Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
34/21.1PBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AGRAVAMENTO DAS MEDIDAS DE COAÇÃO
MEDIDA DE AFASTAMENTO
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 152º DO CÓDIGO PENAL; 200º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 31º, 35º E 36º, N.º 7, DA LEI N.º 112/2009, DE 16.9;
Sumário: I. Após o prazo referido no art. 31º da Lei 112/2009 e em qualquer momento processual, é possível lançar mão das medidas de coação previstas nessa norma legal, desde que se pondere e conclua pela necessidade de agravamento das exigências cautelares que no caso se fazem sentir.
II. O crime de violência doméstica tem um padrão cíclico, reiterado, que não se cinge a uma atuação isolada e que tem tendência a agravar-se, encerrando, via de regra, um intenso perigo de continuação da atividade criminosa, mostrando-se adequada a sujeição da medida de afastamento e proibição de contactos a vigilância eletrónica, podendo ser dispensada a prestação do consentimento da vitima e do arguido se a aplicação dos meios técnicos de controlo for indispensável, nos termos do art.º 36°, n.º 7, da Lei 112/2009.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

            1.

No âmbito dos presentes autos de processo comum singular, com o nº34/21...., o arguido AA foi sujeito a interrogatório de arguido em liberdade, nos termos do disposto no artigo 144º do CPP.



            2.        

Na sequência de tal interrogatório, a Mmº Juiz veio a proferir o seguinte despacho (transcrição):

“O arguido AA encontra-se pronunciado da prática, em autoria material, sob a forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.ºs 1, alínea b), e 2 alínea a) do Código Penal (ofendida a assistente BB) e de um crime de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.ºs 1, alínea d), e 2 alínea b) do Código Penal (ofendido o menor CC).

                                                                       *

             Procedeu-se ao interrogatório do arguido nos termos constantes das respetivas atas.

                                                                        *

            Resultam fortemente indiciados nos autos, nesta fase do inquérito, os seguintes factos:

1. O arguido AA começou a namorar com a BB em Outubro de 1998, tendo casado no dia 31/3/2007. Após o casamento foram morar para o apartamento sito na Avenida ..., na cidade ....

2. Desse casamento resultaram dois filhos, o CC, nascido a ../../2007, e o DD, nascido a ../../2014

3. Desde o início do namoro, em meados de Outubro de 1998, que o ora arguido exerceu a sua força psicológica, sobre a assistente, namoro esse iniciado com um beijo à força, conforme descreveu na mensagem enviada à queixosa, via Whatsapp, no dia 07 de Novembro de 2020, que o mesmo descreve como um "beijo na boca, à macho"

4.Neste seguimento ainda, em data não concretamente apurada, mas numa noite de Verão, do ano 2000, numa conversa do casal e sem nada que o fizesse prever, o arguido bateu na então namorada desferindo-lhe uma bofetada.

5. O arguido sempre foi uma pessoa muito ciumenta e possessiva, e chegava a implicar com a roupa que a assistente usava, e como esta não queria que ele se metesse na roupa dela, começavam a discutir.

6. O arguido para se impor, durante o período de namoro, empurrou por diversas vezes a assistente contra a parede e ao mesmo tempo apertava-lhe os braços, causando-lhe dores e provando nódoas negras.

7.Quando falavam e a assistente discordava, o ora arguido irritava-se com ela, e por várias vezes a empurrou e lhe apertou os braços, causando-lhe nódoas negras nos braços.

8. As agressões físicas e psicológicas continuaram durante o casamento.

9. Pouco tempo depois de estar casada, quando a assistente estava grávida do filho CC, e no seguimento de uma conversa, o arguido começou a insultar a esposa, chamando a de "filha da puta", "cabrona", "ordinária".

10. E de seguida o arguido começou a bater na esposa, desferindo-lhe empurrões e bofetadas, só parando a agressão quando o irmão e a mãe vieram em socorro da vitima. O que aconteceu no interior do apartamento onde viviam.

11. Pouco tempo depois do nascimento do filho CC, o arguido voltou a agredir verbal a esposa, tendo-lhe batido novamente, quando ela se encontrava o filho no seu colo, no quarto do casal.

12.Tal aconteceu porque a BB descobriu que o ora arguido procurava sites pornográficos no computador, e que as horas de fim de semana e à noite que o mesmo se desculpava que passava a trabalhar, não passavam de horas dedicadas à sua dependência de pornografia. O arguido ficou irritado por a esposa ter descoberto, o que fazia.

13. E ao mesmo tempo que a chamava-a de "burra", "ordinária", "cabrona", "cabra", "filha da puta", desferiu-lhe estalos e depois empurrões contra as paredes do quarto.

14. A BB ainda tentou fugir, vindo pelo corredor até ao hall de entrada do apartamento, local onde o arguido continuou a dar-lhe estalos e empurrões. O choro da criança e os gritos e choro da BB, fizeram com que os pais desta viessem em seu auxílio. E só quando os pais da BB entraram no apartamento é que o arguido parou com as agressões.

15. Pouco tempo depois, no seguimento de mais uma discussão do casal, o arguido chegou a sair de casa, levando inclusive os seus pertences. Mas algum tempo depois reconciliaram-se e voltaram a viver juntos.

16. O arguido, apesar das promessas de mudança, continuou a ser uma pessoa violenta e agressiva para com a esposa.

17. Em data não concretamente apurada, mas no final do Verão de 2010, ao regressarem de um dia de passeio com o filho, e logo que entraram em casa, o arguido sem que nada o justificasse apanhou a esposa e bateu-lhe com uma sapatilha, atingindo-a em várias zonas do corpo, tendo ela fugido com o menor para a casa dos pais, sita no 3º andar do mesmo prédio.

18. No seguimento do ocorrido a BB ficou a viver em casa dos pais durante alguns meses. Mas após muitas promessas de mudança, o arguido conseguiu convencer a esposa a voltar a morar com ele, e bem assim a desistir da queixa que havia apresentado.

19.  No entanto o arguido, apesar das promessas de mudança, continuou a ser uma pessoa violenta e agressiva para com a esposa.

20. E com o nascimento do filho DD, a situação veio ainda a agravar-se uma vez que o trabalho ficava todo sobre a BB, o que fazia com que ela se queixasse por o trabalho doméstico e com os seus filhos estar exclusivamente a seu cargo, uma vez que o arguido não cuidava de qualquer trabalho em casa nem dos filhos menores.

21. O arguido rejeitava essas queixas por entender que o trabalho de casa e de cuidar dos filhos era o trabalho de uma mulher, desprezando a esposa e fazendo-a senti -se um ser inferior.

22. Nestas condições, o casal abordou a separação e por diversas vezes fizeram contas ao património e ao que decidir em relação aos filhos para cada um seguir com a sua vida.

23. Em 2016, o ora arguido chegou até a fazer um manuscrito a separar os bens do casal, que se encontra junto no Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais dos menores nº 291/21...., a correr termos no Juízo de Família e Menores ... - Juiz ....

24. Passado algum tempo, e após muitas promessas de mudança por parte do arguido, voltaram a reconciliaram-se.

25. Mas o arguido, apesar das promessas de mudança, continuou a ter comportamentos ofensivos e agressivos para com a esposa.

26. Com efeito, o arguido reiteradamente proferia ameaças dirigidas à esposa dizendo-lhe "olha que eu sei os teus passos", "cuidado com o que dizes e a quem", "olha os teus filhos". Fazendo com que a BB andasse em constante sobressalto e receosa de que o arguido lhe fizesse mal a ela e aos filhos.

27. O arguido tentava assombrar a vida da esposa, para que ela não tivesse sucesso profissional, manipulava-a para que ela deixasse de trabalhar, e entregava-lhe os filhos para assim exercer pressão sobre a mesma e fazer com que abandonasse a sua vida profissional, uma vez que ficava com muitas limitações de tempo.

28. Bastava o arguido ver a esposa abrir o computador, para ver um simples mail, que era logo surgia uma discussão, pois tudo servia para a afastar da sua atividade profissional, querendo que ela se dedicasse apenas à vida de doméstica.

29. Para conseguir este propósito, o arguido usava a violência psicológica sobre a esposa, tratava-a reiteradamente por “burra” e tentava humilhá-la nas conversas que tinham, mesmo em frente a terceiros, dizendo que ela nem era Revisora Oficial de Contas.

