o juiz diferir a audição do requerido para momento ulterior ao decretamento da providência peticionada. Necessário é, contudo, que o diferimento da audição se possa justificar materialmente por razões de eficácia e de celeridade e não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa.”

Só assim não será se as partes, “agindo com a diligência devida, devessem, por sua vez, ter-se espontaneamente pronunciado sobre determinada questão, por ser razoável, no plano técnico-jurídico, contar com o conhecimento da mesma ou com determinado enquadramento ou qualificação jurídica”[19]

É o princípio da auto-responsabilização das partes, constituindo decisão surpresa, apenas aquela que seja “baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”, conforme referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in ob. cit, pág. 9.)

Volvendo à arguição de nulidade invocada pelos AA., a sentença recorrida que conheceu e declarou a excepção de caducidade não é nula, por esta excepção ter sido expressamente invocada na contestação dos 2º e 3º RR., nos artºs 46 a 61, com fundamento no conhecimento do negócio pelos AA., que localizam nos anos 90, contando o prazo de caducidade desde essa data.

Ora, se é certo que a excepção de caducidade só pode ser apreciada oficiosamente pelo tribunal, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes, conforme decorre do disposto nos artsº 303 e 333 nº1 do C.C., no caso em apreço, a excepção porque respeitante a matéria não excluída da disponibilidade das partes, teria de ter sido invocada, como o foi na contestação (artº 573 nº2 do C.P.C.), sob pena de preclusão deste meio de defesa.

Nesta sequência, se ao juiz está vedado conhecer de questões sobre as quais se não podia pronunciar, é-lhe imposto que se pronuncie sobre as excepções invocadas, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia e que, na decisão a proferir, conforme decorre do disposto no artº 5 nº2 do C.P.C. adquira todos os factos relevantes para essa decisão, desde que não sejam factos constitutivos da aludida excepção, ou seja, que aprecie os instrumentais, complementares ou concretizadores dos já alegados, que resultem da instrução da causa, ainda que não alegados pelas partes, exigindo-se, no entanto e uma vez mais, que cumpra previamente o exercício do contraditório.

Assim sendo, a sentença recorrida ao apreciar esta excepção, não só não conheceu de questão que lhe estava vedado conhecer, como teria forçosamente de conhecer da mesma, sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

Por outro lado, também se não mostra violado o princípio do contraditório, pois que sobre esta excepção, os AA. tiveram a oportunidade de se pronunciar e efectivamente pronunciaram-se em sede de articulado de réplica, conforme decorre dos arts. 2 a 14 deste articulado.

Por último, o tribunal a quo para conhecimento desta excepção, ao contrário do alegado pelos AA., não considerou outro enquadramento jurídico que não o decorrente das disposições que a este respeito versam sobre os prazos para o exercício do direito de preferência, previstos no artº 1410 do C.C., não enquadrou juridicamente de forma diversa a pretensão dos AA. ou a excepção deduzida pelos RR. e não considerou nenhum facto para além dos directamente alegados pelos RR., a quem cabia não só o ónus de alegação da excepção, mas o ónus de prova dos factos integradores da mesma (artº 342 nº2 do C.C.) 

 Assim, a não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto, de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.

Improcede assim este fundamento de recurso.


*


Do decurso do prazo de caducidade para o exercício do direito de preferência pelo preferente preterido.

Alegam ainda os recorrentes que não decorreu o prazo de seis meses previsto no artº 1410 do C.C., para o exercício deste direito, pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida que considerou ter decorrido este prazo, contado desde a data da suposta aquisição do terreno rústico, ocorrendo assim a caducidade do direito que os AA. pretendiam fazer valer na presente acção.

Ora, o direito de preferência em termos gerais confere ao seu titular a “prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro”.[20]

O nosso ordenamento jurídico tutela obrigações de preferência de origem legal e obrigações de preferência de origem convencional. Ambas conferem ao seu titular o direito de primazia na celebração de determinado negócio, nas mesmas condições que um terceiro esteja disposto a oferecer ou a aceitar, mas as primeiras, de origem legal, reconhecem ao seu titular um direito oponível erga omnes que, por essa via, a não ser reconhecido, lhe faculta o recurso à acção de preferência com vista a substituir-se ao adquirente no negócio já realizado; as segundas de origem convencional, decorrem de estipulação das partes – unilateral ou contratual- e facultam ao seu titular, em caso de incumprimento, o direito a uma indemnização, excepto quando estipulada a sua eficácia real[21], caso em que ao seu titular assiste igualmente o recurso à acção de preferência.

O direito de preferência, aqui invocado, concedido aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (artigos 1380° e 1381° do Código Civil) é um direito de preferência legal, que confere ao preferente preterido o recurso à acção de preferência com vista a fazer valer o seu direito, substituindo-se ao terceiro adquirente.

Assim sendo, em causa, conforme considerou a decisão recorrida, a satisfação do direito de primazia, conferido pelo artº 1380 do C.C., ao proprietário de terreno confinante na celebração de negócio de compra e venda, dação em cumprimento ou aforamento de imóvel a quem não goze de preferência.

