Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1903/18.1T9CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
CONTRADITÓRIO
ABUSO DE PODER
FALSIFICAÇÃO
COAUTORIA SUCESSIVA
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J4)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 358º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 26º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. A comunicação da alteração não substancial de factos não exige a enunciação e valoração dos meios de prova, pois é sempre provisória, encontrando-se sujeita ao contraditório e a produção de prova, só depois se decidindo se integram o elenco dos factos provados na sentença.
II. Agem em coautoria sucessiva os arguidos que atuaram de forma planeada para integrarem o acidente de viação por um deles sofrido numa deslocação de serviço, alterando o segundo as escalas e o livro de registos diários de serviço para fazerem crer que a hora a que se deu o acidente coincidiu com o horário de trabalho.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1 - Por Acórdão datado de 13 de abril de 2023, o Colectivo do Juízo Central Criminal de Leiria, Juiz 4, julgou a acusação/pronuncia parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência decidiram:

I - Condenar o arguido AA pela pratica em co-autoria material e em concurso real, nos termos dos artigos 14º, nº 1, 26º, 28º, 30º, nº 1 e 77º, todos do Código Penal de:

a) 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, al. a), 256º, nºs. 1, als. a), b), c) e) e 4 e 386º, 1, al. a), todos do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

b) 1 (um) crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

c) 1 (um) crime burla qualificada, p. e p. pelos artigos 202º, al. b), 217 1 e 218º, nºs. 1 e 2, al. a), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão.

II - Condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, nos termos do disposto no artº 77º do Código Penal;

III - Condenar o arguido BB pela pratica em co-autoria material e em concurso real, nos termos dos artigos 14º, nº 1, 26º, 28º, 30º, nº 1 e 77º, todos do Código Penal de:

a) 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, al. a), 256º, nºs. 1, als. a), b), c) e e) e 4 e 386º, 1, al. a), todos do Código Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão;

b) 1 (um) crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

c) 1 (um) crime burla qualificada, p. e p. pelos artigos 202º, al. b), 217 1 e 218º, nºs. 1 e 2, al. a), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.

IV - Condenar o arguido BB na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, nos termos do artº 77º do Código Penal.

V - Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB por igual período, ou seja 4 (quatro) anos sujeita a regime de prova, nos termos do artº 50º nº 1 e nº 5 e artº 53º ambos do Código Penal;

VI - Absolver o arguido CC da imputada prática de:

a) 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, al. a), 256º, nºs. 1, als. a), b), c) e e) e 4 e 386º, nº 1, al. a), todos do Código Penal;

b) 1 (um) crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal;

c) 1 (um) crime burla qualificada, p. e p. pelos artigos 202º, al. b), 217 nº 1 e 218º, nºs. 1 e 2, al. a), todos do Código Penal.

VII - Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado o pedido de declaração de perdas e vantagens resultantes da prática dos factos ilícitos e, em consequência, dele absolver o arguido CC e condenar os arguidos AA e BB a pagar ao Estado Português os valores de:

a) - 2.299,39 (dois mil duzentos e noventa e nove Euros e trinta e nove Cêntimos), correspondente às vantagens pelos mesmos obtidas decorrentes da prática dos factos constantes da acusação;

b) - 29.721,97 (vinte e nove mi, setecentos e vinte e um Euros e noventa e sete Cêntimos), correspondente às vantagens pelos mesmos obtidas decorrentes da prática dos factos constantes da acusação,

c) - tudo, sem prejuízo de eventual pedido de indemnização que venham a ser deduzidos pelos ofendidos Estado Português Ministério da Administração Interna Comando Geral da Guarda Nacional Republicana e Caixa Geral de Aposentações, IP, contra os arguidos AA e BB, nos termos do disposto 6, do artigo 110º, do mesmo Código.

VIII - Aplicar ao arguido AA a pena acessória de proibição do exercício de funções publicas pelo período de 5 (cinco) anos, com a consequente perda dos direitos e regalias que lhe estão atribuídos pelo tempo correspondente, por suficientes e consequentemente não aplicar a medida de segurança de interdição nos termos dos artigos 66º, nº 1, als. a), b) e c) e 68º e 100º, todos do Código Penal, conjugado com o disposto nos artigos 1º, nºs. 1 e 6, 8º, nºs. 1 e 2, als. b), c), d), e) e f), 10º, nºs. 1 e 2, al. a) e b), 11º, nºs. 1 e 2, al. a), 12º, nº 1 e 2, als. b), g), i), 13º, nºs. 1 e 2, als. a) e j), 14º, nºs. 1 e 2, als. a) e p), todos do Regulamento de Disciplina da G.N.R. aprovado em anexo pela Lei nº 145/99, de 1 de setembro, alterado pela Lei nº 66/2014, de 28 de agosto.

IX – Não aplicar ao arguido BB a pena acessória de proibição do exercício de funções publicas nem aplicar a medida de segurança de interdição.

X - Declarar extinta a medida de coacção aplicada ao arguido CC art. 214º nº 1 al. d) e 376º. n.º 1 do CPP.

2 - Inconformados com as condenações, recorrem os arguidos, concluindo:
(…)
3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu aos recursos dos arguidos, pugnando pela manutenção do decidido.
4. O Digno Procurador-Geral Adjunto, no parecer de fls. 1222 a 1226, pronuncia-se pela improcedência do recurso
5. Admitido o recurso na forma e com o efeito devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. MATÉRIA A DECIDIR

Delimitado o objecto do recurso pelas Conclusões dos Recorrentes, as questões a decidir consistem em saber:

No Recurso de BB:

1. Se a comunicação da alteração não substancial dos factos impõe sejam indicados os meios de prova;

2. Se o Acórdão é nulo;

3. Se o Tribunal errou na decisão da matéria de facto;

4. Se o Acórdão enferma dos vícios previstos nos artigos 410.º do Código de Processo Penal. 

No Recurso de AA:

1. Se o Acórdão é nulo por falta de fundamentação;

2. Se Tribunal errou na decisão sobre a matéria de facto;

3. Se faltam os elementos da co-autoria;

4. Se a pena aplicada se mostra excessiva e desadequada às finalidades da punição.

III. O ACÓRDÃO SINDICADO

Para apreciação da questão suscitada neste recurso, interessa ter presente a fundamentação de facto exarada no acórdão recorrido que se transcreve:

Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:

1.1. - O arguido AA entrou ao serviço da Guarda Nacional Republicana no dia 17 de setembro de 2001 e exerceu, entre o mais, o cargo e as funções inerentes à patente de Guarda Principal, posto esse para o qual foi promovido por despacho proferido no dia 28 de dezembro de 2012, com antiguidade reportada ao dia 12 de janeiro de 2012.

1.2 - No mês de fevereiro de 2014, o arguido AA era titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9.

2.1 - O arguido CC entrou ao serviço da Guarda Nacional Republicana no dia 28 de janeiro de 1980 e exerceu, entre o mais, o cargo e as funções inerentes à patente de Sargento Mor, posto esse para o qual foi promovido por despacho proferido no dia 14 de dezembro de 2005, com antiguidade reportada ao dia 19 de outubro de 2004.

2.2 - Por despacho proferido no dia 27 de fevereiro de 2015 pela Direção da Caixa Geral de Aposentações, foi reconhecido ao arguido CC o direito à aposentação.

3.1 - O arguido BB entrou ao serviço da Guarda Nacional Republicana no dia 1 de setembro de 2003 e exerceu, entre o mais, o cargo e as funções inerentes à patente de 1º Sargento, posto esse para o qual foi promovido por despacho proferido no dia 6 de janeiro de 2016, com antiguidade reportada ao dia 1 de outubro de 2015.

4 - Na qualidade de militares da Guarda Nacional Republicana, no exercício das suas funções e fora delas, os arguidos AA, CC e BB encontram-se obrigados às regras e exigências de cumprir e fazer cumprir a lei, de cumprirem e pautarem a sua actuação no interesse público, de serem exemplos de confiança, de estarem ao serviço quando escalado, de dele não se ausentarem e de comunicarem a respectiva falta e ausência ao serviço, respectivamente, de agirem nos interesses da Guarda Nacional Republicana e do Estado Português, de não retirarem e/ou permitirem que terceiros retirem proventos económicos a que sabem não ter direito à custa daqueles e/ou à custa de terceiros, de não se fazerem valer das patentes, cargos e funções exercidas, encontrando-se sujeitos a critérios e regras de legalidade, objectividade, imparcialidade e independência que devem nortear o exercício de funções públicas.

5.1 - No mês de fevereiro de 2014, o arguido BB exerceu o cargo e as funções inerentes à patente de 2º Sargento, posto esse para o qual havia sido promovido por despacho proferido no dia 2 de outubro de 2012, com antiguidade reportada ao dia 1 de outubro de 2012.

5.2 - No período compreendido entre os dias 3 e 9 de fevereiro de 2014, o arguido BB exerceu o cargo e as funções inerentes do Adjunto do Comandante do Posto da Guarda Nacional Republicana de ..., na altura o Sr. Sargento Ajudante DD.

5.3 - No período compreendido entre os dias 3 e 9 de fevereiro de 2014, o arguido BB substituiu nas suas funções o Sr. Comandante do Posto da G.N.R. de ..., na altura o Sr. Sargento Ajudante DD em virtude de gozo de licença deste último.

5.4 - No exercício dessas funções, cabia ao arguido BB, em substituição deste último, DD, entre o mais, fazer cumprir as leis, regulamentos e quaisquer outras instruções em vigor por parte dos militares sob o seu comando e, bem assim, efectuar a nomeação dos militares que estivessem na situação de disponíveis no mapa diário para qualquer serviço de escala que devesse ser feito.

5.5 - A nomeação dos referidos militares para o serviço de escala, apenas e tão só a cargo do arguido BB, por causa das ditas funções de Comandante de Posto em Substituição, devia ser feita, no mínimo, no dia anterior ao da sua execução.

6.1 - Depois de efectuada a nomeação dos militares para o serviço de escala, esta era preenchida, a mando do arguido BB, pelo militar escalado para o Atendimento ao Público no dia anterior ao da sua execução, no Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ....

6.2 - O Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ... é o equivalente ao registo diário de tudo o que se passa por dia no Posto, livro esse no qual são preenchidos os serviços que os militares da G.N.R. têm de prestar de acordo com a escala, que é previamente afixada no Posto, pelo que o preenchimento é sempre efectuado no dia anterior.

