Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULA MARIA ROBERTO | ||
Descritores: | CONTRATO DE TRABALHO APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO NOVA PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE ALTERAÇÃO DOS TERMOS ESSENCIAIS DA RELAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 02/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 12.º-A DO CÓDIGO DO TRABALHO, 32.º, N.º 3, 35.º E 37.º, N.º 1, DA LEI N.º 13/2023, DE 03-04 | ||
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Sumário: | I – Por força do disposto no artigo 35.º da Lei n.º 13/2023 (aplicação no tempo), <<ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.>>
II – À relação jurídica estabelecida entre as partes com início em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 que aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, este só será aplicado à mesma no caso de se extrair da matéria de facto que ocorreu uma mudança essencial na configuração dessa relação, ou seja, a nova presunção de laboralidade será aplicável se resultar da matéria de facto que as partes alteraram os seus termos essenciais. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam[1] na Secção Social (6.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
O Ministério Público
intentou a presente ação de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, relativamente aos prestadores AA, BB e CC contra
A..., Unipessoal, Ldª, com sede em Lisboa
alegando, em síntese que: A Ré é uma empresa tecnológica que opera a plataforma digital Uber Eats, servindo-se desta aplicação informática para receber e distribuir os pedidos, nomeadamente, refeições, plataforma criada e desenvolvida para tal efeito; efetua a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre um cliente e um comerciante, mas exige uma execução local que requer a prestação de uma atividade num determinado local a qual é assegurada pelos trabalhadores estafetas; a Ré disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, a pedido de utilizadores, o que envolve como componente necessária e essencial a organização do trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca (“Uber”); todo o trabalho destes prestadores é prestado sob orientação da Ré que tem o poder de direção, o trabalhador está inserido na organização da empresa da Ré que se encontra sob a autoridade desta, a qual tem o poder de fiscalização, não tendo o trabalhador qualquer liberdade para fixar a sua remuneração ou alterar as condições do seu pagamento; a relação de trabalho estabelecida entre a Ré e os trabalhadores acima identificados desenvolveu-se de forma em tudo semelhante àquela que resulta da celebração de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, enquadrável no conceito definido no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, com total dependência económica da Ré, sendo a Ré quem fixa a retribuição para o trabalho efetuado ou estabelece limites mínimos e máximos para aquela, sendo a Ré quem controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real e verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos; a Ré restringe a autonomia do trabalhador quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à possibilidade de aceitar ou de recusar tarefas, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes, exerce poder disciplinar sobre o trabalhador, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta e equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem à Ré.
Termina formulando o seguinte pedido: “Que a ação seja julgada procedente e provada e em consequência: Seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e os trabalhadores AA (fixando-se a data do seu início em 1 de Janeiro de 2022), BB (fixando-se a data do seu início em 1 de Dezembro de 2022) e CC (fixando-se a data do seu início em Julho de 2023).” A Ré, devidamente notificada, apresentou contestação, alegando, em síntese: Não é aplicável a presunção estabelecida no artigo 12.º-A do CT; não foram enunciados factos nem provas que permitam a qualificação da Uber Eats como plataforma digital; dois prestadores de atividade exercem a sua atividade na Plataforma Uber Eats através de um intermediário e o outro exerce-a de forma independente; não se verificam as características de contrato de trabalho elencadas no artigo 12.º-A, n.