Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/19.5GATBC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
AUTO DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
LEITURA DE DECLARAÇÕES
PROVA PROIBIDA
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 99º, 169º, 363º, N.º 3, 170º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL;
Sumário: I- A lei processual penal não permite a dedução do incidente de falsidade.
II- O auto de declarações é um documento autêntico para os efeitos do art. 169º do C.P.P., devendo a sua falsidade ser arguida nos termos do art. 170º do C.P.P.

III- Não tendo sido questionada a veracidade do auto no decurso da audiência de julgamento, não pode o recorrente, em sede de recurso, pretender valer-se da alegada desconformidade do mesmo com vista a retirar-lhe a força probatória que a lei lhe confere, nos termos do art. 169º do C.P.P.

Decisão Texto Integral: *

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            - RELATÓRIO

            1. No Proc. Comum Coletivo Nº 1/19...., que corre termos no Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz ..., do Tribunal Judicial de Viseu, foram sujeitos a julgamento com base nos factos e na incriminação que lhes vinham imputados na acusação pública contra os mesmos deduzida nos autos, os seguintes arguidos:

- AA;

- BB;

- CC;

- DD;

- EE;

- FF; e

- GG.


*

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, com data de 26 de dezembro de 2023, depositado na mesma data, no qual se decidiu:

A) CONDENAR o arguido BB pela prática, com dolo directo (Artigo 14º, nº 1, do Código Penal), como co-autor material (Artigo 26º do Código Penal), na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1 (por referência às Tabelas I-A e I-C anexas a esse diploma), na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

B) Declarar a perda das vantagens da actividade criminosa relativamente ao arguido BB, nos termos e ao abrigo do disposto no Artigo 110º do Código Penal, relativamente à quantia global que foi apurada de €15.875,00, em consequência da condenação do referido arguido na prática do crime que lhe é imputado.

C) Manter a MEDIDA DE COACÇÃO de prisão preventiva a que o arguido BB se encontra sujeito, nos termos do disposto nos Artigos 375º, nº 4, 213º, nº 1, alínea b), e 214º, nº 2 (a contrario sensu), do CPP, por lhe ser aplicada pena de prisão superior à privação da liberdade já sofrida e por se manterem inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação dessa medida, cujo prazo máximo de duração não foi ultrapassado e que com a presente condenação é aumentado para 3 anos e 4 meses desde o seu início (cfr. o Artigo 215º, nº 1, alínea d), e nºs 2 e 3, do CPP).

Anote e atenda em conformidade.

(…)

S) DECLARAR PERDIDOS a favor do Estado, nos termos do disposto no Artigo 109º, nº 1, do Código Penal:

- O dinheiro (fls. 1808 a 1811) e objectos apreendidos a todos os arguidos (fls. 1642 a 1647; 1655 e 1656; 1670 a 1677; 2101 a 2108), por serem utilizados ou provenientes da prática de ilícitos criminais, nos termos do Artigo 109º, nº 1, do Código Penal e do Artigo 36º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- O estupefaciente apreendido, nos termos do Artigo 62º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01, procedendo-se, oportunamente, à sua destruição e à comunicação legal a que alude Artigo 64º, nº 2, de tal diploma;

(…)”


*

2. Não se conformando com essa condenação, veio o arguido BB interpor recurso do acórdão, extraindo da motivação exarada no mesmo as conclusões que se transcrevem:

“1ª Ao dar como provado, em 30º dos factos provados, que “ Semanalmente, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu:

- A HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00,” o Tribunal a quo violou o princípio in dúbio pro reo e as regras da valoração da prova em julgamento relativamente ao depoimento prestado perante OPC pela testemunha HH.

2º O Tribunal a quo, por aplicação do princípio in dubio pro reo e das regras da valoração da prova em audiência de julgamento, nos termos do artigo 355ºdo CPP, devia dar como não lidas em audiência de julgamento o depoimento da testemunha de fls. 2531 e 2532 porquanto, tal como esta testemunha declarou em audiência de julgamento e após a respectiva leitura de tais declarações, nos termos do artigo 356º n.º 3 a) e b) do CPP, que prestou tal depoimento perante OPC e não na presença de autoridade judiciária.

3º Afirmando a testemunha HH, em julgamento, após a leitura das declarações de fls. 2531 e 2532, que as mesmas foram prestadas perante OPC, e não na presença de autoridade judiciária, o Tribunal a quo, oficiosamente, para poder valorar tal prova, por aplicação do princípio do in dúbio pro reo, devia necessariamente de ouvir o agente da autoridade que fez tal inquirição e, não o fazendo, não podia valorar tal meio de prova como valorou.

4º Da transcrição do depoimento prestado em julgamento pela testemunha HH não constam sequer os factos que foram dados como provados em 30, pelo que o Tribunal a quo, que valorou a leitura em julgamento depoimento prestado perante OPC, o que constitui uma valoração de prova proibida por lei ( artigo 355.º do CPP).

5º Não valorando a leitura em julgamento das declarações de fls.2531 e 2532, como não devia valorar, o Tribunal a quo tinha de dar como não provado aquele segmento do artigo 30.

6º O Tribunal a quo, ao dar como provado este segmento do artigo 30 dos factos provados, fez errada aplicação princípio in dúbio pro reo e das regras da valoração da prova em julgamento, pelo que sempre terá em sede do presente recurso tal segmento de ser dado como não provado.

7º Sem prescindir, quanto à questão da matéria de direito, para o recorrente, os factos praticados constituem não um crime de tráfico de estupefacientes p.e p. pelo artigo 21º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro mas sim, atendendo à ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, como infra se demonstrará, um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, al. a), daquele diploma legal.

8º No caso deve entender-se que a ilicitude do facto é consideravelmente diminuída, senão atentemos que:

9 O arguido é consumidor de estupefacientes desde os seus 15/16 anos.

10º Quando em 2017, por dificuldades económicas e falta de trabalho na zona da sua residência na ..., se fixou em ..., com a ajuda de familiar, a sua condição de consumidor levou-o ao contacto com outros consumidores trocando entre si produto estupefaciente quando alguns deles não tinham, embora reconhecendo a ilicitude desse facto.

11º Desde que vive em ..., com a sua companheira e co- arguida CC, com quem tem 3 filhos menores de idade, sempre trabalhou, auferindo rendimentos para o sustento do agregado.

12º A ilicitude deve ainda ser entendida como consideravelmente diminuída, considerando os meios utilizados, resultando dos factos provados que não existiam quaisquer meios, mais ou menos sofisticados, utilizados pelo arguido para a venda dos estupefacientes.

13º Que as entregas eram efetuada pelo arguido na rua, através dos contactos diretos dos consumidores com o arguido ou, na maior parte das vezes, através de prévio contactado por telemóvel dos consumidores para combinarem as transações.

14º O arguido BB não dispunha, para além do seu telemóvel, de quaisquer outros meios, sofisticados ou não para a venda dos estupefacientes.

15º Que dos consumidores com quem se relacionou, não mais de dez ao todo, três deles apenas compraram 2 ou 3 vezes haxixe ao arguido e em pequenas quantidades não mais de 10 euros cada vez.

16º Para o recorrente, pelos meios utilizados designadamente, o número relativamente reduzido de consumidores de estupefacientes, as reduzidas quantidades de estupefacientes vendidos em cada transação, a inexistência de qualquer organização e de reduzidos meios de apoio, a relativamente curta duração temporal e todos os demais circunstâncias que diminuem consideravelmente a ilicitude do facto deveria ser condenado não pelo crime de tráfico do artigo 21 mas sim como tráfico de menor gravidade do artigo 25º al. a) D.L. 15/93, de 22-01.

17º O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do direito ao condenar o arguido na pena de 5 anos e 3 meses pelo artigo 21º D.L. 15/93, de 22-01.

18º Atendendo que a ilicitude do facto é consideravelmente diminuída deve o arguido ser condenado não pelo crime de tráfico do artigo 21 mas sim como tráfico de menor gravidade do artigo 25 , D.L. 15/93, de 22-01.

19º Pelo conjunto dos factos provados e não provados e pela ilicitude do facto que é consideravelmente diminuída deve ser aplicado ao arguido, nos termos do disposto no do artigo 25º D.L. 15/93, de 22- 01.

20º Quanto à medida da pena ressalta da factualidade apurada, que o arguido regista um percurso de vida caracterizado por um comportamento conforme ao direito, pautado por hábitos de trabalho, constituindo a sua conduta desviante um acto isolado, face à ausência total de qualquer tipo de antecedentes criminais.

21ºTal resulta dos depoimentos das testemunhas de defesa e a circunstância do arguido apresentar um percurso laboral regular e empenhado desde os seus 18 anos até à data da sua detenção, dispondo da possibilidade de se integrar profissionalmente.

22º O cumprimento da já longa prisão preventiva tem já um efeito regenerador para o arguido e de afastamento de condutas ilícitas.

23º Encontram-se ainda atenuadas as exigências de prevenção especial, pelas condições familiares que o arguido dispõe, nomeadamente; integrado num agregado familiar estruturado, e continuando a trabalhar pode manter desta forma um equilíbrio financeiro, factor mitigador da adopção de comportamentos desajustados.

24- Para além do apoio do agregado familiar de base, composto pela companheira e 3 filhos, todos ainda menores, dispõe do apoio familiar por parte da progenitora e irmã que apresentam enquadramento social e profissional na comunidade.

25º Verificam-se um conjunto de circunstâncias mitigadoras do grau de ilicitude dos factos e da culpa a que o tribunal, no modesto entendimento do recorrente, não atendeu de forma suficiente.

26º A exigência legal de que a medida da pena seja feita em função da prevenção explica-se pelo facto de se dever atender à necessidade comunitária da punição do caso concreto, e à tutela dos bens jurídico-penais em causa, reafirmando a validade da norma violada, sendo assim, considerações de prevenção geral que determinarão o seu limite mínimo, isto é, a designada prevenção geral de integração. São, no entanto, considerações de prevenção especial que, viradas para a ressocialização e reintegração do delinquente na comunidade, determinarão afinal a medida da pena. Se dermos especial atenção à prevenção especial, a conclusão a que chegarmos apenas será de afastar para salvaguarda de um grau mínimo de prevenção geral.

