Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
79/20.9T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EFEITO COMINATÓRIO
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO POR HONORÁRIOS DE ADVOGADO
NOTA DE HONORÁRIOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DA RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º, N.º 5, E 91.º DO CIRE, E 105.º, N.º 2, DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário: I – O efeito cominatório “semi-pleno” da falta de oposição ao requerimento inicial de insolvência – confissão dos factos alegados –, a que se reporta o artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, é circunscrito à declaração de insolvência, sendo que a apreciação sumária que na sentença venha a ser feita do crédito do requerente se destinará unicamente a aferir da sua legitimidade para requerer a insolvência do devedor, dele não se podendo o requerente valer na fase seguinte, da verificação e graduação de créditos.

II – A conta de honorários a que se reporta o n.º 2 do artigo 105.º do EOA, consiste na exigência de uma formalidade destinada à prova da liquidação do crédito por honorários e ainda à interpelação para pagamento desse crédito.

III – Provocando a declaração de insolvência o vencimento imediato de todas as obrigações do devedor (artigo 91.º do CIRE), a apresentação de tal nota pode ser substituída pela mera alegação nos autos de todos os elementos a que se reporta o n.º 3 do artigo 105.º EOA, essenciais à aferição do montante peticionado a título de honorários.

IV – Não vindo a reclamação de um crédito por honorários de advogado acompanhado da conta de honorários e sendo insuficiente a alegação a tal respeito constante do requerimento de reclamação do crédito, deverá o juiz convidar o reclamante ao aperfeiçoamento da sua reclamação, especificando quais os montantes cobrados por cada serviço, número de horas despendido, complexidade dos serviços, etc.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral: Processo n° 79/20.9T8ACB-A.Cl – Apelação

Relator: Maria João Areias

1° Adjunto: Paulo Correia

2° Adjunto: Helena Melo

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Requerida a Insolvência de T..., Lda, por AA, a Requerida não deduziu oposição, vindo a sua insolvência a ser declarada por sentença de 27-05-2020.

Decorrido o prazo de 30 dias para reclamação de créditos, o Administrador da Insolvência, juntou a Lista de Créditos Reconhecidos e Não Reconhecidos, nos termos do artigo 129º do CIRE, na qual considera “não reconhecido” o crédito do Requerente da insolvência no valor de 369.000,00 €, quer, porque o valor referido no Anexo III respeitante à sociedade insolvente é apenas de 150.000,00 €, quer porque tal valor não se mostra faturado.

Tal lista foi objeto de impugnação, entre outros, pelo credor requerente da Insolvência/AA, insurgindo-se contra a exclusão do crédito por si invocado no Requerimento inicial da insolvência, referente a honorários e despesas por serviços jurídicos prestados à sociedade insolvente, alegando que os mesmos se encontram devidamente detalhados na petição inicial, tendo sido considerados provados pela sentença de declaração da Insolvência, nos termos do artigo 30.º, nº1 CIRE; os serviços jurídicos prestados em sede de mandato forense não têm de ser reduzidos a uma Nota de Honorários, não sendo obrigatória a sua elaboração, nem sendo obrigatória a respetiva faturação.

Junta prova testemunhal e documental.

A administradora de insolvência veio apresentar resposta a tal impugnação, no sentido da sua improcedência, alegando, por um lado, que o crédito de 300.000 €, mais IVA, invocado na petição inicial não foi detetado na contabilidade da insolvente, não encontrando nela qualquer fatura reconhecida pela devedora insolvente e, por outro lado, do montante global reclamado pelo requerente, 150.000 €, mais IVA respeitam a honorários em débito por uma outra sociedade que não a insolvente.

Notificado o credor AA para informar se, em algum momento, remeteu à insolvente nota de despesas e honorários pelos serviços prestados, veio responder que apresentou e esclareceu devidamente os serviços prestados como Advogado à insolvente, mais concretamente no dia 28 de Dezembro de 2019, nas pessoas dos seus sócios BB e CC, aquando das respetivas assinaturas do Contrato Promessa de Cessão de Quotas da T..., Lda, composto de 6 (Seis) com Anexos, conforme se pode extrair do Documento n.º 6, e Anexo 3 junto com a Petição Inicial nos autos principais.