6.3 - No Livro de Relatório Diário são assinalados o Quadro a que os Militares pertencem (Infantaria / Cavalaria), a Subunidade (número de ordem/profissional), o Posto que ocupam (Sargento Ajudante, 2º Sargento, Furriel, Cabo, Guarda Principal e Guarda), o tipo de Pessoal que irá fazer o Serviço para o qual está escalado, Serviço esse que é assinalado no quadrado respectivo ao número de ordem/profissional, com uma linha diagonal dentro desse próprio quadrado.

6.4 - Quando existe alguma alteração de escala e/ou de serviço a prestar pelo militar que se encontra escalado para esse serviço, é colocado um “parêntesis à volta da linha diagonal que está dentro do dito quadrado” e essas alterações são escritas à mão no campo próprio para o efeito, denominado “Alterações à Situação do Efectivo”.

6.5 - Na sequência dessa alteração de escala e/ou de serviço a prestar, se o militar inicialmente escalado vier a ser escalado para novo serviço nesse dia, ou, por exemplo, entrar de licença por motivo justificado, é, de novo, na linha própria e respectiva ao respectivo número da Subunidade (número de ordem/profissional) que lhe pertence, assinalada no quadrado respectivo, uma linha diagonal dentro do quadrado correspondente ao novo serviço a prestar, ou o motivo da licença a gozar.

7.1 - Para esse efeito, no dia 8 de Fevereiro de 2014, pelas 14:41 horas, o arguido BB remeteu, em ficheiro Excel, através do seu e-mail ..........@....., para o e-mail ..........@....., pertença de EE, Guarda da G.N.R. com Número de Ordem/Profissional nº ...5, a nomeação por si efectuada respeitante aos militares para o serviço de escala do dia seguinte, dia 9 de Fevereiro de 2014, Domingo.  

7.2 - Nesse seguimento, de entre o mais, o arguido BB remeteu ao dito EE, em ficheiro Excel, a nomeação por si efectuada respeitante aos seguintes militares para o serviço de escala do dia 9 de Fevereiro de 2014, Domingo.

a) O arguido AA, com Número de Ordem/Profissional nº ...9, para o Serviço de Secretaria;

b) O Guarda FF, com Número de Ordem/Profissional nº Guarda, nº ...8, para o Serviço de Atendimento, no período compreendido entre as 9:00 horas e as 17:00 horas do dia 9 de fevereiro de 2014;

c) O Guarda Principal GG, com Número de Ordem/Profissional nº ...4, para o Serviço de Atendimento, no período compreendido entre as 17:00 horas do dia 9 de fevereiro de 2014 e a 1:00 hora do dia 10 de fevereiro de 2014;

d) O Cabo HH, com Número de Ordem/Profissional nº 480, para o Serviço de Patrulha, nº 59 – Mercado de..., no período compreendido entre as 6:00 horas e as 12:00 horas do dia 9 de fevereiro de 2014 e para o Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas desse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014;

e) O Guarda II, com Número de Ordem/Profissional nº 902, para o Serviço de Patrulha, nº 59 – Mercado de..., no período compreendido entre as 6:00 horas e as 12:00 horas do dia 9 de fevereiro de 2014 e para o Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas desse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014;

f) O JJ, com o   Número de Ordem/Profissional nº 849, para o Serviço de Patrulha, nº 61 – Mercado de..., no período compreendido entre as 9:00 horas e as 14:00 horas do dia 9 de fevereiro de 2014 e para o Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas desse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014.

7.3 - Na sequência do descrito em 7.1 e 7.2, EE, Guarda da G.N.R. com Número de Ordem/Profissional nº ...5, procedeu ao preenchimento da referida escala, no Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ....

8.1 - Pelo menos no ano de 2014, a Secretaria do Posto da G.N.R. de ... encontrava-se aberta e em funcionamento ao público, de Segunda a Sexta-feira, no horário compreendido a 9:00 horas e as 17:00 horas, com uma hora de intervalo para almoço.

8.2 - Em face do descrito em 8.1, nesse dia 9 de fevereiro de 2014, domingo, a Secretaria do Posto da G.N.R. de ... encontrava-se encerrada ao público.

8.3 – No dia 9 de fevereiro de 2014, domingo, o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, não se apresentou no Posto da G.N.R. de ... para poder prestar qualquer tipo de serviço, pelas 9:00 horas da manhã, não obstante ter sido escalado pelo arguido BB, nos termos descritos em 7.1 e 7.2, al. a).

8.4 - O arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, não pediu, nem solicitou, nem lhe foi dada qualquer autorização para não se ter apresentado no Posto da G.N.R. de ... para poder prestar qualquer tipo de serviço, nem apresentou qualquer justificação para ali não ter comparecido pelas 9:00 horas da manhã.

8.5 - Não obstante o descrito em 7.1, 7.2, al. a), 8.1 a 8.4, o arguido BB não comunicou, nem deu a conhecer ao Comando Territorial da G.N.R., que o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, não se tinha apresentado ao serviço no Posto da G.N.R. de ..., como podia e era seu dever fazê-lo, por exercer o cargo e as funções inerentes do Adjunto do Comandante do Posto da Guarda Nacional Republicana de ..., nos termos descritos em 4.

9 - No dia 9 de fevereiro de 2014, pelas 12:00 horas, o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, conduzia o veículo automóvel, ligeiros de passageiros, de matrícula ..-EQ-.., na Auto-Estrada A-24, ao quilómetro 124,300, atento o sentido de marcha Norte – Sul.

10 - Altura em que, por razões não concretamente apuradas, foi interveniente em acidente de viação, por despiste.

11 - O trajecto entre o local do despiste (km 124,300 da Auto-Estrada A24) e o Posto da G.N.R. de ..., dista daquele entre 248 km, pela distância mais curta (via IP3), e dista a daquele a 276 km, pela distância mais longa (via A25A1-A8), percursos esses que, cumprindo as regras estradais, demoram a percorrer 2 (duas) horas e 23 (vinte e três) minutos e 2 (duas) horas e 32 (trinta e dois) minutos, respectivamente.

12.1 - Na sequência dos factos descritos em 10. o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, sofreu ferimentos.

12.2 - Aos quais foi observado, tratado e medicado no Centro Hospitalar de Viseu, EPE (...), no Centro Hospitalar do Oeste – ... e ..., no Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE (...), no Centro Hospitalar São Francisco, e na Clínica ..., em ....

13 – Sabedor de que o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, se encontrava escalado para comparecer no Posto da G.N.R. de ... pelas 9:00 horas do dia 9 de Fevereiro de 2014, que aquele não estava ali a prestar qualquer tipo de serviço, e que tinha sido interveniente em acidente de viação na sequência do qual tinha sofrido ferimentos, o arguido  BB decidiu alterar a escala, no Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ..., por forma a que:

13.1- O arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional  nº ...9, deixasse de estar escalado para o Serviço de Secretaria, tal qual havia sido inicialmente escaldado nos termos descritos em 7.2 a);

13.2 - O arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, passasse a estar escalado para o Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas desse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014;

13.3 - O Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, desse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014, passasse a constar como tendo sido efectuado no período compreendido entre as 16:00 horas e as 22:00 horas, o que não se verificou;

13.4 - Para assim fazer crer e acreditar, quer ao Estado Português – Ministério da Administração Interna - Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana, quer ao ofendido “Caixa Geral de Aposentações, IP”, o que sabia não ser verdade, que o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9, se encontraria no percurso desde a sua residência até ao seu local de trabalho, o Posto da G.N.R. de ..., quando foi interveniente no acidente de viação referido em 10 a 12;

13.5 - E, dessa forma, convencer e enganar, quer o Estado Português – Ministério da Administração Interna – Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana, quer o ofendido “Caixa Geral de Aposentações, IP”, que o acidente de viação referido em 10 a 12 tinha sido “como acidente de serviço” - quando o não era - e estes, assim enganados, convencidos de que assim havia sido, a suportarem o pagamento de despesas médicas através dos Serviços Sociais da G.N.R., e, a final, caso assim viesse a ser o caso, mediante atribuição de grau de invalidez, e de  manutenção do vencimento, decorrentes da classificação como acidente em serviço do acidente de viação sofrido.

14 - Na sequência do descrito o arguido BB deslocou-se ao Posto da G.N.R. de ....

15 - E, aí chegado, pediu a FF, com Número de Ordem/Profissional nº Guarda, nº ...8 o Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87), após o que levou consigo, para o seu Gabinete.

16.1 - Após o que, “na linha e no quadrado” da escala que se encontrava inicialmente atribuída ao arguido AA, titular do            Número de Ordem/Profissional nº ...9 - na Secretaria - com o seu próprio punho, o arguido BB colocou um “parêntesis à volta da linha diagonal que está dentro do dito quadrado”.

16.2 - E, graficamente, nos seguintes termos: (…)

17.1 - De seguida, na sequência dessa alteração de escala e/ou de serviço a prestar, o arguido BB escalou, com o seu próprio punho, o arguido AA, titular do Número de Ordem/Profissional nº ...9 - ao Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas desse mesmo dia 9 de Fevereiro de 2014, nele tendo escrito, no campo destinado à “ACTIVIDADEOPERACIONAL–           COMPOSIÇÃO DA PATRULHA”, o número “...9”, correspondente ao Número de Ordem/Profissional daquele.

17.2 - E, graficamente, nos seguintes termos: (…)

18.1 - No dia 9 de fevereiro de 2014, para o Serviço de Patrulha, nº 58 – Policiamento ao Giro 1, no período compreendido entre as 14:00 horas e as 18:00 horas, encontravam-se inicialmente escalados os Militares HH, titular do Número de Ordem/Profissional nº 480, KK, titular do Número de Ordem/Profissional nº 849 e LL, titular do Número de Ordem/Profissional nº 902.

18.2 - Serviço esse que no período compreendido entre as 15 horas e as 17h30m consistiu apenas e tão só na “representação do Comandante em Substituição e dos Militares do Posto da G.N.R. de ...”, nas cerimónias fúnebres pelo óbito do progenitor de HH, titular do Número de Ordem/Profissional nº 480.

18.3 - Nas quais estiveram presentes, o arguido BB, na qualidade de Comandante de Posto em Substituição, juntamente com os militares KK, titular do Número de Ordem/Profissional nº 849 e LL, titular do Número de Ordem/Profissional nº 902.

19 - Nesse mesmo dia 9 de fevereiro de 2014, o arguido BB, na qualidade de Comandante de Posto em Substituição, disse a KK, com Número de Ordem/Profissional nº 849: “Temos de ajudar o AA para aquilo ser acidente de serviço.”