27º Considerando a letra e a ratio dos preceitos legais aplicáveis (arts. 70º e 71º do C.P) o recorrente deveria ser punido, atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, pelo crime de tráfico de estupefacientes p.p pelo artigo 21 nº 1 do Dec. Lei nº 15/93 de 22/01, em medida não superior a 4 anos de prisão.

28º Desta feita, a decisão recorrida violou, nessa parte, os arts. 70º, 71º do C. P

Termos em que, pelos fundamentos supra expostos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a decisão recorrida.

Fazendo-se assim a habitual e sã justiça.”


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            3. Admitido o recurso a ele respondeu a Digna Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, concluindo pela total improcedência do mesmo.

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            4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhou o teor da resposta apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo e, entendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, acrescentou que:

            “4. i) Quanto à primeira questão colocada pelo arguido, na resolução de mesma – e em abono da posição assumida pelo Tribunal a quo -, deverá ter-se também presente o regime previsto no artº. 99º do CPP, onde se prevê o seguinte:

                «1 - O auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os atos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e atos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele.

                2 - …

                3 - O auto contém, além dos requisitos previstos para os atos escritos, menção dos elementos seguintes:

                a) Identificação das pessoas que intervieram no ato;

                b) Causas, se conhecidas, da ausência das pessoas cuja intervenção no ato estava prevista;

                c) Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual, à consignação do início e termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência;

                d) Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do ato.

                4 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 169» 

         Ora, face ao que consta de fls. 2531 e 2532 dos autos, do documentado na ata da sessão do julgamento de 29.9.2023, às declarações da testemunha em causa nessa ocasião, ao disposto no artº. 169º do CPP (designadamente, no seu segmento final) – normativo aplicável por remissão do nº 4 do artº. 99º do CPP - e ao que consta, nesta parte, na fundamentação do acórdão, é de concluir que nenhuma dúvida se colocou ao Tribunal sobre a forma como decorreu a prestação do depoimento da testemunha HH, na fase de inquérito, perante magistrada do Ministério Público no Tribunal ..., pelo que nada há a censurar nas decisões de valoração e nas conclusões probatórias retiradas por este e que foram vertidas na decisão recorrida.

                4. ii) Quanto à segunda questão, note-se, para além do evidenciado pela Sra. Procuradora da República, que o acórdão recorrido, também quanto a esta matéria, teve particular cuidado no enquadramento jurídico dos factos apurados, fundamentando devidamente a sua opção final, conforme decorre à saciedade de fls. 59 a 64, sem que se anteveja qualquer margem para reparo na opção tomada, face ao recorte do caso concreto (em suma, o modus operandi do arguido) que não permite concluir, de forma alguma, que se esteja perante uma ilicitude consideravelmente diminuída.

                4. iii) quanto à terceira questão colocada pelo ora recorrente, cremos que a pena aplicada em concreto - pena de prisão de 5 anos e 3 meses -, no quadro de uma moldura penal abstrata que varia entre os 4 e os 12 anos de prisão, deverá ser tida como adequada e proporcional, tendo em conta as especificidades do caso e os critérios definidos na Lei quanto à forma como deverá funcionar o binómio culpa-prevenção, resultando de fls. 71 e ss., mas de forma particular de fls. 75 e 76, o modo como o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, dentro da autonomia que, também nesta matéria, deverá ser reconhecida à primeira instância.”


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         5. Cumprido o disposto 417º nº 2 do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.

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         6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no Art. 419º, nº3, al.c) do diploma citado.

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        - FUNDAMENTAÇÃO
A) Delimitação do objeto do recurso

        Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso ( Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994,pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009,pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in obra citada, “São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

      Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

      -  A incorreta decisão da matéria de facto por valoração de prova proibida e por violação do princípio in dubio pro reo;

      - O incorreto enquadramento jurídico-penal dos factos;

      - A incorreta ponderação da medida da pena aplicada.


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            B) Da decisão recorrida

            Para a apreciação das questões que se suscitam no recurso, importa ter presente o teor do acórdão recorrido, que, na parte referente à factualidade provada e à respetiva motivação, se passa a transcrever:

             “II. FUNDAMENTAÇÃO

                1. OS FACTOS

                1.1. Factos relativos à culpabilidade

                1.1.1. Factos provados

                Com interesse e relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:


I

Do crime de tráfico de estupefacientes


            1º:

                O arguido BB vivia em união de facto com a arguida CC, a qual é irmã do arguido DD e estes são filhos do arguido FF.

                2º:

                Desde Julho de 2020 até 22/06/2021, o arguido BB (doravante, BB), praticou os factos que se provaram infra, com a colaboração de DD (doravante DD) e de CC (doravante CC).

                Desde Julho de 2020 até 22/06/2021, o arguido EE (doravante EE), praticou os factos que se provaram mencionados infra.

                Desde finais de Dezembro de 2020 até Junho de 2021, o arguido AA (doravante AA), praticou os factos que se provaram mencionados infra.  

                3º:

                Entre Julho de 2020 e Junho de 2021, os arguidos BB, DD e EE, estiveram diversas vezes junto da Escola Secundária ... (...), que era frequentada pelos filhos do arguido BB (o qual ia ali levar e buscar os seus filhos).

                4º:

                O arguido BB vendia estupefacientes perto e dentro de sua casa, onde residia com a arguida CC, sita no Bairro ..., ... e aproveitava-se de trabalhar nas bombas de combustível dessa vila para também nesse local vender tais substâncias.

            6º:

                O próprio arguido BB dizia que vendia estupefacientes a pessoas que sabia serem consumidores, para estes lhe comprarem tais substâncias.

                8º:

                Num plano previamente delineado entre os arguidos BB, CC e DD, aquele contava com o auxílio deste na compra e na venda das referidas substâncias estupefacientes, incluindo entregar os estupefacientes aos consumidores e receber o respectivo preço, quando as entregas fossem efectuadas fora de casa.

            9º:

                Quando o arguido BB apenas tinha estupefaciente em casa e se encontrava a trabalhar, era a arguida CC quem entregava o estupefaciente aos consumidores que se deslocavam a casa de ambos por indicação do BB e recebia o respectivo preço (quando o consumidor ainda não o tivesse pago).

            O que aconteceu, entre outros, nos dias 05/05/2021 e 17/05/2021 (sessões 6924 e 7479 do alvo 116106060), em que a arguida CC entregou heroína ao consumidor II (“dois” e “cinco pacotinhos”).

                10º:

                Para combinar a compra e venda dos estupefacientes entre si e entre si e os consumidores, os arguidos AA, BB, DD e EE, realizavam e recebiam chamadas telefónicas e enviavam e recebiam mensagens de telemóvel.

            11º:         

                O arguido AA utilizava o número de telemóvel ...76.

                12º:

                O arguido BB utilizava o número de telemóvel ...50.

                13º:

                A arguida CC utilizava o número de telemóvel ...44.

                14º:

                O arguido DD utilizava o número de telemóvel ...29....

                15º:

                O arguido EE utilizava o número de telemóvel ...73.

                17º:

                Em data não concretamente apurada, situada no período referido em 2º, o arguido EE foi ao Porto comprar 100 gramas de haxixe.

                19º:

                O arguido EE, em datas não concretamente apuradas, em ..., vendeu haxixe e erva cannabis a HH, em quantidades correspondentes ao montante global de €140,00.

                20º:

                No âmbito das comunicações que efectuava e recebia, o arguido EE referia-se aos estupefacientes utilizando expressões disfarçadas, de que é exemplo, “vinho”, “garrafas”, “garrafinhas”, “branca”.

                O que, entre outros, aconteceu no dia 26/08/2020 (sessões 4970 e 4973 do alvo 114450040), tendo o arguido EE referido ao consumidor HH (que utilizava o número de telemóvel ...05) que já tinha “vinho”, perguntando que quantidade queria “garrafas”.

                21º:

                O arguido EE e outro indivíduo de nome “JJ” contactavam e eram contactados pelos arguidos BB e DD.

                23º:

                Pelo menos desde Janeiro de 2021 e até Junho de 2021, o arguido AA passou a deslocar-se de forma regular, no mínimo de 15 (quinze) em 15 (quinze) dias, às cidades do Porto e Vila Real, onde adquiria canábis (haxixe), que reservava uma parte para seu consumo e outra parte vendia ao arguido BB.

                24º:

                Tal substância (canábis) era depois vendida, na zona de ... pelo arguido BB, com a colaboração dos arguidos DD e CC.

                25º:

                O arguido AA ia a casa do arguido BB, ou este encontrava-se com aquele e/ou com DD, num local previamente combinado, para transacionarem estupefacientes entre si.

                26º:

                Os arguidos AA, BB, DD e EE utilizavam códigos, entre si e entre si e consumidores, para falarem da compra e venda dos estupefacientes, na tentativa que não se percebesse o seu significado, designadamente, “garrafas”, “garrafinhas”, “branca”; (cocaína em pedra), “cheiro”; (cocaína em pó), “um jogo ou dois jogos” (dez ou vinte euros), “um ou dois” (dez ou vinte euros), “jogos para a playstation”, “jogamos”, “jogos”, “balções”, “precisas de alguma coisa”, “precisas”, “Se quiseres alguma coisa, vais buscar aí à minha mulher”, “Se não houvesse era outra coisa, há não é preciso falhar”, “coisinhas boas”, “PS três”, “PS quatro”, “comandos”, “fifa dez e fifa onze”, “mais jogos”, “estratégia”, “alta competição”, “metade”, “encomenda”, “o mesmo”, “chocolate”, “verde”, “camisolas do sporting”, “cena” (o estupefaciente que o concreto consumidor habitualmente adquiria para consumir), “charuto” (cigarro com estupefaciente), “pacotes” (pacotes de heroína), “litros”, “gasóleo”, “gasolina 98”, “gasóleo agrícola”.

                Concretamente, entre outras, no dia 26/04/2021 (sessão 6472 do alvo 11610560), o arguido AA deixou o “comando” à arguida CC.