Pelo juiz a quo proferida Sentença de verificação e graduação de créditos, de que agora se recorre, na qual se decidiu julgar improcedente a impugnação do credor/requerente, não se reconhecendo o crédito de 369.000,00 € sobre a insolvência por não haver elementos na contabilidade da sociedade insolvente que revelem a existência de uma dívida ao impugnante, homologando a lista dos credores reconhecidos e procedendo à graduação dos respetivos créditos.


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Não se conformando com tal decisão, o credor/Requerente, dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

A – A Sentença do Distinto Tribunal a quo declarou a improcedência da impugnação da lista de reconhecimento de créditos apresentada pelo aqui Recorrente.

B – Com o devido respeito, a Douta Sentença recorrida carece de fundamento de facto e de direito.

C – Pelo disposto no art. 30.º n.º 5 do CIRE, a não dedução de oposição implica a confissão de todos os factos alegados na petição inicial

D – A confissão dos factos alegados na petição inicial significa o reconhecimento do crédito do Requerente por parte da Insolvente.

E – Só em audiência de julgamento poderão as posições controvertidas serem escrutinadas e avaliadas com a produção da prova carreada e o exercício pleno do contraditório;

F – Só uma sentença de verificação de créditos pode conceder aos credores a certeza da consolidação e definição dos seus créditos.

G – A interpretação do art. 30.º do CIRE seguida pelo Tribunal a quo na sentença em crise, faz tábua rasa da regra da confissão dos factos articulados na Petição Inicial em consequência da ausência de Oposição à Insolvência.

H – Assim como viola o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional, previsto no art. 20.º da CRP.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais ao abrigo do nº4 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.  


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1. Se a não dedução de oposição ao requerimento inicial de insolvência implica a confissão do crédito do Requerente.
2. Se o processo deveria ter prosseguido para audiência de julgamento, com a produção da prova carreada e o exercício pleno do contraditório.
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se a não dedução de oposição ao requerimento inicial de insolvência implica a confissão do crédito do Requerente

A decisão recorrida concluiu que, ao contrário do sustentado pelo credor/requerente na impugnação que deduziu à listra de credores reconhecidos relativamente ao não reconhecimento do seu crédito, o facto de a sociedade requerida não ter deduzido oposição ao pedido de insolvência formulado pelo requerente, não implicou o reconhecimento do crédito invocado, posição que explicita pelo seguinte modo:

“É importante ter presente que, numa acção em que a insolvência do devedor é requerida por um credor e não é deduzida oposição, o efeito cominatório semi-pleno da falta de oposição ao pedido de declaração de insolvência– confissão dos factos alegados (art. 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) – não significa o reconhecimento do crédito invocado pelo requerente da acção sobre o devedor declarado insolvente. Com efeito, a consequência prevista no art. 30.º, n.º 5 do CIRE, para a falta de oposição do devedor ao pedido de insolvência é, apenas e tão só, o reconhecimento da situação de insolvência do devedor e a sua declaração como tal; não é o reconhecimento do direito de crédito invocado pelo requerente da acção. Isto porque o thema decidendum da acção é a situação de insolvência do devedor (arts. 28.º e 30.º, n.ºs 4 e 5, ambos do CIRE), e não o reconhecimento dos créditos do requerente e a condenação do devedor no seu pagamento. Mesmo que o requerente da insolvência tenha formulado pedidos cumulativos de reconhecimento de créditos, a procedência da acção não implica a verificação dos créditos invocados. A verificação dos créditos sobre o insolvente é apreciada e decidida numa fase posterior do processo, no incidente da reclamação de créditos, previsto no art. 128.º e ss. do CIRE.”