Conferido inicialmente apenas aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, este direito de primazia veio a ser alargado pelo Dec. Lei nº 384/88, de 25 de Outubro, o qual veio modificar o regime da preferência legal relacionada com os minifúndios, alargando a reciprocidade do direito de preferência, nos termos previstos no seu artº 18, aos proprietários de terrenos confinantes, quando um deles tenha área inferior à unidade de cultura, gozando reciprocamente do direito de preferência, qualquer que seja a área do outro.

Assim, com o “conceito de “terrenos confinantes”, a lei visa o chamado emparcelamento agrícola ou acto de juntar prédios vizinhos, limítrofes ou confinantes entre si, ou parcelas de terrenos agrícolas com estremas comuns, de tamanho reduzido, em propriedades maiores, com vista a evitar-se o chamado minifúndio e a tornar mais fácil e economicamente viável o amanho conjunto dessas terras, a fim de se melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola.”[22]

Nestes termos, conforme já decidido em acórdão citado na decisão recorrida e subscrito pela ora relatora, como 2ª adjunta, decorre da “conjugação do disposto nos artºs 1380º, nº1 (26) e 1381º (27), ambos do Código Civil, com o preceituado no artº 18º, nº1, do DL nº 384/88, de 25 de Outubro (28), que com (29) “a extinção da enfiteuse, a preferência atribuída aos proprietários deste tipo de prédios rústicos passou a depender da verificação dos seguintes pressupostos:

a) estar projectada a venda ou dação em cumprimento de certo terreno;

b) Ser o terreno a alienar confinante com o terreno do arrogado preferente;

c) ter um deles (o prédio a alienar ou então o prédio do arrogado preferente) uma área inferior à unidade de cultura; e

d) ter a alienação projectada como beneficiário alguém que não seja proprietário confinante.

Por outra banda, já no que aos factos impeditivos do referido direito de preferência concerne, são eles: e “(…), em alternativa, (i) algum dos terrenos ( o terreno a alienar ou o terreno propriedade do preferente ) constituir parte componente de prédio urbano ou se destinar a algum fim que não fosse a cultura, ou (ii) o prédio ser alienado em conjunto com outros prédios que, embora dispersos, formassem uma exploração agrícola de tipo familiar “.

(…)

Ou seja, para efeitos do nº1, do artº 1380º, do Código Civil, é critério/pressuposto determinante estar-se na presença de terrenos com aptidão para a cultura [ ou seja, visa o art. 1380º, do C.Civil, estabelecer o direito de preferência entre proprietários de terrenos confinantes, isto é, de prédios rústicos confinantes ] , devendo pelo menos um dos confinantes ter uma área inferior à maior unidade de cultura estabelecida para a região, mas, será já irrelevante, quer a existência de identidade de culturas entre ambos os terrenos, quer a circunstância  de qualquer deles ser, ou não, utilizado efectivamente para cultura.[23]

Nestes termos, a preferência resultante do citado artigo 1380º é estabelecida em benefício do dono de um prédio vizinho “com vista a fomentar o emparcelamento de terrenos minifundiários, criando objectivamente as condições que, sob o ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações rendíveis[24].

Ora, sendo estes elementos constitutivos do direito de preferência, é sobre aquele que pretende que lhe seja reconhecido judicialmente este direito, que incumbe o ónus de alegar e provar, no termos do disposto no artº 342º nº1 do CC, tais pressupostos[25], ou seja que: a) o prédio vendido ou dado em cumprimento apresenta uma área inferior à unidade de cultura; b) O preferente é dono de prédio confinante com o prédio alienado; c) O prédio do preferente apresenta uma área inferior à unidade de cultura (se bem que o n.º 1 do art.º 18.º do Dec.-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro possibilite o recurso ao exercício do direito em causa a proprietários de prédios confinantes com área superior); d) O adquirente não é proprietário de terreno confinante.

Ao proprietário obrigado à prelacção cabe o ónus de prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo preferente preterido,[26] nomeadamente de que goza de melhor preferência ou que foi feita a comunicação para preferir ou, no que ao caso importa, de que decorreu já o prazo para o exercício deste direito.

Constando da decisão sob recurso, o reconhecimento aos AA. do direito de preferirem na aquisição do prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, decisão não impugnada pelos RR. e que assim se tem por transitada, o objecto do recurso prende-se tão só com o decurso do prazo para o exercício deste direito pelos AA.

A este respeito, considerou a decisão sob recurso que o negócio teria sido celebrado em 1992, embora a escritura só fosse outorgada em data posterior e que os AA. tiveram conhecimento deste negócio naquela data, pelo que “se conclui que há muito tempo que o prazo de caducidade de seis meses se encontra ultrapassado, uma vez que a ação foi apenas intentada no ano de 2018.”