                No dia 01/05/2021 (sessão 6747 do alvo 116105060), o arguido BB pediu o “jogo” a AA.

                No dia 28/02/2021 (sessão 21326 do alvo 114450040), os arguidos BB e EE combinavam uma eventual transacção, “um comando ou dois comandos?, “Dois comandos!”.

                27º:

                O arguido BB, quando era contactado pelos consumidores para a compra do estupefaciente dizia “está-se bem”, “podes passar”, “vamos ao jardim”, “vamos tomar café”, “tá tudo”, “um jogo ou dois jogos”, “tás não tás”, “podes passar aí”, após o que, os consumidores já sabiam que se deslocavam ao local combinado para adquirir o estupefaciente.

                28º:

                O arguido BB recebia contactos diários de consumidores para lhe comprarem estupefacientes, tendo clientes habituais.

                29º:

                O arguido BB vendia haxixe em pequenas “tiras” pelo valor de €10,00 (dez euros) cada e heroína a €10,00 (dez euros) cada “pacote”.

                30º:

                Semanalmente, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu:

                -A HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00.

                -A KK, consumidor, haxixe e erva cannabis, no montante de € 30,00 (trinta euros); totalizando em tal período €1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros).

                -A LL, consumidor, haxixe, no montante de €20,00 (vinte euros); totalizando em tal período €960,00 (novecentos e sessenta euros).

                -A MM, consumidor, haxixe “duas tiras”, no valor de €20,00 (vinte euros); totalizando em tal período €960,00 (novecentos e sessenta euros).

                -A NN, consumidor, haxixe ou erva canábis, pelo valor de €10,00 (dez euros) / €20,00 (vinte euros); totalizando em tal período €720,00 (setecentos e vinte euros).

                -A OO, consumidor, erva canábis, pelo valor de € 5,00 (cinco euros), € 10,00 (dez euros) ou € 20,00 (vinte euros); tendo gasto nesse período cerca de €50,00.

                -A PP, consumidor, erva canábis, pelo valor de € 10,00 (dez euros) ou € 20,00 (vinte euros); totalizando em tal período €720,00 (setecentos e vinte euros).

                31º:

                A cada quatro dias, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu haxixe, no montante de € 10,00 (dez) euros ao consumidor JJ. Totalizando em tal período €960,00 (novecentos e sessenta euros).

                32º:

                A cada três/quatro dias dentro do referido período temporal, mas por pouco tempo (meia dúzia de vezes), o arguido BB vendeu a QQ, consumidor, haxixe, pelo valor de € 10,00 (dez euros). Totalizando em tal período, no máximo, €400,00 (10€ de cada vez).

                33º:

                A cada dois dias, no supramencionado período temporal, o arguido BB vendeu haxixe a RR, consumidora, pelo valor de entre € 10,00 (dez euros) a € 20,00 (vinte euros) e houve uma semana em que, diariamente, esse arguido vendeu-lhe € 50,00 (cinquenta euros) de haxixe. Totalizando em tal período €2.825,00 (dois mil oitocentos e vinte e cinco euros). Vendeu-lhe também erva canábis, em quantidades e pelos valores não concretamente apurados.

                34º:

                Entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu haxixe a SS, consumidor, por 2/3/4 vezes, no máximo, no valor de €10,00/€20,00 de cada vez, totalizando cerca de €60,00.

                35º:

                Atento o período temporal de Julho de 2020 a Junho de 2021, ao número de vezes que aqueles consumidores habituais compravam estupefacientes e aos montantes que pagavam pelos mesmos, conforme supra descrito, o arguido BB teve uma vantagem económica de pelo menos €15.875,00.

                36º:

                BB foi às cidades do Porto e da Maia comprar estupefacientes, duas ou três vezes, deslocando-se para o efeito no táxi pertencente a TT (residente em ...) - a última dessas vezes foi aquela em que foi detido.

            37º:

                No dia 22/06/2021, pelas 20H30, o arguido BB deslocou-se ao Porto para comprar estupefacientes no veículo automóvel Táxi, de matrícula ....GD, pertencente a TT.

                38º:

                Nesse dia, quando se deslocava, na saída da auto estrada A4 em Amarante, para Gondar/Mesão Frio, os militares da GNR deram ordem de paragem àquele veículo, onde seguia o arguido BB, o qual detinha/possuía e foram-lhe apreendidos:

                -três placas de haxixe;

                -quarenta euros em notas do BCE;

                -um telemóvel, marca Samsung, modelo S9+, SM-G965F, com nº série ......, e IMEI’s ...81 (equipamento que estava a ser interceptado telefonicamente através do número ...50), cor preta, com capa de protecção em plástico preto.

                39º:

                As substâncias apreendidas àquele arguido BB tinham o peso líquido total de 287,996g de canábis (resina), com grau de pureza 21,1 (THC) e correspondem a 1.215 (mil duzentas e quinze) doses médias individuais para consumo, conforme o mapa anexo à Portaria 94/96, de 26/03.

                42º:

                No dia 22/06/2021, no âmbito de busca domiciliária, foram encontrados em casa dos arguidos BB e CC, sita no Bairro ..., ...:

                -1 (uma) bolsa de cor vermelha, contendo no seu interior haxixe;

                - 2,7 gramas de haxixe, que se encontrava dentro da bolsa vermelha;

                - 1 (um) cigarro com haxixe (charro);

                - 1 (uma) navalha de cor verde com resíduos de haxixe na lamina;

                - 1 (um) moinho para triturar canábis folha;

                - 1 (um) telemóvel, que tem o vidro traseiro partido, marca “HUAWEI”, modelo “P10 LITE”, com IMEI ...50, série nº “...09”, contendo o cartão da operadora “MEO” número ...44, com código de bloqueio ... (equipamento usado pela arguida CC); e

                -1 (uma) balança digital de cor preta.

                43º:

                Para transaccionar os estupefacientes, os arguidos BB e CC dispunham da referida faca para os cortar, do moinho para moer e da balança digital para pesar.

                44º:

                No dia 22/06/2021, no âmbito da realização de buscas domiciliárias, o arguido AA tinha na sua posse e foram apreendidos na sua residência, sita no Bairro ..., ...:

                - 1(um) telemóvel, marca Samsung, modelo Galaxy A10, com os IMEI’s ...12/17 e ...10/17;

                -1 (um) telemóvel, marca, XIAOMI, modelo Mi 9SE, com os IMEI’S ...59 e ...67 (telemóvel onde estava o inserido o cartão SIM ...76 número das intercepções telefónicas).

                45º:

                No dia 22/06/2021, o arguido EE tinha na sua posse, dentro da sua residência, sita na Rua ..., ..., ... e foram apreendidos:

                -1 (um) telemóvel de marca “SAMSUNG”, MODELO “S20”, com IMEI1 ...28/50, IMEI2 ...26/50, que tinha cartão da rede NOS número ...73 (número que estava a ser intercetado);

                -1 (uma) balança digital de marca “DIAMOND”, cor cinzenta;

                -1 (um) spray de gás pimenta, com as inscrições “ORIGINAL TW 1000 PEPPER- FOG2”.

                46º: Para transaccionar os estupefacientes, o arguido EE dispunha da referida balança digital para os pesar.

                47º:

                No dia 22/06/2021, no âmbito da realização de buscas domiciliárias, o arguido DD, dentro da sua residência, sita no Bairro ..., ..., tinha consigo e foram-lhe apreendidos:

                - 3 (três) pedaços de haxixe;

                - 1 (um) telemóvel de marca Samsung, modelo Galaxy S10 Plus, com IMEI1 ...60/50 e IMEI2 ...68/50, pin ... e código de desbloqueio ...09.

                48º:

                As substâncias apreendidas àquele arguido, DD, tinham o peso líquido total de 2,260g de canábis (resina), com grau de pureza 23,6 (THC) e correspondem a 10 (dez) doses médias individuais para consumo, conforme o mapa anexo à Portaria 94/96, de 26/03.

                54º:

                Os arguidos BB, CC e DD agiram de forma concertada e em comunhão de esforços.

                55º:

                Os arguidos BB, DD, CC, EE e AA, não estavam legalmente autorizados a plantar/deter/possuir/vender cannabis ou qualquer outra substância estupefaciente.

                56º:

                Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE conheciam as características e os efeitos dos produtos estupefacientes que detinham/possuíam/adquiriam/vendiam a terceiros.

                57º:

                E sabiam que a detenção, consumo, transporte, compra, venda, cedência ou distribuição das supra-referidas substâncias estupefacientes é proibida e punida pela lei.

                59º:

                Todos os arguidos agiram de forma livre, deliberada, voluntária e consciente.

                               (…).

2.2. Os crimes de tráfico de estupefacientes

É imputada a cada um dos arguidos AA, BB, CC, DD e EE a prática, em co-autoria, do crime de trafico de estupefacientes, previsto e punível pelo Artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal.

O tráfico de estupefacientes é também punido pelo Artigo 25º, alínea a), do mesmo diploma legal.

Essas disposições legais preceituam o seguinte:

Artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1:

“Quem, sem para tal estar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no Artigo 40º, plantas, substâncias, ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Artigo 25º, alínea a), do DL nº 15/93, de 22/1:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

(…)

É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, de menor gravidade, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º do DL nº 15/93.”.

Importa, pois, à luz dos critérios esboçados, analisar a actuação de cada um dos arguidos.

Assim, no tocante ao arguido BB, resultou provado que se dedicou à actividade de tráfico de estupefacientes pelo menos entre Julho de 2020 e 22/06/2021 (ponto 2.º dos factos provados), ou seja, durante o período de um ano.

Para o efeito, o arguido abastecia-se de estupefacientes junto de AA e de outros fornecedores e chegou ele próprio a deslocar-se, por duas ou três vezes, de táxi, às cidades do Porto e da Maia (pontos 33.º e 36.º a 39.º dos factos provados) para aquisição de estupefacientes para revenda.