º 1, do CT; os prestadores de atividade desenvolvem a atividade com efetiva autonomia em relação à Ré, são livres de escolher como, onde, por quanto tempo e em que termos prestam atividade na Plataforma Uber Eats; não existe controlo, poder de direção e poder disciplinar sobre os prestadores de atividade nem uma relação intuitu personae entre a Ré e os prestadores de atividade e as características de um contrato de trabalho não se encontram verificadas. Termina dizendo: “Termos em que: i) se deverá absolver a Ré da instância, por procedência da exceção dilatória atípica resultante do facto de não ser admissível in casu a cumulação de pedidos; ii) subsidiariamente, se deverá absolver a Ré da instância, por procedência da exceção dilatória atípica derivada da anulabilidade da participação efetuada pela ACT aos Serviços do Ministério Público; iii) subsidiariamente, se deverá julgar o pedido do Autor improcedente, por não provado; iv) subsidiariamente, se deverá julgar o pedido do Autor improcedente, por ilisão da presunção de existência de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º-A, n.º 1,do Código do Trabalho; E adicionalmente, em relação ao pedido de apensação deduzido pelo Autor: v) Não deverá o presente processo ser apenso ao Proc. n.º 4699/23...., porquanto não se verificam os requisitos que presidem à aplicação da figura e se verifica razão especial que impede a mesma; vi) Subsidiariamente, mas sempre sem conceder, deverão os processos apensos respeitar o estatuto dos prestadores de atividade visados, determinando-se a apensação em dois grupos, um para cada estatuto de prestador de atividade, e serem os processos convertidos em processo declarativo comum por ser este o único capaz de garantir à Ré o seu direito efetivo de defesa relativo a cada um dos pedidos desses autos; vii) Subsidiariamente, mas sempre sem conceder, deverão os processos apensos, ainda que sem respeito pelo estatuto dos prestadores de atividade visados, ser convertidos em processo declarativo comum por ser este o único capaz de garantir à Ré o seu direito efetivo de defesa relativo a cada um dos pedidos desses autos”. Foi proferido o despacho saneador de fls. 288 e segs. e, de seguida, realizou-se a audiência de discussão e julgamento conforme resulta das respetivas atas. * Foi, depois, proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Atentos os fundamentos expostos e as normas legais citadas, decide-se julgar improcedente a ação instaurada pelo Autor, Ministério Público, contra a Ré, A... Unipessoal, Lda. e, em consequência, absolve-se a Ré do pedido de reconhecimento da existência de contratos de trabalho entre a Ré e AA, BB e CC.” O Autor, notificado desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte: (…). A Ré apresentou resposta concluindo que: (…). Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. II – Questões a decidir: Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. na redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso. Cumpre, assim, apreciar as questões suscitadas pelo Autor recorrente, quais sejam: 43) O estafeta pode recusar o pedido quando chega ao restaurante e pode recusar até receber o pedido, havendo na APP uma opção para recusar por diversos motivos, nomeadamente, pela distância na entrega. 44) Na APP, existe opção de avaliação a efetuar pelos clientes e pelos parceiros/restaurantes ao seu desempenho, podendo os mesmos clicar em “Like” ou “Dislike”, podendo também o estafeta avaliar o restaurante e o cliente. 45) A área geográfica onde o estafeta faz as entregas é escolhida pelo mesmo. 46) Os estafetas AA e BB escolheram a área geográfica desde ... a ... e o estafeta CC escolheu ..., ... e .... 47) Caso pretendam operar noutras áreas geográficas indicam essa sua intenção à Ré. 48) Os estafetas apenas conseguem exercer as suas funções com a utilização da aplicação digital mas poderão exercer as suas funções quer através da APP Uber Eats como de outra plataforma digital e até usar várias em simultâneo. 49) Podem recolher mais do que uma encomenda ao mesmo tempo, a partir da plataforma Uber Eats, de outras plataformas ou de plataformas de clientes próprios, de forma a rentabilizar o seu tempo. 50) O estafeta tem de ter sempre a localização ativa no telemóvel quando utiliza a aplicação Uber, selecionando a opção que permite a sua localização. 51) O estafeta e o estabelecimento comercial que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monotorização de cada recolha/entrega. 52) A APP acompanha em tempo real a localização do estafeta e, consequentemente, conhece o tempo que demora cada entrega. 53) A APP define o caminho para a entrega, mas o estafeta pode escolher caminho diferente. 54) Quando entrega o pedido no cliente o estafeta tem de confirmar a entrega na APP. 55) O serviço do estafeta é avaliado pelos restaurantes e pelos clientes finais, sendo mais relevante a avaliação efetuada por estes últimos. 56) Toda a atividade prestada pelo estafeta fica registada na APP e vai adquirindo pontos, nos seguintes termos: no início, tem a classificação “Green” (0 pontos), depois vão adquirindo pontos (no horário das 19 horas às 22 horas é quando se ganha mais pontos – 6 pontos); a partir dos 360 pontos têm a classificação de “Gold”; a partir de 600 pontos têm a classificação de “Platinium” e a partir de 850 pontos têm a classificação de “Diamont”). 