No entanto, incorre a decisão sob recurso em manifesto erro na qualificação jurídica dos factos, na definição do que constitui o conhecimento exigido por via do disposto no artº 1410 do C.C. e na contagem deste prazo de caducidade.

É certo e, não é questão controvertida, que a acção de preferência a que se refere o artigo 1380º do Código Civil deverá ser intentada, sob pena de caducidade - cfr. nº2 do artigo 282º do Código Civil – no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular do direito de preferência tenha tido conhecimento dos elementos essenciais da alienação efectuada a terceiro, por aplicação do artº 1410, nº1 do mesmo diploma legal.

Com efeito, verificado o incumprimento, o preferente preterido tem ao seu dispor meios de tutela efectiva do seu direito, consoante se trate de preferência obrigacional ou de preferência legal ou com eficácia real e ainda, consoante o obrigado à preferência mantenha na sua titularidade o bem, ou tenha, entretanto, celebrado com terceiro direito incompatível com a preferência.

No primeiro caso, em que o bem se mantém na esfera jurídica do obrigado à preferência, tem sempre o preferente ao seu dispor os meios de tutela da responsabilidade civil pré-contratual, posição dominante na doutrina e jurisprudência[27], embora se equacione, na senda do defendido por JOÃO REDINHA[28] e ANA PRATA[29] o recurso à execução específica, prevista no art. 830º do C.P.C., obtendo-se por essa via o efectivo cumprimento do negócio, ou o direito a uma indemnização pelos danos sofridos em consequência do incumprimento, por via do disposto no art. 798º do CC.[30]

No segundo caso, em que existiu alienação a terceiro do bem objecto da preferência[31], sendo esta preferência legal ou com atribuição de eficácia real, o meio de reacção do preferente, consiste na acção de preferência prevista no art. 1410º do CC.

Com esta acção visa-se colocar o preferente na posição do adquirente, com efeitos retroactivos à data da celebração do negócio em relação ao qual se verificou a violação da preferência, tudo se processando como se o negócio se tivesse originariamente celebrado entre o preferente e o alienante.

No entanto, como refere PINTO LOUREIRO[32], por virtude do exercício do direito de preferência, não se verifica nem a nulidade do negócio celebrado entre o alienante e o adquirente, nem uma segunda transmissão do bem, agora para o preferente, uma vez que “o exercício do direito de preferência postula a existência de um contrato válido, destinado a subsistir no seu todo, salvo quanto ao nome do adquirente (…) por força da sentença a proferir na acção, o nome daquele se sobreporá ao deste (…) tudo se passando como se por motivo de erro de escrita o nome do adquirente tivesse de ser rectificado judicialmente.” (negrito nosso)

Nestes termos, o titular do direito de preferência a quem não se dê conhecimento da venda e que pretenda haver para si a coisa já alienada, terá de:

-intentar a acção prevista no prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação;

-depositar o preço no prazo de 15 dias, após a propositura da acção.

É comumente entendido que estes prazos acima mencionados, constituem prazos de caducidade do direito[33], cujo decurso determina a sua extinção. Assim, por via da regra de repartição do ónus de prova,[34] ao preferente preterido incumbirá alegar e provar que é titular do direito e que não lhe foi dada a preferência mediante a comunicação prevista nos arts. 416º e 1091º do CC.; ao obrigado à prelação e ao terceiro adquirente incumbirá o ónus de alegar e provar o decurso daqueles prazos, alegando factos dos quais decorra que o titular do direito de preferência,  teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação há mais de seis meses, ou que não efectuou o depósito do preço devido, ou que, tendo-o efectuado, não o fez no prazo de 15 dias após a propositura da acção.

Em relação ao momento em que se inicia a contagem do prazo para exercer o direito (e cujo decurso determina a sua extinção por caducidade), já no âmbito do C.C. de 1867, no 1§ do art. 1566º[35], se previa o direito do comproprietário a quem não fosse dado conhecimento da venda, haver para si a coisa vendida, “contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que tenha conhecimento da venda, depositando, antes de efectuada a entrega, o preço que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido.” 

Já a propósito deste preceito, dava conta Pinto Loureiro[36] que “afastada a discussão (…) se a contagem do prazo, deve ou não fazer-se da data da transmissão (…) fica sempre aos tribunais a delicada tarefa de se se deu ou não conhecimento prévio das condições do contrato e (…) se certa conversação conduzida em termos vagos sobre a intenção de vender deve considerar-se como conhecimento do contrato, e ainda se certas manifestações, como a do registo predial da transmissão, fazem supor esse conhecimento.”

Assim sendo, o prazo decorrido antes da data da transmissão não releva para contagem deste prazo de caducidade, ainda que o preferente preterido soubesse já da projectada venda, sem que lhe tivesse sido comunicado o projecto da mesma e as clausulas do contrato e concedido o direito a preferir, sob pena de se considerar que, nos casos em que o negócio se concretizasse mais de seis meses depois deste conhecimento, não poder já o preferente preterido recorrer à acção prevista no artº 1410 do C.C.