Resultou ainda provado que o arguido vendia estupefacientes nas imediações e dentro da sua casa, bem como nas bombas de combustível onde trabalhava (ponto 4.º dos factos provados), publicitando ele próprio a venda de tais produtos a potenciais compradores (ponto 6.º).

O arguido BB transaccionava haxixe e heroína (ponto 29.º) e gozava, para o efeito, da colaboração da companheira (CC) e do “cunhado” (DD), co- arguidos nestes autos (cfr. os pontos 2.º, 8.º, 9.º, 25.º e 26.º dos factos provados).

Mais se provou que o arguido BB era diariamente contactado, designadamente por telemóvel, por consumidores que o procuravam para compra de tais substâncias (ponto 28.º).

E que, durante o período indicado, o arguido procedeu à venda de estupefacientes a pelo menos, 11 consumidores devidamente identificados, 7 dos quais com regularidade semanal, vendendo a 4 outros, a cada 2, 3, ou 4 dias (pontos 30 a 34 dos factos provados).

Ficou ainda provado que na data da detenção, o arguido transportava consigo 287,99 gr. de canábis, produto correspondente a 1.215 doses médias individuais diárias e guardava na sua residência, entre outros objectos, uma balança digital e um moinho para triturar canábis (pontos 37.º a 42.º), tendo auferido, durante o período referido, uma vantagem económica de, pelo menos, €15.875,00 (ponto 35.º).

Ou seja, verifica-se que, na localidade de ... (meio social de reduzidas dimensões), o arguido constituiu-se, durante o período de um ano, como o fornecedor regular de haxixe e (durante o período de seis meses) heroína a, pelo menos 11 consumidores devidamente identificados, sendo certo que o fazia com a ajuda de dois colaboradores, publicitando a venda e mantendo-se contactável diariamente para fornecimento daquelas substâncias. E para o efeito, abastecia-se junto de outros fornecedores ou deslocava-se ele próprio, de táxi, às cidades do Porto e da Maia, o que bem revela a consistência da actividade que levava a cabo e do lucro que a mesma lhe proporcionava.

Muito embora se afirmasse ele próprio consumidor de tais substâncias, resulta evidente que o período de tempo ao longo do qual desenvolveu a actividade, o número de consumidores regulares que consigo se abasteciam, a frequência diária com que o fazia, o recurso ao auxílio de 2 co-arguidos e a circunstância de, numa localidade com as dimensões de ..., o arguido publicitar e se constituir como o suporte do fornecimento de haxixe e heroína a mais de uma dezena de consumidores ali residentes, não permitem subsumir a conduta do arguido ao conceito de tráfico de menor gravidade, na medida em que nem a medida da ilicitude nem a medida da culpa fazem transparecer qualquer diminuição relevante.

(…)

                2.4. Medida concreta das penas

                É imputável:

                - ao arguido BB, a prática, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e punível com pena de 4 a 12 anos de prisão;

                (…)

                Para determinação da medida concreta da pena deverá atender-se aos critérios constantes do art. 71.º do Código Penal.

                Assim, há que ponderar, de um modo geral:

                -As exigências de prevenção geral que são elevadas, atentos os efeitos que o tráfico de estupefacientes assume quer ao nível de saúde pública, quer ao nível da segurança dos cidadãos, assumindo particular relevo quando – como sucedeu no caso dos autos – a actividade é desenvolvida em meio social de reduzidas dimensões e, logo, de forma mais visível, importando acrescido alarme social. Igualmente elevadas são as exigências associadas ao crime de detenção de arma proibida, com consequência nefastas nos sentimentos de insegurança da comunidade;

                -As exigências de prevenção especial, militando a favor de todos os arguidos a ausência de antecedentes criminais relevantes (mesmo a arguida CC, embora registe uma condenação, a mesma respeita a crime de natureza completamente diversa);

                - As condições pessoais e económicas do agente, relevando, quanto a todos os arguidos a sua integração familiar e social, mas por outro lado (e com excepção do arguido BB) a ausência de um vínculo profissional estável ou de um projecto de vida consistente.

                Atende-se ainda:

                Quanto ao arguido BB, ao período de duração da actividade a que se dedicou (de cerca de um ano), o número de consumidores identificados e que fornecia regularidade semanal, de dois em dois ou de três em três dias, a diferente natureza dos produtos que transaccionava (haxixe e heroína), o facto de ter a colaborar consigo dois outros arguidos, e a quantidade de produto apreendida na sua posse (3 placas de haxixe, correspondendo a 1.215 doses médias individuais diárias). Militando a favor do arguido a circunstância de só ter vendido heroína a um consumidor durante um período de 6 meses e de as vendas serem feitas directamente ao consumidor nas imediações da sua residência, o certo é que o arguido se constituiu, na pequena localidade de ..., como o fornecedor regular de mais de uma dezena de consumidores.

                Considera-se ainda quanto a este arguido a intensidade do dolo, que foi directo e persistente ao longo de um ano, e bem assim, a motivação para a prática dos factos, relacionada não apenas com a garantia dos seus consumos (pois que o próprio trabalhava e tinha rendimentos), como com a obtenção de proventos económicos para si e para o seu agregado familiar, visando por isso um lucro fácil que, no caso se provou não ter sido inferior a € 15.875,00.

                Toma-se ainda em consideração a conduta posterior aos factos, não decorrendo da sua postura em audiência (onde optou por não prestar declarações) nem de quaisquer outros elementos juntos aos autos que o arguido tenha, até ao presente, formulado um juízo crítico assertivo quanto aos factos por que responde, nem quanto ao modo de vida que adoptou no período a que respeitam os factos.

                (…)

                Assim, atendendo aos factores já elencados, e considerando os limites mínimo e máximo das penas de prisão abstractamente aplicáveis a cada um dos arguidos, considera-se ajustada a aplicação:

                 ao arguido BB, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de uma pena de 5 anos e 3 meses de prisão;

                (…)


*

            C) Apreciação do recurso

            - Da incorreta decisão da matéria de facto por valoração de prova proibida e por violação do princípio in dubio pro reo

            O recorrente BB veio impugnar a decisão de parte da matéria de facto que consta do acórdão recorrido relativa à sua atuação que no mesmo lhe vem imputada.


*

            a. Nesta sede, começaremos por traçar os parâmetros do conhecimento da questão assim submetida pelo recorrente ao conhecimento deste Tribunal da Relação.

            Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

            A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efetivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

            O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” da decisão de primeira instância  pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95 ) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.

            Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

            Com efeito, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.

            Esta especificação deve fazer-se, quando se trate de declarações gravadas, por referência ao consignado na cata, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na cata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

            O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

            O erro de julgamento, ínsito no citado artigo 412º, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

            Pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

            O que se visa com a impugnação ampla é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

            Tal reapreciação por parte do tribunal de recurso deverá, porém, ser feita com a necessária ponderação, atentos os princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova que nortearam a decisão do tribunal recorrido.

            Com efeito, conforme jurisprudência constante, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como nela se apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente  - vide, neste sentido, Acs. do STJ de 18-01-2018 (Proc. n.º 563/14.3TABRG.S1), de 17-03-2016 (Proc. n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 ( Proc. n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (Proc. n.º 07P21) e de 23-05-2007 (Proc. n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (Proc n.º 110407), in www.dgsi.pt.

            E, nessa medida, como já referido, impõe-se, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos do artigo 412º, nº3 do C.P.P., o qual dispõe o seguinte:

            «Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

            a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados

            b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

            c) As provas que devem ser renovadas.»

            A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados e só se se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

            Como bem defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134 -1135, «… o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado»

            A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

            Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

            Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo destas, quais as particulares passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem aos factos impugnados.

            A concretização das passagens da prova por declarações pode ser feita, designadamente, pela indicação dos tempos de gravação dos segmentos em causa, ou pela transcrição destes.

            O recorrente terá pois de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

            Exige-se que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

            No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão de que se recorre, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

            Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 4/5/2016, proferido no processo 721/13.8TACLD.C1, “Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras da experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorreção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”.

            Ao Tribunal da Relação, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, cabe, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado ou por não provado o que se deu por não provado.

            E só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – neste sentido, Acórdãos do STJ de 15/5/2009,10/3/2010,25/3/2010, in www.dgsi.pt./stj.


*

            b. Não se mostrando, embora, a impugnação que vem deduzida pelo recorrente  à decisão da matéria de facto suportada por qualquer normativo legal,  quer no corpo da motivação do recurso, quer nas conclusões, os fundamentos em que o mesmo sustenta a sua discordância em relação à decisão da matéria de facto que veio impugnar não deixa de apontar para a impugnação ampla, uma vez que o recorrente se socorre  das provas produzidas que, por entender não poderem ser valoradas, não podiam ter servido para o tribunal formar a sua convicção sobre a mesma, a qual, por isso, pretende ver alterada de provada para não provada.

            Passemos, então, à apreciação de tal questão.

            Ao discordar da decisão da matéria de facto plasmada no acórdão recorrido, o arguido e ora recorrente BB insurge-se contra o facto de o Tribunal recorrido ter dado como provada a matéria vertida no ponto 30º do elenco factual provado constante do mesmo no segmento que se refere à venda de produtos estupefacientes a HH que naquele lhe vem imputada, segundo o qual:

            “ Semanalmente, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu:

                -A HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00.

                (…)”.

                As razões da dissensão em relação à decisão de tal factualidade que, assim, vem impugnada pelo recorrente mostram-se resumidas nas conclusões recursivas 1ª a 6ª da seguinte forma: 

“1ª Ao dar como provado, em 30º dos factos provados, que “Semanalmente, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu:

- A HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00,” o Tribunal a quo violou o princípio in dúbio pro reo e as regras da valoração da prova em julgamento relativamente ao depoimento prestado perante OPC pela testemunha HH.

2º O Tribunal a quo, por aplicação do princípio in dubio pro reo e das regras da valoração da prova em audiência de julgamento, nos termos do artigo 355ºdo CPP, devia dar como não lidas em audiência de julgamento o depoimento da testemunha de fls. 2531 e 2532 porquanto, tal como esta testemunha declarou em audiência de julgamento e após a respectiva leitura de tais declarações, nos termos do artigo 356º n.º 3 a) e b) do CPP, que prestou tal depoimento perante OPC e não na presença de autoridade judiciária.