20.1 - No dia 9 de fevereiro de 2014, EE, Guarda da G.N.R. com Número de Ordem/Profissional nº ...5, escreveu a fls. fls. 48 v. do Apenso 2 – Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: - Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87, no campo sob a epígrafe “ALTERAÇÕES À SITUAÇÃO DO EFECTIVO”: “(…) Licença de Férias – S. AJ 43 MM nº 807 NN”.

20.2 - E graficamente, nos seguintes termos: (…)  

20.3 – No dia 10 de fevereiro de 2014 o arguido AA tomou conhecimento dos factos praticados pelo arguido BB, supra descritos, a cujo propósito aderiu.

21.1 - No dia 10 de fevereiro de 2014, após o regresso das suas férias, o Sr. Sargento Ajudante DD, escreveu a fls. fls. 48 v. do Apenso 2 – Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: - Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87, no campo sob a epígrafe “ALTERAÇÕES À SITUAÇÃO DO EFECTIVO”: “(…) o Guarda Principal nº ...4, GG entrou de licença por falecimento familiar (avó da mulher), por 02 dias.

21.2 - E graficamente, nos seguintes termos: (…)

22.1 - No dia 10 de Fevereiro de 2014, após o Sr. Sargento Ajudante DD ter escrito a fls. 48 v. do Apenso 2 – Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: -- Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87, no campo sob a epígrafe “ALTERAÇÕES À SITUAÇÃO DO EFECTIVO” o descrito em 21.1 e 21.2, o arguido BB, na qualidade de Comandante de Posto em Substituição no dia 9 de Fevereiro de 2014, a seguir nele escreveu: - (…) “A Patrulha nº 58 efectuou serviço das 16H00 às 22H00 horas, por os militares que a compõem terem comparecido no funeral do familiar do Cabo DD, em representação. ..., 09/02/2014 (…), em substituição BB Sargento”

22.2 - E graficamente, nos seguintes termos: (…)

23.1 - Bem sabendo o arguido BB, na qualidade de Comandante de Posto em Substituição, que o teor do escrito e descrito em 22.1 e 22.2, em face do ocorrido e descrito 18.1 a 18.3, não era verdadeiro.

24 – Na sequência da actuação levada a cabo pelo arguido BB, o teor de fls. 47 a 48 v. do Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87) foi entregue no Processo Acidente em Serviço PAS nº 185/14....

25 - Por via da actuação levada a cabo pelo arguido BB, convencido e enganado que o acidente de viação referido em 10 a 12 tinha sido “um acidente de serviço”, o Estado Português – Ministério da Administração Interna, por despacho proferido no dia 27 de fevereiro de 2015 pelo Exmº. Sr. 2º Comandante Geral da Guarda, qualificou e considerou o acidente de viação sofrido pelo arguido AA como acidente ocorrido em serviço (OS CTLEIRIA 57/15).

26.1 - Na sequência dos factos descritos em 10., 12.1 e 12.2, os tratamentos médicos prestados ao arguido AA importaram na quantia global de 2.299,39 € (dois mil duzentos e noventa e nove euros e trinta e nove cêntimos).

26.2 - Quantia essa que o Estado Português – Ministério da Administração Interna- Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana pagou àquelas instituições hospitalares, convencido, enganado e convicto de que o acidente de viação sofrido pelo arguido AA nos termos supra descritos tinha sido um acidente ocorrido em serviço, o que este último, assim como o arguido BB, bem sabia não corresponder à verdade.

26.3 - A referida quantia pecuniária - correspondente a 2.299,39 € (dois mil duzentos e noventa e nove euros e trinta e nove cêntimos) - corresponde a proventos resultantes da prática daqueles factos e, em consequência, o arguido BB logrou conseguir que o arguido AA engrandecesse, de forma directa, adequada e necessária, o seu património no correspondente valor, à custa do ofendido Estado Português – Ministério da Administração Interna- Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana.

27.1 – Na sequência de acordo e actuação conjunta então levada a cabo pelos arguidos BB e AA, o teor de fls. 47 a 48 v. do Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87) foi posteriormente entregue à Caixa Geral de Aposentações, IP, com vista à classificação do acidente como "acidente de serviço" e consequente atribuição ao arguido AA de benefícios indevidos, a que o mesmo não tinha direito, o que ambos os referidos arguidos bem sabiam, quiseram e conseguiram.

27.2 - Por via da actuação levada a cabo pelo arguido BB, e à qual o arguido AA aderiu, convencido e enganado que o acidente de viação referido em 10 a 12 tinha sido “um acidente de serviço”, o ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP. acreditou e ficou convencido que o acidente de viação que este último havia sofrido havia sido considerado como acidente de serviço,

27.3 - E, por via disso, na sequência das lesões corporais sofridas pelo arguido AA, conseguiu este e o arguido BB que viesse a ser conferida àquele uma incapacidade permanente parcial, com desvalorização de 10 %, conforme parecer da Junta Médica da C.G.A., que teve lugar no dia 11 de Outubro de 2016, homologado por despacho da Direcção da C.G.A. de 28 de Dezembro de 2016.

27.4 - Em consequência, os arguidos AA e BB conseguiram que a C.G.A., atribuísse ao primeiro, a título de pensão anual, a quantia de 1.267,93 € (mil duzentos e sessenta e sete euros e noventa e três cêntimos).

27.5 - E, tendo em conta a data de nascimento do arguido AA, ao montante anual daquela e ao coeficiente aplicável ao capital de remição, os referidos arguidos conseguiram que àquele fosse pago pelo ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP. o capital de remição de 20.116,98 € (vinte mil, cento e dezasseis Euros e noventa e oito cêntimos).

27.6 - Capital de remição esse que o ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP. pagou ao arguido AA no dia 17 de Janeiro de 2017.

27.7 - Por via do agravamento das lesões corporais pelo mesmo sofridas, o arguido AA conseguiu que lhe viesse a ser conferida uma incapacidade permanente parcial, com desvalorização de 12 %, conforme parecer da Junta Médica da C.G.A., que teve lugar no dia 14 de Junho de 2021, homologado por despacho da Direcção da C.G.A. de 27 de Julho de 2021. 

27.8 - E, em consequência, os arguidos AA e BB conseguiram que a C.G.A., revisse e atribuísse ao primeiro, a título de pensão anual, actualizada, a quantia de 1.521,51 € (mil quinhentos e vinte e um Euros e cinquenta e um Cêntimos).

27.9 - E, face à data de nascimento do arguido AA, ao montante anual daquela e ao coeficiente aplicável ao capital de remição, conseguiram os referidos arguidos que àquele fosse pago pelo ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP. o capital de remição de 22.871,34 € (vinte e dois mil, oitocentos e setenta e um Euros e trinta e quatro cêntimos).

27.10 - Ao capital de remição fixado foi deduzido o diferencial entre o capital de remição referido em 27.5 e já pago nos termos referidos em 27.6 e o valor das pensões correspondentes ao período de 18 de Fevereiro de 2016 e o dia 14 de Julho de 2021, no valor de 6,850,63 € (seis mil, oitocentos e cinquenta Euros e sessenta e três Cêntimos).

27.11 - Na sequência do descrito em 27.10, o ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP. pagou ao arguido AA a quantia adicional de 9.604,99 € (nove mil, seiscentos e quatro euros e noventa e nove cêntimos), no dia 19 de Agosto de 2021: (Informação do ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP., de fls. 703 a 710) - correspondente 22.871,34 € - 20.116,98 € = 2.754,36 € + 6.850,63 € = 9.604, 99 €.

27.12 - A referida quantia pecuniária - correspondente a 29.721,97 € (vinte e nove mil, setecentos e vinte e um euros e noventa e sete cêntimos) -corresponde a proventos resultantes da prática daqueles factos e, em consequência, o arguido BB logrou conseguir que o arguido AA engrandecesse, de forma directa, adequada e necessária, o seu património no correspondente valor, à custa o ofendido Caixa Geral de Aposentações, IP.

28 - O arguido AA foi condenado por douto Acórdão proferido no dia 8 de Julho de 2019, transitado em julgado no dia 23 de Setembro de 2019, nos Autos de Processo Comum Colectivo nº 7/16...., do Juízo Central Criminal de Leiria, pela prática de 1 (um) crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375º, nº 1, do Código Penal e de 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, al. a) e 256º, nºs. 1, als. b) e d) e 4, ambos do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa por igual período, acompanhada de regime de prova, já declarada extinta.

29 - O arguido BB sabia que, tinha fabricado e alterado uma escala de serviço, de forma não verdadeira, nos termos supra descritos e bem sabia que, com a sua supra descrita conduta, abalava a credibilidade pública que devem merecer as Escaldas de Serviços constantes do Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ...: Relatório Diário (Mod. CEGRAF/GNR nº 87).

30. Por via das suas descritas actuações, os arguidos AA e BB causaram os correspondentes prejuízos patrimoniais para os ofendidos Estado Português – Ministério da Administração Interna - Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana e Caixa Geral de Aposentações, IP., e bem assim causaram prejuízos resultantes da desconfiança criada sobre a autenticidade das referidas Escalas de Serviço.

30 – O arguido BB sabia que os seus actos dos quais o arguido AA tomou conhecimento e aos quais aderiu, não se enquadravam no âmbito das suas funções e deveres que detinham e deviam observar, dentro e fora da sua profissão, e sabiam que, de comum acordo, para cuja concretização vieram a conjugar esforços e intentos, tinham fabricado e alterado uma escala de serviço, de forma não verdadeira para que, dessa forma, poderem, como efectivamente puderam, enganar e convencer o Estado Português – Ministério da Administração Interna- Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana, assim como o ofendido “Caixa Geral de Aposentações, IP”, a “considerar um acidente de serviço” - quando o não era - e estes, assim enganados, convencidos de assim havia sido, suportaram o pagamento de despesas médicas através dos Serviços Sociais da G.N.R., e, a final, mediante atribuição de grau de invalidez, e de manutenção do vencimento, decorrentes da classificação como acidente em serviço do acidente de viação sofrido, respectivamente, nos termos supra descritos, obtendo deles os correspondentes benefícios pecuniários, a que todos eles sabiam que o arguido AA não tinha direito, com os correspondentes e consequentes empobrecimentos patrimoniais dos ofendidos.