30. Na realidade no início do curso de preparação para os exames de Revisores Oficiais de Contas, foi detetada uma doença crónica grave ao filho – CC, que desde muito cedo necessitou de cuidados diários, consultas, tratamentos e exames, tendo a BB optado por acompanhar o futuro do filho, deixando para trás o seu futuro profissional. Mas a BB continuou a trabalhar e a levar a sua vida no escritório.

31.  A BB ia dizendo ao arguido que ia separar-se dele e pedir o divórcio, que já não aguentava mais os seus maus tratos físicos e psicológicos, e a constante humilhação por que o mesmo a fazia passar no escritório e em casa, e também porque tinha a seu cargo a vida doméstica e o cuidar dos filhos.

32. Como as agressões psicológicas e físicas continuavam, de forma reiterada, a BB dizia ao marido que ia fazer queixa dele, mas este convencia-a a não apresentar queixa, já que era Revisor Oficial de Contas e temia que tais factos o impedissem de exercer a sua profissão.

33. Muitas vezes e sobretudo a partir de 2016, o arguido ameaçou a esposa de morte, dizendo-lhe "se fazes queixa eu mato-te", "se fazes queixa dou-te um tiro".

34. Também por diversas vezes o arguido ameaçou a esposa, dizendo-lhe que “se pedisse a separação que a matava” e que “se não a matasse, ela nunca mais veria os filhos”.

35. O que provocou à BB muito medo e receio, por temer que o marido lhe fizesse mal não só a ela mas também aos filhos, temendo constantemente pela sua vida pois que o arguido tinha armas de caça em casa, concretamente no quarto do casal.

36. E sempre que a BB lhe pedia que colocasse as armas noutro local, o arguido não aceitava, mostrando-se furioso e dando origem a discussões e agressões verbais.

37. O arguido sempre teve atitudes violentas e injustificadas, mesmo na presença dos filhos, nomeadamente, atirava com o comando da televisão para o chão ou para as paredes, batia com objetos que tivesse na mão, nos móveis, nas portas e nas paredes, chegando por diversas vezes a partir diversos objetos em casa.

38. Por exemplo, se um eletrodoméstico tivesse algum problema e não funcionasse à primeira, batia-lhe com força, fazendo com que o eletrodoméstico deixasse de funcionar, o que fazia ainda com um vocabulário descontrolado de asneiras, independentemente de quem estivesse presente, mesmo na presença dos filhos menores, causando-lhes medo.

39. E sempre que a esposa lhe pedia para procurar ajuda médica, ou sugeria tal possibilidade, geravam-se discussões no âmbito das quais o arguido muitas vezes dirigia insultos à esposa e batia-lhe.

40. O arguido ao longo do tempo pretendeu ser só ele a tomar decisões, nos assuntos que diziam respeito ao casal, e acusava a queixosa de não ter objetivos de vida, dizendo-lhe que devia estar em casa a cuidar dos filhos e ele devia cuidar exclusivamente do escritório.

41. O arguido sempre quis ter o controlo na relação com a esposa, queria controlar a vida dela ao pormenor, tanto a pessoal como a profissional, queria saber onde ia, a que horas ia, com quem estava.

42. O arguido sem qualquer razão ou justificação, abria a porta da sala no escritório da esposa, para ver com quem esta estava. Se a queixosa estivesse com pessoas, não se desculpava de interromper uma reunião, nem sequer cumprimentava as pessoas.

43. A seguir e quando já se encontravam a sós, o arguido fazia um interrogatório minucioso sobre quem eram as pessoas, o que faziam lá, porque haviam demorado tanto tempo, ou se demorassem pouco tempo, perguntava sempre o motivo.

44. Muitas das vezes no seguimento desse interrogatório, em casa, o arguido chega a bater na esposa e perguntava porque é que usava determinada peça de roupa, se era para agradar a outros.

45.  Onde quer que estivesse, se o telemóvel da BB tocasse, o arguido abria as portas do escritório ou de casa, para ouvir a conversa, e a seguir perguntava à esposa com quem estava a falar e quias eram os motivos ou causas do telefonema e da conversa.

46. Aos domingos de manhã a BB tomava habitualmente um café com a mãe. O arguido ficava furioso por as duas irem tomar café, e tentava impedir que a esposa fosse, o que originava discussões, chegando ele a perguntar à esposa de quem favam e sobre que falavam.

47.  Se a BB falasse com algum dos seus familiares e o arguido ouvisse apenas o fim da conversa ou não ouvisse o início da conversa, tal era motivo de discussão. E no decurso das discussões o arguido dizia à esposa que estava a esconder-lhe coisas e dirigia-lhe expressões como "és uma ordinária", "andas-me a enganar", "tens sempre tema de conversa com os outros", "estavas-te a rir com os outros, comigo não te ris".

48. Perturbando seriamente a liberdade de atuação da BB, oprimindo-a enquanto ser humano, fazendo-a sentir-se inferior, humilhando-a, vexando-a e manipulando-a emocionalmente.

49. Estas atitudes eram também motivadas pelos ciúmes que o arguido tinha em relação aos familiares da esposa, e até dos seus próprios filhos tinha ciúmes. Ciúmes esses que até se faziam sentir na harmonia vivida pelos irmãos, seus filhos, pois o arguido chegava a arranjar discussões quando estava em casa de tão irritado que ficava, por eles estarem felizes.

50. O arguido descurava os cuidados com os filhos, demitindo-se por vezes das suas tarefas como pai, e reclamava constantemente com a esposa, dizendo que esta perdia muito tempo a cuidar e a tratar dos filhos.

51. Como os filhos do casal, a grande maioria das vezes, ficavam aos cuidados da mãe, esta ficava sem tempo para si mesma ou para uma vida social. Apesar disso, o arguido tentou também controlar a vida social da esposa.

52.  O arguido chegou a impedir a esposa de falar com qualquer amiga. Não permitia que a esposa tivesse contactos sociais com amigas, e ameaçava-a dizendo que “dava cabo dela se contasse para alguém a sua vida íntima e pessoal, ou sequer se falasse dele”.

53. O arguido levava uma vida livre não prestando qualquer apoio nem dando qualquer justificação à esposa, pois almoçava e jantava, saía e convivia com os seus amigos, sempre que queria, e grande parte das vezes nem informava se ia almoçar ou jantar a casa, muito menos informava das horas que chegava a casa. E quando regressava a casa não dava qualquer satisfação, se era interpelado pela esposa, geravam-se discussões no seguimento das quais o arguido agredia verbalmente a esposa, chegando a bater-lhe.

54. E quando a BB dizia ao arguido que devia passar mais tempo em casa, este revoltava-se contra ela e dizia que o que ela queria era controlá-lo.

55. Sempre que a BB lhe fazia alguma pergunta normal, com quem tinha ido ou estado, ou onde tinha passado o dia todo, o arguido mostrava-lhe má cara e abrindo os olhos, para a intimidar dizia-lhe: "ordinária, para que é que queres saber", "cabra, o que é que isso te interessa", "querias era mandar em mim".

56. Por diversas vezes, a BB pediu ao arguido para a acompanhar aos tratamentos do filho - CC, pois tinha de levar também consigo o filho - DD e andava esgotada, mas o arguido sempre se recusou a acompanha-la, preferindo ir para festas com os amigos, de almoços e jantaradas, em vez de acompanhar o filho - CC para os tratamentos médicos.

57. No dia 15 de Dezembro de 2017, quando o filho DD ainda recuperava da varicela, e como a BB não tinha ninguém que pudesse ficar com o filho, pediu ao marido para que o menino ficasse com ele ou que a acompanhasse ao Porto, onde ia fazer os tratamentos ao filho CC, mas o pai (ora arguido) disse-lhe que não podia, que tinha de ir para a caça com os amigos.

58. No sábado dia 13/10/2018, foi festejado o aniversário do filho do casal – CC, o qual faz anos a 8 de Outubro, tendo a BB organizado um jogo de futebol na "Fábrica", acompanhado de lanche, com a família e amigos. O ora arguido saiu da festa de aniversário do filho pouco depois de esta começar. A BB telefonou-lhe, mas o mesmo não atendeu, e teve de ser a mãe de uns amiguinhos do CC a ir buscar as pizzas para completar o lanche.