3º Afirmando a testemunha HH, em julgamento, após a leitura das declarações de fls. 2531 e 2532, que as mesmas foram prestadas perante OPC, e não na presença de autoridade judiciária, o Tribunal a quo, oficiosamente, para poder valorar tal prova, por aplicação do princípio do in dúbio pro reo, devia necessariamente de ouvir o agente da autoridade que fez tal inquirição e, não o fazendo, não podia valorar tal meio de prova como valorou.

4º Da transcrição do depoimento prestado em julgamento pela testemunha HH não constam sequer os factos que foram dados como provados em 30, pelo que o Tribunal a quo, que valorou a leitura em julgamento depoimento prestado perante OPC, o que constitui uma valoração de prova proibida por lei ( artigo 355.º do CPP).

5º Não valorando a leitura em julgamento das declarações de fls.2531 e 2532, como não devia valorar, o Tribunal a quo tinha de dar como não provado aquele segmento do artigo 30.

6º O Tribunal a quo, ao dar como provado este segmento do artigo 30 dos factos provados, fez errada aplicação princípio in dúbio pro reo e das regras da valoração da prova em julgamento, pelo que sempre terá em sede do presente recurso tal segmento de ser dado como não provado.”

                Argumentação essa que, no corpo da motivação do recurso, se mostra densificada do seguinte modo:

            “ 6º Pelo depoimento desta testemunha, supra transcrito, prestado em julgamento pela testemunha HH, as declarações, que lhe foram lidas, constantes de fls. 2531 e 2532, não foram prestadas perante Magistrado Judicial mas sim perante OPC.

                7º Como esta testemunha afirma e mantém em sede de julgamento, sob juramento, que as declarações foram prestadas perante OPC as mesmas não podiam ter sido nem lidas em audiência de julgamento, por não preencherem o requisito do artigo 356.º n.º 2, al. a e b do CPP, ao abrigo do qual a sua leitura foi requerida pelo M.P. e permitida, nem podiam ser valoradas como meio válido de prova.

                8º Perante este depoimento da testemunha HH, prestado em sede de audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo ou não atendia a tal depoimento na parte referente ao arguido BB, por aplicação do princípio do in dúbio pro reo e das regras de obtenção da prova ( artigos 355 n,º 1 e 356 n.º 3 al. a) e b) do CPP) e dava como não provado o artigo 30 da acusação…

            ou, oficiosamente, o Tribunal Coletivo teria de remover tal ilegalidade resultante de facto de essas declarações terem sido prestadas perante OPC, tal como a testemunha afirma e manteve em julgamento.

                Ou seja, o Tribunal perante este depoimento da testemunha tinha de apurar, sem margem para dúvidas, se as mesmas foram na realidade prestadas perante Magistrado Judicial pois só neste caso as mesmas podiam ser admitidas como meio de prova válido.

                9º E tinha o Tribunal a quo ao seu dispor todos os meios para, no imperioso cumprimento da legalidade na obtenção da prova, perante este depoimento da testemunha, oficiosamente, dissipar todas as dúvidas e questões que tal depoimento, nesta parte, criou para efeitos de validação da prova, nomeadamente, ouvindo para o efeito o agente da autoridade que elaborou tal documento.

            10º Não o fazendo oficiosamente, como podia e devia, tinha o Tribunal a quo, necessariamente e de acordo com as regras do direito processual penal e do princípio do in dúbio pro reo, de considerar como não lidas as declarações prestadas perante OPC de fls. 2531 e 2532. Não o fazendo a aproveitando tal meio de prova, foram violadas, nesta parte, as regras da prova e do julgamento nomeadamente o disposto no artigo 355 n.º a do CPP.

                11º Ao dar como provado tal segmento do artigo 30 dos factos provados, com fundamento na leitura daquelas declarações da testemunha, - e resultando da transcrição supra que a testemunha não reproduziu tais declarações em julgamento - o Tribunal a quo violou as regras da obtenção da prova, por aplicação do principio do in dubio pro reo e das regras da proibição de valoração de prova em julgamento ( artigo 355 do CPP).

                12º Não decidindo assim o Tribunal a quo violou o principio do in dubio pro reo e fez errada aplicação das regras da valoração da prova e errada aplicação dos artigos 355º e 356º n.º 3 al. a) e b) ambos do CPP.

                13º Pela prova produzida e por aplicação do principio in dúbio pro reo e das normas da valoração da prova, o Tribunal Coletivo, ao contrário do que foi decidido, devia dar como não provado que o arguido BB vendeu, por semana, a HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00.

                14º Deve, consequentemente, todo aquele segmento do artigo 30 ser dado como não provado com todas as consequências legais.”

                15º Ao dar como provado, em 30º dos factos provados, que:

                “ Semanalmente, entre Julho de 2020 e Junho de 2021, o arguido BB vendeu: -A HH, consumidor, haxixe e erva canábis, no valor de €60,00 (sessenta euros), e heroína (mas apenas durante 6 meses), no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros); totalizando em tal período €6.780,00,”

                16º O tribunal a quo violou o princípio do in dúbio pro reo e das regras da prova e do julgamento quanto à valoração depoimento prestado pela testemunha HH prestado perante OPC.

                17º O Tribunal Coletivo por aplicação princípio in dubio pro reo e das regras da valoração da prova e do julgamento devia dar como não provada tal factualidade.

                - O Tribunal Colectivo, nesta parte, fez errada aplicação princípio in dúbio pro reo e das regras da valoração da prova e do julgamento.”

            Com tal argumentação visa, pois, o recorrente atacar a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido relativamente à factualidade que por ele vem impugnada sobre a qual, na motivação da decisão da matéria de facto que se mostra exarada no acórdão recorrido, o mesmo deixou explicitada da seguinte forma:

            2- BB

                Em relação ao arguido BB, o Tribunal formou a sua convicção principalmente nos depoimentos das testemunhas inquiridas, designadamente dos consumidores de estupefacientes que se abasteciam junto daquele arguido (quer os depoimentos prestados na audiência de julgamento, quer os prestados na fase de inquérito perante Magistrado do Ministério Público, que foram lidos na audiência, ao abrigo do disposto no Art. 356º, nº 3, do CPP - e cuja permissão ficou a constar em acta). Nesses casos, tais divergências acabaram por ser sanadas pelos próprios depoentes, retractando-se e remetendo para o teor das suas declarações anteriores que foram lidas. De qualquer modo, nenhum dos depoentes invocou qualquer justificação para as divergências verificadas (que não a decorrente da falta de memória), de modo que o tribunal sempre atenderia preferencialmente às declarações anteriores, por terem sido as que merecem maior credibilidade, por se tratar de declarações mais contemporâneas dos factos, sendo natural que a melhor memória dos mesmos seja a do tempo mais recuado (declarações mais próximas da ocorrência dos factos).

                Desses depoimentos resultaram provados a maior parte dos factos 30º e seguintes da acusação relativamente ao arguido BB (aos quais os mesmos respeitam).

                Assim, não se provaram os factos relativamente aos quais as testemunhas com conhecimento dos mesmos se recusaram validamente a depor (cfr. o disposto no Art. 356º, nº 6, do CPP). No mais, o tribunal adequou a resposta a esses factos de acordo com os depoimentos das testemunhas que depuseram na audiência, valorando apenas as declarações aí prestadas relativamente àqueles em que não foi requerida a leitura das declarações por si prestadas no inquérito. Por outro lado, o tribunal teve em conta restrições dos actos de compra (pelo consumidor) e de tráfico (vendas efectuadas pelo arguido) em causa, ou das quantias envolvidas, designadamente quando se verificou divergência entre o teor das declarações e o texto da acusação, por haver divergência quer quanto aos quantitativos envolvidos, quer quanto à duração temporal dos actos de tráfico em causa. Assim, p. ex., relativamente à testemunha (consumidor) HH, o tribunal teve em consideração que nas declarações que foram lidas consta a restrição a apenas ao período de 6 meses relativamente ao fornecimento de heroína ao depoente (consumidor), determinando a redução proporcional relativamente ao montante global mencionado na acusação (que não teve em consideração esse facto). Outro exemplo são os períodos temporais e os valores dos fornecimentos indicados por aproximação, tendo o tribunal aplicado o critério da média (média do preço, ou média do período temporal a considerar). No entanto, nos casos em que as declarações são incertas quanto ao período temporal da duração dos consumos/fornecimentos e é indicada uma quantia global da quantia despendida (média calculada pelo próprio consumidor relativamente ao período em causa), foi esse o montante que o tribunal considerou como correcto.”

                Como daqui resulta, inquestionavelmente, para dar como provada a factualidade que agora vem posta em causa pelo recorrente - no segmento que respeita à venda de produtos estupefacientes pelo arguido BB ao consumidor HH -, o Tribunal a quo no ancorou-se no depoimento prestado por este, na qualidade de testemunha, na fase de inquérito, a cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento, pelas razões que, para tanto, ali aduz.

            Pois bem.

            Consta da ata de audiência de julgamento, reportada à sessão que teve lugar no dia 27.09.2023, junta a fls. 3253-3262vº ( Ref. Citius 93800625) que, no decurso da inquirição da testemunha HH ( por videoconferência ) foi promovido pela Digna Magistrada do Ministério Público que “ atenta a discrepância das declarações prestadas pela testemunha perante autoridade judiciária e as prestadas no dia de hoje, e para avivamento da memória requer-se a leitura das declarações de fls. 2531 a 2532 ao abrigo o art.º 356º, nº3, al. a) e b) do C.P. Penal”.

            Consta, igualmente, da mesma ata que “Pelos intervenientes processuais presentes foi dito nada ter a opor”.

            E, também que, o Mmo. Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho “após deliberação, por se verificarem os pressupostos a que alude o art.º 356º nº3 al. a)  b) do C.P.P. proceder-se-á à leitura do depoimento anteriormente prestado”.