É que, antes de realizada a venda, não pode o preferente, porque ainda não preterido, recorrer a este meio de tutela e, podendo recorrer às acções de responsabilidade pré-contratual não fica impedido de, não o fazendo, recorrer, realizada a venda, à correspondente acção com vista a substituir-se ao terceiro adquirente.

Esta disposição, no que se reporta ao prazo para o exercício deste direito mediante a interposição da acção de preferência, manteve-se sem alterações no Código Civil de 1966 (art. 1410º nº1), alterando-se, no entanto, a expressão “conhecimento da venda” para “data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação”, expressão que, a par do prazo de seis meses, se manteve inalterada nas subsequentes alterações ao Código Civil[37].

Visou esta alteração obviar às naturais dificuldades de interpretação do que constituía este conhecimento da venda, tendo em conta que, bem poderia suceder que o preferente tivesse conhecimento de que fora realizado uma determinada alienação, sem no entanto, ter conhecimento da data em que ocorrera essa alienação, do preço e da pessoa do adquirente, de forma a puder exercer o seu direito, mediante acção a dirigir também contra o adquirente e de forma a poder proceder ao depósito do preço “que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido.”

No entanto, resolvida a questão quanto ao prazo, a alteração introduzida a este preceito legal não veio resolver a controvérsia e as dúvidas existentes na anterior redacção sobre o que se deve entender por elementos essenciais da alienação[38], nomeadamente se coincidem estes elementos essenciais com as exigências para comunicação da projectada venda previstas no art. 416º do CC, “projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato”, ou se, pelo contrário, o seu escopo é diferente, tendo em conta que o negócio em que o preferente foi preterido, mostra-se já realizado, importando aqui não só salvaguardar os interesses do titular da preferência legal, mas igualmente os do terceiro adquirente e a segurança do comércio jurídico.

Com efeito, no art. 416º do C.C. está em causa uma obrigação de comunicação para exercício da preferência, envolvendo apenas o obrigado à preferência e o preferente, sendo então necessário que, para que aquele possa decidir se quer contratar, dar-lhe conhecimento do projecto de venda e das clausulas do contrato, com observância da forma especial prevista no nº 4 do art. 1091º do C.C.

No caso da acção de preferência, o conhecimento que relava não é já o do “projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato”, uma vez que se pressupõe que a venda foi realizada, com preterição do preferente, sem que esta comunicação tivesse sido feita, mas antes o conhecimento das cláusulas da efectiva venda realizada e, de entre estas, apenas aquelas que se afiguram essenciais, em abstracto, para que alguém se decida a contratar.

Quando se trata de definir o conteúdo obrigatório da comunicação para preferência, interessa considerar unicamente os interesses dos sujeitos da relação de preferência.

Diversamente, tratando-se de definir o acontecimento que deverá tornar certo e limitado o prazo para o exercício coercivo do direito de preferência, interessa considerar os interesses do sujeito passivo e do preferente e os interesses do terceiro que adquiriu o bem sujeito à prelação, bem como a protecção devida à segurança do tráfico jurídico.

Por assim ser, no nosso Supremo Tribunal, tem sido firmada jurisprudência no sentido de que “o artigo 1410º, n.º 1, do Código Civil, basta-se com o conhecimento por parte do preferente da alienação propriamente dita, com a identificação do bem alienado, e do sacrifício económico global suportado pelo terceiro na aquisição, que será também aquele que o preferente terá de suportar se efectivamente exercer a sua prioridade de aquisição”.[39]

Tem por base esta posição, a que aderimos, o facto de o art. 416º do C.C. se reportar à comunicação para preferência, da qual deve constar o projecto de venda, incluindo as clausulas do contrato projectado relevantes, tendo em vista possibilitar ao preferente a decisão de querer exercer ou não o seu direito, substituindo-se no negócio em causa e nos seus precisos termos, ao projectado adquirente.

Diversamente, no art. 1410º nº1 do C.C. o conhecimento que importa aferir é o dos elementos essenciais de uma venda já realizada e, tendo o bem ingressado já na esfera jurídica do terceiro adquirente, em moldes que lhe permitam exercer o direito, tais como a identificação concreta do bem vendido, o preço e, acrescenta-se, a identidade do adquirente, sem a qual se não afigura que possa ser intentada a acção (que tem de ser dirigida contra R. certo e determinado, nos termos do art. 552º nº1 a) do C.P.C).

Assim sendo, podemos concluir com segurança que a locução “elementos essenciais da alienação” designa uma realidade menos vasta do que aquela designada pela locução “projecto de venda e cláusulas do respectivo contrato”. Acresce que, as razões de segurança e certeza do comércio jurídico impõe um prazo relativamente curto e delimitado em que o preterido possa ainda vir a exercer o seu direito, para o qual não se torna necessário o conhecimento de todas as clausulas do contrato celebrado, pois como refere lapidarmente CARDOSO GUEDES[40], “se a lei atendesse aos elementos essenciais para aquele preferente concreto, ou mandasse contar o prazo para exercício do direito a partir do momento em que o preferente tivesse conhecimento de todas as cláusulas do contrato celebrado, permitir-lhe-ia manipular o prazo de caducidade prolongando-o quase indefinidamente, pois seria permitido ao preferente continuar a alegar o desconhecimento de elementos que ele reputaria essenciais ou esperar o tempo que lhe conviesse para conhecer as demais cláusulas do contrato, assim prolongando a situação de incerteza com evidentes prejuízos para a segurança do tráfico jurídico.”