À noite, quando os menores já estavam deitados, a BB abordou o assunto com o arguido, tendo se gerado uma grande discussão e no seguimento da mesma o arguido agrediu e ofendeu verbalmente a esposa dizendo-lhe "quem és tu para me controlares", "quem és tu para mandares em mim”, “cabra do caralho", acabando por lhe desferir vários murros e pontapés.

59. O futebol era um momento de grande convívio entre o pai da BB, o irmão e o filho EE, os quais são sócios do Porto e com bilhetes cativos no Estádio do Dragão. O ora arguido, por diversas vezes, quis e tentou proibir tais convívios, alegando que faziam mal ao CC. Sendo que ao proceder dessa forma apenas prejudicava o filho CC, impedindo-o assim de momentos de convívio e felicidade com o avô e o tio.

60. No dia 12 de Dezembro de 2019, o arguido disse à esposa que havia nomeado o seu irmão FF como gerente da sociedade "P... Unipessoal, Lda.", que não queria que ela fosse gerente como era das outras sociedades, dizendo que a "P... Unipessoal, Lda." ia gerar dinheiro, e era ele que o ganhava, não devia ser orientado por ela mas por si ou por alguém a seu mando.

61.  À noite, e depois de deitar o filho DD, a BB disse ao marido que ia separar-se dele, tendo o arguido de imediato proferido ameaças dizendo-lhe: "eu mato-te", "eu dou-te um tiro" e de seguida desferido murros e pontapés na esposa.

62. No dia 22 de Dezembro de 2019, a BB encontrava-se na sua loja, sita na cidade ..., e como havia movimento e estava ocupada com clientes, pediu ao marido que fosse buscar o filho DD à festinha do amigo GG, que estava a decorrer no ...”, o que o ora arguido recusou fazer. E, apesar da insistência da BB, o arguido disse que não ia, que estava a ver um filme, além de que isso não era trabalho de pai.

63. Nessa noite, a BB ficou tão angustiada com a atitude do denunciado que não conseguiu ir jantar a casa. A meio da noite, o arguido acordou a esposa e discutiu com ela, acabando por agredir fisicamente, puxando-lhe os cabelos e dando-lhe murros nas costas e pontapés nas pernas E depois de lhe bater, o arguido teve relações sexuais com a esposa contra a vontade desta.

64.  O arguido poucas vezes se preocupou com os filhos e com as situações de doença dos mesmos. Sendo que os tratamentos, exames e consultas médicas a que obrigava a doença do filho CC, eram por vezes ignoradas pelo arguido. O arguido também pouco frequentemente se preocupou com o desempenho escolar dos filhos ou com a avaliação dos mesmos.

65. O arguido sempre gostou de passar fins de semana fora, com os amigos, nas caçadas em Espanha e no Alentejo, exigindo ainda que a esposa e os filhos ficassem em casa, nestes períodos.

66. No dia 4 de Janeiro de 2020, a BB decidiu ir com os filhos para Guimarães, passar o fim de semana, enquanto que o arguido preferiu ir para a caça, ficando convencido de que a mulher não tinha coragem para ir sem ele. Quando o arguido chegou a casa no sábado à noite, e como não encontrou a mulher em casa, ligou-lhe para o telemóvel e acusou-a de não estar em casa à sua espera e de privar os filhos da sua companhia, gritando com a esposa.

67. Na noite de 5 de Janeiro de 2020, e depois da BB e os filhos terem regressado a casa, o arguido começou a discutir com a esposa e de seguida bateu-lhe, desferindo-lhe estalos, puxões de cabelo, empurrões, apertões de pescoço, cotoveladas, murros e pontapés.

68. Em consequência da agressão do arguido, a BB sofreu dores, tendo ficado com vários e grandes hematomas no corpo. Não recebeu assistência médica ou hospitalar.

69. O arguido quando ficava mais calmo prometia à esposa mudar e alterar o seu comportamento. Apesar disso, e sempre que falavam sobre qualquer assunto em que a esposa discordava dele, o arguido ofendia-a verbalmente dizendo-lhe: "és uma ordinária", "és uma cabra", "não vales nada", "tem juízo nesses cornos ", "cabrona", "burra", “filha da puta”, “vai para o caralho”, vai-te foder”, “vai à merda”, “quero que esta merda se foda toda”, “parto esta merda toda”. Palavras/expressões essas que o arguido dirigia à queixosa por diversas vezes, tanto na presença dos filhos como na presença de terceiros, humilhando-a e fazendo-a sentir envergonhada.

70. O arguido sempre quis controlar não só a vida, mas também o dinheiro do casal, para assim poder exercer maior controlo e domínio sobre a esposa.

71. No escritório onde ambos trabalhavam o arguido por diversas vezes humilhou, vexou e envergonhou a esposa, com palavras, gritos e atitudes, mesmo na presença dos colaboradores ou de terceiros.

72. E sempre que não tinha êxito profissional, ou algo corria mal, o arguido descarregava a sua ira na esposa e dizia-lhe “tu és a culpada”, “é por tua causa que isto acontece”.

73. Caso alguém próximo, mesmo esposa ou filho mais velho, tivessem sucesso, o arguido ficava infeliz pelos sucessos deles e arranjava motivo para discussão nesses dias, tanto com a esposa como com o filho mais velho.

74. O arguido considerava a esposa uma mera secretária e dona de casa, dizendo “que ele é que ganhava o dinheiro”, “que ela vivia à custa do seu pai”, “que não fazia nada” - o que fazia com o intuito de rebaixar e inferiorizar a esposa, assim a desvalorizando e humilhando. O que aconteceu por diversas vezes tanto em público como no interior da residência familiar.

75.  A partir de meados de Março de 2020, o comportamento do arguido para com a esposa ainda piorou. Devido ao confinamento no COVID 19, a BB teve de se desdobrar nas tarefas de cuidar mais dos filhos menores (o DD sem creche e o CC com aulas virtuais), sem qualquer tipo de colaboração ou apoio do arguido, o qual passou ainda a demonstrar ciúmes doentios dos próprios filhos.

76.  No dia 05 de Junho de 2020, apesar de a BB ter pedido para os acompanhar nos tratamentos ao filho - CC, o arguido como era habitual disse que tinha muito trabalho e que não podia ir com eles.

77.  Nessa sexta feira, a BB questionou o arguido onde havia passado o dia, ao que o mesmo começou a responder “Quem é que és para controlares a minha vida". E depois de ela ter insistido, por saber que o mesmo não tinha ido ao trabalho, o arguido disse que tinha ido para uma festa de aniversário de um amigo em ..., e que ela nada tinha a ver com o assunto.

78. No dia 08 de Junho de 2020, cerca das 20.00 horas, quando a BB se preparava para pôr o jantar, o arguido chegou a casa e como era habitual queria sentar-se a ver TV. Nessa altura o filho - CC que estava na play station pediu educadamente ao pai para guardar o que estava a fazer. O arguido foi à cozinha e quando chegou à sala numa questão de segundos, quando o filho ainda estava a terminar a guarda dos seus divertimentos, o arguido começou de imediato aos gritos, queria partir a play station, empurrando violentamente o filho - CC. Face ao comportamento violento do arguido, o filho - DD que também se encontrava no local ficou em pânico, tendo a BB levado o filho DD ao quarto para que se entretece com os seus brinquedos, e mandado o filho CC para o quarto dele uma vez que estava bastante nervoso.

79.  No seguimento do ocorrido gerou-se uma discussão entre o casal, tendo o arguido ficado ainda mais violento, começando a empurrar a esposa e a proferir ameaças, dizendo-lhe por diversas vezes “que a matava a ela e ao filho”.

80.  A BB entrou em pânico e aproveitando o momento em que o arguido foi para o quarto onde guardava as armas, pegou nos filhos e fugiu de casa com os mesmos, sem que o ora arguido se tivesse apercebido.

81. Após, por temerem ir para casa tão cedo, e porque ainda não tinham jantado, foram comprar uma pizza que comeram numas mesas junto ao quartel. De seguida vaguearam de carro, pela cidade, durante algumas horas, dando tempo que o arguido se acalmasse, para depois voltarem para casa.