31 - Os factos praticados pelos arguidos AA e BB são particularmente graves, uma vez que os mesmos violaram a fidelidade reclamada pelas suas patentes e qualidades militares da Guarda Nacional Republicana, e violaram, com as suas condutas e desempenho não profissionais, respectivamente, as regras e exigências de cumprir e fazer cumprir a lei, de cumprir e pautar a sua actuação no interesse público, de serem exemplos de confiança, de estar ao serviço quando escalado e dele não se ausentar, de comunicar a respectiva falta e ausência ao serviço, de agirem nos interesses da Guarda Nacional Republicana e do Estado Português, de não retirarem e/ou permitir que retirasse proventos económicos a que sabiam não ter direito à custa daqueles e à custa do ofendido “Caixa Geral de Aposentações, IP”, de não se fazerem valer das patentes, cargos e funções exercidas, de legalidade, objectividade, imparcialidade e independência que devem nortear o exercício de funções públicas.

32 - A personalidade dos arguidos AA e BB, manifestada nos factos por si praticados e os elevados graus de culpa colidem com os fins institucionais de cargos públicos, de onde resulta a incompatibilidade absoluta entre as acções praticadas e a sua manutenção no exercício de funções públicas, bem como de qualquer outro cargo público cujo exercício pressuponha a observância e o respeito daqueles deveres, por inexistência de condições de dignidade, probidade e confiança.

 33 - Ao terem actuado das formas supra descritas, os arguidos AA e BB agiram de forma deliberada, livre e consciente, mediante plano que elaboraram e, para cuja concretização, vieram a conjugar esforços e intentos, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

34 - Do certificado de registo criminal do arguido AA, consta a seguinte condenação: Por decisão de 8.07.2019, transitada em julgado a 23.09.2019 o arguido foi condenado no âmbito do Processo 7/16.... do JC Criminal Juiz ... do Tribunal Judicial ..., pela prática de um crime de peculato, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

35 - Dos certificados de registo criminal dos arguidos CC e BB, nada consta.

36 – Do relatório social do arguido AA consta o seguinte:

(…)

39- O arguido CC telefonou para o hospital a fim de obter informações sobre o estado de saúde do seu filho.

40 - O arguido BB encontrava-se desde as 08h00 da manhã do dia 9.2.2014 a executar o serviço gratificado no Mercado de....

41 - As cerimónias fúnebres do pai do Cabo HH realizaram-se no dia 09 de fevereiro de 2014 entre as 15 horas e as 17 horas aproximadamente.

42 - A patrulha n.º 58, cujo início estava inicialmente agendado para as 14h00 do dia 9.2.2014 não chegou a começar, para irem fazer as honras fúnebres.

43 - O serviço da patrulha nº 58 foi ir ao funeral do pai do Cabo DD e fazer as honras fúnebres.

44 - É usual no seio da GNR constituírem-se representações voluntárias de camaradas para acompanhar o féretro e assim demonstrarem e/ou prestarem apoio ao camarada que está a passar uma hora difícil, de modo a fazer sentir neste que não está ali sozinho.

45 - A presença do Guarda JJ e Guarda II naquelas cerimónias fúnebres resultou de um ato voluntário da sua parte.

46 - O Guarda II, iniciou o serviço de atendimento, pelas 17h00.

47 - O arguido BB, depois de ser informado do falecimento do pai do Cabo DD, no final da manhã do dia 08 de fevereiro de 2014, contactou o Comandante de Destacamento das ..., o Sr. OO, à data com o posto hierárquico de capitão, para lhe dar nota desse facto e para o indagar se o efetivo do posto iria ou deveria fazer-se representar no funeral, obtendo a sua anuência.

48 - Tendo, em seguida, enviado um email às 14h41 para o Guarda EE que se encontrava de serviço de atendimento ao público no período compreendido entre as 09h00 e as 17h00, para que este inscrevesse no livro de relatório de serviço - mod. 4, as alterações resultantes do facto do Cabo HH estar de “licença de nojo” no dia seguinte.

49 - Foi então transmitido ao Guarda EE para inscrever no livro relatório diário – mod. 4, a patrulha n.º 58 no horário inicialmente planeado no dia anterior, ou seja, no período compreendido entre as 14h00 e as 18h00.


*

 (…)

IV. O OBJECTO DO RECURSO

A – Recurso interlocutório BB

1. Alteração não substancial dos factos

1.1. Comunicação da alteração não substancial dos factos: falta de indicação meios de prova

Na sessão de julgamento de 23 de março de 2023, o Tribunal recorrido comunicou aos arguidos a alteração não substancial dos factos narrados a fls. 1078 a 1079.

Notificados os arguidos para se pronunciarem, veio BB requerer: (i) que lhe fossem comunicados os meios de prova que determinaram a indiciação dos novos factos e (ii) que lhe fossem comunicados quais dos factos indiciados na pronúncia se deverão considerar substituídos, alterados ou complementados face aos novos factos.

Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:

«Vem o arguido BB, na sequência do despacho proferido pelo Tribunal Coletivo de comunicação de alteração não substancial dos factos nos termos do artº 35º nº 1 do CPP requerer que o Tribunal lhe comunique os meios de prova que determinaram a indicação pelos novos factos e que lhe seja ainda comunicado quais os factos indiciados na pronuncia se deverão considerar como substituídos, alterados ou complementados, face aos novos factos descritos no despacho proferido para que possa exercer eficazmente o eu direito de defesa.

Cumpre decidir:

O despacho que comunica a alteração não substancial dos factos ao arguido não é um ato decisório, consistindo numa alteração à peça acusatória/instrutória do processo bastando-se a fundamentação com a referência feita de forma genérica de que tal alteração proveio da discussão da causa, sem curar de estabelecer qualquer correspondência entre cada facto e cada prova.

“A lei não impõe, aquando da comunicação da alteração de factos, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º, a indicação dos meios de prova, o que bem se compreende por se tratar de factos indiciados e de não factos provados, perante os quais a defesa, se assim o entender, ainda pode apresentar novos meios de prova. Não há na lei nenhum normativo que exija que o tribunal deva conhecer antes do acórdão (ou sentença) das questões relacionadas com a resposta de um arguido à comunicação do artigo 358º do CPP, bastando-se a lei com o facto de ser dado efectivo conhecimento à defesa da probabilidade de vir a ser fixada nessa peça final uma nova factualidade, podendo ela assim arrolar prova nova, podendo até mudar a sua estratégia de defesa, fazendo-o em tempo e a tempo, não ficando, pois, prejudicados os seus direitos.” cf. Ac. TRC Recurso Penal Nº 260/11.1JALRA.C1 de 12-07-2022 “.

Assim sendo, indefere-se o requerido pelo arguido.»

É contra esta decisão que se insurge o Recorrente, BB, alegando que a interpretação do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos, efetuada na audiência de julgamento destinada à leitura do acórdão, ou seja, já após ter sido produzida toda a prova, não carece de ser acompanhada da referência aos meios de prova indiciária em que se fundamenta, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. 

Será assim?

A estrutura acusatória do processo penal consagrada no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa significa que é a acusação que define e fixa o objecto do processo, não podendo, o tribunal, por regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, devendo este manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença.  «Só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento». - Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada e Comentada, p. 205.

Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa.

Daí que, para salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido, não pode o tribunal promover a alteração do objecto do processo, nem condenar o arguido para além deste.

Sucede que, na dinâmica processual pode acontecer que, no decurso da instrução ou do julgamento surjam novos factos, que a não serem admitidos, poderiam comprometer os princípios de investigação, da verdade material, celeridade e economia processual, também eles coexistentes no ordenamento processual penal, questão que o legislador resolveu com a admissão de factos ou circunstâncias que, não sendo objecto de acusação, possam ser consideradas pelo Tribunal, desde que o núcleo essencial da acusação se mantenha o mesmo e da alteração não resulte insuportavelmente afectada a defesa do arguido. [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, p. 273].

«Se, como é sabido, a acusação do MP delimita o objecto do processo, não delimita o objecto da discussão (Cf. o n.º 4 do artigo 339º. “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º). Com efeito, o tribunal está vinculado ao objecto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, mas não está vinculado à acusação ou à pronúncia – sendo que este último segmento do que vem de ser dito, carece de ser entendido em termos mais complexos.

É certo que o tribunal está vinculado ao objecto do processo, definido pela acusação ou pela pronúncia, e o objecto do processo pode ser definido, segundo uma concepção prevalecente na doutrina e na jurisprudência, “como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida». (Cf. Frederico Isasca, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, p. 84)

«Portanto, um facto que pode ser constituído por uma multiplicidade de factos singulares que se conjugam numa unidade de sentido, permitindo apercebê-lo como um acontecimento da vida real, dotado de individualidade e de características próprias (o tal pedaço de vida), incindível enquanto formando um todo significante do ponto de vista social e do ponto de vista jurídico, na medida em que esse complexo de elementos pode ser também relevante deste último ponto de vista e, nomeadamente, do ponto de vista jurídico-penal. Por conseguinte, o objecto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é que é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer. Em tal sentido, a acusação funciona como garantia para o arguido: ”(…) a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal - mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada»: (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, p.4tr 210).

Daí o regime de alteração substancial e não substancial dos factos regulado no artigo 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal.

Ao caso importa a alteração não substancial - aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação do limite máximo da pena aplicável [artigo 1º, alínea f) a contrario] – que deve ser comunicada ao arguido, concedendo a este o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa [n.º 1 do artigo 358.º, o Código de Processo Penal], ressalvando-se os casos em que a alteração derive de factos alegados pela defesa [n.º 2, do citado artigo e diploma].

A garantia da eficácia do direito de defesa do arguido engloba um outro princípio fundamental, o do contraditório [artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa].

Ao elevar à categoria constitucional a observância de tal princípio, há-de ter sido intenção do legislador constituinte que o seu desrespeito fosse alvo de uma reacção para que ninguém possa ser alvo de uma condenação sem que, previamente, lhe seja concedida a possibilidade de se pronunciar sobre o concreto ponto em causa.

