Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
627/23.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
MANIFESTA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 222.º-A A 222.º-J E 27.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CIRE, ALTERADO PELA LEI 9/2022, DE 11-09
Sumário:
I – O PEAP tem em vista permitir ao devedor obter um acordo com os seus credores, no sentido de serem estabelecidos os termos da liquidação das dívidas existentes, desde que aquele se encontre numa situação económica difícil ou numa situação de insolvência iminente.

II – Verifica-se situação económica difícil quando o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir crédito. A situação de insolvência iminente abrangerá os casos em que o devedor se encontra próximo de enfrentar uma impossibilidade de cumprir as suas obrigações.

III – O PEAP não é meio idóneo para ultrapassar uma situação económica em que o devedor já atingiu um estádio de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, pelo que, não é possível ficcionar uma solvabilidade do requerente em face dos rendimentos e património que lhe são atribuídos.

IV – Este procedimento visa assegurar um processo aplicável à pré-insolvência das pessoas singulares não titulares de empresas. O pedido é objeto de apreciação liminar - art.º 27º, nº1, alínea a) do CIRE -, devendo o juiz proferir despacho de indeferimento quando seja manifestamente improcedente.

V – O pedido deve ser indeferido liminarmente se dos factos alegados pelo requerente se concluir que o devedor já se encontra em situação de insolvência efetiva, definida como a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 627/23.2T8CBR

 

(Juízo de Comércio de Coimbra - Juiz ...)

            » Processo Especial para Acordo de Pagamento (CIRE) «

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

AA, melhor identificado nos autos, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A e seguintes do CIRE, veio interpor processo especial para acordo de pagamento (doravante, PEAP), comunicando que pretende dar início às negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegou que é devedor a nove entidades distintas, numa quantia global de 43.153,99€ (com uma prestação actual de 394,21€), encontrando-se tais créditos vencidos, desde Agosto de 2020 a Outubro de 2022. Simultaneamente, alega que exerce aufere uma remuneração líquida mensal, aproxidamente, de 800 euros e tem a expetativa de receber 125 euros, de forma extraordinária, o que resultaria num valor de 10,42 euros se mensalizando. Apresenta despesas correntes de 659,00 e não há indicações de que seja titular de qualquer bem.

Juntou documentos.

Na sequência de notificação despacho proferido para o efeito, foi junta nova lista de credores, agora com todas as datas de vencimentos.

Pelo Juízo de Comércio de Coimbra - Juiz ... foi proferida a seguinte decisão:

“Por conseguinte, julgando-se não verificados os pressupostos a que alude o artigo 222.º-A, n.º 1, do CIRE, e ao abrigo do disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o presente processo especial para acordo de pagamento.

*

Custas pelo requerente, com taxa de justiça reduzida a um quarto (artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 302.º, n.º 1, do CIRE).

*

Valor da causa: 30.000,01€ (artigo 15.º do CIRE).

*

Registe e notifique.

**

Montemor-o-Velho, d.s”.

AA, Requerente nos autos em epígrafe, notificado da decisão que não lhe admitiu o Plano Especial de Revitalização, dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida, não admitiu o PEAP apresentado pelo Recorrente, porquanto considerou que o mesmo se encontra insolvente.

2. Contudo, não cabe, com o devido respeito, ao Juiz, proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade.

3. Não cabe, no presente procedimento, ser feita uma tal apreciação sem que se tenha em conta todos os pressupostos, nomeadamente que, encetadas as negociações, os credores possam conceder prazo ao requerente que lhe permita liquidar as suas dividas, ou aceitem redução dos seus créditos.

4. Não existe nem foi alegado, qualquer abuso do requerente no uso deste procedimento pré-insolvencial.

5. O requerente não confessou estar insolvente em momento algum.

6. É ainda certo que situação económica difícil e insolvência eminente, são praticamente o mesmo e ambas são acolhidas –formalmente - no presente procedimento do PEAP.

7. Entre os pressupostos do processo de revitalização está o facto de o devedor se encontrar em situação económica difícil ou, em alternativa, em situação de insolvência meramente iminente

8. Se o requerente conseguir negociar, como espera, com os seus credores, é certo que não chegará a entrar em insolvência.

9. Pelo que, não existe nenhum impedimento legal à admissão do presente PEAP

10. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 222-A e 222-C do CIRE.