82. Na noite de 30 de Junho para 1 de Julho de 2020, o ora arguido ficou com os filhos menores, a pedido da esposa, pois a sua avó paterna tinha desaparecido, querendo ela acompanhar as diligências efetuadas.

83. Sendo que durante todo o tempo o ora arguido esteve sempre fechado no quarto, descuidando totalmente os dois filhos, tendo de ser o CC a tratar do seu irmão DD e a deitá-lo.

84. E quando a esposa chegou a casa, já depois das 02:00 horas da manhã, cansada e triste, pois a sua avó tinha falecido, tendo se deitado para dormir e descansar. Nessa altura o ora arguido deitou-se em cima da esposa, e apesar de ela não querer e de o empurrar para sair daquela posição, o arguido forçou-a a ter relações sexuais.

85. No dia 1 de Agosto de 2020, o ora arguido ficou com os filhos em casa, a pedido da esposa, para ela ir à missa de um mês da avó. Como era habitual o ora arguido ficou todo o tempo fechado no quarto, descuidando completamente os dois menores que haviam ficado consigo.

86.  Nessa noite, mais uma vez o arguido forçou a esposa a ter relações sexuais. E quando a BB se negou a ter relações sexuais, o mesmo ficou violento e puxou-lhe os cabelos, e apesar da esposa lhe dizer para parar, o arguido ignorou e continuou a penetrá-la até satisfazer os seus desejos.

87. Na noite de 3 de Agosto de 2020, pelo facto de a esposa ter dado conta da existência de dinheiro nos bolsos do arguido, e ter comentado, ele sem qualquer justificação começou a insultá-la dizendo: "queres controlar-me?", "sua ordinária, andas a espiar-me?", "quem és tu para mexeres nas minhas coisas?", "cabra do caralho"

88. Como não queria discutir, a BB virou-lhe as costas para dormir, tendo o ora arguido começado a bater-lhe, desferindo murros e socos nas costas e pontapés nas pernas da esposa. E quando a BB se levantou da cama, o arguido foi atrás dela e voltou a bater-lhe, desferindo-lhe estalos no rosto, puxões de cabelo, murros, empurrões, e atirou-lhe a cabeça contra a parede.

89. Em consequência da agressão a BB sofreu dores e hematomas. Não recebeu assistência médica ou hospitalar.

90. Na noite de 5 de Agosto de 2020, quando o arguido levou a esposa para a A25, no veiculo de marca ... com a matrícula .... KXY, o arguido começou a discutir com a esposa e mais uma vez lhe bateu, desferindo-lhe vários estalos e murros em diversas partes do corpo, ao mesmo tempo que a insultava e lhe dirigia ameaças dizendo: "és uma ordinária, não vales nada", "eu mato-te", "dou-te um tiro que te desfaço toda".

91. Em consequência da agressão a BB sofreu dores, não tendo recebido assistência médica ou hospitalar.

92. Essa discussão ocorreu apenas porque a BB não queria vender um imóvel (um prédio sito na cidade ...) e o arguido queria obrigá-la a vender, dizendo que necessitava do dinheiro para comprar mais um carro e o resto para uns negócios em curso, mas sem explicar concretamente.

93. No dia 27 de Agosto de 2020, depois de jantar, estiveram novamente os dois na casa de ..., tendo o arguido prometido novamente mudar o que ela quisesse. E como ele estava a dormir na casa de um amigo, disse à BB para se encontrar ali de madrugada, pois já há uns dias que não tinham relações sexuais, mas caso não aparecesse sofria as consequências. Disse-lhe que não conseguia viver sem ela e que a matava se a mesma fosse em frente com a separação pelo que devia pensar bem e vir ao seu encontro. E logo às 7:00 horas da manhã, o arguido já estava a lembrar a BB e a enviar-lhe SMS para ir experimentar a cama.

94. Durante o mês de Dezembro 2020, em datas não concretamente apuradas, quando estava com o filho - DD, na vigência do acordado por ambos no processo de regulação de responsabilidades parentais, o ora arguido aproveitava as chamadas da BB para o filho, pelo seu telemóvel, para a ofender e ameaçar, dizendo-lhe que não a deixava falar com o filho e ameaçando de que a ia levar a tribunal.

95. E para além de insultar e ameaçar a BB ao telefone, o arguido também lhe dirigiu ofensas e insultos através de email: - enviado em 25 de Novembro de 2020, dizendo: "Se alguém tem de se equilibrar emocionalmente, não sou eu, mas antes tu atento as atitudes e falta de respeito demonstradas perante terceiros... estás a tornar-te uma mulher vulgar, sem dignidade, personalidade e vontade própria. que te foram e estão a ser retiradas pelo teu próprio pai... não passas de um mero instrumento nas mãos dele para ser utilizado a seu belo prazer … Toma juízo que já tens idade ... Como já escrevi em e-mails anteriores se necessitares posso marcar-te consultas num psiquiatra para te ajudar no mau momento que tu própria, com a ajuda e conivência do teu pai, criaste e que estás a passar ..." - enviado em 29 de Setembro de 2020, dizendo “Mete uma coisa de uma vez por todas na tua cabeça — TU NÃO NUNCA MANDASTE E NUNCA MANDARÁS EM MIM falta-te classe e categoria para tal ... Agora será alguém certamente ...". - enviado em 29 de Setembro de 2020, dizendo: "Tem vergonha. Conserva a pouca dignidade que ainda te resta... "Aconselho-te vivamente a procurares um psicólogo para te acompanhar nesta fase da tua vida…".

96.  No dia 25 de Dezembro de 2020, o arguido foi buscar o filho DD a casa da BB, a pedido desta. Nessa altura, o filho CC veio também à entrada do prédio onde vivem para falar com o pai (ora arguido), o qual não teve qualquer tipo de conversa com o mesmo, nem sequer o deixou falar. O arguido tirou o filho DD dos braços da mãe e colocou o menor dentro do seu carro, ao mesmo tempo que dirigindo-se à BB lhe dizia “és uma ordinária", "filha da puta” e ameaçava com o tribunal.

97.  Na semana de férias em que teve o filho - DD consigo, o ora arguido não atendia propositadamente o telefone à BB, a qual dificilmente conseguia falar com o menor, o que a deixou transtornada e muito preocupada.

98. No dia 30 de Dezembro de 2020, a hora não concretamente apurada, quando a BB foi à escola de musica buscar o filho – CC, o ora arguido aos gritos disse-lhe que não podia estar na escola de música e que deveria sair dali, que estava nas horas dele. A situação aconteceu em frente ao professor de bateria dos filhos, dos seus colegas e da mãe de outra criança, a qual chegou ao ponto de abandonar a escola e à saída disse para o arguido “pense no seu filho". O arguido tentou levar o filho – DD ainda a meio da aula, mas o menino não quis e insistiu em ficar. O arguido nem sequer cumprimentou o filho – CC que estava na mesma escola.

99. No dia 31 de Dezembro de 2020, o arguido faz uma chamada para a BB pelas 23:30 horas, tendo ela estado a falar com o filho – DD a quem disse que ligava às 24:00 horas, pois o irmão - CC queria desejar feliz ano novo.

100. Sendo que a partir dessa altura, o ora arguido não atendeu nenhuma das chamadas que a BB efetuou, sabendo que ela iria ligar pelas 24:00 horas como tinha prometido ao filho, impossibilitando assim que os dois irmãos se falassem na passagem de ano.

101. Como havia passado essa semana com o arguido, o menor DD sentiu muitas saudades, e disse à mãe que várias vezes lhe quis ligar, mas que o pai não tinha bateria no telemóvel e prometeu fazer visitas à mãe, o que não aconteceu. O menor apercebeu-se de que não passaram de mentiras e promessas que o pai não cumpriu e muito triste disse à mãe "acho que o pai não gosta de ti", "tive muitas saudades tuas", "o pai mentiu".

102. No dia 6 de Janeiro de 2021, o arguido foi buscar o filho - DD a casa da mãe e o mesmo disse-lhe que não queria ir com o pai.