57) Estas classificações permitem aos estafetas ter mais vantagens, por exemplo, desconto em cada litro de combustível abastecido na “Galp” (se tiver, por exemplo, a classificação “Gold” tem desconto na “Galp” de 0,08 euros em cada litro de combustível) e tem descontos na aquisição de equipamentos ou instrumentos de trabalho em lojas associadas (como, por exemplo, na aquisição de mochila térmica ou porta-telemóvel). 58) Se o estafeta reduzir ou aumentar a prestação de atividade (maior ou menor taxa de aceitação de pedidos) pode “descer” ou “subir” de classificação e perder as vantagens que já tinha ou ganhar mais; a atualização dos pontos é efetuada, em regra, mensalmente. 59) No ponto 9, alínea b) do “Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota” consta que “No caso de uma alegada violação das obrigações da sua Empresa de Parceiro de Frota, ou das suas obrigações (Cláusula 5, supra), incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos será notificado por escrito das razões para tal restrição.(…)” 60) Ainda de acordo com o ponto 16.b. do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente consta que “Podemos resolver o presente Contrato, a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nosso serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o parceiro de Entregas Independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar a sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados (…)” 61) O estafeta pode bloquear clientes e estabelecimentos na plataforma. 62) O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que os estafetas a recolhem. 63) De acordo com o ponto 4.h. do referido Contrato “O Parceiro de Entregas é livre para escolher o sistema de GPS da sua preferência na App (entre Waze, Google Maps ou Uber GPS) ou usar qualquer outro sistema de GPS que não seja API integrado na App da Uber, ou não usar nenhum sistema de GPS. Tal permite que o Parceiro de Entregas escolha a sua rota livremente. Para que fique claro, não há consequências por escolher uma rota livremente.”. 64) Nos termos do ponto 13.g. do Contrato “A Uber Eats mantém um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega pelo Parceiro de Entregas, tal como venha a determinar em seu próprio juízo razoável. Caso a Uber Eats venha a contratar um seguro relativo a sua prestação de Serviços de Entrega, a Uber Eats pode alterar os termos, ou cancelar essa apólice, por sua única e exclusiva determinação e a qualquer momento. (…)”. 65) Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da Ré, bem como o período de permanência online. 66) Os estafetas são livres de escolher a roupa que querem usar. 67) Podendo fazer-se substituir por outro estafeta. * b) - Discussão Alega o recorrente que: - Concluiu o Tribunal que a presunção do artigo 12º-A do Código do Trabalho não tem aplicação a caso dos autos, devendo apenas lançar-se mão do disposto no artigo 12º do Código do Trabalho. - O Tribunal, com este entendimento, violou o disposto no artigo 12º, nº 2, do Código Civil e o disposto no artigo 35º, nº 1, da Lei º 13/2023, de 13 de Abril, tendo efetuado uma interpretação errada de tais normativos, tendo por força dessa violação e interpretação, aplicado ao caso dos autos o disposto no artigo 12º do Código do Trabalho enão o disposto no artigo 12º-A do mesmo diploma legal, como se lhe impunha. - A nova norma consagradora da presunção de laboralidade não se relaciona com condições de validade do contrato, nem influencia o modo de execução do contrato na sua expressão fáctica. - Por este motivo, não se vislumbra em que medida a aplicação a nova norma a relações já constituídas quebraria legítimas expectativas. - É claro o interesse do legislador na aplicação imediata da norma nova a situações anteriormente existentes, tando o mais, se assim não fosse, que sentido teria a norma do nº 3 do artigo 32º da Lei nº 13/2023, de 3 de Abril que determina que a A.C.T., no primeiro ano de vigência da nova Lei desenvolva uma campanha extraordinária e específica no sector das plataformas digitais se não se tivesse de cingir às relações jurídicas já existentes. - Ao caso dos autos é aplicável a nova presunção prevista no artigo 12º-A do Código do Trabalho e não a prevista no artigo 12º do Código do Trabalho como erradamente entendeu o Tribunal, devendo a mesma ter sido interpretada e aplicada, face aos factos provados, no sentido de reconhecer a existência de contratos de trabalho entre os três trabalhadores em causa nos autos e a Ré. Por outro lado, decidiu-se na sentença recorrida, a este propósito, o seguinte: “Procurando dar resposta à introdução de novas tecnologias e formas cada vez mais diversas de prestação de atividade com recurso a plataformas digitais online, foi introduzida uma nova presunção de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital, prevista no art.