Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALBERTO RUÇO | ||
Descritores: | DEPOIMENTO DE PARTE CONFISSÃO DIREITOS INDISPONÍVEIS ACÇÃO DE DIVÓRCIO | ||
Data do Acordão: | 04/12/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 352, 354, 361 CC, 552, 553, 554 CPC | ||
Sumário: | 1. Muito embora o depoimento de parte seja o meio processual comummente previsto para provocar a confissão, nos termos dos artigos 352.º e seguintes do Código Civil e 552.º e seguintes do Código de Processo Civil, nem as normas do Código Civil, nem as do Código de Processo Civil obstam a que, nos casos em que a acção versa sobre direitos indisponíveis, uma parte requeira o depoimento de parte da outra. 2. O depoimento prestado será ineficaz como confissão, mas pode ser avaliado livremente pelo juiz, nos termos do artigo 361.º do Código Civil. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível): * Recorrente …E (…), melhor identificado nos autos. Recorrida … M (…), melhor identificada nos autos. * I. Relatório. A recorrida instaurou acção de divórcio contra o réu, agora recorrente, com o fim de obter a dissolução do casamento celebrado entre ambos. O réu, na fase da instrução da causa, indicou os meios de prova que pretendia ver produzidos, entre os quais requereu o depoimento de parte da autora quanto à matéria dos artigos 15.º a 20.º da contestação. Foi decidido quanto a este requerimento o seguinte: «Não admito o requerido depoimento de parte, por não ser possível, no caso, a prova por confissão». O réu recorreu desta decisão e concluiu da seguinte forma: «1ª O direito de exigir o depoimento de parte está consagrado no nº1 do art. 553.º do CPC, tendo o recorrente cumprido não só a condição da indicação imediata e de forma discriminada dos «factos sobre que há-de recair», imposta pelo n.º 2 do art. 552.º do CPC, o que o recorrente fez no seu requerimento de 14.06.2010 (doc. 2), como também o requisito imposto pelo n.º 1 do art. 554.º do CPC dado que tal depoimento tem «por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento». 2ª Não expôs o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo as razões que o levaram a concluir «não ser possível, no caso, a prova por confissão», sendo, por conseguinte, infundamentado o despacho recorrido de 11.10.2010 (doe. 1), 3ª Não faz qualquer sentido rejeitar um requerimento de depoimento de parte, qualquer que ele seja, com o fundamento de «não ser possível, no caso, a prova por confissão», uma vez que, por um lado, não é possível saber-se a priori se de determinado depoimento de parte irá resultar ou não a confissão de facto ou factos sobre que incide tal depoimento e, por outro lado, porque mesmo que não resultasse confissão do depoimento de parte, os factos apurados através desse legítimo meio de prova pode o Juiz «apreciá-los livremente (art.º 361.º do CC) e neles basear-se, em conjugação com os demais meios probatórios, para dirimir a matéria de facto» - Acórdão da Relação de Coimbra de 26.04.2005 , proferido no recurso n.º 580/05, com o nº convencional JTRC que põe ser captado em http://www.dgsi.pt (…). 4.ª O art. 361.º do Código Civil dispõem que «o reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente». 5ª «Conquanto, historicamente, o depoimento de parte esteja conexionado com a confissão, tratam-se, ambos, de realidades distintas. A confissão é um meio de prova, com determinada força probatória (plena) e o depoimento de parte um dos meios processuais de a provocar» Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2008 proferido no proc. nº 0840905, disponível em www.dgsi.pt. com o número convencional JTRP00041416. 6ª Também Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora ensinam que “se não pode confundir, apesar da estreita afinidade que os une, a confissão e o depoimento de parte. O depoimento de parte é apenas uma das vias processuais através das quais se pode obter a confissão” - Manual de Processo Civil, ano 1984, pág. 522. 7ª Por sua vez Rodrigues Bastos sustenta que "Convirá marcar a distinção que existe entre o depoimento de parte e a confissão; aquele é só o meio de provocar esta, e assim, tal como pode haver depoimento sem haver confissão, também pode haver reconhecimento da realidade de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, a que não possa atribuir-se eficácia confessória específica, designadamente se o depoente não tiver a necessária capacidade jurídica para dispor do correspondente direito; esse reconhecimento só valerá, então, como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente, como dispõe o art.361.º do C. Civil” - Notas ao C.P.Civil, 3.º, pg.117.». 8ª Os insignes Professores Catedráticos Pires de Lima e Antunes Varela, esclarecem que «o art. 361.º é igualmente aplicável à confissão de factos relativos a direitos indisponíveis» Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 318. 9ª Mesmo que se adoptasse entendimento contrário ao supra-enunciado, ou seja, que o art. 361.