103. O ora arguido ficou muito exaltado, ameaçando a BB com a polícia, em frente do próprio filho e do irmão da BB, e de seguida entrou no carro e foi-se embora. O dia 8 de Janeiro de 2021 (sexta feira), era o dia em que o arguido deveria ficar com o filho – DD (uma vez que o filho - EE se recusava a estar com o pai). Na manhã desse dia, o arguido foi buscar o filho - DD a casa da mãe e levou-o à escola (Colégio ... – ...). O arguido devia depois ir buscar o filho ao Colégio pelas 12:00 horas, dar-lhe o almoço e levá-lo novamente ao Colégio, o que não fez, nada tendo informado ou comunicado.

104. Acontece que, pelas 12:51 horas, a BB foi contactada pelo Colégio e informada de que o seu filho – DD ainda lá estava à espera para almoçar. Pelo que teve de ser a BB a ir buscar o filho – DD, às 13:00 horas, dar-lhe o almoço e entregar novamente o filho no Colégio às 13:30 horas. Ou seja, o DD esteve mais de uma hora sozinho à espera do pai, que não cuidou de ir buscar o menor e de lhe dar o almoço, como era sua obrigação nesse dia.

105. O ora arguido apenas se deslocou ao Colégio à tarde, pelas 16:00 horas, altura em que os dois filhos (DD e CC), já saíam da escola, tendo encontrado os menores juntos, divertidos e bem-dispostos.

106. Sendo que, logo em frente à guarita do colégio e junto do responsável pela guarita, o arguido, quando viu os dois filhos juntos, e assim que chegaram mais perto, sem qualquer razão, empurrou o filho CC e retirou-lhe o irmão dos braços, pegando no DD e levando-o de seguida na direção do carro, tendo o menor começado a chorar e a chamar pela mãe, que também se encontrava no local.

107.  Nessa altura, a BB pediu ao arguido para que não levasse o DD assim, contra a sua vontade, seguindo ao lado do arguido que carregava o DD a chorar ao colo, e tentando chamá-lo à razão para que se acalmasse e não fizesse aquilo ao filho. Quando a BB se tentava aproximar do DD, com intuito de o acalmar, o arguido empurrou-a com força para impedir que ela chegasse perto do filho, fazendo o mesmo ao filho CC, empurrando-o sistematicamente para o impedir de se aproximar do irmão. E quando o arguido chegou junto do carro, abriu a porta e colocou apressadamente o filho DD dentro do carro, e de seguida trancou as portas, com janelas também fechadas, estando o menor a chorar compulsivamente.

108. Junto ao carro, e sem qualquer razão, o arguido ainda desferiu vários empurrões e cotoveladas no filho – CC, dizendo-lhe "sai daqui, não podes estar aqui", "o que é que tu queres aqui", "o que é que tu queres pá". De seguida o arguido atirou-se ao filho e apertou-lhe o pescoço, o qual se desequilibrou e quase caiu, dizendo "tu vais para tribunal." A polícia foi chamada ao local e tomou conta da ocorrência, dando origem ao Auto de Noticia nº 34/21.... (fols. 4-5).

109. Em consequência da agressão de que foi vítima por parte do pai, o menor CC, para lá da humilhação e da vergonha, sofreu dores, mas não recebeu assistência médica ou hospitalar. E sujeito a exame médico no dia 11/1/2021 não lhe foram observadas lesões – conf. Relatório Médico de fols. 21-22 dos autos, cujo conteúdo aqui damos por inteiramente reproduzido.

110.  Em consequência da agressão de que foi vítima, a BB sofreu dores, para além da humilhação e da vergonha que passou. Não recebeu assistência médica ou hospitalar.

111. Após a situação ocorrida, o arguido não se importou nem quis saber como os filhos estavam, nem sequer telefonou ou estabeleceu outro modo de comunicação para se inteirar da saúde e do bem-estar dos menores.

112. Sendo que, na segunda feira de manhã, dia 11/1/2021, quando a BB levou os filhos ao colégio, e na altura em que ela vinha a conduzir o seu carro ainda dentro do parque do colégio, o ora arguido colocou-se em frente ao carro dela, impedindo-a de avançar. A BB parou o carro e trancou-o, receosa das atitudes que o arguido poderia ter. O arguido dirigiu-se então ao carro, do lado do condutor, e desferiu murros no vidro ao mesmo tempo que gritava com a BB, mesmo em frente de outras pessoas que se encontravam no local.

113. Ao atuar como se descreve, fazendo-o de forma reiterada e constante, o arguido violou os seus deveres de respeito para com a esposa, infligindo-lhe dessa forma maus tratos físicos e psicológicos/psíquicos contínuos e colocando em perigo a vida e a saúde daquela.

114. O arguido quis repetidamente molestar a BB, batendo-lhe, ameaçando-a, perturbando e tentando controlar a sua vida, e ofendendo-a na honra e consideração e no bem-estar físico e psíquico e criando-lhe permanente receio de poder vir a sofrer ato atentatório da vida ou da integridade física, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, como efetivamente causou. E, ciente de tal, o arguido agiu sempre querendo proceder dessa forma.

115. Ao atuar como se descreve, fazendo-o de forma reiterada e constante, o arguido violou os seus deveres de respeito para com o seu filho menor CC, infligindo-lhe dessa forma maus tratos físicos e psicológicos/psíquicos contínuos e colocando em perigo a sua vida, a saúde e o seu bem-estar. O arguido sabia que o filho, não só pela tenra idade, pela dependência económica, mas também pela relação familiar existente, era pessoa particularmente indefesa. E ciente de tal, o arguido não se absteve dos comportamentos supra descritos, agindo violentamente para com o filho, e também para com a esposa, por vezes na presença dos filhos.

116. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei como crime.

117. O arguido é titular da licença de uso e porte de arma n.º ...2, Classe C, válida até 16 de Janeiro de 2022, correndo termos processo de renovação da referida licença requerido pelo arguido, estando o Comando Distrital de Viseu, Núcleo de Armas e Explosivos, da PSP, na iminência de decidir da concessão (ou não) da renovação da referida licença.

118. Actualmente, não constam armas de fogo registadas/manifestadas em nome do arguido.

119. Temendo as consequências que para si poderiam advir caso constassem armas de fogo registadas/manifestadas em seu nome, o arguido entregou três espingardas (duas Benelli e uma Brawning”) e uma carabina Merkel a HH.

120. O arguido é caçador, tendo acesso a armas de fogo tituladas por amigos e companheiros da prática venatória.

121. No dia 14 de Novembro de 2023, ao final da tarde, a assistente conduzia a sua viatura automóvel na estrada circular da cidade ..., sendo perseguida pelo arguido que conduzia o veículo automóvel com a matricula ..-XH-.. (da marca ...), e, ao mesmo tempo, olhava para o interior do veículo conduzido pela assistente, por forma a tentar perceber quais os passageiros do veículo.

122. Chegados à rotunda conhecida como “rotunda de ...”, o arguido deixou de seguir no encalço da vítima, por não ter conseguido avançar atento o intenso trânsito rodoviário.

123. No dia 18 de Novembro de 2023, de manhã, quando a assistente se encontrava no logradouro do prédio sito na Rua ... em ..., na cidade ..., deparou-se com o arguido AA, do outro lado da estrada, a conduzir a viatura ... com a matricula ..-XH-...

124. Seguidamente, o arguido parou em frente ao referido prédio por alguns minutos, após abandonando o local e a este regressando alguns minutos depois, aí parando a viatura uma vez mais e fotografando a assistente, após abandonando o local.

125.Correm termos no Juízo Central de Família e Menores de Viseu (Juiz ...) os processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos Menores CC e DD (sob o n.º 291/21....), e o processo de promoção e protecção a favor das referidas Crianças (sob o n.º 291/21....).

126. Correm termos no Juízo Central do Comércio de Viseu, entre outros, o processo especial de destituição de gerente sob o n.º 4920/21.... (Juiz ...) em que figuram como Autor e Rés, respectivamente, o aqui arguido e a aqui assistente e a sociedade “T..., Lda.”, bem como várias Acções de Anulação de Deliberações Sociais  (sob os números 1726/22...., 844/22...., 842/22....).

127. Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 10 de Outubro de 2023, transitado em julgado, foi julgado o julgando improcedente o recurso de apelação interposto pelo aqui arguido, confirmando a sentença proferida pelo Juízo Central de Família e Menores de Viseu (Juiz ...) na Acção Especial de divórcio que aí corre termos sob o n.º 291/21.... e que julgou procedente por provada a acção de divórcio e, em consequência, decretou o divórcio entre os aí autor e ré (aqui arguido e assistente, respectivamente), com a consequente dissolução do casamento, fixando-se em 20.01.2021 o início da separação do casal, retroagindo a essa data os efeitos do divórcio, nos termos do artigo 1789º, nº 1 do Código Civil; mais se absolvendo a aí ré do pedido de fixação da data da separação do casal em 6.08.2020.

128. A vítima sente medo do arguido, temendo sair de casa e receando que este possa atentar contra a sua vida.

129. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

                                                                       *

(…)

Neste conspecto, é nosso entendimento que para acautelar os perigos que se verificam in casu, se mostra suficiente e adequada a aplicação das seguintes medidas de coação: afastamento/não permanência na residência e local de trabalho da vitima (artigo 200°, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e artigo 31° n.º 1, alínea c) e n.º 3, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro); proibição de contactos com a vitima, por quaisquer meios, nomeadamente telefónicos e electrónicos, não podendo aproximar-se da sua residência, do seu local de trabalho, ou de qualquer outro lugar em que saiba que a mesma se encontra, com a área dinâmica de protecção da vitima a definir pela DGRSP (artigo 200°, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal e artigo 31° n.º 1, alínea d) e n.º 3, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), sendo o cumprimento de tal medida controlado de meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a protecção da vitima (artigo 35°, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro);

                                                                        *

Considerando, por fim, o disposto no art.º 36°, n.º 7, da referida Lei 112/2009, entende ainda o Tribunal ser de dispensar a prestação do consentimento da vitima e do arguido, por a utilização de meios técnicos de controlo à distância se mostrar imprescindível para a protecção dos direitos da vítima (considerando, mormente, as ameaças de morte dirigidas pelo arguido à ofendida).

*

            Pelo exposto, e nos termos do disposto nos artigos 191º, nº1, 193º, nº 1, 194º, 200º, nº1 alíneas a), d) e e), e 204º, alínea c), todos do Código de Processo Penal e artigos 31° n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 3, 35º, n.º1, e 36°, n.º 7, todos da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro determino que, para além dos deveres e obrigações que decorrem do Termo de Identidade e Residência, o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coacção:

a) Afastamento/não permanência na residência e do local de trabalho da vítima BB;

b) Proibição de contactos com a vitima BB por quaisquer meios, nomeadamente telefónicos e electrónicos, não podendo aproximar-se da sua residência, do seu local de trabalho, ou de qualquer outro lugar em que saiba que a mesma se encontra, com a área dinâmica de protecção da vitima a definir pela DGRSP, sendo o cumprimento de tal medida controlado através de meios técnicos de controlo à distância;

c) Não adquirir nem utilizar armas, designadamente, armas de fogo e munições de armas de fogo.

                                                                        *

                        (…)”  

3.

            Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

(…)

7.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al. b), do mesmo código.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

A)Delimitação do objeto do recurso

Como é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, o objeto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido (artigos 402º, 403º e 412º, do C.P.P.), naturalmente sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

- Da desconformidade da ata do Auto de Interrogatório no que respeita ao facto identificado sob o número 26.

- Da nulidade da decisão por consideração de factos e elementos do processo não comunicados ao arguido.

- Da nulidade da decisão/ falta de exame crítico das provas.

- Da violação do princípio da legalidade: violação do artigo 31º do nº1, alíneas c) e d) e nº3 da Lei 112/2009, de 16 de setembro.

- Da violação da clausula “rebus sic stantibus”.

- Da inexistência dos fortes indícios, violação do principio do contraditório, do direito de defesa, do principio da investigação da verdade material e dos princípios da imediação e da oralidade.

- Da não verificação do perigo de continuação da atividade criminosa e da desnecessidade, desadequação e desproporcionalidade das medidas de coação aplicadas.

- Da falta de fundamentação do juízo de imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e da dispensa de consentimento do arguido para a aplicação dos mesmos.

B) Apreciação do recurso

           

No caso vertente, está em causa o despacho judicial proferido em 22/12/2023, pelo qual foi decidido, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191º, nº1, 193º, nº 1, 194º, 200º, nº1 alíneas a), d) e e), e 204º, alínea c), todos do Código de Processo Penal e artigos 31° n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 3, 35º, n.º1, e 36°, n.º 7, todos da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, aplicar ao arguido, ora recorrente, na sequência do seu interrogatório realizado nos dias 11/12/2023 e 20/12/2023, as seguintes medidas de coação, para além do Termo de Identidade e Residência a que já se encontrava sujeito:

a) Afastamento/não permanência na residência e do local de trabalho da vítima BB;

b) Proibição de contactos com a vitima BB por quaisquer meios, nomeadamente telefónicos e eletrónicos, não podendo aproximar-se da sua residência, do seu local de trabalho, ou de qualquer outro lugar em que saiba que a mesma se encontra, com a área dinâmica de proteção da vitima a definir pela DGRSP, sendo o cumprimento de tal medida controlado através de meios técnicos de controlo à distância;

c) Não adquirir nem utilizar armas, designadamente, armas de fogo e munições de armas de fogo.

Mais foi decidido, em tal despacho, que o cumprimento das medidas de afastamento e de proibição de contatos referidas nas mencionadas alíneas a) e b), fossem controladas por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima, nos termos do artigo 35º,nº1, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, dispensando-se igualmente a prestação de consentimento da vítima e do arguido para a utilização de meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos no artigo 36º,nº7, de tal diploma.

            Situando-se a discordância do arguido nos segmentos atrás identificados como questões a decidir, vejamos se lhe assiste razão, sendo que o Ministério Público e a Assistente pugnam pela manutenção do decidido.

           

(…)

- Da nulidade da decisão por consideração de factos e elementos do processo não comunicados ao arguido.

Defende o recorrente que a decisão recorrida é nula, porquanto nela foram tidos em consideração factos e elementos do processo não comunicados ao arguido.

Alega, para o efeito, que apenas lhe foram comunicados os factos vertidos na pronúncia, correspondentes aos pontos 1 a 116 da decisão recorrida, os pontos 117 a 124, mas já não os constantes dos pontos 125º e 126º, embora tenham sido considerados como indícios para alterar a medida de coação e ainda na sua fundamentação/motivação, factos esses em relação aos quais não teve oportunidade de exercer o seu direito de defesa e esclarecer o tribunal sobre as ações em curso.

Tais factos têm o seguinte teor:

“125.Correm termos no Juízo Central de Família e Menores de Viseu (Juiz ...) os processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos Menores CC e DD (sob o n.º 291/21....), e o processo de promoção e protecção a favor das referidas Crianças (sob o n.º 291/21....).

126. Correm termos no Juízo Central do Comércio de Viseu, entre outros, o processo especial de destituição de gerente sob o n.º 4920/21.... (Juiz ...) em que figuram como Autor e Rés, respectivamente, o aqui arguido e a aqui assistente e a sociedade “T..., Lda.”, bem como várias Acções de Anulação de Deliberações Sociais  (sob os números 1726/22...., 844/22...., 842/22....)”.

Vejamos.

Dispõe o artigo 194º do CPP, para além do mais, que:

“6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:

a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;

b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;

c) A qualificação jurídica dos factos imputados;

d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º

7 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.

(…)”.

Ora, constitui um dado adquirido que os atos decisórios dos juízes têm obrigatoriamente de ser fundamentados, cfr. artigo 205º, nº 1 da CRP, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

 Já de acordo com o nº 5 do artigo 97º do CPP, “Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Em processo penal, no que concerne às nulidades, vigora o princípio da legalidade ou tipicidade, pois que a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, cfr. nº 1 do artigo 118º do C. P. Penal. A irregularidade processual tem carácter residual, uma vez nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, cfr. nº 2 do aludido preceito legal.

Conforme resulta do disposto no artigo 194º, nº 6, do CPP, a ausência de fundamentação do despacho que aplicar medida de coação (que não o termo de identidade e residência) ou a fundamentação que não contenha os elementos exigidos pelas alíneas do mesmo número, (alíneas a) a d)), integra nulidade, ou seja, consagra-se um dever de fundamentação qualificada face ao dever geral vertido no artigo 97º, nº 5, do mesmo diploma legal.