Assim, tomando o preferente preterido conhecimento de que foi realizada a alienação de um imóvel, em relação ao qual lhe assistia o direito de preferência, do preço e da identidade do adquirente, ainda que sem conhecimento dos demais elementos do contrato em que foi preterido (nomeadamente no que se reporta à modalidade de pagamento do preço ou ao prazo de celebração, se precedido de contrato promessa ou não), inicia-se a contagem deste prazo para intentar a acção de preferência.

Mas este prazo apenas se inicia após a alienação válida e eficaz do imóvel, não fazendo sentido considerar como o fez a decisão recorrida que tendo as partes RR. acordado no negócio em 1992, vindo a celebrar a escritura pública deste negócio em Agosto de 2017, e tomando os AA. conhecimento do mesmo, à data da sua realização, que a Srª Juíza considerou ter ocorrido em 1992, decorreu já o prazo para exercício do direito do preferente preterido de substituir-se ao terceiro não preferente, ainda antes da data da efectiva e válida alienação do bem. Por duas ordens de razões: em primeiro lugar porque o negócio em causa não se celebrou em 1992, mas em 21/08/2017; em segundo lugar porque aos RR. cabia o ónus de alegação e prova dos factos que integravam esta excepção, ou seja, que à data da interposição da p.i., tinham já decorrido mais de seis meses após a alienação e que os preferentes preteridos tinham conhecimento dos elementos essenciais desta alienação igualmente há mais de seis meses.

Ora, do ponto 6 da matéria de facto consta apenas que os AA. tomaram conhecimento do negócio referido no ponto 4, depreendendo-se da motivação da Srª Juíza que se referia ao acordo alcançado em 1992, mas sem concreta especificação do conhecimento que é imputado aos AA.

Este conhecimento ocorrido antes da alienação do imóvel por escritura pública, não releva para efeito do decurso do prazo previsto no artº 1410 do C.C., pois que o que teria de ser alegado e provado que o não foi, é que os AA. tinham conhecimento deste acordo e tiveram conhecimento da celebração da escritura pública de compra e venda há mais de seis meses à data da interposição desta acção judicial. 

Ora, essa prova não logrou ser feita, nem o poderia ter sido tendo em conta que a escritura pública de alienação do imóvel fora celebrada há precisamente seis meses tendo em conta a data de entrada em juízo da p.i.

Com efeito, ao contrário do que considerou a decisão recorrida o negócio não se celebrou em 1992, ainda que nessa data os RR. tenham acordado nos elementos essenciais deste negócio, tenha eventualmente sido pago o preço devido e tenha ocorrido tradição do bem para o comprador. O negócio conclui-se validamente em 21/08/2017, data em que foi outorgada escritura pública, mediante a qual a 1ª R. declarou vender o imóvel sobre o qual se pretende preferir, aos 2º e 3º RR., pelo preço de € 2.500,00, tendo estes declarado aceitar a venda. 

Conforme resulta expressamente do disposto no artº 875 do C.C., mesmo a considerar a redacção do Decreto Lei nº 47344/66 de 25/11, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública, sendo certo que não existe disposição legal que estabeleça de forma diversa. Sendo este requisito de forma condição de validade do negócio, nos termos previstos pelo artº 220 do C.C., a alienação do bem por compra e venda ocorreu apenas em 21/08/2017.

Ora, a violação do direito do preferente e a possibilidade de recurso à acção de preferência, pressupõe a transmissão válida e eficaz do direito de propriedade a terceiro adquirente, sem que tenha sido comunicado ao preferente o projecto de venda e as clausulas do contrato ou quando, apesar de comunicadas e de este manifestar a intenção de preferir, o negócio tenha vindo a ser realizado com terceiro.

Nestes termos, a alienação do imóvel e a violação do direito dos AA. preferentes ocorreu na data da escritura pública outorgada em 21/08/2017 e não em 1992, ainda que nessa data as partes tenham acordado nas condições do negócio e tenha sido inclusive pago parte ou a totalidade do preço de aquisição.

Nem outro entendimento pode ser seguido, uma vez que a sufragar o entendimento seguido pelo tribunal recorrido estaria já verificado o prazo de caducidade para o exercício do direito de preferência, nos termos deste preceito, ainda antes da alienação válida e eficaz do imóvel a terceiro e sem que os AA. pudessem recorrer à acção de preferência, prevista neste preceito legal, mas apenas, conforme acima referido, às acções para defesa dos seus direitos em sede pré-contratual.