Concretizando o direito de defesa e contraditório do arguido, impõe o artigo 358.º, nº 1, º do Código de Processo Penal:

«Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».
Através desta comunicação, dá-se conhecimento ao arguido de factos que, não figurando na acusação, poderão vir, eventualmente, a ser julgados provados na sentença, mas não necessariamente.
Tais factos, estão ainda sujeitos ao contraditório e à produção de prova, só depois se decidindo, se integram o elenco dos factos provados na sentença.  
O que quer dizer tal comunicação é provisória e não afecta qualquer direito do arguido, posto que lhe concede o efectivo exercício do direito de defesa e contraditório.
Tais princípios, sendo transversais a todo o processo penal, implicam que a comunicação dos factos seja feita com todo o cuidado e rigor de modo ao exercício eficaz da defesa.
Porém, com o devido respeito pela opinião contrária, tal não significa que se exija uma fundamentação de facto relativamente à enunciação dos meios de prova e às respectiva valoração. 
Com efeito, tal imposição não resulta nem da letra, nem do espirito nem da teleologia do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Não se exige a menção aos meios de prova, mas aos factos que consubstanciem uma alteração não substancial aos narrados na acusação ou na pronúncia.
Conhecidos os factos, pode, então, haver lugar à indicação e produção dos meios de prova requeridos pelo arguido [artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal], ou de outra prova determinada ao abrigo do disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal.
São, pois, os factos que constituem objecto de defesa e do contraditório, pois são estes que são novos, sobre os quais, o arguido ainda teve oportunidade de se pronunciar.
Já no que respeita às provas, nenhuma novidade surge para o arguido. Os factos alterados decorrem precisamente da dinâmica da prova produzida em audiência, sujeita ao escrutínio dos sujeitos processuais, relativamente à qual, o arguido teve oportunidade de se pronunciar, de se defender e de exercer o contraditório.
A questão poder-se-ia colocar se a alteração factual assentasse em novas provas, caso em que haveria que observar o principio do contraditório, mas este não é o nosso caso.
Ademais, a prova que tem por finalidade exclusiva a demonstração de um facto, só faz sentido depois desse facto ser identificado e integrado no objecto do processo.
Como assinala, Frederico Isasca, ob.  citada, p. 200 a 201, a produção da prova pressupõe que os factos sobre que recai façam parte do objecto do processo, o que, no caso do artigo 358º, só é possível após a comunicação ao arguido da alteração e da concessão dos direitos de defesa que o preceito impõe. Não é, pois, correcto falar-se de novos factos provados ou não provados. O mais que se poderá afirmar é que estão indiciados ou fortemente indiciados.
Da comunicação dos factos nenhuma vinculação resulta para o Tribunal. Este é livre de os apreciar na sentença final nos precisos termos em que aprecia os descritos no libelo acusatório, bem como é livre de apreciar a prova produzida. 
Por outro lado, constituindo a indicação das provas um elemento essencial da acusação ou despacho de pronúncia se o houver, quer porque delimita o âmbito da investigação probatória do tribunal – em principio só aquelas, as provas que o tribunal deverá produzir e analisarem julgamento – quer porque possibilita a defesa do arguido [artigos 283.º,  n.º 3, e), f) e g) e artigo 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal], não deixa de ser uma indicação genérica para sustentar toda a factualidade, não exigindo qualquer motivação ou relação com o facto ou grupo de factos concretamente narrados. [Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra coletiva, 2014, p. 993].
Ora, se a alteração de factos surge no decurso da audiência e decorre da prova produzida (devidamente contraditada pelo arguido), redundaria numa inutilidade a referência aos meios de prova produzidos.
Pelo que, a enunciação do probatório só faria sentido se o tribunal procedesse a uma verdadeira motivação de facto, antecipando, assim, a análise critica da prova para a fase anterior às alegações, deixando transparecer uma valoração probatória que, não o vinculando na sentença final, se revelaria, também um acto inútil.
A comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 1, em análise, respeita, assim, aos factos e não aos meios de prova já realizados ou à respectiva valoração, como se se tratasse de uma decisão de factos provados que, como já vimos não é.
Termos em que se conclui que, no caso em apreço, a comunicação da alteração não substancial dos factos exige a indicação dos factos indiciados, mas não a concretização dos meios de prova que os determinam.
Esta interpretação não viola os princípios da defesa, acusatório e contraditório consagrados no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido, decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 216/2019, citado no Acórdão  n.º 73/2023, (acessível em www.dgsi.pt e /www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230073.html):  
«Não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta».
E isto porque, lê-se naquele Aresto:
«(…) a não referência dos meios de prova em que se baseia a comunicação de novos factos indiciados, integrantes da categoria legal de alteração não substancial, traduz-se apenas numa não especificação dos mesmos, de entre todos os que, tendo sido produzidos ou sendo valoráveis em julgamento, se encontram na totalidade identificados.
Nesta perspetiva, a omissão de menção especificada não se reflete, em bom rigor, e ao contrário do que sustenta o recorrente, numa diminuição das garantias de defesa face ao que goza o arguido perante a notificação da acusação. Desde logo porque, nos termos do artigo 283.º, também a peça de acusação não carece de relacionar especificadamente os factos imputados e os meios de prova, bastando-se com a indicação em rol das testemunhas a ouvir e a indicação de outros meios de prova, sem especificação dos concretos factos, isoladamente considerados ou agrupados segundo uma qualquer classificação, a que cada fonte probatória se reporta.  O mesmo acontece com o despacho de pronúncia, ao qual são aplicáveis, nessa parte, os requisitos da acusação (artigo 308.º, n.º 2, do CPP).
Mais: a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência.
A valoração da prova produzida e a decisão sobre a verdade dos factos imputados (os factos que integram a acusação ou pronúncia, assim como os novos factos comunicados em cumprimento do n.º 1 do artigo 358.º do CPP), ocorre apenas com a emissão da sentença ou acórdão, juízo de facto sobre o qual recai uma exigência de fundamentação especificada e tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2 do CPP), com cominação de nulidade do ato judicativo (artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
Desta forma, tendo em conta, por um lado, que, não obstante não existir uma indicação especificada dos meios de prova relevantes para o juízo de indiciação conducente à comunicação de factos prevista no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, se encontra assegurada a identificação da totalidade dos meios de prova, produzidos ou valoráveis em fase de julgamento, e, por outro lado, que os factos comunicados são apenas indiciados, conclui-se que a interpretação normativa em sindicância não fere o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
De facto, perante a comunicação da alteração não substancial dos factos, ainda que desacompanhada da referência aos meios de prova em que se fundamenta, a possibilidade de o arguido utilizar um prazo para preparar a sua defesa, nomeadamente arrolando novos meios de prova e proferindo alegações, a final, sobre toda a prova produzida, salvaguarda o direito do mesmo a poder pronunciar-se sobre todos os factos e questões que, direta ou indiretamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo.
Por tais razões, entendemos que a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que ora se sindica, no sentido de que a comunicação da alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, nos termos dos citados preceitos, não carece de ser acompanhada da referência aos meios de prova indiciária em que se fundamenta, não impede uma defesa eficaz do arguido, não se mostrando, por essa razão, passível de censura jurídico-constitucional, por afetação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente por inobservância do princípio do contraditório».
Acolhendo na íntegra estes argumentos e não sobrevindo ao despacho de pronúncia novos meios de prova, a falta de especificação dos meios de prova que fundamentaram a alteração não substancial não viola quaisquer direitos de defesa, do acusatório e do contraditório, nos termos defendidos pelo Recorrente.
Improcede, pois, a V e VI Conclusões do Recurso.

1.2. Irregularidade do despacho que indeferiu a comunicação dos factos indiciados que se deveriam considerar como substituídos, alterados ou complementados.
Em 4 de abril 2023, o Recorrente, BB requereu que lhe fosse comunicado quais os factos indiciados na pronúncia se deverão considerar como substituídos, alterados ou complementados, face aos novos factos descritos na comunicação da alteração não substancial dos factos.
Sobre este pedido recaiu o despacho de indeferimento mencionado supra 1.1., despacho esse impugnado pelo Recorrente, com os seguintes fundamentos:
«[O] despacho recorrido foi proferido e gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, momentos antes de ser lido o acórdão. Vindo posteriormente a transcrito para a ata, a qual só foi assinada pela Sra. Juiz Presidente, no dia 18.04.2023, cinco dias depois da leitura do acórdão recorrido. Sendo certo que consta no sistema “CITIUS” que a data de disponibilização da ata foi a da própria sessão de leitura do acórdão, 13.04.2023; todavia, tal teria sido impossível uma vez que nessa data a ata ainda não havia sido assinada.
Destarte, observado o regime das irregularidades constante no artigo 123.º CPP, impunha-se, aparentemente, que o Recorrente tivesse arguido a irregularidade da falta de fundamentação do despacho recorrido, no que tange ao segundo pedido, no momento exatamente anterior ao início da leitura do Acórdão.
Mas se assim fosse, que relevo assumiria a necessidade de transcrição para a ata do despacho recorrido, se na data em que foi disponibilizada a sua transcrição (necessariamente, depois de 17.04.2023), já não poderia ser sindicado para efeitos de arguição de irregularidades?
Com efeito, ainda que o texto do despacho recorrido não seja extenso, não é possível concluir que o Recorrente se encontrava em condições mínimas de poder suscitar a irregularidade atinente à falta de fundamentação do despacho recorrido quanto ao indeferimento do segundo pedido formulado, quando este foi proferido oralmente, carecia sempre de uma mínima análise, como qualquer texto jurídico.
Tanto mais que tendo sido lido, nada teria impedido o Tribunal de o ter notificado através do sistema “CITIUS”, em momento prévio ao início da sessão de julgamento destinada à leitura do acórdão.
Deste modo, é de elementar justiça e por conseguinte em ordem ao Recorrente poder beneficiar de um direito de defesa pleno, que o prazo para que o Recorrente pudesse arguir irregularidades do despacho recorrido apenas se iniciasse aquando da verificação de circunstâncias que lhe possibilitasse a respetiva análise, ou seja, apenas após ter sido disponibilizada a ata em que este veio a ser transcrito.
De outro modo, a transcrição do despacho, estando este gravado, estaria desprovida de qualquer efeito jurídico, logo, a prática de atos inúteis está vedada por força do artigo 130.º do CPC aplicável ex vi artigo 4.° do CPP. Sucede que o momento em que essa ata veio a ser disponibilizada ao Recorrente foi posterior a ter sido proferido o acórdão, mostrando-se assim esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, cf. dispõe o artigo 613.°/1 e 3, do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.° do CPP.
Destarte, a falta de fundamentação do despacho recorrido no que tange ao indeferimento do segundo pedido formulado, apenas se mostra suscetível de ser conhecida através do presente recurso.»
Ou seja, entende o Recorrente que a arguição do vicio da falta de fundamentação do despacho proferido na sessão de audiência de julgamento de 13 de abril de 2024, cuja acta foi assinada em 18 de abril de 2024, se deve iniciar «nos três dias seguintes a contar da data em que acta com a transcrição foi disponibilizada no sistema “CITIUS”, por violação do artigo 32.º/1 e 5, da CRP.».
Se assim é, o vicio da irregularidade deveria ter sido invocado junto do Tribunal recorrido decorrido três dias seguintes a 18 de abril de 2014, ou seja, [mesmo contando a dilação de três dias e o disposto no artigo 107.º, do Código de Processo Penal] até ao dia 28 de abril de 2024.
Ora, o arguido não reclamou da irregularidade junto do Tribunal que a teria cometido nem até ao dia 28 de abril, nem posteriormente, encontrando-se, por isso, sanada.
Deste modo, mesmo tendo por base a construção teórica do Recorrente sobre o prazo aplicável à arguição da nulidade (irregularidade), deveria ter sido arguida até ao dia 28 de abril de 2024, o que não sucedeu, encontrando-se, por isso, sanada [artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
Uma última palavra quanto à aplicação analógica do artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal ao despacho sub judice, para dizer que, concordando nós, com a posição defendida pelo Recorrente no n.º 9 da Motivação – a omissão do dever de fundamentação de um despacho constitui  uma mera irregularidade, a ser suscitada junto do tribunal a quo no termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal, sob pena de ficar sanda – fica afastada a tese da aplicação analógica do regime de nulidades de sentença previsto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Não assiste, pois, razão ao Recorrente ao alegado nos n.ºs 8 a 21, da Motivação, nem se vislumbra a inconstitucionalidade invocada pelo arguido, na Conclusão VII, improcedendo, nesta parte o recurso.