Insurge-se o Apelante, contra o decidido, limitando-se a repetir a posição já por si assumida na sua impugnação:

 - na petição inicial da insolvência, o requerente apresentou a discriminação, a datação e a respetiva remuneração dos serviços prestados em nome, por conta e em benefício da insolvente;

- na falta de contestação, a sentença que declarou a insolvência fez aí constar que os factos articulados pelo autor se consideravam confessados, nos termos do art. 30º do CIRE e no artigo 567º do CPC, pelo que seria de reconhecer o direito de crédito do autor.

Não assiste qualquer razão ao Apelante, sendo de subscrever na íntegra o que a tal respeito é afirmado pelo juiz a quo.

É posição pacífica e indiscutida na doutrina e na jurisprudência que o efeito cominatório “semi-pleno”, da falta de oposição ao requerimento inicial de insolvência – confissão dos factos alegados –, a que se reporta o artigo 30º, nº5, do CIRE, é circunscrito à declaração de insolvência, sendo que, a apreciação sumária que na sentença venha a ser feita do crédito do requerente, se destinará unicamente a aferir da sua legitimidade para requerer a insolvência do devedor, dele não se podendo o requerente valer na fase seguinte, da verificação e graduação de créditos.

A legitimidade para requerer a declaração de insolvência do devedor é atribuída pelo artigo 20º, nº1, a qualquer credor, ainda que o respetivo crédito seja “litigioso”  pelo que, questões sobre a sua existência e qual o seu concreto montante, podem mesmo ser irrelevantes nesta fase[1].

Segundo Catarina Serra[2], o que está em causa no art. 20º, nº1 é a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva, pelo que, sempre que se trate de um credor, a lei não exige que produza prova da qualidade que alega, mas, tão só, que ele proceda à justificação do seu crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante do seu crédito (cfr., art. 25º, nº1).

Já Pedro de Sousa Macedo explicava a não exigência de título executivo ao credor requerente precisamente “por o crédito ser posteriormente verificado, bastando um juízo sumário para se determinar a legitimidade do credor[3]”: “Não se diga que o crédito do requerente da falência foi verificado ao determinar-se a sua legitimidade. Então, houve uma indagação profunctória e sem intervenção dos demais credores. Basta considerar que o próprio falido pode não intervir ou pode mostrar-se desinteressado dadas as suas condições de fortuna[4]”,

Declarada a insolvência e passando à fase da verificação de créditos, todos os créditos têm de ser reclamados, se os respetivos titulares quiserem obter pagamento na insolvência, e todos podem ser objeto de impugnação, ainda que o respetivo titular se encontre munido de sentença transitada em julgado.

A verificação de créditos tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento – nº3 do artigo 128º, CIRE.

Embora o artigo 128º, faça impender o ónus de reclamação no processo de insolvência relativamente a todos os créditos, caso os respetivos titulares queiram obter pagamento no processo de insolvência, para efeitos de verificação de créditos (e a pesar de o artigo 128º não conter uma norma equivalente à do nº4 do art. 188º do CPEREF, que considerava reclamado o credito do requerente da falência), a doutrina e a jurisprudência entendem que o requerente da insolvência está em princípio dispensado de reclamar o seu crédito[5].

Quando ao mais, na fase da verificação[6], encontra-se em pé de igualdade com os demais credores, devendo constar da lista de credores reconhecidos (ou não reconhecidos) a que se reporta o art. 129º CIRE, encontrando-se sujeito a impugnação por qualquer interessado, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos (nº1, artigo 130º).

Os créditos do requerente encontram-se sujeitos a impugnação, como os demais créditos, ainda que estes se encontrem previamente reconhecidos por sentença, (neste caso, quer invocando os meios de defesa que estariam facultados ao devedor na execução, quer os facultados a todos os interessados relativamente aos quais tal sentença não produza efeitos de caso julgado).

Concluindo, a declaração de insolvência não envolve qualquer confissão dos factos relevante para a aferição da existência ou montante do crédito do requerente e, muito, menos, implica o seu reconhecimento por parte do administrador e do tribunal.