º 12.º-A do Código do Trabalho. A primeira questão que se coloca prende-se com a aplicação no tempo desta norma relativamente a relações jurídicas que se iniciaram em momento anterior à entrada em vigor daquele preceito legal, uma vez que esta nova presunção entrou em vigor no dia 01/05/2023 nos termos do disposto no art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2023, de 13 de abril, o que é o caso em apreço tendo em conta que os estafetas AA, BB e CC iniciaram a sua atividade na plataforma digital respetivamente em 1 de janeiro de 2022, 1 de dezembro de 2022 e 23 de março de 2022. De facto, inexiste norma transitória a prever a sua aplicação imediata como decorre a contrario do disposto no art.º 32.º da citada Lei, decorrendo apenas do respetivo art.º 35.º, n.º 1, que “ficam sujeitos ao regime do Código do trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”. Em suma, verifica-se que os estafetas em apreço registaram-se na plataforma digital da Ré em janeiro, março e dezembro de 2022, respetivamente, desenvolvendo-se a partir dessas datas a reação entre cada um deles e a Ré, sem que se configure uma alteração na configuração da relação jurídica após 01/05/2023. Deste modo, afigura-se que a presunção doa rt.º 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, introduzida pela Lei n,º 13/2023, de 13 de abril, revela-se insuscetível de ter aplicação para efeitos de qualificação da relação jurídica estabelecida entre os estafetas em causa e a Ré, devendo lançar-se mão do disposto no art.º 12.º do Código do Trabalho.” Apreciando a pretensão do recorrente: Por força da Lei n.º 13/2023, de 03/04, foi aditado ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A que, sob a epígrafe “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”, estabelece: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características: a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela; b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade; c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica; d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma; e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta; f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação. 2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios. 3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico. 4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata. (…)>> No entanto, por força do disposto no artigo 35.º da citada Lei n.º 13/2023 (aplicação no tempo), <<ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.>> Ora, como se pode ler no Acórdão do STJ, de 04/07/2018, disponível em www.dgsi.pt: <<I. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes. (…) III. Estando em causa uma relação jurídica estabelecida entre as partes em 2 de novembro de 1995, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado os seus termos essenciais, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aplicação as presunções previstas no artigo 12.ºdo Código do Trabalho de 2003 e de 2009.>> Significa isto que à relação jurídica estabelecida entre as partes com início em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 que aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, este só será aplicado à mesma no caso de se extrair da matéria de facto que ocorreu uma mudança essencial na configuração dessa relação, ou seja, a nova presunção de laboralidade será aplicável se resultar da matéria de facto que as partes alteraram os seus termos essenciais. Como se decidiu no acórdão do STJ, de 15/01/2019, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos: <<Na verdade, as presunções de laboralidade estabelecidas no artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor – preceito legal aplicado pelo acórdão recorrido - prendem-se intimamente com a demonstração do facto de que emerge a relação jurídica a que se referem. Ou seja, nada têm a ver com o complexo de direitos e obrigações que são inerentes à situação jurídica em que ocorrem, estando antes ligadas à caracterização do facto que dá origem àquela situação jurídica. No fundo, visam a demonstração do título jurídico de que emerge a situação jurídica em causa e que a caracteriza e, nessa medida, só podem ser aplicadas a situações jurídicas já iniciadas na vigência da norma que as consagrou. Assim, relativamente a relações iniciadas na vigência do artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor, o legislador