            As declarações a cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento, nos termos que se mostram ordenados na referida ata de audiência de julgamento, são, pois, as que foram prestadas pela testemunha HH na fase de inquérito que se mostram exaradas no auto junto a fls. 2531 a 2532.

            Consta do aludido auto:

            - a identificação de HH, como sendo a da testemunha cujas declarações nele se mostram vertidas;

            - a identificação de UU, na qualidade de Procuradora-Adjunta do DIAP de Moimenta da Beira, como sendo a da entidade que preside à inquirição;

            - a identificação de VV, na qualidade de Cabo de Infantaria nº ..., como sendo a entidade que executa a inquirição.

            Por fim, mostram-se apostas assinaturas nos locais destinados às assinaturas do(a) Magistrado(o), do Autuante e da Testemunha/Ofendido. 

             Aqui chegados.

            Preceitua o art. 99º do CPP que:

            “ 1 - O auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele.

            (…)

            3 - O auto contém, além dos requisitos previstos para os actos escritos, menção dos elementos seguintes:

            a) Identificação das pessoas que intervieram no acto;

            b) Causas, se conhecidas, da ausência das pessoas cuja intervenção no acto estava prevista;

            c) Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual, à consignação do início e termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência;

            d) Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do acto.

            4- É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 169.º.”

            A lei atribui aos autos o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados.

            Com efeito, como se dispõe, no art. 169º, aplicável ex vi” do n.º 4 do art. 99º, sob a epígrafe Valor probatório dos documentos autênticos e autenticados:

            “Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”.

            Como se vê do citado art. 169º, o âmbito dos factos materiais constantes dos documentos autênticos (e autenticados) subtraídos à livre apreciação do julgador são, tão somente, os factos que referem como praticados pela entidade documentadora, bem como os factos que neles são atestados com base nas suas perceções.

            E, de acordo com o preceituado no seu art. 170º nº1 do mesmo diploma legal “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, declarar no dispositivo da sentença, mesmo que esta seja absolutória, um documento junto aos autos como falso, devendo, para tal fim, quando o julgar necessário e sem retardamento sensível do processo, mandar proceder às diligências e admitir a produção da prova necessárias.”

            Do cotejo de tais dispositivos legais resulta que:

            - A lei processual penal não permite o incidente da falsidade (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 30 de Novembro de 1994, processo 46803) e contém uma disposição própria sobre a matéria (art. 170º do CPP), valendo a decisão relativa à falsidade apenas para o próprio processo (Maia Gonçalves in CPP Anotado, 6ª edição, página 301).

            - Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa ( art. 169º do CPP);

            Isto dito.

            No caso vertente, o que o recorrente vem, em sede de recurso, pôr em causa é um documento autêntico (o referido auto de fls. 2531 a 2532), por, alegadamente, desse auto ter ficado a constar que, na fase de inquérito, a inquirição da testemunha HH decorreu perante autoridade judiciaria (Procuradora da República), quando, de acordo com o depoimento prestado na audiência de julgamento pela mencionada testemunha HH – que transcreve – esse depoimento decorreu perante órgãos de polícia criminal.

            A verdade é que, tendo o recorrente tomado conhecimento durante o depoimento prestado na audiência de julgamento pela mencionada testemunha HH das circunstâncias em que agora funda essa sua argumentação, o mesmo não arguiu no decurso do julgamento a falsidade ou qualquer desconformidade referente ao dito auto com base nessa argumentação ou em qualquer outra, podendo fazê-lo, ao abrigo do disposto no citado art. 170º, nº1 do CPP.

            Não o tendo feito, não pode agora o recorrente valer-se dessa argumentação para pretender que não podia ter tido lugar a leitura do depoimento prestado pela mencionada testemunha HH no decurso da fase do inquérito - que o Tribunal Coletivo deferiu por ter considerado que esse depoimento foi prestado perante autoridade judiciária, no caso, a Magistrada do Ministério Público do DIAP de Moimenta da Beira -, sendo certo que do respetivo auto consta ter sido esta quem presidiu à inquirição daquela testemunha que nele se mostra narrada, tendo, também, nessa qualidade, assinado o mesmo.

            Não nos deixa de impressionar, há que dizê-lo, a circunstância de o recorrente, através do seu defensor ( que é o mesmo na fase de julgamento e nesta fase do recurso) não se ter insurgido no decurso do julgamento, designadamente, requerendo a realização de qualquer diligência e/ou a produção de prova visando esclarecer as circunstâncias que rodearam a inquirição da mencionada testemunha HH na fase de inquérito e cujas declarações se mostram vertidas no referido auto de fls. 2531 a 2532 – designadamente, no que tange à entidade que presidiu à tomada dessas declarações, quando, como é certo, tal auto – contendo as declarações da testemunha a cuja leitura se procedeu  - já constava do processo e dele emerge que a recolha das declarações nele vertidas foi presidida  por Magistrada do Ministério Público do DIAP de Moimenta da Beira, a qual, nessa qualidade, também o assina – e de ter aduzido as razões que agora aduz para pôr em causa a veracidade do que dele, a esse propósito consta, visto sustenta apenas estas no depoimento prestado na audiência de julgamento pela mencionada testemunha HH!

            A perplexidade não diminui quando vemos que o recorrente, agora em sede recursiva, assaca ao Tribunal recorrido a “obrigação” de dissipar a dúvida sobre perante quem foram prestadas as declarações da mencionada testemunha em fase de inquérito a cuja leitura se procedeu no decurso da audiência de julgamento, quando essa dúvida - que apenas agora parece pairar no seu espírito - nunca por ele antes foi manifestada!  

Tudo para dizer que, não tendo sido, por qualquer forma, questionada a veracidade do referido auto no decurso da audiência de julgamento não pode agora o recorrente, em sede de recurso, pretender valer-se da alegada desconformidade do mesmo com os fundamentos que aduz ou do princípio in dubio pro reo com vista a retirar-lhe a força probatória que a lei lhe confere, nos termos do art. 169º do CPP, e, na decorrência disso, pretender que não se considere que as declarações prestadas pela testemunha nele narradas decorreram perante autoridade judiciária como dele consta.

Como é sabido, o Art. 355º, nº 1 do C. Processo Penal, em estrita observância dos princípios da imediação e do contraditório, só permite que o tribunal valore, para efeitos de formar a sua convicção, as provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento. O seu nº 2 prevê as exceções a esta regra geral, contando-se entre elas, a leitura de autos de inquérito ou de instrução que contenham declarações do assistente ou de testemunhas.

No caso em vertente, no decurso da audiência de julgamento procedeu-se à leitura das declarações prestadas pela testemunha HH, constantes do auto de fls. 2531 a 2532, ao abrigo do disposto no art.º 356º nº3 al. a) e b) do CPP, e, sendo, inegável que o Ministério Público, enquanto «autoridade judiciária» legalmente definida na norma do artº 1º, b), do CPP, «relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência», integra a previsão do proémio daquele nº 3, nada obstava a que se procedesse à leitura de tais declarações, verificados que se mostram os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do nº 3 daquele art. 356º, os quais, em sede recursiva, nem sequer vêm postos em causa.

Daí que, sendo permitida a leitura de tais declarações em sede de audiência de julgamento que veio a ser deferida pelo Tribunal a quo, não estava este impedido de as valorar, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, para formar a sua convicção sobre a decisão da matéria de facto, como, efectivamente, o veio a fazer nos termos e pela forma que deixou exarada no acórdão recorrido, e de, com base nelas, lograr alcançar a convicção sobre a factualidade que vem impugnada pelo recorrente, a qual não nos merece censura.

Donde, com tal fundamento, que, aliás foi o único alegado pelo recorrente na impugnação que deduz à decisão da matéria de facto, não pode esta proceder.

      Anotando, ainda que, apesar de não virem invocados, mas sendo o seu conhecimento de natureza oficiosa, face à densificação normativa contida nas alíneas a) a c) do art. 410º, nº2 do CPP, afastada fica a existência dos vícios decisórios nestas contemplados.


*

c. Ainda que suscitada apenas a respeito da valoração que o Tribunal recorrido fez das declarações prestadas pela testemunha HH na fase de inquérito e a cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento – relacionada apenas com os contornos em que as mesmas se desenrolaram - não deixa o recorrente de invocar também a violação do princípio in dubio pro reo, com vista à alteração da decisão da matéria de facto que veio impugnar.

            A tal propósito, diremos que quanto à matéria que vem impugnada pelo recorrente, nada resulta da fundamentação sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida a respeito de qualquer dúvida que tenha pairado na convicção dos julgadores da primeira instância a propósito da mesma que justifique equacionar-se ter sido postergada pelo tribunal recorrido a aplicação do princípio in dubio pro reo.

            Com efeito, o princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

            Trata-se de uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

            Ou seja, se produzida a prova subsiste no espírito do julgador um estado de incerteza, objetiva, razoável e intransponível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, impõe-se proferir uma decisão favorável ao arguido.

            A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.

            Nesta fase do recurso, a demonstração da sua violação passa pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, ou seja, têm que resultar da fundamentação desta, de forma clara, que o juiz, pese embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

            Porém, a dúvida relevante para este efeito, não é a dúvida que qualquer recorrente entenda que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada, o que, bastas vezes, os recorrentes olvidam e /ou confundem, como, manifestamente, acontece no presente caso.

            Como resulta, entre outros, do acórdão do S.T.J. de 2 de maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177, o Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

            Refere Roxin, in “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.

            Assim, se na fundamentação aduzida na decisão o Tribunal não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

            No caso vertente, o recorrente aflora a dúvida que deveria ter pairado nos julgadores que integram o Tribunal Coletivo apenas e só como corolário da sua apreciação da prova e da valoração que entende dever ser feita dos meios de prova carreados para os autos

            Para o recorrente, de acordo com a sua própria apreciação/valoração, a prova produzida nos autos não permite concluir no sentido decidido quanto à sua atuação nos factos ocorridos pela forma que foi considerada provada, por entender que a prova carreada para os mesmos se mostra insuficiente para esse efeito, e que, sobre isso, se deveria inculcar dúvida razoável valorada positivamente a seu favor, em conformidade com o princípio in dubio pro reo consagrado no art. 32º, nº2, 1ª parte da CRP.