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2. Se o processo deveria ter prosseguido para audiência de julgamento, para produção da prova carreada e o exercício pleno do contraditório.

Passando a apreciar o mérito do crédito reclamado, a decisão recorrida veio a proferir decisão de não reconhecimento do crédito reclamado pelo Requerente da insolvência, apoiando-se nos seguintes fundamentos:

- o “Contrato de Promessa de Cessão de Quotas” não prova que a sociedade insolvente tenha reconhecido um crédito a favor do impugnante no montante de 300.000,00 €, a título de honorários devidos pela prestação de serviços jurídicos, ou seja, não constitui confissão do valor em dívida;

- pelo embargante foi reconhecido não ter sido elaborada qualquer nota de despesas e honorários com a descrição dos serviços prestados e a indicação dos critérios de fixação de honorários, sendo que, na falta de acordo escrito entre as partes sobre a fixação prévia de honorários, a lei obriga o advogado a apresentar nota de honorários e despesas, nos termos do art. 105º do Estatuto da Ordem dos Advogados;

- aquele anexo III ao intitulado “Contrato-promessa de cessão de quotas”, com a mera indicação de uma cifra está muito longe de representar uma Nota de honorários, conta esta que, nos termos do art. 5º, ns. 1, 3, 4 e 5, do Regulamento dos Laudos de Honorários deve ser apresentada ao cliente por escrito, assinada pelo advogado e mencionar as provisões recebidas, o imposto sobre o valor acrescentado devido, enumerar e discriminar os serviços prestados, explicitar os critérios tidos em consideração na fixação dos honorários, em separados das despesas e encargos, com todos esses valores especificados e datados;

- não existindo fixação prévia dos honorários por acordo escrito e não tendo sido apresentada conta de honorários, não é exigível à sociedade insolvente o pagamento de qualquer quantia a título de despesas e honorários ao impugnante: o vencimento da obrigação de pagamento dos honorários só ocorre com a apresentação da conta de honorários.

Insurge-se o Apelante contra a decisão de não reconhecimento do seu crédito nesta fase processual, sustentando só em audiência de julgamento poderem as posições controvertidas ser escrutinadas e avaliadas com a produção de prova carreada para os autos:

- no próprio texto da Petição Inicial de Requerimento da Insolvência que interpôs, o requerente apresentou a discriminação, a datação e a respetiva remuneração dos serviços prestados em nome por conta e em benefício da Insolvente, de harmonia aliás com o estipulado pelo próprio Art.º 105.º, da lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro que define os critérios para a definição dos Honorários;

- os legais representantes da empresa Insolvente, assinaram e rubricaram documento “Contrato-Promessa de Cessão de Quotas”, de onde constam os respetivos Honorários do Advogado, aqui Recorrente, sendo este uma prova atendível;

- por outro lado, notificado da lista de credores não reconhecidos pela administradora de insolvência, o aqui recorrente juntou prova testemunhal, pelo que não poderia ter sido proferida sentença sem a realização da audiência de julgamento e discussão de toda a prova carreada.

Vejamos, então, se os autos dispunham de todos os elementos para decidir no despacho saneador do crédito em questão, ou, se se impunha o prosseguimento dos autos para produção de prova relativamente ao mesmo.

Não podemos dar razão ao Apelante, quando sustenta que a descrição que, no requerimento inicial da insolvência faz dos serviços por si prestados – com discriminação, datação, e respetiva remuneração –, sendo que o valor já constava do Anexo III ao contrato de cessão de quotas assinado pelos representantes legais da sociedade insolvente –, satisfaça o disposto no artigo 105º, nº2 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

No Requerimento Inicial pelo qual peticionou a declaração de insolvência da devedora, o Requerente enumera os serviços jurídicos por si prestados (arts. 4 a 451), e a respetivas datas (entre 23 de maio de 2019 e 4 de janeiro de 2020), remetendo quanto ao respetivo valor para o “Anexo III” do Contrato de Cessão de Quotas.