Ora, podendo os AA. ter optado por outros meios de defesa do seu direito de preferência, o não acionamento destes meios, não preclude a possibilidade de intentar a acção de preferência que, como vimos, apenas tem lugar após a efectiva alienação do bem.

Nestes termos se conclui que o prazo previsto no artº 1410 do C.C. inicia-se sempre após a transmissão válida do bem sobre o qual incide a preferência e conta-se da data em que, ocorrida essa alienação, o preferente preterido tomou conhecimento dos elementos essenciais dessa alienação, cabendo aos RR. o ónus de alegação e prova destes factos.

Assim sendo, considerando-se a data em que ocorreu a alienação do aludido prédio rústico, por escritura pública de 21/08/2017, sendo a acção interposta em 21/02/2018, no último dia do prazo de seis meses previsto no aludido preceito legal, não decorreram mais de seis meses após a escritura, sendo este prazo de natureza substantiva e não processual, pelo que à sua contagem aplica-se o disposto nos arts. 279º e 296º do C.C.[41] e não o disposto na lei processual civil (art. 138º do CPC).

Também se não pode considerar que o conhecimento dos AA. deste negócio entre os RR., corresponderia eventualmente a uma putativa renúncia ao direito de preferência, por tendo conhecimento dos termos do negócio, não terem então manifestado intenção de adquirir. Trata-se de questão que não foi sequer invocada pelos RR. e que, em qualquer caso se não verifica pelo incumprimento do disposto no artº 416 do C.C., ou seja, pela ausência de comunicação do projecto de venda e das cláusulas do respectivo contrato, negando aliás os RR. a existência de qualquer direito de preferência dos AA.

Por outro lado, também se não vê que com a propositura desta acção, os AA. actuem em abuso de direito, por terem conhecimento do acordo entre os RR. desde 1992. A falta de comunicação legal para preferir, impede que se considere que os AA. actuam em abuso de direito por se não poder considerar que com esta acção para exercício coercivo da preferência, excedam “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito", nomeadamente na modalidade de "supressio", decorrente da criação de uma situação objectiva de confiança na parte contrária de que não exerceriam este direito, violando os princípios da boa fé e da confiança da contra parte.[42]

Há que considerar que este exercício abusivo de um direito só existe quando a parte tiver excedido de forma manifesta os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito,[43] pelo que “não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamen­te a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre obser­var, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido.”[44]

Ora do teor dos pontos 4 e 6, mesmo a considerar a falta de reacção dos AA. ainda em sede pré-contratual durante mais de 20 anos, não se pode concluir que esta inércia seja apta a despertar nos RR. que não reconhecem aos AA. a existência de direito de preferência, a convicção de que estes não pretendiam adquirir o imóvel, nem pretenderiam exercer o seu, não reconhecido nem aceite, direito a preferir.

Por último, que os RR. são os proprietários do terreno a adquirir por o terem adquirido por escritura pública a quem era proprietário, beneficiando da presunção que lhes é conferida pelo registo (artº 7 do Código de Registo Predial) não é sequer posto em causa e é aliás na qualidade de terceiros adquirentes que vêm demandados.

A acção de preferência visa, conforme já acima referido, operar a substituição, no lado passivo, do terceiro adquirente, pelo preferente preterido, nos mesmos termos acordados entre este terceiro adquirente e o obrigado à preferência.

Procede assim este segmento da apelação, impondo-se a revogação da decisão proferida em primeira instância que declarou a caducidade deste direito.


*

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta 3ª secção, em julgar parcialmente procedente a apelação interposta e, em consequência:
I-considerar o recurso tempestivo porque deduzido no prazo previsto pelo artº 638 nº7 do C.P.C., embora rejeitando o conhecimento da impugnação da matéria de facto;
II-indeferir a arguição de nulidade da sentença proferida pelo tribunal a quo;

III-reconhecer aos Autores o direito de preferência sobre o prédio rústico, sito ao ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com n.º ...11 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o Artigo ...89, substituindo-se aos 2.º e 3.ª Réus na escritura de compra e venda outorgada no Cartório Notarial - ..., em 21-08-2017;

IV-condenar os RR. a entregar aos Autores o referido prédio rústico, livre e desocupado;

V-determinar o cancelamento de todos e quaisquer registos que o 2.º e 3.ª Réus hajam feito a seu favor em consequência da compra do referido prédio, designadamente o constante da AP. ...62 de 24-07-2017;
VI-absolver os AA. do pedido reconvencional formulado.
No demais, mantêm a decisão recorrida.

***

Custas da acção pelos RR. apelados (artº 527 nº1 e 2 do C.P.C.), fixando-se as custas devidas pelo recurso, em 90% para os RR. e 10% para os AA.


                                                                                    Coimbra 08/03/22


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.

[3] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.