            Porém, em parte alguma do acórdão recorrido resulta que, relativamente à factualidade narrativa sobre a atuação do arguido nela descrita que agora vem impugnada pelo recorrente, o tribunal recorrido se tenha defrontado com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.


*

            Assim sendo, não se detetando omissões relevantes, factos inconciliáveis, juízos entre si incompatíveis, ilógicos, que inculquem uma apreciação à margem das regras da experiência comum, ou, sequer, que tenha o tribunal recorrido tomado a sua decisão perante um quadro factual desprovido de certezas quanto ao factos que considerou como provados;  não se assistindo à preterição dos momentos vinculados da prova, à valoração de prova proibida; patenteando-se na fundamentação uma análise cuidada, detalhada, lógica e racional dos diferentes meios de prova, por si e em conjugação entre si, criteriosamente analisada, não nos suscitando o juízo de convicção observado pelo tribunal recorrido a mais ténue inquietação quanto à sustentação da decisão na abundante e, no essencial de sentido unívoco, prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, considera-se, tal como se mostra  consignado no acórdão  recorrido,  definitivamente fixado o acervo factual que dela consta.

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            - Do incorreto enquadramento jurídico-penal dos factos

            Tendo sido condenado nos presentes autos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº1, do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A e I-C anexas ao mesmo diploma legal, insurge-se o arguido e ora recorrente BB contra o enquadramento jurídico-penal ponderado no acórdão recorrido a respeito dos factos nele considerados apurados, pugnando que a sua conduta espelhada em tal factualidade deverá enquadrar-se no tipo legal do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, alínea a) do referido Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro.

            Para tanto, esgrime a seguinte argumentação, resumida nas conclusões 7ª a 19ª:

“7º Sem prescindir, quanto à questão da matéria de direito, para o recorrente, os factos praticados constituem não um crime de tráfico de estupefacientes p.e p. pelo artigo 21º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro mas sim, atendendo à ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, como infra se demonstrará, um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, al. a), daquele diploma legal.

8º No caso deve entender-se que a ilicitude do facto é consideravelmente diminuída, senão atentemos que:

9 O arguido é consumidor de estupefacientes desde os seus 15/16 anos.

10º Quando em 2017, por dificuldades económicas e falta de trabalho na zona da sua residência na ..., se fixou em ..., com a ajuda de familiar, a sua condição de consumidor levou-o ao contacto com outros consumidores trocando entre si produto estupefaciente quando alguns deles não tinham, embora reconhecendo a ilicitude desse facto.

11º Desde que vive em ..., com a sua companheira e co- arguida CC, com quem tem 3 filhos menores de idade, sempre trabalhou, auferindo rendimentos para o sustento do agregado.

12º A ilicitude deve ainda ser entendida como consideravelmente diminuída, considerando os meios utilizados, resultando dos factos provados que não existiam quaisquer meios, mais ou menos sofisticados, utilizados pelo arguido para a venda dos estupefacientes.

13º Que as entregas eram efetuada pelo arguido na rua, através dos contactos diretos dos consumidores com o arguido ou, na maior parte das vezes, através de prévio contactado por telemóvel dos consumidores para combinarem as transações.

14º O arguido BB não dispunha, para além do seu telemóvel, de quaisquer outros meios, sofisticados ou não para a venda dos estupefacientes.

15º Que dos consumidores com quem se relacionou, não mais de dez ao todo, três deles apenas compraram 2 ou 3 vezes haxixe ao arguido e em pequenas quantidades não mais de 10 euros cada vez.

16º Para o recorrente, pelos meios utilizados designadamente, o número relativamente reduzido de consumidores de estupefacientes, as reduzidas quantidades de estupefacientes vendidos em cada transação, a inexistência de qualquer organização e de reduzidos meios de apoio, a relativamente curta duração temporal e todos os demais circunstâncias que diminuem consideravelmente a ilicitude do facto deveria ser condenado não pelo crime de tráfico do artigo 21 mas sim como tráfico de menor gravidade do artigo 25º al. a) D.L. 15/93, de 22-01.

17º O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do direito ao condenar o arguido na pena de 5 anos e 3 meses pelo artigo 21º D.L. 15/93, de 22-01.

18º Atendendo que a ilicitude do facto é consideravelmente diminuída deve o arguido ser condenado não pelo crime de tráfico do artigo 21 mas sim como tráfico de menor gravidade do artigo 25, D.L. 15/93, de 22-01.

19º Pelo conjunto dos factos provados e não provados e pela ilicitude do facto que é consideravelmente diminuída deve ser aplicado ao arguido, nos termos do disposto no do artigo 25º D.L. 15/93, de 22- 01.”

            Vejamos, então, se é de acolher a pretensão do recorrente arguido quando ao pretendido enquadramento das suas condutas no crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro.

O crime de tráfico, tutelando o bem jurídico saúde e integridade física dos cidadãos ou, melhor dito, a saúde pública, é um crime comum – pode ter por autor qualquer pessoa –, de perigo abstrato – consuma-se com a mera criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido, não sendo o perigo elemento do tipo, mas apenas, motivo da proibição – e exaurido ou de empreendimento – a proteção do bem jurídico recua a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa.

Não obstante o grande desvalor social da catividade do tráfico de estupefacientes e a sua elevada danosidade, o legislador reconheceu que nela podem distinguir-se distintos graus, a exigirem diferenciadas reações penais. E assim, o Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, para além do tipo base (art. 21º), prevê um tipo especial agravado (art. 24º), um tipo especial privilegiado (art. 25º) e ainda o tipo de tráfico-consumo (art. 26º).

Detenhamo-nos no tráfico privilegiado, que a lei designa por tráfico de menor gravidade, cuja aplicação é requerida pelo arguido recorrente.

Na nota justificativa enviada à Assembleia da República, na parte relativa ao art. 25º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, foi realçado o propósito de, com ele, permitir “ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo do tráfico menor, que apesar de tudo não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os dealers de rua representam na cadeia do tráfico. Haverá, assim, que deixar uma válvula de segurança para que situações efetivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial.”.

Dispõe o citado art. 25º:

Se, nos casos previstos nos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da Acão, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; 

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

O tipo privilegiado fica, pois, preenchido quando, preenchido o tipo do art. 21º ou do art. 22º, se mostre consideravelmente diminuída a ilicitude do facto.

Tal preceito, apelidado por Lourenço Martins de “válvula de segurança do sistema” consagra um tipo privilegiado relativamente ao tipo matricial p. e p. no art. 21º do diploma legal citado ( in Nova Lei Anti-Droga: Um Equilíbrio Instável).

Não é, porém, uma qualquer diminuição da ilicitude do facto que possibilita a aplicação do tipo privilegiado. A lei exige que essa diminuição seja considerável, portanto, que seja uma diminuição notável.

A requerida considerável diminuição da ilicitude do facto deve resultar de uma avaliação global da situação de facto, pela ponderação, entre outros fatores [o advérbio “nomeadamente”, na previsão legal, significa poderem e deverem ser consideradas todas as circunstâncias que, concorrendo no caso, sejam relevantes para aferir se, objetivamente, a ilicitude da acção tem menor relevo que a tipificada para os arts. 21º e 22º], dos meios utilizados [a organização e a logística], da modalidade e circunstâncias da acção [em função do grau de perigosidade para a difusão do estupefaciente], e da qualidade e/ou quantidade das substâncias, plantas ou preparados [em função da intensidade do ‘ataque’ ao bem jurídico protegido].

No que respeita às circunstâncias tipificadas no art. 25º, cumpre dizer:

i) quanto aos meios utilizados, traduzidos na organização e na logística de que o agente se serve, que eles podem ser nulos, incipientes, médios ou de grande dimensão e sofisticação, aqui figurando ainda a posição relativa do agente na pirâmide da rede do tráfico;

ii) quanto à modalidade ou às circunstâncias da acção, que releva, essencialmente, o grau de perigosidade para a difusão da droga designadamente, a maior ou menor facilidade de deteção da sua penetração no mercado, e o número de consumidores fornecidos;

 iii) quanto à qualidade das plantas, substâncias ou preparações, relacionada com a respetiva perigosidade, que ela pode ser aferida pela sua colocação em cada uma das tabelas anexas ao Dec. Lei nº 15/93, e pelos resultados da investigação científica relativamente à capacidade aditiva de cada uma e às consequências do respetivo uso, e, por último;

iv) quanto à quantidade das plantas, substâncias ou preparações, que há que ponderar, em função dela, o maior ou menor risco para os valores tutelados pela incriminação.

Para além das circunstâncias atinentes aos fatores de aferição da ilicitude indicados no texto do art. 25.º do DL 15/93, há que ter em conta todas as demais circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da ação e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) ao tipo privilegiado do art. 25º do DL 15/93, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir, como já atrás se consignou, os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade justificativa do crime tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência (ausência) daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e atividades contemplados no crime tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para integração da norma que prevê e pune o crime tipo.

Ao estabelecer uma moldura penal menos severa, o art. 25º impõe ao intérprete verificar se a imagem global do facto se enquadra ou não, dentro dos limites das molduras penais dos arts. 21º e 22º, sob pena de a reação penal ser, à partida, desproporcionada pois, a concretização da considerável diminuição da ilicitude em cada caso, exige a aplicação de critérios de proporcionalidade que são pressupostos da definição das penas e depende, em grande parte, de juízos essencialmente jurisprudenciais ( vide a este propósito, Maria João Antunes, in Droga, Decisões de Tribunais de 1ª Instância, 1993, Comentários, pág. 296).

      É que, conforme defende Lourenço Martins, in “Droga e Direito”, 1994, pág.151, o interesse tutelado com a previsão do crime de tráfico de menor gravidade, também ele de perigo abstrato, foi a exigência de “atribuir menor relevo à menor periculosidade presumida dos factos, na sua globalidade de mais escassa relevância”, pretendendo-se com o mesmo evitar que situações efetivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas.