Vejamos, então, o que aí consta relativamente aos alegados honorários:

Em tal “Contrato de Cessão de Quotas”, que se encontra datado de 28 de Dezembro de 2019, fez-se constar que os 1ºs, outorgantes, a sociedade Insolvente, “assim como os seus sócios” CC e BB, declaram que

os primeiros outorgantes prometem ceder a totalidade das suas quotas à segunda outorgante” e que, “Nesta Cessão de Quotas, encontram-se integrados todos os ativos e passivos, da sociedade em causa, nomeadamente, Prédio Urbano (…), Recheio (…), Passivos (lista de Credores, Anexo I, integrante do presente contrato); Serviços, Anexo III, Honorários de Serviços e Honorários de Consultadoria; Automóveis, veículos; Anexo IV Lista completa de clientes (…);

No presente contrato promessa abrange todos os ativos e passivos da empresa que é detida pela aqui sociedade comercial Primeira Outorgante, S... Lda. (…).

Ora, não só, em tal contrato não há qualquer referência sobre quem seria o devedor de tais “Honorários de Serviços e Honorários de Consultadoria”, nomeadamente, se a S... Lda., ou se “os sócios desta pessoalmente”, aí assinalados também como 1ºs, outorgantes, (ou se, só a 2ª outorgante, após a outorga do contrato definitivo), como o conteúdo do Anexo III é de pasmar quanto à sua singeleza:

H                                                        150.000€

H CONSUL                                       150.000

                             TOTAL                 300.000€

Nada mais nele consta.

Como tal, não podemos aceitar que a mera descrição dos serviços (ex. 4- Estudo análise do Acordo de Pagamento E..., Lda, em 23 de Maio de 2019, 5- Análise e estudo do Acordo de Pagamento à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 03 de Julho de 2019, etc.), sem indicação das horas gastas em cada um deles, ou qualquer outro critério de que o credor se tenha socorrido para atribuição de um valor único de 300.000 € (150.000€ +150.000€), seja suficiente para ter por preenchidos os elementos a que se refere o artigo 5º do Regulamento dos Laudos dos Honorários:

Da conta de honorários

1 - A conta de honorários deve ser apresentada ao cliente por escrito, mencionar o IVA que for devido e ser assinada pelo advogado ou por ordem e responsabilidade do advogado ou da sociedade de advogados.

2 - Os honorários devem ser fixados em euros, sem prejuízo da indicação da sua correspondência com qualquer outra moeda.

3 - A conta deve enumerar e discriminar os serviços prestados.

4 - Os honorários devem ser separados das despesas e encargos, sendo todos os valores especificados e datados.

5 - A conta deve mencionar todas as provisões recebidas.

Ou seja, não só, não apresentou Nota de Honorários (como reconheceu expressamente), como a descrição dos serviços resultante do por si alegado no requerimento inicial e no Anexo III ao Contrato Promessa de Cessão de Quotas, não se pode ter como descrição bastante para se aferir da justeza do montante por si peticionado a título de honorários.

Contudo, implicará a ausência de tal Nota de Honorários a improcedência imediata do reconhecimento do invocado crédito?

Concorda-se com a decisão recorrida, quando aí se afirma que, por via de regra, o vencimento de tal crédito se encontraria dependente da elaboração e apresentação da Nota de Honorários ao devedor e da interpelação para pagamento, nos termos do artigo 805º, nº1 do CC.

Contudo, se à data do requerimento inicial o invocado crédito não se encontraria vencido, a declaração de insolvência da devedora sempre teria provocado o vencimento imediato desta e de todas as suas obrigações, por força do artigo 91º do CIRE, tornando-a exigível.

Como tal, não se tratando de uma questão de vencimento, implicaria a ausência de apresentação de tal Nota de Honorários perante o cliente, a imediata improcedência do pedido?

Desde já, adiantamos ser de responder negativamente a tal questão.