presume, juris tantum, que às mesmas está subjacente um contrato de trabalho, quando se mostrem preenchidos os pressupostos estabelecidos naquele normativo. Estamos no âmbito da segunda parte n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 7/2009, quando exceciona do âmbito de aplicação do novo código as «condições de validade e (.) efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento». Lida esta norma no contexto do artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, pode concluir-se, pois, que o que está em causa no âmbito das presunções de laboralidade são ainda «condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos». Como ensina BAPTISTA MACHADO[4], a propósito do carácter disjuntivo da distinção que é feita no art.º 12.º, n.º 2, do Código Civil, entre “validade” e “conteúdo”, «… para fins de direito de conflitos de leis (no tempo ou no espaço), se faz passar por entre as normas que regulam uma relação ou situação jurídica uma divisória fundamental: de um lado, ficam aquelas normas que estabelecem o regime de validade (de constituição) da relação, do outro aquelas que fixam o regime do seu conteúdo (dos seus efeitos). Eis porque tão frequentemente deparamos, nos textos doutrinais sobre conflitos de leis, com as seguintes expressões, usadas em contraposição uma à outra: «lei (reguladora) da validade» e «lei (reguladora) dos efeitos». Pois também no texto do nosso art. 12.º «conteúdo» se contrapõe a «validade» (constituição). Como abrangidos pela noção de «conteúdo» hão-de entender-‑se, pois, os poderes deveres dos sujeitos da relação jurídica, os efeitos (consequências de direito) que essa relação jurídica produz ou ainda aqueles que ela é suscetível de produzir com a verificação de certos factos posteriores ou de repercutir sobre relações jurídicas complexas. Só que, se esses efeitos de direito se devem entender como definitivamente fixados no momento da constituição da relação jurídica, por serem correlativos ou «proporcionais» ao facto constitutivo, a «lei da validade» é também a lei reguladora desses efeitos (1.ª parte do n.º 2 do art. 12.º). Fora desta hipótese, os efeitos ainda não produzidos (ainda não «atualizados» por se não ter verificado ainda o pressuposto legal da sua produção) no momento da entrada em vigor da lei nova, e bem assim, de futuro, os direitos e deveres das partes e as consequências das respetivas violações, passam a ser regulados por esta lei.» Ora, a norma que criou as presunções de laboralidade e que impõe que verificada a ocorrência de determinados factos se presuma que a relação em que esses factos ocorrem é uma relação de trabalho subordinado, é uma norma que se refere à “constituição” (ou validade) de uma situação jurídica e não ao seu “conteúdo” ou aos efeitos de uma situação jurídica. Na verdade, embora tenham o seu fundamento em aspetos caracterizadores da forma como a relação evolui e, por esta via, se pudessem associar ao conteúdo da situação jurídica em causa, a verdade é que a eficácia das presunções de laboralidade se projeta sobre a caracterização do título constitutivo da situação jurídica, ou seja sobre o facto de que a mesma emerge. Por outras palavras, o efeito das presunções projeta-se de forma imediata não no complexo de direitos e deveres que caracteriza e compõem uma situação jurídica, mas sobre o facto que a constitui. Como refere BAPTISTA MACHADO[5], «as leis que regulam a constituição (ou processo formativo) duma SJ não podem afetar as SJ anteriormente constituídas.» E continua, mais à frente[6]: «Quando (…) a constituição da situação jurídica se processa através de um ato ou negócio jurídico (que não por força simplesmente de um facto material), a regra de conflitos em causa significa que a lei nova não se aplica às condições de validade do ato ou negócio jurídico que deu vida a uma situação jurídica antes da sua entrada em vigor. Donde se conclui que é em face da lei antiga que devem ser decididas as questões de saber se uma situação jurídica concreta se constituiu ou não, se ela se constituiu regularmente ou padece de quaisquer vícios na sua formação – isto é, todas as questões relativas à validade ou invalidade dos respetivos atos constitutivos.» Deste modo, visando as presunções de laboralidade caracterizar substancialmente um facto que dá origem a uma relação como contrato de trabalho, as mesmas só poderão aplicar-se aos factos novos, ou seja às relações constituídas na vigência da norma que as passou a prever, respeitando desta forma os corolários fundamentais em que assenta a solução consagrado no artigo 12.