      Como se escreveu no Ac. do STJ de 17.03.2010, acessível em www.dgsi.pt,  o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.ºdo DL 15/93,de 22-01, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, ou seja, ao crime do art. 21.º, do citado DL 15/93.Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude do facto, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como fatores aferidores de menorização da ilicitude do facto, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações. É, pois, a partir do tipo fundamental, concretamente da ilicitude nele pressuposta, que se deve aferir se uma qualquer situação de tráfico se deve ou não qualificar como de menor gravidade.

Ainda segundo o mesmo acórdão, tal aferição, consabido que a ilicitude do facto se revela, essencialmente, no seu segmento objetivo, com destaque para o desvalor da ação e do resultado, deverá ser feita a partir de todas as circunstâncias que, em concreto, se revelem e sejam suscetíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito, quer do ponto de vista da ação, quer do ponto de vista do resultado.

Conforme jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, a diferença entre os arts. 21º e 25º do D.L.15/93, de 22/1, assenta numa escala de danosidade social centrada no grau de ilicitude, a aferir caso a caso, com base na ponderação das condições especificamente apuradas e que devem ser globalmente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativamente contida no último desses preceitos (cfr. entre muitos outros Ac. do S.T.J. de 18/2/1999, CJ –S.T.J., Tomo I, pág.220 e segs.).

Não sendo a enumeração legal taxativa, tem-se ainda entendido que o critério a seguir para qualificar o facto como menos grave ou leve, deverá ser o da valorização global da ocorrência e das concretas e específicas circunstâncias em que a mesma se desenvolveu.

Assim, para além das referências à quantidade e qualidade das substâncias traficadas, pode e deve atender-se ao seu grau de pureza ou perigo que representam em razão da sua natureza mais ou menos viciante e, no tocante à modalidade ou circunstâncias da ação, devem ponderar-se, entre outras, as finalidades e as razões que lhe presidiram – vide, entre outros, Acórdãos do STJ de 12/3/2003 e 24/10/2007, disponíveis em wwwdgsi.pt.


*

Assente que a opção pelo tipo previsto do art.25º não se basta com uma diminuição da ilicitude do facto, antes exigindo que esta se revele consideravelmente diminuída, vejamos o que foi considerado pelo tribunal recorrido para se decidir enquadrar a conduta do arguido ora recorrente no tipo legal base do crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo Art. 21º do Dec. Lei 15/93, de 22.1

Consta a tal propósito do acórdão recorrido que:

“ Assim, no tocante ao arguido BB, resultou provado que se dedicou à catividade de tráfico de estupefacientes pelo menos entre Julho de 2020 e 22/06/2021 (ponto 2.º dos factos provados), ou seja, durante o período de um ano.

Para o efeito, o arguido abastecia-se de estupefacientes junto de AA e de outros fornecedores e chegou ele próprio a deslocar-se, por duas ou três vezes, de táxi, às cidades do Porto e da Maia (pontos 33.º e 36.º a 39.º dos factos provados) para aquisição de estupefacientes para revenda.

Resultou ainda provado que o arguido vendia estupefacientes nas imediações e dentro da sua casa, bem como nas bombas de combustível onde trabalhava (ponto 4.º dos factos provados), publicitando ele próprio a venda de tais produtos a potenciais compradores (ponto 6.º).

O arguido BB transaccionava haxixe e heroína (ponto 29.º) e gozava, para o efeito, da colaboração da companheira (CC) e do “cunhado” (DD), co- arguidos nestes autos (cfr. os pontos 2.º, 8.º, 9.º, 25.º e 26.º dos factos provados).

Mais se provou que o arguido BB era diariamente contactado, designadamente por telemóvel, por consumidores que o procuravam para compra de tais substâncias (ponto 28.º).

E que, durante o período indicado, o arguido procedeu à venda de estupefacientes a pelo menos, 11 consumidores devidamente identificados, 7 dos quais com regularidade semanal, vendendo a 4 outros, a cada 2, 3, ou 4 dias (pontos 30 a 34 dos factos provados).

Ficou ainda provado que na data da detenção, o arguido transportava consigo 287,99 gr. de canábis, produto correspondente a 1.215 doses médias individuais diárias e guardava na sua residência, entre outros objectos, uma balança digital e um moinho para triturar canábis (pontos 37.º a 42.º), tendo auferido, durante o período referido, uma vantagem económica de, pelo menos, €15.875,00 (ponto 35.º).

Ou seja, verifica-se que, na localidade de ... (meio social de reduzidas dimensões), o arguido constituiu-se, durante o período de um ano, como o fornecedor regular de haxixe e (durante o período de seis meses) heroína a, pelo menos 11 consumidores devidamente identificados, sendo certo que o fazia com a ajuda de dois colaboradores, publicitando a venda e mantendo-se contactável diariamente para fornecimento daquelas substâncias. E para o efeito, abastecia-se junto de outros fornecedores ou deslocava-se ele próprio, de táxi, às cidades do Porto e da Maia, o que bem revela a consistência da actividade que levava a cabo e do lucro que a mesma lhe proporcionava.

Muito embora se afirmasse ele próprio consumidor de tais substâncias, resulta evidente que o período de tempo ao longo do qual desenvolveu a actividade, o número de consumidores regulares que consigo se abasteciam, a frequência diária com que o fazia, o recurso ao auxílio de 2 co-arguidos e a circunstância de, numa localidade com as dimensões de ..., o arguido publicitar e se constituir como o suporte do fornecimento de haxixe e heroína a mais de uma dezena de consumidores ali residentes, não permitem subsumir a conduta do arguido ao conceito de tráfico de menor gravidade, na medida em que nem a medida da ilicitude nem a medida da culpa fazem transparecer qualquer diminuição relevante.”

Adiantando já, cremos que em face da factualidade que resultou apurada e que foi ponderada pelo Tribunal a quo não merece censura o enquadramento jurídico-penalmente da conduta do arguido recorrente BB no tipo legal do Art. 21º.

Isto porque.

A atividade desenvolvida pelo recorrente – consistente na venda de haxixe e heroína - perdurou ao longo de cerca de um ano (Julho de 2020 e 22/06/2021), na localidade de ....

Quanto à droga por ele traficada, uma delas, a heroína, assume maior grau de danosidade, sendo, por isso, designada por de droga dura, enquanto que o haxixe, não sendo, embora, uma das drogas que assume maior grau de danosidade, considerada como droga leve, não deixe de acarretar graves consequências para a saúde mental dos consumidores, para além de que constitui, não raras vezes, entre os jovens, o início de dependência que, posteriormente, potencia a evolução para o consumo de drogas com maiores e mais graves dependências.

Por outro lado, o recorrente, também ele assumido consumidor dos referidos produtos estupefacientes, atuou com uma estrutura e organização básicas e sem grande ‘especialização’ de tarefas - destacando a colaboração que lhe era prestada pela companheira (CC), a qual aceitava que o arguido guardasse na residência de ambos o estupefaciente que transacionava e que procedia a entregas de estupefaciente a terceiros consumidores daquelas substâncias, quando o arguido não se encontrava em casa, fazendo-o de acordo com as instruções daquele e recebendo, também mediante instruções daquele, o preço do produto entregue e, ainda, agilizando o recebimento de estupefacientes por parte de um dos fornecedores do arguido BB, e, também, pelo “cunhado” (DD), o qual o acompanhando-o nos encontros com outros indivíduos relacionados com a atividade e também procedia, por conta e sob instruções daquele, à entrega de estupefacientes contra o recebimento do preço, recebendo e transmitindo mensagens nas quais eram combinados os termos das  transações - sem sofisticação de meios, para além do comum uso de telemóveis, exercendo a atividade de venda em área geográfica restrita, abastecendo-se o arguido de tais produtos estupefacientes no Porto e na Maia, onde para o efeito se deslocava, e também junto do co-arguido AA, o qual depois vendia aos consumidores que o contactavam para o efeito com a colaboração da companheira  do “ cunhado”.

Quanto à dimensão e aos proventos obtidos pelo arguido BB com tal atividade, é visível uma disseminação da droga que, não se apresentando, embora, ser em larga escala, permite descortinar a  venda de estupefacientes, durante o referido período, a pelo menos, 11 consumidores devidamente identificados, 7 dos quais com regularidade semanal, vendendo a 4 outros, a cada 2, 3, ou 4 dias,  em quantidades  que, aferidas por aquelas que vieram a ser apreendidas na sua posse – 287,99 gr. de canábis, produto correspondente a 1.215 doses médias individuais diárias – permitem inculcar  um volume de vendas donde ressuma a obtenção de proventos da catividade delituosa por ele desenvolvida que representa, em relação à maior parte dos consumidores por ele abastecidos durante o período em que perdurou a sua atividade valor próximo de € 1.000,00, e, em relação a outros três deles, valores de € 6,780,00, € 1.400,00, e € 2.825,0.

Em suma, a quantidade de heroína e cannabis vendida no período de tempo em causa é apreciável, sendo o primeiro daqueles estupefacientes um dos que menores danos causa ao bem saúde pública, a modalidade mais importante da conduta delituosa praticada– venda com fins lucrativos – é das mais graves previstas no tipo matricial, o número de consumidores cujas necessidades o recorrente supriu, de forma repetida e durante o referido período de tempo, não é de desprezar.

Pelo que, tudo ponderado, entendemos que a imagem global do facto não é compatível com um quadro de ilicitude consideravelmente diminuída, no sentido supra fixado, pelo que, a conduta do arguido recorrente BB é subsumível à previsão do art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, não merecendo, pois, censura, a sua condenação na 1ª instância, pela prática do crime de tráfico, ali previsto.

Assim, se julgando improcedente também neste segmento o presente recurso.


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(…)

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            Termos em que se julga totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido BB.

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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido BB, e, consequentemente, manter na íntegra o acórdão recorrido.

2. Condenar o arguido recorrente nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em 5 UCs (artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).


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                                                                                                                                                                                                                                Coimbra, 22 de maio de 2024

                ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra  – relatora)

 (Maria Fátima Sanches Calvo – 1ª adjunta)

(Rosa Pinto – 2ª adjunta)