B-  Recurso do Acórdão Final
 (…)

1.1.5 – Prossegue o Recorrente, dizendo que o «Acórdão recorrido, ao condenar o Recorrente pelos factos descritos na comunicação da alteração não substancial de factos, sem que se tenha explicitado nessa alteração se foi suprimida a totalidade da factualidade descrita na pronúncia ou se se limitou a alterar alguns dos “pedaços de vida” indiciados e que constituíam o objeto do processo e, em caso afirmativo, quais, ou ainda, se se limitou apenas a complementá-los, violou o disposto no artigo 358.º/1, com referência ao disposto no artigo 1.º/f), ambos do CPP, não observando o disposto no artigo 32.º/1 e 5, da CRP, padecendo, por isso, de nulidade».
Sobre esta questão damos por reproduzidos os argumentos acima exarados em 1.1. O despacho de comunicação ao arguido da alteração não substancial dos factos basta-se com a indicação dos factos indiciários que não constavam da acusação ou do despacho de pronúncia (se a houver).
Trata-se de uma decisão, através da qual, se dá conhecimento ao arguido de factos que, não figurando na acusação ou do despacho de pronúncia, poderão vir, eventualmente, a ser julgados provados na sentença, mas não necessariamente.
Tais factos estão, ainda, sujeitos ao contraditório e à produção de prova, só depois se decidindo, se integram o elenco dos factos provados na sentença.  
De resto, só com a prolação da sentença, é que o tribunal fixa a matéria de facto, e só aí, é que se pode aferir se ocorreu ou não alguma violação dos artigos 358.º e 359.º do diploma citado.
A alteração factos só assume relevância se forem considerados na sentença final. É neste momento que o legislador exige, sob pena de nulidade, que os factos supervenientes à acusação e considerados na condenação sejam comunicados ao arguido, nos termos e para os efeitos dos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal.
A comunicação ao arguido de uma alteração não substancial de factos, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 358.º, do Código Processo Penal, perfectibiliza-se com a enunciação dos factos que não constavam na acusação e relativamente aos quais assiste ao arguido o direito inalienável de defesa e do contraditório, não sendo necessária a respectiva fundamentação.
Caso tais factos venham a ser enumerados como provados na sentença/acórdão final, deve esta conter, sob pena de nulidade, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.  [artigo 374.º, n.º 2 e artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal].

Fixados os factos, importa, então, verificar se aqueles têm por efeito a condenação do arguido pela prática de um crime diverso ou o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis [artigo 1º, al. f), do Código de Processo Penal]. No caso afirmativo, estaremos diante de uma alteração substancial em caso negativo, de uma alteração não substancial.

Para que o arguido seja condenado por factos diversos dos que constavam no despacho de pronúncia, é imperioso se cumpram todas as condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. Se assim não for, é nula a decisão condenatória nos termos dos artigos 1.º, alínea f) e artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

Quer isto dizer que a questão de saber se os factos alterados consubstanciam uma alteração substancial ou não substancial dos factos só pode ser apreciada e decidida na decisão final, por referência comparativa entre os factos imputados ao arguido na acusação ou no despacho de pronúncia (se houver) e os factos julgados provados na sentença/acórdão final. 

No nosso caso, o Tribunal recorrido entendeu que os novos factos integravam uma alteração não substancial, tendo seguido o ritual do artigo 358.º, do Código de Processo Penal: indicou os factos, comunicou-os ao arguido e concedeu-lhe prazo para defesa. De seguida, julgou aqueles factos como provados, elencando-os como tal, no Acórdão recorrido, tendo, ainda, indicado os meios de prova considerados para aquele efeito.

E, em termos de fundamentação nada mais lhe era exigido, nomeadamente, explicar na alteração «se foi suprimida a totalidade da factualidade descrita na pronúncia ou se se limitou a alterar alguns dos “pedaços de vida” indiciados e que constituíam o objeto do processo e, em caso afirmativo, quais, ou ainda, se se limitou apenas a complementá-los», improcedendo, assim, a Conclusão VIII.

1.1.6 –  Finalmente, defende o Recorrente que os factos provados n.ºs 13 e 20. 3, na versão do Acórdão recorrido, alteram o objecto do processo, com violação dos princípios do acusatório, da defesa e do contraditório.

Assente que o Tribunal recorrido: (i) qualificou a alteração dos factos, como não substancial; (ii) comunicou essa alteração ao arguido e (iii) concedeu-lhe o prazo de 10 dias que aquele requereu para reformular a sua defesa; resta apurar se os factos ultrapassam os limites do objecto do processo, se vão para além do constitucionalmente admissível pelas garantias de defesa, da estrutura acusatória do processo e do contraditório.

Para tanto, importa reter alguns dos fundamentos de direito supra enunciados no ponto A. 1.1 e B. 1.1.5, que, por economia se dão por reproduzidos.

A alteração substancial dos factos é, nos termos o artigo 1.º alínea f) do Código de Processo Penal, a que «tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximas das sanções aplicáveis».

Ao invés, a alteração não substancial será a que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação do limite máximo da pena aplicável.

Daqui resulta que haverá «alteração substancial dos factos quando da alteração resulte que a razão da qualificação como ilícitos dos factos não é a mesma da qualificação dos factos apurados. Os crimes são então diversos. Haverá ainda alteração substancial dos factos quando a razão da qualificação como ilícitos dos factos acusados e apurados for a mesma, mas da alteração resultar agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis» - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume I, p. 361.

Nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, a alteração substancial dos factos descritos na acusação implica sempre apuramento de factos novos que não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação.

Como se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2007 [Relator: Conselheiro Soreto de Barros, www.dgsi.pt): «a alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

“Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.».

Falamos de factos, isto é, de uma história de vida contada e circunstanciada no tempo, modo e lugar sobre as pessoas que, em determinada altura, se relacionaram e entrecruzaram, ou como a doutrina e jurisprudência vem designado «o acontecimento histórico, um evento naturalístico ou um “pedaço de vida”».

O conceito de alteração substancial dos factos é um conceito legal (normativo) dimensionado por dois factores: a modificação dos factos descritos na acusação ou pronúncia e que, dessa alteração, resulte um crime diferente ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 

Na alteração não substancial, a modificação operada pelos novos factos não tem como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, podendo neste caso, ser considerada, quando e se forem  asseguradas as garantias de defesa do arguido, através do recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do Código de Processo Penal, melhor dizendo, ouvindo-o sobre a alteração, dando-lhe, assim, efectiva oportunidade de, sobre eles, tomar a posição que entenda por mais adequada à sua defesa.

Quando assim não sucede e se condena o arguido por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos limites e condições previstas no artigo 358º, nº 1, citado, ultrapassando os limites dos seus poderes cognitivos, o tribunal comete a nulidade taxativamente elencada no artigo 379º, nº, 1, alínea b), do Código de Processo Penal.

No caso dos autos, defende o Recorrente, que a eliminação da actuação conjunta e combinada com os arguidos AA e CC, ambos ..., afastou a co-autoria, passando ele a ser único autor da prática dos factos, circunstância que, em seu entender, configura uma alteração substancial de factos.

Estão, assim, sob censura, os factos provados sob os nº n.º 13 e 20.3 do Acórdão Recorrido.

O facto n.º 13 do Despacho de Pronúncia tem o seguinte teor: 

«Sabedor de que se encontrava escalado para comparecer no Posto da G.N.R. de ... pelas 9:00 horas do dia 9 de Fevereiro de 2014, que aquele não estava ali a prestar qualquer tipo de serviço, e que tinha sido interveniente em acidente de viação na sequência do qual tinha sofrido ferimentos, o arguido AA deu a conhecer aos CC e BB tais factos e, todos eles combinaram entre si, alterar a escala no Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ..., por forma a que (…)».
No Acórdão, em vez de o arguido AA deu a conhecer aos CC e BB tais factos e, todos eles combinaram entre si, alterar (…), consigna-se que o arguido BB decidiu alterar a escala, no Livro de Relatório Diário do Posto da G.N.R. de ..., por forma a que:

Comparada uma e outra matéria, no contexto da factualidade descrita do despacho de pronúncia, nenhuma modificação se verifica quanto ao facto de o arguido ter tido conhecimento do acidente, na sequência do que decidiu alterar a escala de serviço. Trata-se de uma única realidade. Segundo o despacho de pronúncia e o Acórdão recorrido foi o Recorrente quem, depois, de saber do acidente do arguido AA, alterou a escala de serviço. 

A eliminação dos factos relativos aos arguidos AA e CC – aquele comunicou ao Recorrente e a CC o acidente e, todos eles combinaram entre si alterar a escala -  não modificam o facto de ter sido o Recorrente a alterar a escala depois de saber do acidente, imputação que lhe é feita ao longo do despacho de pronúncia.

Quanto ao facto aditado, no dia 10 de fevereiro de 2014 o arguido AA tomou conhecimento dos factos praticados pelo arguido BB, supra descritos, a cujo propósito aderiu, em nada influi na conduta do Recorrente, mantendo-se todas as imputações de facto e de direito narradas no despacho de pronúncia.

Os actos imputados ao arguido – foi ele quem procedeu à alteração da escala de serviço com o propósito de fazer crer que o acidente sofrido por AA era um acidente de serviço -   constavam da acusação e do despacho de pronúncia, não havendo, quanto a eles qualquer alteração ou modificação.