º do Código Civil não seria aplicável à confissão de factos relativos a direitos indisponíveis (o que só por hipótese meramente académica se admite) e se partisse do pressuposto de que, in casu, a confissão, a acontecer (já que do depoimento de parte pode resultar ou não a confissão dos factos sobre que incide tal depoimento), recairia sobre factos relativos ao direito ao divórcio (direito indisponível), ainda assim não se poderia perder de vista a parte do despacho saneador de 26.05.2010 (doc. 4) em que se refere que é «previsível o decretamento do divórcio, porque ambos o querem e porque o alegado assim o denuncia...», pelo que nunca estaria em causa o direito ao divórcio que terá sempre de ser declarado na sentença a proferir pelo tribunal de 1.ª instância. 10ª Acresce que na resposta da recorrida de 15.06.2010 (doe. 5) ao requerimento de provas do recorrente de 14.06.2010, em que foi requerido o depoimento de parte da autora (doc. 2), não foi exercida qualquer oposição ao requerido depoimento de parte. 11ª Salvo o devido respeito, viola o despacho recorrido as normas que integram os nr.s 1 e 3 do art. 553.º, o n.º 1 do art. 554.º ambos do CPC e ainda a que integra o art. 361.º do Código Civil (…)». d) Não houve contra-alegações. e) O objecto do recurso consiste, portanto, em saber se numa acção de divórcio é admissível o depoimento de parte. A dúvida reside na circunstância da acção versar sobre factos atinentes a direitos indisponíveis. II. Fundamentação. A matéria vem regulada nos artigos 352.º a 361.º do Código Civil, os quais estabelecem o regime substantivo da prova por confissão, bem como nos artigos 552.º a 567.º do Código de Processo Civil, que disciplinam os aspectos processuais da produção do depoimento de parte, através do qual se pode efectivar a confissão. Nos termos do artigo 352.º do Código Civil, a «Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária». Por sua vez, o artigo 354.º do mesmo código indica os casos em que a confissão não é admissível, por não fazer prova contra o confitente, isto é: — Se for declarada insuficiente por lei ou recair sobre facto cujo reconhecimento ou investigação a lei proíba; — Se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis; — Se o facto confessado for impossível ou notoriamente inexistente». Verifica-se, face ao teor destas normas do Código Civil, que um dos casos em que a confissão não produz os efeitos que lhe característicos, por inaptidão, é quando os factos respeitam a direitos indisponíveis ([1]). No caso dos autos, a dissolução do casamento respeita ao estado civil da pessoa, à extinção do estado de casado e à passagem ao estado de divorciado. Não estamos a lidar com uma «coisa» em sentido jurídico, nos termos dos artigos 202.º e seguintes do Código Civil, quanto às quais a regra é a disponibilidade por parte do seu titular. O estado civil da pessoa é um bem relativo à personalidade, sendo estes bens, por regra, indisponíveis. Sem dúvida que a pessoa, no exercício da sua autonomia da vontade, é livre no sentido de celebrar ou não celebrar o casamento, mas não tem liberdade quanto à forma de proceder à sua dissolução. A sua dissolução está submetida às regras dos artigos 1773.º e seguintes do Código Civil, que têm natureza imperativa, na medida em que a lei não reconhece à vontade do interessado autonomia para obter a dissolução do casamento através de outras formas por si mesmo criadas. Sendo o estado civil, qualquer um deles, algo de indisponível para os interessados, coloca-se a questão de saber se é admissível o depoimento de parte acerca de factos relativos a uma acção cujo pedido consiste na dissolução do estado civil de casado ([2]). Vejamos os argumentos a favor e contra a admissibilidade do depoimento de parte. A favor. Como diz o recorrente, há que distinguir entre o depoimento de parte e a confissão, sendo o primeiro mais amplo, uma vez que engloba a confissão, pelo que, embora não se admita a confissão de factos relativamente a direitos indisponíveis, poderá admitir-se sobre eles o depoimento de parte que ficará sujeito a livre apreciação do juiz ([3]) Tendo esta tese sustentação no 361.º do Código Civil onde se dispõe que «O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente». Contra. Se a lei diz, na al. b) do artigo 354.º do Código Civil, que a confissão não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis, é contraditório admitir o depoimento de parte, sabendo-se, a priori, que não pode haver confissão por ter sido requerida a respeito de factos atinentes a direitos indisponíveis. Se a lei não admite a confissão quando estão em causa direitos indisponíveis, fá-lo coerentemente, pois se a parte não tem poder de disposição sobre o direito, por ser indisponível, então os factos que o suportam também estão subtraídos à disponibilidade da sua vontade, não podendo ser validamente manipulados ao sabor dos interesses privados. Dir-se-á que, muito embora a lei não admita a confissão, o depoimento de parte prestado em contravenção a esta norma sempre poderá ser aproveitado para formar a livre convicção do