Dispõe o artigo 105º do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à pertinência da apresentação da nota de honorários pelo advogado que pretenda cobrar os serviços por si efetuados:

Artigo 105.º

Honorários

1 - Os honorários do advogado devem corresponder a uma compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados, que deve ser saldada em dinheiro e que pode assumir a forma de retribuição fixa.

2 - Na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários com discriminação dos serviços prestados.

3 - Na fixação dos honorários deve o advogado atender à importância dos serviços prestados, à dificuldade e urgência do assunto, ao grau de criatividade intelectual da sua prestação, ao resultado obtido, ao tempo despendido, às responsabilidades por ele assumidas e aos demais usos profissionais.

A forma mais vulgar de fixação de honorários relativamente aos serviços prestados por advogado enquanto profissional liberal é a apresentação da nota de despesas e honorários após a conclusão do mandato ou da prestação de serviços, através dos critérios gerais previstos no nº3 do artigo 105º[7].

A apresentação da conta de honorários a que se reporta o nº2 do artigo 105º, que, como já referimos, deve obedecer às exigências do art. 5º do Regulamento do Laudo dos Honorários, “consiste na exigência de uma formalidade destinada à prova da liquidação do crédito por honorários e, outro sim, à interpelação para pagamento desse crédito. Tal exigência corporiza a obrigação de prestação de contas a que se refere o art. 1161º al. d) do CC, para os mandatários em geral.[8]

O Artigo 105º, nº2, ao dispor que, na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários, destina-se a permitir ao cliente ajuizar dos critérios observados para a determinação do montante fixado quanto aos honorários[9].

Será que podemos sustentar, como é feito na decisão recorrida, que o devedor se pode eximir e recusar o pagamento enquanto o credor não apresentar a respetiva nota de honorários?

Como regra geral, sim, até porque, o vencimento de tal obrigação estará dependente da sua elaboração e apresentação.

Contudo, como já referimos, declarada a insolvência do devedor, consideram-se vencidas todas as suas obrigações, tendo o advogado que para ele tenha prestado serviços direito ao pagamento dos respetivos serviços, mesmo que, até então, não tenha apresentado a respetiva nota de honorários.

Assim sendo, o elemento em falta, neste caso, não é, propriamente a nota de honorários, enquanto de documento de interpelação para pagamento, mas na sua função de apresentação de contas e de liquidação do montante peticionado a título de honorários, com vista à apreciação da justeza, liquidação que, em nosso entender, poderia ter sido feita no requerimento de reclamação do crédito e que poderá, ainda, vir a ser feita no decurso do próprio processo.

Com efeito, como se afirma no acórdão do TRL de 19.12.2019[10], a exigência legal de apresentação por escrito da conta de honorários, visa demonstrar a liquidação dos honorários e a interpelação do devedor para pagar o saldo da conta e não constituir o direito aos horários: o direito aos honorários nasce do contrato de mandato e (da demonstração) dos serviços prestados no seu âmbito.

Ou seja, apesar de tal nota não ter sido junta (quer com a reclamação do crédito, quer, posteriormente, quando o tribunal lhe perguntou pela sua existência), pelo facto de não ter sido emitida ao seu cliente, aqui insolvente, o credor poderia, ainda, proceder à sua elaboração e apresentação até ao momento em que é admissível a junção de prova documental, ainda que com pagamento de multa, sendo que, a sua falta teria consequências relacionadas com a falta de alegação de uma série de elementos que seriam preciosos para o cálculo dos seus honorários, como, por ex., as horas de trabalho despendidas em cada uma das inúmeras tarefas que discrimina, sendo que, para prova dos respetivos serviços, juntou prova testemunhal.