2. Do objecto do recurso

É a seguinte a questão a resolver:

Os factos trazidos aos autos permitem o indeferimento liminar do processo especial para acordo de pagamento?

Os factos, com relevância para o despacho inicial, são estes:

1. O agregado familiar é composto pelo requerente;

2. O requerente exerce funções de vendedor comercial, na empresa F..., LDA, há cerca de 1 ano, auferindo uma remuneração líquida mensal, aproximadamente, de 800 euros.

3. Tem a expetativa de receber 125 euros, de forma extraordinária, o que resultaria num valor de 10,42 euros se mensalizando.

4. Sobre o seu vencimento impele uma penhora de 114.43 euros.

5. Apresenta as seguintes despesas:

6. O requerente apresentou a seguinte lista de credores:

7. Encontra-se pendente contra o requerente o Processo nº 319/22...., Tribunal da Comarca de Leiria, Juízo de Execução, Juiz ....

8. Não é indicado que o requerente seja titular de qualquer bem.

Avaliando.

O processo especial para acordo de pagamento - doravante PEAP – e tal como o PER, trata do regime pré-insolvencial para devedores não empresários, que tem a vantagem a possibilidade de o devedor obter um plano de recuperação sem ser declarado insolvente, mas também comporta o risco de no final o devedor não conseguir evitar a declaração de insolvência – nas palavras do legislador, “o processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.

O actual regime estabelecido nos arts. 222.º-A a 222.º-J do CIRE, já com as alterações introduzidas pela Lei 9/2022 de 11.9, que entrou em vigor em 11.4.2022, com aplicação aos processos pendentes, mantém no essencial o figurino anterior que foi decalcado do regime do PER.

Assim, o «PEAP não é, na verdade, outra coisa senão “o PER dos não empresários”, configurando-se o seu regime como o regime do antigo PER deslocado para outra parte do Código» - cf. Ac. do STJ, de 04.07.2019, Proc. n.º 3774/17.6T8AVR.P1.S2  ( Relatora Catarina Serra) disponível em www. dgsi.pt. O facto de ter como destinatários os devedores não empresários, determina o elemento distintivo essencial entre o PER e o PEAP.

No art. 222ºA não há qualquer referência à susceptibilidade de recuperação, prevista no art. 17º-A, nº1, nem se prevê a aprovação de qualquer plano de recuperação, mas apenas de um acordo de pagamento -  a ideia de recuperação do devedor está ausente do PEAP/cfr. Acórdão da Relação de Évora de 22.02.2018,  Proc. n.º 494/18.8T8STB-A.E1,  Relatora Albertina Pedroso.

O PEAP não é meio idóneo para ultrapassar uma situação económica em que o devedor já atingiu um estádio de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, pelo que, não é possível ficcionar uma solvabilidade do requerente em face dos rendimentos e património que lhe são atribuídos.

Se tal se verificar,  não obstante o PEAP, tal como o PER, serem instrumentos de natureza essencialmente negocial, privatística existe  a possibilidade do controlo jurisdicional da verificação de uma situação económica difícil ou de insolvência iminente - o que implica a exclusão de uma insolvência actual - no devedor que lança mão do PEAP, já que outro entendimento “tornaria praticamente inútil a proclamação da necessidade desses requisitos - pois então seriam sempre os credores quem maioritariamente sobre ele se pronunciariam ao aprovarem ou rejeitarem o acordo”- ler o Acórdão desta Relação de Coimbra  de 13.11.2018, Proc. n.º 1535/17.1T8CBR.C2, Relator Freitas Neto, acessível em www.dgsi.pt.

Como é sabido, o processo especial para acordo de pagamento, como o de revitalização, pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a reabilitação económica dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual. Isto é, o recurso a este processo especial, dentro do quadro do CIRE, depende da situação do devedor, a qual não pode ser já de insolvência, mas apenas de situação económica difícil ou de insolvência iminente.

A situação económica difícil encontra-se definida pelo artigo 222.º-C do CIRE como aquela em que o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, por motivos que podem ser de vária ordem, como falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.

E através do PEAP, o devedor leva ao conhecimento dos seus credores a sua situação real e tenta com eles estabelecer negociações, intermediadas pelo administrador provisório e legalmente tuteladas pelo tribunal, de modo a permitir-lhe pagar as dívidas no prazo que for acordado, evitando a insolvência que de outro modo sobreviria.