juiz acerca dos factos que estão em discussão. Porém, este argumento esbarra com uma objecção que é esta: não existe a figura do depoimento de parte destinado a provocar um depoimento que não tenha a natureza de confissão. Pelo que, não existindo esta figura jurídica, não pode admitir-se um procedimento processual que lhe confira existência. Sob esta perspectiva, se neste caso o meio de prova «depoimento de parte» é inábil ou incapaz de produzir a «confissão», efeito para o qual funcionalmente foi previsto, estão aquele meio de prova também não pode ser admitido para produzir efeitos sucedâneos da confissão, como seria o caso do depoimento não confessório de livre apreciação por parte do tribunal. Em segundo lugar, sendo certo que o reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam ser valorados como confissão podem valer como elemento probatório livremente valorado pelo juiz, como dispõe expressamente o art.º 361.º do Código Civil, tal norma pode ter aplicação a outros casos que não aqueles em que, de antemão, se sabe que a confissão não é possível. O disposto no artigo 361.º vale, por exemplo, para aqueles casos em que sendo viável o depoimento de parte, por poder haver confissão, contudo a parte não confessa mas produz outras declarações, que, não podendo, é certo, valer como confissão, não podem ser ignorados, por terem existido e não terem sido obtidos ilicitamente ([4]). Ou seja, sendo a confissão admissível e tendo sido requerida poderão ser valoradas outras declarações que não possam valer como confissão. Porém, esta situação é diversa daquela que está aqui em análise, pois no presente caso a confissão não é sequer admissível. E apenas para esta finalidade que está previsto. Não está previsto para exercer a função de «testemunho de parte», para o caso da confissão não ser admissível, destinando-se a satisfazer a expectativa de que possam resultar do depoimento de parte que não pode produzir confissão, elementos que sirvam para influenciar a convicção do juiz. * Afigura-se que a argumentação relativa ao tema se balizará por estes parâmetros. Opta-se pela tese da admissibilidade do depoimento de parte por ser aquela que melhor conjuga todos os interesses em jogo e por não se encontrar excluída a sua admissibilidade, antes se afigurando estar pressuposta. Com efeito, o próprio tribunal não está inibido de, num caso como o dos autos, ouvir oficiosamente qualquer das partes, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 552.º do Código de Processo Civil. Sendo assim, então não se encontra justificação material ou processual para impedir uma parte de requerer o depoimento de parte em relação à outra, nas mesmas circunstâncias. Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, a propósito da impossibilidade de confissão nas acções sobre o estado das pessoas «…o que repugna à lei não é o reconhecimento do facto, mas a subordinação da livre averiguação da verdade à declaração unilateral ou isolada de uma pessoa. O que a lei não reconhece é a força vinculativa do reconhecimento feito pela parte, nada impedindo a audição da parte sobre o facto, que o juiz apreciará livremente» ([5]). Por conseguinte, embora o depoimento de parte seja o meio comum para obter a confissão, não se esgota nesta. Em resumo: muito embora o depoimento de parte seja o meio processual comummente previsto para provocar a confissão da parte, nem as disposições legais do Código Civil, nem as do Código de Processo Civil obstam a que, nos casos em que a acção versa sobre direitos indisponíveis, uma parte requeira o depoimento de parte da outra. III. Decisão. Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se o despacho recorrido. Custas pela parte vencida a final. * Judite Pires Carlos Gil
[3] Neste sentido, Américo Campos Costa, quando referiu: «Porém, ainda que a confissão não possuísse, em tais situações, qualquer força probatória, nem por isso se deveria proibir a produção do depoimento de parte (…). Sem dúvida que, ao requerer-se tal espécie de prova, normalmente, se terá em vista conseguir da parte contrária uma confissão. Todavia, a parte pode também terminar por dizer não serem verdadeiros os factos sobre que foi chamada a depor. E não terá qualquer valor probatório esse depoimento? De maneira nenhuma. Nas acções em geral, os depoimentos, quando são consistam numa confissão, devem ser apreciados livremente pelo julgador. Observe-se até que a circunstância de a parte negar a veracidade do facto sobre que foi chamada a depor não implica que o tribunal deva considerar esse elemento de prova como favorável ao depoente; como meio de prova livre que é, esse depoimento, pela maneira como foi prestado, pode ter convencido o tribunal de que o facto é verdadeiro, não obstante ter sido negado pelo depoente» – Revista dos Tribunais, ano 76, pág. 326/327. [4] Como o recorrente indica, Pires de Lima/Antunes Varela, referem, efectivamente, que «o art. 361º é igualmente aplicável à confissão de factos relativos a direitos indisponíveis» - ob. cit., pág. 318. |