A questão da condenação do Recorrente, como coautor, por ter actuado conjuntamente com o arguido AA e não, também, com o arguido CC, não modifica substancialmente a pronúncia, nem altera o objecto do processo.  

Tendo o Tribunal comunicado ao arguido a alteração daqueles factos e concedido o prazo para defesa, nenhuma alteração substancial dos factos ou do objecto do processo se verificou, não tendo o Recorrente sido condenado por factos diversos da acusação, nem fora das condições previstas no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Não se mostram, pois, violados, quaisquer princípios, do acusatório, da defesa ou do contraditório, nos termos defendidos pelo Recorrente.

(…)

4 – A co-autoria

Prosseguem os Recorrentes, criticando o Acórdão Recorrido pela condenação como coautores, em virte de não se ter demonstrado o acordo prévio exigido pelo artigo 26.º, do Código Penal.

É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática de facto, desde que haja execução ou começo de execução (artigo 26.º do Código Penal).

A co-autoria é uma forma de comparticipação criminosa, composta por dois elementos essenciais: (i) uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado e (ii) uma execução igualmente conjunta.

A execução conjunta, consiste na participação na execução do facto criminoso, conjuntamente com outro ou outros, num exercício conjunto do domínio do facto, ou numa contribuição objectiva para a consumação do tipo legal visado. A execução conjunta, neste sentido, não exige que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador, que intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado – cf. por todos,  Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Julho de 1984, BMJ, n.º 339, p. 276; de 11 de março de 1998, CJSTJ 1998, tomo 1, p.. 220; de 18 de outubro de 2006 [Proc. n.º 2812/06; Relator: Conselheiro  Santos Cabral, em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj] e de 15 de abril de 2009 [Processo n.º 09P0583; Relator: Conselheiro Fernando Fróis, www.dgsi.pt],

A co-autoria verifica-se quando várias pessoas planeiam em conjunto a realização de um crime, dividem tarefas e distribuem papéis em ordem a obterem um resultado comum. Cada um dos comparticipantes é um actor principal na decisão e execução plano que é de todos.  O coautor apodera-se da globalidade do facto, assume um poder relevante de direcção na acção, podendo inclusive, impedi-la, ainda que não pratique todos os actos de execução.

«Todo o colaborador é aqui, como parceiro dos mesmos direitos, co-titular da resolução comum para o facto e da realização comunitária do tipo, de forma que as contribuições individuais [se] completam em um todo unitário e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes». [Johannes Wessels, em “Direito Penal, Parte Geral, Aspectos Fundamentais), p. 121 e 129].

Ou como decidiu, o Acórdão desta Relação de 17 de maio de 2023 [Relator: José Eduardo Martins, www.dgsi.pt]: 

«A co-autoria baseia-se no princípio da divisão de trabalho e distribuição funcional de papéis por acordo. Na medida em que cada elemento do grupo participe na resolução comum para a realização do facto e na execução deste, de forma igual ou diferente, resulta que cada contribuição se funde num todo unitário e por isso o resultado alcançado é de todos e é, portanto, imputado a todos.

O elemento subjetivo é o acordo, expresso ou tácito, para a realização de determinada ação típica, e o elemento objetivo é a realização conjunta do facto, no sentido de tomar parte direta na sua execução, independentemente dos termos de cada participação individual. Para se concluir pela realização conjunta do facto temos que encontrar a vontade comum na realização do ilícito. A autoria plural do crime resulta de haver uma pluralidade de pessoas que se uniram com vista àquele fim, concertando vontades em torno daquele objetivo.

Está adquirido que o acordo para a realização do facto ilícito não tem que ser prévio ao cometimento do crime e também não tem que ser expresso. Esta concertação pode acontecer antes da execução do crime, bastante antes da execução do crime, até, de tal modo que poderá configurar um caso de premeditação, mas pode acontecer muito mais tarde e, em última análise, pode surgir aquando da execução do facto, quando um agente adira ao que o outro está a fazer, com consciência e vontade de colaboração.

Ou seja, pode ser contemporâneo com a execução do facto e pode ser tácito.

Daí que haverá acordo, que determinará a condenação conjunta, se, do desenrolar dos factos, resultar que todos os arguidos se uniram na produção do facto, praticado por um ou por alguns dos elementos do grupo.

Quanto à execução conjunta, também é pacífico que não é necessária a intervenção de todos os agentes em todos os atos tendentes à produção do resultado típico pretendido, bastando que a atuação de cada um seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à finalidade a que o acordo se destinava.

Nesta situação deixa, portanto, de ser indispensável apurar quem praticou o ato lesivo porque o crime será imputado a todos a título consumado e doloso.

A autoria criminosa assenta no domínio do facto. É coautor quem tem o domínio funcional do facto. O coautor tem o domínio do facto se tiver o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e que, na execução de tal acordo, se dispôs a levar a cabo.

Resta dizer que, nas situações em que os arguidos não confessam ter agido em co-autoria, necessariamente que esta só se alcança através da apreciação da concreta dinâmica dos factos».

No caso vertente, face à prova existente nos autos, resulta que os ora recorrentes fizeram parte do plano de fazer crer que a hora a que se deu o acidente do arguido AA coincidisse com o horário de trabalho, facto que este utilizou na prossecução desse objectivo e propósito.

Cada um dos arguidos praticou os actos que lhe competiam, nada existindo nos autos que os recorrentes se tenham demarcado de levar a cabo os intentos de obter as vantagens decorrentes da alteração da escala, mormente, a qualificação do acidente como serviço.

Os actos praticados pelos arguidos formam um todo e são absolutamente essenciais para a execução do plano conjunto: justificar a falta ao serviço do arguido AA no dia 9 de fevereiro de 2014, pelas 9 horas e integrar o acidente de viação por este sofrido, cerca das 12 h, numa deslocação para o serviço (ine intinere), fins que não teriam sido concretizados, se o arguido BB não alterasse as escalas e o Livro de Registos Diários nos termos em que o fez, e se não existisse o processo administrativo  de acidente em serviço promovido pelos dois arguidos.

Nenhuma dúvida subsiste que AA actuou conjuntamente com o arguido BB, teve conhecimento dos factos que aquele praticou, pelo menos, no dia seguinte ao do acidente, e deu sequência ao plano de obter do Estado os proveitos patrimoniais e pessoais de um acidente em serviço.

Estamos no ambiente da co-autoria sucessiva, isto é, quando alguém se torna coautor durante a realização do facto até à sua consumação, improcedendo, também, aqui, os Recursos.

   

5 -  Determinação da medida da pena

Por último, insurge-se o recorrente, AA, contra as medidas das penas parcelares e única, por excessivas e violadoras do disposto no artigo 71.º do Código Penal.

Apreciando:

Como é sabido, as finalidades das penas assentam em duas linhas mestras: a) a protecção de bens jurídicos e b) a reintegração do agente na sociedade (cf. artigo 40º, nº 1, do Código Penal).

Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial «umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite dos possíveis porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de futuros crimes.» (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, pág. 105).

O objectivo último das penas é a protecção, de forma mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais. Esta protecção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de reintegração) - (Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crimes, págs. 228 e 241).

A medida da necessidade da tutela dos bens jurídicos é um acto de valoração em concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e na verdade, não só factores do ambiente, mas também factores atinentes ao facto e ao agente em concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos (Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crimes, págs. 228).

Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – é determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub judice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua especifica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vitima da conduta do agente antes e depois do facto (Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crimes, pág. 241).

São, pois os factores atinentes ao facto em concreto que relevam para aferir a medida necessária à satisfação das exigências de prevenção geral das condutas subsumíveis ao tipo legal de crime.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva devem actuar as considerações de prevenção especial.

A medida de necessidade de socialização do agente é, em principio, o critério decisivo do ponto de vista de prevenção especial.

A prevenção geral negativa ou de intimação da generalidade surge como efeito lateral da necessidade da de tutela dos bens jurídicos.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual. Ou seja, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes.

Por outro lado, a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa, constituindo esta o limite da intervenção estatal, nomeadamente por razões de prevenção.

Se a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 2, do CPP) a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso), constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas. (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 109).

A medida da pena concretamente a aplicar ao arguido será, pois, feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Assim, constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial.

No mais, a medida concreta da pena, para além de determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, deve atender às circunstâncias atípicas que deponham a favor e contra o arguido (cf. artigo 71º e 72º, do Código do Penal).

Tais circunstâncias podem ser classificados em três grupos: referentes à execução do facto – alíneas a), b) e c): grau de ilicitude do facto, modo de execução do crime, grau de violação das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade do dolo ou da negligência, sentimentos manifestados na execução do crime e fins ou motivação do mesmo -; relativos à personalidade do agente - alíneas d) e f): condições pessoais do agente e situação económica, falta de preparação para manter conduta lícita; e finalmente factores relativos à conduta anterior ou posterior ao crime – alíneas e).

Dito isto.

Começa o Recorrente por convocar fundamentos de factos que não figuram no elenco dos factos provados, não podendo, por isso, ser ponderados na determinação da medida da pena.

Daí que não se atendam às circunstâncias enunciadas nas Conclusões 37 a 39, como sejam, a exiguidade da prova; a parca ou nula participação do arguido; a não existência de um plano prévio à ação, por acordo, destinado a um resultado; a não existência de atuação conjunta; a ausência do domínio funcional do facto global e a falta de preponderância na atividade desenvolvida.

Quanto ao mais, pretende o Recorrente sejam reduzidas as penas parcelares ao mínimo legal, um ano de prisão para o crime de falsificação de documento; um mês de prisão para o crime de abuso de poder e dois anos para o crime de burla qualificada.

Manifestamente sem razão.

Desde logo porque as circunstâncias que militam a favor do arguido -  (a) ter sempre trabalhado, ser pessoa assídua, com desempenho profissional satisfatório, mantendo com os superiores hierárquicos e com os colegas um relacionamento interpessoal regular; (b) ter condição económica modesta; (c) não ter outra condenação pela prática do mesmo crime; (d) habitar com a cônjuge e uma filha de 13 anos de idade; e (e) estar socialmente integrado, com registo normativo, não havendo registos de conflitos - foram ponderadas na determinação da medida concreta da pena.

Com efeito, o Acórdão recorrido, depois de enunciar os critérios gerais e legais da determinação da pena, considerou as condições pessoais do Recorrente, as reportadas no facto provado n.º 36, onde se lê: 

-  Em 2017 passou a exercer funções administrativas no Núcleo de Proteção Ambiental. Desde fevereiro do corrente ano vem desenvolvendo funções na secretaria do Posto da GNR de .... Mais recentemente tem vindo a frequentar o curso de formação para promoção a Cabo. O seu atual superior hierárquico descreve-o como uma pessoa assídua, com desempenho satisfatório e que mantém com os colegas e superiores hierárquicos um relacionamento interpessoal regular.