[4] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[5] Ac. do STJ de 05/09/18, relator Gonçalves Rocha, proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2; no mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 27/09/18, relator Sousa Lameira, proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1.
[6] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., 2017, Almedina, pág. 155/156.
[7] Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pág. 157. No mesmo sentido vide ainda AMÂNCIO FERREIRA, Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 170; LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 466 e LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62.
[8] Proferido no Proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido vide ainda Ac. do TRL de 08/01/13, proc. nº 1579/09.7YXLSB.L1-7, relatora Cristina Coelho, disponível in www.dgsi.pt
[9] Proferido no proc. nº 4691/16.2T8LSB.L1.S1, relator Ferreira Pinto; no mesmo sentido Ac. do STJ de 08/02/2018, proferido no proc. nº 8440/14.1T8PRT.P1.S1, relatora Maria da Graça Trigo, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[10] Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL, 2020, págs. 275/276.

[11] Código de Processo Civil Anotado, V Vol., pág. 67/68.
[12] Ac. do S.T.J. de 07/04/16, relator Lopes do Rego, proferido no proc. nº 842/10.9TBPNF.P2.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[13] A este respeito vidé ainda os exemplos apresentados no Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[14] Da Sentença Cível, pp. 43-44, in Caderno Especial - O Novo Processo Civil, Textos e Jurisprudência (Jornadas de Processo Civil - Janeiro 2014 e Jurisprudência dos Tribunais Superiores Sobre o Novo CPC), Caderno 5, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, Setembro 2015, p. 327-388, pp. 382-383 disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf>
[15] Código de Processo Civil, Vol. I, 4ª ed. Almedina, págs. 41.
[16] Neste sentido LOPES DO REGO, Carlos, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, 2004, pp. 835 e segs
[17] Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., LEX, 1997, pág. 46-47.
[18] DOMINGUES DE ANDRADE, Manuel A., Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 379.
[19] PEREIRA BATISTA, Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, pág. 39.
[20] MESQUITA, Henrique Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, 1990, pág. 189.
[21] Sujeito a registo conforme decorre do artº 2 nº1 d) do Código de Registo Predial.
[22] Ac. do TRC de 07/05/13, relator José Avelino Gonçalves, proferido no proc. nº 402/08.4TBOFR.C1, disponível in www.dgsi.pt

[23] Ac. proferido no TRL em 12/04/18, relator António Santos, proc. nº 647/14.8TBSCR.L1,disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[24] Ac. do S.T.J. de 06/05/10, relator Oliveira Vasconcelos, proc. nº 537/02.G1.S1 para consulta in www.dgsi.pt.
[25] cfr. Henrique Mesquita, in Direito de Preferência, “in” CJ XI 1986, 5, 50.
[26] Ac. do TRE de 12/07/18, relatora Florbela Lança, proc. nº 95/17.8T8MRA.E1, in www.dgsi.pt

[27] De que é exemplo o ac. do TRC de 02/12/03, proc. nº 3084/03 e o recente ac. do T.R.L. de 20/02/20, proc. nº 18085/17.9T8LSB.L1-2.
[28] in “Natureza Jurídica da Obrigação de Preferência e Consequências do seu Incumprimento”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. II, Coimbra, págs. 620 e 621, por entender que “não se encontra qualquer razão para obviar ao recurso pelo preferente à execução específica da obrigação de contratar (…), através de sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso”, tendo em conta o interesse do “preferente a quem foi comunicada a denuntiatio e que exerceu tempestivamente o seu direito a obter a celebração do contrato que lhe foi prometido e por outro a vinculação do obrigado à preempção”. Parte, no entanto, este autor, da noção de que efectuada a comunicação para preferência e sendo esta aceite, embora não satisfazendo as exigências de forma estipuladas para o contrato definitivo, se tem de considerar, por via da figura da conversão prevista no artº 293 do CC, como celebrado um contrato promessa, desde que estejam reunidos os requisitos previstos no artº 410 nº2 do CC.
[29] O contrato promessa e o seu regime civil, Coimbra, 1995, pág. 899, defendendo esta Autora igualmente que “também aqui há uma obrigação de celebrar certo contrato, emergente de fonte voluntária ou da lei, pelo que também aqui se justifica, em aplicação directa – se a fonte do direito de preferência foi convencional – ou analógica- se a sua fonte for legal, o recurso à acção de execução específica”.
[30] Posição que, no entanto, não acompanhamos por considerar incompatível com o facto de o preferente, por sua vez, não se encontrar vinculado a qualquer obrigação, ainda que condicionalmente, mesmo que tenha comunicado a sua intenção de preferir, não lhe podendo ser exigido o cumprimento do negócio; já nos parece que lhe poderá ser exigido uma indemnização pelos danos que para o obrigado à preferência, possam resultar da posterior recusa em contratar por parte do preferente.  
[31] Por intermédio de um negócio válido, uma vez que se o negócio vier a ser declarado nulo ou anulável, o bem retorna à esfera jurídica do obrigado à preferência, por via do disposto no artº 289 do C.C., com efeitos retroactivos, desaparecendo, por essa via o negócio, em relação ao qual se verificaria a violação da obrigação de preferência.  
[32] Ob.cit., pág. 309.
[33] Entre todos, LIMA, Fernando Andrade Pires e VARELA, João de Matos Antunes Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., págs.371 e segs. e LEITÃO, Luís Manuel Telles Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., pág.243; na jurisprudência vide o ac. do TRP de 07-12-2010, proferido no proc. nº 2255/08.3TBVRL.P1.
[34] Prevendo-se no artº 343 nº2 do CC que “Nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei.”, do que se retira que na ausência de previsão expressa na lei, o ónus de prova do decurso deste prazo pertence aos RR., o que decorria já das regras gerais do artº 342 nº2 do CC, uma vez que a caducidade se afigura também uma excepção extintiva do direito invocado.
[35] Na redacção do Decreto Lei nº 19.126 de 16 de Dezembro de 1930.
[36] Ob.cit., págs. 194, 195.
[37] Já não assim no que se reporta ao prazo para depósito do preço, primeiro fixado em oito dias a contar do despacho que ordene a citação dos RR. e actualmente nos 15 dias seguintes à propositura da acção.
[38] E não da promessa de alienação, como refere VARELA, João de Matos Antunes, Das obrigações em geral, Vol.I, 7ª edição, pág. 364.