º do Código Civil. Se assim não fosse, a aplicação a uma situação jurídica preexistente de um sistema de presunções criado em momento ulterior, e que modela as relações entre as partes de forma diversa, iria alterar o quadro emergente do facto constitutivo dessa situação jurídica, colocando-se, por esta via, no terreno da problemática de sucessão de leis no tempo. As presunções não podem, pois, aplicar-se retroativamente para caracterizarem situações jurídicas existentes na data em que as mesmas entraram no sistema jurídico, aplicando-se deste modo e apenas relativamente às situações jurídicas constituídas na vigência destas normas. Importa, aliás, que também se tenha presente que por detrás da problemática de sucessão de leis no tempo estão princípios fundamentais do direito como o princípio da confiança, a exigir a estabilidade de situações jurídicas, como base da vida social e o princípio da autonomia da vontade, com reflexo direto no respeito pela vontade das partes na modelação das suas relações, especialmente aquelas que têm base contratual. Na síntese de FERNANDO PINTO BRONZE[7], «arriscando uma articulação dos mencionados princípios estruturantes da problemática da concorrência de normas no tempo, no horizonte de um verdadeiro Estado de Direito com os por eles tendencialmente circunscritos campos privilegiados de preponderante afirmação da lei antiga e da lei nova (e prescindindo, portanto, com os perigos decorrentes – e ao contrário do que fizemos nas considerações precedentes – de uma suficientemente atenta ponderação prudencial, da perspetiva do direito intertemporal, de cada situação decidenda), diremos: os facta praeterita (as situações jurídicas definitivamente estabilizadas antes de uma alteração legislativa, e os seus efeitos) são regulados pela lei antiga. É também o direito anterior a uma hipotética alteração legislativa que determina os efeitos de quaisquer relações jurídicas constituídas durante a respetiva vigência, - o que conjuntamente significa: A) se uma concreta relação jurídica se tiver constituído, modificado ou extinguido sob a égide do direito anteriormente em vigor, não pode a lei nova vir considerá-la como não constituída, não modificada ou não extinta; B) O conteúdo conformador de uma dada relação jurídica é modelado, até ao momento, até ao momento em que se opere uma alteração legislativa que se lhe refira, pelo direito anterior; e C) se o direito em vigor no momento em que ocorre um certo facto lhe não reconhecer um determinado efeito jurídico – se ele não gerar então v.g. qualquer responsabilidade – não pode a lei nova vir imputar-lhe esse efeito relativamente ao período anterior à sua entrada em vigor.» Em suma, a aplicação das presunções de laboralidade a uma situação jurídica constituída antes da entrada em vigor da lei que as estabelece implicaria a aplicação retroativa dos efeitos jurídicos dessas presunções à caracterização do facto de que emerge a situação jurídica em causa, o que contraria o direito do facto, a lei em vigor no momento em que se constitui, e, por tal motivo, violaria frontalmente o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil, bem como o princípio da autonomia da vontade das partes na modelação das suas relações jurídicas. E assim sendo, assente que as presunções de laboralidade nada têm a ver com o conteúdo da situação jurídica a cuja demonstração se dirigem, mas com a caracterização ex novo de factos que dão origem a situações jurídicas, torna-se evidente que as mesmas não podem ser aplicadas a relações iniciadas antes da sua entrada em vigor, como é o caso da relação jurídica estabelecida entre as partes.>> Pois bem, regressando ao caso dos autos e tendo em conta que, como resulta da matéria de facto provada, os estafetas AA, BB e CC iniciaram a sua atividade na plataforma digital em 1 de janeiro de 2022, 1 de dezembro de 2022 e 23 de março de 2022, respetivamente, e não resultando da matéria de facto uma mudança essencial na configuração da relação entre as partes, não lhe é aplicável a nova presunção de laboralidade constante do artigo 12.º-A, do CT. Pelo exposto, improcedem as conclusões do recorrente.
2ª questão * Resta dizer que o recorrente não impugnou a sentença recorrida no que concerne à verificação concreta do preenchimento das características a que alude o artigo 12.º do CT, pelo que, nesta parte aquela decisão transitou em julgado. * Desta forma, na improcedência das conclusões do recorrente, impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade. * * IV – Sumário[2] (…). * * V - DECISÃO. Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso, acorda-se em manter a sentença recorrida. * * Sem custas por delas estar isento o Autor recorrente. * * Coimbra, 2025/02/14 ____________________ (Paula Maria Roberto) _____________________ (Mário Rodrigues da Silva) _____________________ (Felizardo Paiva)
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