- Em 2016, iniciou uma relação de namoro com PP, atualmente com 41 anos de idade, a exercer funções profissionais numa IPSS e também na Junta de Freguesia ..., com quem contraiu matrimónio em 2018. Tanto o arguido como o cônjuge valorizam a relação afetiva, que dizem ser ancorada em sólidos laços de coesão. AA habita com a cônjuge e a filha desta, com 13 anos de idade, uma moradia de tipologia 3, localizada em espaço rural e construída entre 2017 e 2018.

-  O imóvel, cercado de um logradouro, não se destaca pela sua dimensão e qualidade dos materiais, dos outros imóveis, também moradias do local residencial onde se encontra inserida.

-  O agregado apresenta uma situação económica descrita como equilibrada, sustentada nos vencimentos do próprio (cerca €1040,00 mensais) e da cônjuge (cerca de €700 mensais).

Como despesas mensais fixas, refere o pagamento de crédito contraído para a construção de habitação (cerca €370,00), o pagamento dos consumos de água e energia (cerca €140,00) e da prestação relativa a um crédito para aquisição de veículo automóvel (cerca de €130).

- Segundo as fontes comunitárias contactadas, nomeadamente o Presidente da Junta de Freguesia, o arguido detém uma imagem positiva, associada a um estilo de vida normativo, não havendo registo de conflitos no seio familiar ou com outros elementos da comunidade. Não apresenta qualquer ocupação estruturada do tempo livre, referindo privilegiar o convívio com a família.

Igualmente foi ponderada a ausência de antecedentes criminais do arguido.

Depois, porque, não são só as circunstâncias que militam a favor do arguido que devem ser atendidas na determinação da medida concreta da pena, mas também, as que contra ele depõem, a saber:   (a) o grau de ilicitude do facto: muito elevado, atento a qualidade de militares da GNR; (b) o modo de execução do crime: a forma concertada como foram concretizados; (c) gravidade das consequências: traduzida nos prejuízos causados aos ofendidos; (d) o grau de violação dos deveres impostos ao agente: muito elevado, atentas as suas patentes e qualidade de militares;  (e) a intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo directo – artº 14º, nº 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar; (f) os sentimentos manifestados no cometimento do crime: desrespeito pelo património alheio e violação das regras de exigência de cumprir e fazer cumprir a lei e (g) os fins ou motivos que o determinaram: e enriquecimento indevido.

Da conjugação de umas e outras, forçoso é concluir que as exigências de prevenção especial são elevadas a reclamar penas parcelares superiores ao mínimo legal, sendo, assim, manifesta a falta de razão do Recorrente.

Consequentemente, nenhuma censura merece a decisão que que condenou o arguido AA, nas penas parcelares de 1 (um) ano e (nove) meses de prisão pela prática do crime de falsificação de documento; 10 (dez) meses de prisão pela prática do crime de abuso de poder e 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão pela prática do crime de burla qualificada, por se mostrarem adequadas e proporcionais às exigências de prevenção especial.

Quanto à prevenção geral, alega o Recorrente que o Tribunal recorrido se socorreu do aumento geral da criminalidade e da frequência de crimes para justificar a irrelevância total ou parcial da prevenção especial.

Porém, revisitados os fundamentos determinantes da medida da pena, se é verdade que o Acórdão recorrido faz alusão genérica à frequência de todos estes crimes, o que traduz uma acrescida necessidade de tutela dos bens jurídicos em causa, não é menos verdade, que não sobrepôs à prevenção especial, as exigências de prevenção geral, falecendo, assim, a argumentação da Conclusão 41.


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Quanto à pena unitária, rege o artigo 77º, do Código Penal, dispondo:

1. quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Trata-se de uma opção politico-legislativa de um sistema de pena conjunta obtida através do principio do cumulo jurídico das penas parcelares da mesma espécie.

Com vem sendo repetidamente afirmado, pela Jurisprudência (entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 2008, na Coletânea, I, pág. 181;  20 de Dezembro de 2006;  de 18 de Junho de 2009, de 16 de Dezembro de 2010, 27 de Maio de 2015, 27 de Junho de 2012)  e pela doutrina, na medida concreta da pena do concurso – tal como a medida concreta das penas parcelares, determinada em função da culpa do agente e das finalidades da punição – assume especial relevância a apreciação global conjunto dos factos e a personalidade do agente.

A fixação da pena conjunta do concurso, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente, há-de, pois, resultar, de uma visão global do conjunto dos factos, procurando, alcançar uma valoração tão abrangente quanto possível da pessoa do arguido e do seu comportamento.

Neste domínio, assumem relevância as exigências de prevenção especial de socialização e inserção do arguido na comunidade, evidenciada, designadamente, pelo comportamento anterior aos factos e posterior aos factos, e pela personalidade expressa nos factos praticados, vistos no seu conjunto. 

A pena única deve ser encontrada na moldura abstractamente aplicável à punição do concurso de crimes calculada nos termos do nº 2, do mesmo preceito, tendo como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias de multa, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes.

No caso em apreço, a moldura penal abstracta do concurso tem como limite mínimo a pena 3 anos e 3 meses de prisão e como limite máximo 6 anos e 5 meses de prisão (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).

Na ponderação global de todas as circunstâncias referentes à gravidade dos factos no seu conjunto, do comportamento anterior e posterior e da personalidade do arguido revelada na factualidade provada, a pena de 4 anos e 6 meses de prisão mostra-se ajustada e equilibrada, não assistindo razão ao Recorrente.


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No que respeita á suspensão da execução da pena de prisão, consigna-se no Acórdão recorrido:

«(…) no caso do arguido AA é indubitável a existência do pressuposto formal, uma vez que o mesmo vai condenado na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. No entanto, entendemos que não se encontra preenchido o pressuposto material. Com efeito, as exigências de prevenção são consideráveis, porquanto o arguido ostenta averbado no seu registo criminal uma condenação com data posterior aos factos praticados nestes autos, pela prática de um crime de peculato, revelando ausência de interiorização de valores ético-sociais.

Assim, ponderando todo o circunstancialismo, da matéria submetida a julgamento não decorrem elementos de facto com capacidade bastante para que se possa concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido AA da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Pelo contrário - e ainda  que o juízo de prognose não assente necessariamente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade dos arguidos – resulta, em nosso entender, manifesto que o comportamento do arguido, nomeadamente a sua condenação posterior, afastam a possibilidade de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu futuro, e não permitem a suspensão da execução da pena, por falecerem fundamentos para o efeito, considerando-se que o arguido necessita de cumprir, em estabelecimento prisional, a pena de prisão que lhe foi aplicada. ».

Porém, com o devido respeito, não acolhemos estes argumentos.

A suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, pode ser suspensa, se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A suspensão da execução da pena de prisão, pena de substituição em sentido próprio, tem como objectivo de política criminal, «(…) o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos – «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência.  (…)

Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (...).

Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.». (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 343 e 344). 

Para aplicação desta pena de substituição é necessário, em primeiro lugar, que o julgador se convença, face à personalidade do condenado, suas condições de vida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos, sendo necessário, em segundo lugar, que a pena de suspensão de execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de fevereiro de 2008, (www.dgsi.pt)]. 

A suspensão da execução da pena depende, assim, da ponderação de todas as circunstâncias concretas que permitam antecipar um juízo sobre o comportamento futuro do arguido, de forma a salvaguardar as finalidades da punição previstas no artigo 40º do Código Penal: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Na formulação deste juízo o tribunal deve correr um risco prudente pois a prognose é uma previsão, uma conjectura, e não uma certeza. Quando existam dúvidas sérias e fundadas sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa e a suspensão negada [cf. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, 1º Vol., pág. 444 e Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344].

Não basta, porém, a formulação do juízo de prognose favorável para que, sem mais, seja decretada a suspensão da execução da prisão. É que a prognose favorável radica exclusivamente em considerações de prevenção especial de socialização e a lei, para além dela, exige ainda que à suspensão se não oponham, em absoluto, as necessidades de prevenção e reprovação do crime [Acórdão desta Relação de 27 de setembro de 2017, www.dgsi.pt].

Por isso, existindo razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cf. Figueiredo Dias, ob. citada, p. 344 e 345).

Não é o nosso caso.

Resulta dos factos provados que o arguido Recorrente se encontra familiar, profissional e socialmente inserido, o que é positivo para o que agora releva.

Por outro lado, o arguido detém na comunidade uma imagem positiva, associada a um estilo de vida normativo, não havendo registo de conflitos no seio familiar ou com outros elementos da comunidade.

Posteriormente à prática destes factos, o arguido, AA, foi condenado por Acórdão proferido no dia 8 de julho de 2019, transitado em julgado no dia 23 de setembro de 2019, nos Autos de Processo Comum Colectivo nº 7/16...., pela prática de 1 (um) crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375º, nº 1, do Código Penal e de 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, al. a) e 256º, nºs. 1, als. b) e d) e 4, ambos do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa por igual período, acompanhada de regime de prova, já declarada extinta.

A execução desta sanção decorreu de forma positiva, tendo o arguido cumprido com o Plano de Reinserção Social homologado.

Na sequência do seu envolvimento neste processo, AA passou a recorrer a acompanhamento no Centro Clínico da GNR, tendo comparecido às consultas.

Neste contexto factual, parece-nos que, pese embora as exigências elevadas de prevenção especial, ainda assim é de acreditar que a ameaça da pena de prisão será suficiente para que o Recorrente interiorize o desvalor da acção e não volte a delinquir, suspendendo-se, assim, a pena de quatro anos e seis meses de prisão por igual período, sujeita a regime de prova.

V. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal desta Relação:

1 – Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto por BB.

2 -  Condenar este recorrente no pagamento das custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

4 -  Julgar improcedente o recurso interposto por BB do Acórdão Final.

5 – Condena este Recorrentes nas custas do processo, com taxa de justiça, que se fixa em 5 UCS.

6 – Julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA do Acórdão Final.

Consequentemente, vai condenado na pena única de quatro anos e seis meses de prisão, cuja execução é suspensa por igual período e sujeita a regime de prova.

Coimbra, 5 de junho de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

Primeira Adjunta: Ana Carolina Cardoso

Segunda Adjunta: Cristina Branco