Não obstante, tal nulidade, para além de não revestir a natureza de insanável na aludida norma, também não consta do catálogo das nulidades insanáveis do artigo 119º, do CPP, razão pela qual estamos perante nulidade dependente de arguição (sanável, portanto).

Já quanto à inobservância do número 7 (que corresponde ao nº6 na redação anterior à introduzida pela Lei 20/2013, de 21/2), porque não cominada de nulidade, apenas gera mera irregularidade, a arguir nos termos dos artigos 118º, nº2 e 123º, ambos do CPP (neste sentido, Ac. da Relação de Guimarães de 18/1/2010, proc.758/09.1JABRG-H, relator Cruz Bucho e Ac. da Relação de Coimbra de 19/6/2013, proc.810/12.6 JACBR-A, relator Orlando Gonçalves, ambos trazendo à liça, nesse sentido,  Teresa Pizarro Beleza, Prisão preventiva e direitos dos do arguido, pág. 683, in Mário Monte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra, 2009, pág. 683, onde a autora confrontando as sanções cominadas para o n.º4 (nulidade) e os n.ºs 5 e 6 (mera irregularidade) alude a uma “aparente brecha no sistema criado”].

Tais vícios têm de ser arguidos perante o tribunal de primeira instância, não se podendo recorrer diretamente da decisão que aplica a medida de coação, havendo que arguir cada um deles (nulidade e irregularidade) perante o tribunal da primeira instância, só havendo recurso da decisão que desatender a sua arguição.

Ora, se bem percebemos da referida alegação do recorrente, a invalidade que assaca à decisão recorrida prende-se antes com a violação do disposto no citado nº7 do artigo 194: consideração na fundamentação da aplicação da medida de coação de factos e elementos do processo que não lhe foram comunicados.

Como resulta do auto de interrogatório, a Mma Juiz, na sessão de 11/12/2023, previamente ao início da audição do arguido – visando-se com esta  aquilatar se o TIR aplicado satisfaz (ou não) as necessidades cautelares que atualmente se fazem sentir - deu cumprimento, para além do mais, ao disposto nas alíneas d) e e) do artigo 144º, nº4, do CPP, comunicando-lhe os factos imputados: os constantes da decisão de pronúncia (dados por reproduzidos), consubstanciadores de dois crimes de violência doméstica (um deles, cometido na pessoa da assistente, p.e p. pelo artigo 152º,nº1,al.b) e 2, al.a), do Código Penal  e outro cometido na pessoa do ofendido/filho menor, CC, p. e p. pelo artigo 152º,nº1,al.d), e 2, al.b), do CPenal), e os constantes dos requerimentos da assistente, entrados em juízo a 26 de setembro de 2023 e 20 de novembro de 2023, designadamente os descritos sob os números 1 a 26 (este último por mero lapso e cuja eliminação já foi, entretanto, determinada).

Concomitantemente a tal comunicação inicial dos factos, foram ainda indicados ao arguido os elementos do processo que indiciam os factos imputados: “os constantes da decisão de pronuncia (que, uma vez mais, são dados por reproduzidos), as declarações escritas da assistente/vítima e demais prova documental junta aos autos (designadamente, as informações dirigidas aos autos pela PSP)”.

Compulsada a decisão recorrida e confrontada a mesma com a comunicação efetuada ao arguido nos termos do citado artigo 144º, nº4, ter-se-á de concluir que os factos vertidos nos pontos 125 e 126, atinentes à pendência das aí identificadas ações judiciais, não constam do elenco dos comunicados aquando do interrogatório do arguido.

Todavia, evola, dessa mesma decisão, que a Mma Juiz, na fundamentação que aduziu para sustentar os factos elencados, serviu-se das declarações prestadas pelo arguido aquando da sua audição em sede de interrogatório judicial de arguido não detido, bem como de documentos juntos pelo próprio no decurso de tal interrogatório.

E como bem saberá o recorrente, no decurso das suas declarações veio requerer a junção aos autos de algumas peças processuais, designadamente referentes ao processo de Regulação de Responsabilidades Parentais, identificado no referido ponto 125, mostrando-se assim incompreensível a alegação de que foram violados os seus direitos à defesa e ao contraditório.

Por conseguinte, resultando tal factualidade da defesa do arguido, não vemos porque razão estaria vedado à Mma Juiz considerá-la no despacho recorrido, quando a lei o permite em sede de sentença final, não obrigando nestas situações a dar cumprimento ao disposto no artigo 358, nº2, do CPP.

Já o mesmo não poderá afirmar-se relativamente ao teor do ponto 126, ou seja, que tenha sido o arguido quem trouxe à liça a pendência das ações que correm termos no Juízo Central de Comércio de Viseu.

Deste modo, não tendo tal factualidade sido inicialmente comunicada, nem posteriormente alegada pelo arguido, a sua consideração no elenco dos factos fortemente indiciados sendo suscetível de configurar uma irregularidade, nos termos do citado artigo art.194º,nº7, do CPP, não foi, contudo,  arguida no prazo de três dias a contar da notificação da decisão que aplicou as medidas de coação (proferida por despacho escrito em 22/12/2023,  e não na presença do arguido, da qual foi notificado em 23/12/2023), cfr. disposto no artigo 123º,nº1, do CPP.

Pese embora a possibilidade de reparação oficiosa de qualquer irregularidade, nos termos do nº2 do citado artigo 123º, estando em causa um facto colateral, sem repercussão ou implicação no essencial da decisão, e por isso insuscetível de poder afetar o valor do ato praticado, nada se determina a tal respeito, considerando-se a irregularidade em apreço definitivamente sanada.

Improcede também neste segmento o recurso interposto.

- Da nulidade da decisão/falta de exame crítico das provas.

Ainda a propósito da fundamentação da decisão recorrida e dos requisitos a que a mesma deve obedecer, veio o recorrente nas suas XLV (pontos E.3.2 e E.3.2.1) e XLVI conclusões, invocar que a mesma padece de falta de exame crítico da prova, no que tange aos pontos 119 a 128 da factualidade fortemente indiciada, desde logo, no que respeita às declarações do arguido, pois “impunha-se uma explicação devidamente objetivada no despacho recorrido sobre que contradições e incoerências ou que partes do seu discurso se revelam ensaiadas por forma a que se possa concluir que o discurso não merecia credibilidade”.

Convirá, neste particular, recordar o recorrente que estamos perante uma decisão jurisdicional que aplica uma medida de coação, e não perante uma sentença, pelo que a fundamentação de tal decisão, não tem de ser tão exaustiva e completa como a que a lei exige para as sentenças finais - cfr. artº.s 374°, n° 2 e 379°, do CPP.

De outro modo, uma tal exigência poria em causa a almejada celeridade processual, que é, como se sabe, uma das traves mestras do nosso direito penal adjetivo.

Como bem referiu a Exma Procuradora da República na sua resposta ao recurso, “Não se olvide ainda que nos encontramos em sede mero interrogatório judicial de arguido não detido e que, nesta sede, o grau de exigência em tal descrição e fundamentação não é, nem pode ser, o mesmo de uma sentença ou acórdão penais (daí a lei ter uma disposição especifica para a fundamentação dos despachos de aplicação de medidas de coacção), pois que, se a sentença pressupõe a realização de um julgamento com o pleno contraditório de todas as provas produzidas e indicadas, tal já não sucede num acto como este em que se lida com prova indiciária e não plenamente contraditada. Recorde-se que na maioria das vezes o interrogatório dos arguidos (muitas vezes detidos) ocorre em fases iniciais do processo e tem prazos necessariamente curtos, o que não é compaginável, tendo presente o regime e disciplina a que está sujeito o interrogatório de arguido, com a fundamentação pretendida pelo arguido. É por isso mesmo que a lei apena impõe que se enunciem os elementos do processo que indiciam os factos imputados, e que ressalva, expressamente, as situações em que a sua comunicação puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime”.

Afastada a ideia da fundamentação que é própria das sentenças - que, como se sabe, conhecem a final do objecto do processo (vide n° 2 do art.º 374° do CPP) - reafirmamos que, no presente caso, os requisitos a que deve obedecer decisão que aplica uma medida de coação são os constantes do preceituado no já citado artigo 194º,nº6, do CPP, onde se estatui que:

“6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:

a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;

b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;

c) A qualificação jurídica dos factos imputados;

d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º

(…)”.