Por outro lado, se, como já referimos, a ausência de tal nota releva aqui essencialmente enquanto elemento de liquidação do respetivo montante, podia ainda o juiz convidar o credor/Apelante a proceder ao aperfeiçoamento da discriminação dos serviços por si efetuada no requerimento inicial, notificando-o para esclarecer qual o tempo despendido em cada um dos inúmeros serviços que discrimina, quanto cobrou por cada um, qual o valor hora por si contabilizado, ou qual o(s) critério(s) por si utilizado(s) para a cobrança daquele valor global de 150.000 €, grau de dificuldade e urgência dos trabalhos, etc. relativamente aos serviços por si alegadamente prestados à sociedade insolvente[11].

E, ainda que o credor não fizesse uso tal convite, seja apresentando uma nota de honorários, seja de completando a sua alegação relativamente aos critérios por si utilizados para a fixação dos mesmos, sempre, em último caso, a provar-se que serviços foram prestados e quais deles, e mantendo o credor o direito à respetiva remuneração, esta poderia ser fixada com recurso à equidade[12].

Como tal, a ausência de apresentação da nota de honorários não implicava necessariamente a improcedência do pedido, devendo o apenso de reclamação de créditos ter prosseguido para julgamento relativamente a este crédito ou, quando muito, relativamente a uma das parcelas do crédito por si reclamado.


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No requerimento inicial pelo qual veio requerer a declaração de Insolvência da sociedade T..., Lda., o requerente vem peticionar o reconhecimento de um direito de crédito no montante total de 369.000,00 €, correspondente a:

a) 150.000,00 €, de honorários por serviços de advocacia prestados à sociedade insolvente, acrescido de 3.4500,00 € a título de IVA;

b) 150000,00 €, de honorários por serviços jurídicos prestados à Sociedade TMS..., Lda., acrescido de 3.450,00 € a título de IVA, alegando, única e exclusivamente que:

“- a T..., Lda, detém a maioria das Quotas da sociedade comercial, TMS..., Lda, NI

- Havendo assim uma especial relação de domínio ou se orientação societária,

- TANTO assim que os sócios pessoas singulares de ambas as empresas são os mesmos, ou seja, BB, e CC”.

A sentença recorrida começou por julgar não reconhecido o crédito por serviços jurídicos prestados à sociedade “TMS..., Lda., com a seguinte fundamentação:

“Pois bem, em relação ao alegado crédito por serviços jurídicos prestados à sociedade “TMS..., Lda.”, no âmbito de mandato judicial, importa lembrar que o princípio geral das obrigações é o de que só fica vinculado à realização da prestação debitória quem se constituiu como devedor numa relação jurídica. Ou seja, a obrigação de realizar a prestação debitória recai, em primeira linha, sobre o devedor. Conjugando este princípio com o facto de as sociedades comerciais em relação de domínio ou de grupo manterem a sua individualidade jurídica própria nos negócios jurídicos que celebram com terceiros, resulta evidente que a sociedade insolvente não é devedora de honorários ao impugnante por serviços jurídicos que este eventualmente tenha prestado à sociedade “TMS..., Lda.”. Com efeito, a menos que sejam alegados – e provados – factos que permitam concluir com segurança pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade dominada face à sociedade com domínio total, não será o simples facto de duas sociedades comerciais estarem em relação de grupo ou de domínio que as torna, sem mais, co-responsáveis pelas dívidas de uma e de outra.

No caso vertente, nada foi alegado que nos leve a equacionar sequer uma decisão nesse sentido.

Face ao exposto, a parcela do crédito invocado pelo impugnante, correspondente a 184500,00 € por serviços jurídicos alegadamente prestados à sociedade “TMS..., Lda.”, não pode ser reconhecido nestes autos como um crédito sobre a insolvência”.

Ora, embora o apelante não tenha restringido expressamente o âmbito do recurso, relativamente aos fundamentos que estiveram na base do não reconhecimento desta parcela do crédito invocado pelo reclamante (resultando da conjugação do disposto no ns ns. 2, 3 4 5, do artigo 635º, do CPC), que a improcedência de tal crédito também se encontraria abrangido pelo recurso), o certo é que o Apelante nada veio dizer, quer nas conclusões quer no corpo das alegações de recurso, relativamente a este fundamento de improcedência daquele crédito.