No entanto, o PEAP tem em vista permitir ao devedor obter um acordo com os seus credores no sentido de serem estabelecidos os termos da liquidação das dívidas existentes, desde que aquele se encontre numa situação económica difícil ou numa situação de insolvência iminente. Verifica-se situação económica difícil quando o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir crédito. A situação de insolvência iminente abrangerá os casos em que o devedor se encontra próximo de enfrentar uma impossibilidade de cumprir as suas obrigações.

Logo, o PEAP não é meio idóneo para ultrapassar uma situação económica em que o devedor já atingiu um estádio de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, pelo que, não é possível ficcionar uma solvabilidade do requerente em face dos rendimentos e património que lhe são atribuídos – neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 15.11.2018, pesquisável em www.dgsi.pt.

Mais, este procedimento visa assegurar um processo aplicável à pré-insolvência das pessoas singulares não titulares de empresas. O pedido é objeto de apreciação liminar - art.º 27º, nº1, alínea a) do CIRE -, devendo o juiz proferir despacho de indeferimento quando seja manifestamente improcedente - Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág. 585.

O pedido deve ser indeferido liminarmente se dos factos alegados pelo requerente se concluir que o devedor já se encontra em situação de insolvência efetiva, definida como a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas – neste preciso sentido, os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 1.12.2019, 10.0.7.2013 e de 14.06.2016, e da Relação de Guimarães de 20.02.2014, consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, a situação de insolvência corresponde a uma incapacidade de cumprimento, em que alguém, por carência de meios próprios e por falta de crédito, se encontra impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações. Se o devedor, por falta de capacidade creditícia, estiver impossibilitado de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações, incorre em situação de insolvência, mesmo dispondo de um activo superior ao passivo.

Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2ª edição, pág. 85, “o que verdadeiramente caracteriza a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer as obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.”

É esta a situação que os factos alegados pelo próprio devedor evidenciam, pelo que se concorda, com o julgador do Juízo de Comércio de Coimbra, quando escreve:

“No caso em apreço, o requerente alega que é devedor a nove entidades distintas, numa quantia global de 43.153,99€ (com uma prestação actual de 394,21€), encontrando-se tais créditos vencidos, desde Agosto de 2020 a Outubro de 2022. Simultaneamente, alega que exerce aufere uma remuneração líquida mensal, aproxidamente, de 800 euros e tem a expetativa de receber 125 euros, de forma extraordinária, o que resultaria num valor de 10,42 euros se mensalizando. Sobre o seu vencimento impele uma penhora de 114.43 euros.

Apresenta despesas correntes de 659,00 e não há indicações de que seja titular de qualquer bem.

Ora, tais factos, conjugados entre si, permitem, desde já, concluir que o requerente encontra-se impossibilitado de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas.

Com efeito, parece-nos manifesto que a situação do devedor não é uma situação económica meramente difícil, constituindo antes, verdadeiramente, uma situação de insolvência atual. A factualidade alegada demonstra que o mesmo encontra-se numa situação que já ultrapassou os limites da iminência (de insolvência), integrando uma verdadeira situação de insolvência, na definição contida no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE.

Tal como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.01.2019, acessível em www.dgsi.pt, «deve o juiz, no despacho de abertura do PER ou PEAP, apreciar o pressuposto de que o mesmo depende, ou seja, se o devedor se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, devendo recusar o prosseguimento dos autos quando, da apreciação que deve fazer dos factos, logo resulte que o devedor que recorre a tais procedimentos está já em situação de insolvência atual»”.

Por isso, não se verificando os pressupostos do art.º 222-A, nº1 do CIRE, o presente processo especial para acordo de pagamento não podia deixar de se indeferido “in limine”.

Razões pelas quais, neste enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter intacta, na ordem jurídica, a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra, em consequência do que se tem, também, que julgar improcedente o presente recurso de apelação.

As conclusões (sumário):

(…).


3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra-Juiz ....
As custas ficam a cargo do Apelante.
Coimbra, 13 de Junho de 2023

(José Avelino Gonçalves - Relator)
( Paulo Correia - 1.º adjunto)
(Catarina Gonçalves – 2.º adjunto)