[39]Ac. do S.T.J. de 27/11/18, proferido no proc. nº 14589/17.1T8PRT.P1.S1, relator CABRAL TAVARES; Ac. do S.T.J. de 08/01/15, proferido no proc. nº 164/09.8TCLRS.L1.S1, relator Granja da Fonseca; exemplarmente, no ac. do S.T.J. de 4/2/2010, proferido no proc. 3370/05.0TBPVZ.P1.S1, explicitam-se as razões de delimitação deste prazo considerando que “não é possível diferir ilimitadamente no tempo o exercício de tal direito, de modo a considerá-lo possível após se consumarem anos ou décadas sobre a verificação do referido facto objetivo, pondo-se obviamente em causa – não apenas os direitos e expectativas do obrigado à preferência – mas direitos de terceiros, totalmente estranhos a tal obrigação (e a quem se não pode naturalmente imputar a respetiva violação) e, em última análise, a própria segurança e confiança do tráfico jurídico. (…) Como é notório, tal solução normativa revelar-se-ia dificilmente compatível com os princípios da confiança e da segurança jurídica no campo da alienação de bens imobiliários, - que constitui emanação do próprio princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, proclamado pelo art. 2º da Lei Fundamental - ao possibilitar que quem os adquiriu – e registou em seu nome - desconhecendo, porventura, sem culpa que o transmitente violou um direito de preferência – ficaria indefinidamente sujeito a ver a eficácia da aquisição destruída, ao longo de períodos temporais longuíssimos - podendo, em muitos casos, o exercício tardio do direito de preferência, afetar os múltiplos e sucessivos actos de transmissão, eventualmente verificados ao longo dos anos (veja-se, por ex. , a tutela conferida pelo art.291º do CC aos subadquirentes de boa fé, perante os efeitos tendencialmente retroactivos da nulidade ou anulação do negócio jurídico).”

Ainda no que constitui os elementos essenciais da alienação, veja-se a posição assumida no ac. do S.T.J. de 06/05/10, proferido no processo nº 537/02.G1.S, (relator: Oliveira Vasconcelos), defendendo-se que serão os constantes do artº 416 do CC-projecto de venda e clausulas do contrato, estabelecendo-se a confundibilidade entre a não comunicação nos termos deste preceito e o prazo de caducidade previsto no artº 1410 do CC.
[40] Ob. cit., pág. 639.
[41] Neste sentido vidé ac. do TRG de 24/05/18, proferido no proc. nº 4325/16.5T8GMR.G1: na situação tratada por este acórdão os AA. intentaram acção no dia 18.7.2016 e procederam ao depósito de parte do preço no dia 18.8.2016, requerendo prazo para depositar o remanescente; neste caso considerou-se que, sendo este prazo de natureza substantiva não se suspendia em férias judiciais, mas, porque o termo do prazo recaía em período de férias judiciais, poderia ainda ser praticado, por via do disposto no artº 279 nº1 a) do CC, no primeiro dia útil seguinte; simplesmente os AA. não procederam ao depósito da totalidade do preço, como era seu ónus, pelo que se verificou a nulidade em apreço.
[42] BATISTA MACHADO, “Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium”, RLJ anos 117 e 118.

[43] A este respeito Orlando de Carvalho sustenta que o que importa averiguar é se o uso do direito subjectivo obedeceu ou não aos limites de autodeterminação, poder este que existe, tão somente, para se prosseguirem interesses e não para se negarem interesses, sejam eles próprios ou alheios, e o abuso de direito "é justamente um abuso porque se uti­liza o direito subjectivo para fora do poder de se usar dele" (Teoria Geral do Direito Civil - Sumários Desenvolvidos, Coimbra, 1981, p. 44).
 
[44] Ac. R. Guimarães de 26/04/12, proc. nº 2082/09.0TBBRG.G1, disponível in www.dgsi.pt