Como tal, relativamente a tal crédito sempre é de manter a decisão do seu não reconhecimento face à ausência de impugnação de tal fundamento, consideramos ter tal decisão transitado em julgado.

Assim sendo, é de revogar a decisão recorrida unicamente quanto ao não reconhecimento do crédito respeitante aos honorários e despesas por serviços jurídicos prestados à própria sociedade insolvente.

A Apelação será de proceder parcialmente.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte em que não reconhece o crédito do requerente respeitante aos serviços e despesas por serviços jurídicos prestados diretamente à própria sociedade insolvente, no valor de 150.000,00 €, mais 34500,00 € de IVA, devendo os autos prosseguir os seus termos relativamente a este reclamado crédito.

Custas a suportar pela Apelante e massa insolvente, na proporção de ½ para cada um.

                                                                 Coimbra, 13 de setembro de 2022

                                                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1.  O efeito cominatório “semi-pleno”, da falta de oposição ao requerimento inicial de insolvência – confissão dos factos alegados –, a que se reporta o artigo 30º, nº5, do CIRE, é circunscrito à declaração de insolvência, sendo que, a apreciação sumária que na sentença venha a ser feita do crédito do requerente, se destinará unicamente a aferir da sua legitimidade para requerer a insolvência do devedor, dele não se podendo o requerente valer na fase seguinte, da verificação e graduação de créditos.

2.  A conta de honorários de a que se reporta o nº2 do artigo 105º do EOA, consiste na exigência de uma formalidade destinada à prova da liquidação do crédito por honorários e ainda à interpelação para pagamento desse crédito.

3. Provocando a declaração de insolvência o vencimento imediato de todas as obrigações do devedor (artigo 91º do CIRE), a apresentação de tal nota pode ser substituída pela mera alegação nos autos de todos os elementos a que se reporta o nº 3 do artigo 105º EOA, essenciais à aferição do montante peticionado a título de honorários.

4. Não vindo a reclamação de um crédito por honorários de advogado acompanhado da conta de honorários e sendo insuficiente a alegação a tal respeito constante do requerimento de reclamação do crédito, deverá o juiz convidar o reclamante ao aperfeiçoamento da sua reclamação, especificando quais os montantes cobrados por cada serviço, número de horas despendido, complexidade dos serviços, etc.

 



[1] Cfr., entre outros, Catarina Serra, “Lições de Direito de Insolvência”, Almedina, p. 114-119, e Acórdão do STJ de 17-11-2015, relatado por Fonseca Ramos.
[2] Obra citada, p. 117.
[3] “Manual de Direito das Falências”, Vol. I, Livraria Almedina, Coimbra-1964, p. 384.
[4] “Manual de Direito das Falências”, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra-1968, p. 306, nota 1.
[5] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, p. 128.
[6] Já não na fase da graduação, uma vez que aos créditos não subordinados do requerente da insolvência é-lhe concedido o privilégio creditório geral pelo nº1 do artigo 98º CIRE.
[7] Fernando Sousa Magalhães, “Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado e Comentado”, 12ª ed., Almedina, p. 170.
[8] Gustavo Brandão do Nascimento, “Dos Honorários de Advogado, Em Especial, o Laudo sobre honorários”, Almedina, p.36.
[9] Acórdão do TRL de 30-06-2020, relatado por Diogo Ravara, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Relatado por Adeodato Brotas, disponível in www.dgsi.pt.
[11] No sentido do Poder/dever do juiz de proceder a um convite à junção da Nota de Honorários ou à concretização dos elementos necessários ao cálculo e à aferição da justeza do montante cobrado a título de honorários, cfr., Acórdãos do TRL de 19-12-2019, relatado por Adeodato Botas, e de 22-02-2022, relatado por Carlos Oliveira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, entre outros, Acórdão do TRL de 22-02-2022, relatado por Carlos Oliveira, disponível in