Apesar do particular relevo da decisão jurisdicional que aplica uma medida de coação, a maior ou menor exigência de pormenorização e concretização na enunciação dos elementos probatórios e da análise crítica depende da fase do processo e da complexidade dos meios de prova disponíveis. Naturalmente que será essencial que perante a concreta fundamentação factual e jurídica, se torne possível compreender os motivos e argumentos lógicos utilizados em ordem a um controlo e recurso da decisão.

Neste âmbito e no que se refere ao despacho recorrido, o mesmo contém, ainda que de forma sucinta, mas suficiente, a narração os factos concretos imputados ao arguido, bem como a indicação dos meios probatórios que indiciam os factos imputados e os elementos que em concreto preenchem os pressupostos de aplicação da medida de coação, permitindo a compreensão do processo lógico e racional que conduziu à decisão.

Mesmo que assim não se entendesse, estando em causa uma nulidade sanável, dependente de arguição, nos termos do artigo 120, nº1, do CPP, o que o recorrente não fez, arguindo-a perante o tribunal de primeira instância, sempre a mesma estaria sanada.

Sem necessidade de outras considerações, terá também de improceder por aqui o presente recurso.

- Da violação do princípio da legalidade: violação do artigo 31º do nº1, alíneas c) e d) e nº3 da Lei 112/2009, de 16 de setembro.

Defende o recorrente que “o legislador pretendeu reservar a aplicação de medidas de coação urgente previstas na lei em análise em dois momentos: 48 horas após a constituição de Arguido (art. 31.º Lei n.º 112/2009,); Como forma de suspensão da execução da pena de prisão (art. 34-B Lei n.º 112/2009)”, concluindo que “a  decisão tomada em 22.12.2023 pelo tribunal a quo viola o artigo 31.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e o princípio da legalidade, pois verifica-se que foi com recurso às medidas constantes no artigo 31.º, n.º 1, al. c) e d) e n.º 3 que o tribunal a quo decidiu alterar a medida, já depois de iniciado o julgamento em 16.11.2022, logo não se encontram verificados no presente caso os requisitos legais que admitem a aplicação de medidas urgentes pois desde a constituição de Arguido em 16.02.2021 até à prolação do despacho que alterou a medida de coação distam dois anos e nove meses”.

Salvo o devido respeito, carece de qualquer fundamento a argumentação do recorrente, revendo-se este tribunal nas considerações tecidas, a tal respeito, pela Exma Procuradora da República.

Ora, dispõe o citado artigo 31º, que

“1 - Após a constituição de arguido pelo crime de violência doméstica, o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes:

a) Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa;

b) Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica;

c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;

d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família.

e) Restringir o exercício de responsabilidades parentais, da tutela, do exercício de medidas relativas a maior acompanhado, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito.

2 - O disposto nas alíneas c) e d) do número anterior mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.

3 - As medidas previstas neste artigo são sempre cumuláveis com qualquer outra medida de coação prevista no Código de Processo Penal.

4 - As medidas de coação que impliquem a restrição de contacto entre progenitores ou entre estes e os seus descendentes são imediatamente comunicadas pelo tribunal ao Ministério Público junto do tribunal competente, para efeitos de instauração, com caráter de urgência, do respetivo processo de regulação ou alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais e/ou da providência tutelar cível entendida adequada”.

Decorre deste preceito legal a inegável intenção do legislador em obrigar à ponderação da aplicação de medidas de coação em momento processual prematuro – medidas que, no geral, em substância, não divergem das previstas no CPP (proibição e imposição de condutas (arts. 200º,nº1,als.a), d) e f), do diploma citado), ou seja, no momento em que o agente é confrontado com a pendência dos autos e com os factos em discussão e no qual reconhecidamente se agrava o risco para a vítima, para além de criar mecanismos céleres com vista a tal aplicação (cfr. als. h) e i) do artigo 3º, da Lei citada.

Assim, verificando-se o perigo de continuação da atividade criminosa ou a necessidade de proteção da vítima, o Ministério Público, no inquérito, ou o juiz nas fases seguintes, deverá ordenar a detenção do arguido com vista à sua apresentação a interrogatório, salvaguardando-se assim o prazo e o risco que a mesma visa colmatar, pois que ao ser confrontado com os factos e a pendência do processo é, desde logo, limitado na sua atuação futura em função das medidas de coação que sejam aplicadas.

Ainda que tenha sido esta a intenção do legislador, não decorre de tal dispositivo legal qualquer impossibilidade de lançar mão das medidas de coação aí previstas em qualquer momento processual, decorrido o mencionado prazo, como parece ser o entendimento do recorrente.

Tal impossibilidade não decorre do teor literal da norma, nem da teleologia que presidiu à sua aprovação.

Acompanhamos, mais uma vez, a Exma Procuradora da República, quando referiu que de “nenhum elemento, mormente os invocados pelo arguido, se pode extrair a inusitada e abusiva interpretação do arguido relativamente a esta previsão legal. Nada, repete-se, nada, permite concluir que “o legislador pretendeu que as medidas que constam do ao artigo31.º, não fossem aplicadas em qualquer fase processual, mas tão-só naquela fase prematura em que havendo a constituição como Arguido se pretendeu uma intervenção rápida e urgente na ponderação da necessidade de serem aplicadas as medidas de coação elencadas”.

Aliás, tais medidas coactivas são complementares às do Código de Processo Penal e são menos gravosas que algumas das medidas coactivas previstas naquele diploma legal (nomeadamente a prisão preventiva ou a OPHVE). Acaso o arguido defenderá que, não se podendo aplicar este regime, e ser o mesmo controlado por meios de fiscalização à distância, se lhe deveria aplicar medida mais gravosa? Nomeadamente a OPHVE?? Cremos que não e que esta argumentação mais não é que o desespero do arguido em ver acolhida a sua pretensão de ver revogada a medida coactiva imposta nos autos”.

Sem necessidade de quaisquer outras considerações, porquanto despiciendas, em face da completa falta de sustentabilidade da argumentação do recorrente, improcede a invocada violação do preceito legal em análise.

- Da violação da clausula “rebus sic stantibus”.

Defende o recorrente que a decisão recorrida ao invocar os factos 1 a 116.º do despacho de pronúncia, violou “o princípio do caso julgado rebus sic stantibus, pois a alteração de uma medida de coação, quer no sentido atenuativo, quer no sentido agravativo, pressupõe sempre que algo mudou entre uma decisão e a subsequente, pelo que se exige ao tribunal a quo que a modificação da medida de coação tenha por fundamento a ocorrência de exigências cautelares supervenientes”;

(…) “ os factos 1 a 116.º reportam-se a acontecimentos alegadamente praticados em 1998 e que terminaram em 11.01.2021; desde a acusação (2.10.2021) à decisão instrutória (24.01.2022), ao início do julgamento (16.11.2022) e até 21.12.2023, o Arguido esteve unicamente sujeito a TIR, sem que alguma vez (antes do requerimento da Assistente de 20.11.2023) o Ministério Público ou a Mma Juiz tenham promovido a aplicação de medida de coação mais gravosa ou invocado qualquer dos perigos enunciados no art. 204.º do CPP (…)”.

Vejamos.

Ora, como é unanimemente referenciado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que é exemplo o acórdão deste TRG de 27/03/2006, proferido no âmbito do Proc. nº 473/06.1, disponível in www.dgsi.pt, “as decisões que aplicam medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de se manter a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentam. O que imediatamente leva a concluir que logo que verificada a alteração desses pressupostos a decisão passa a ser modificável, devendo ser proferida uma outra que mostre ser a adequada, suficiente e necessária para satisfação das exigências correspondentes (...)”.

Quer isto dizer que as medidas de coação não são imutáveis, mas a sua alteração pressupõe igualmente variações do condicionalismo subjacente, por isso, enquanto permanecerem as circunstâncias de facto e se mantiverem os fundamentos de direito que justificaram a respetiva imposição, também as medidas de coação se devem manter inalteradas. Ou seja, a atenuação ou agravamento das medidas de coação depende de correspondente atenuação ou agravamento das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação.

No caso em apreço, foi com a decisão recorrida que, pela primeira vez, foi aplicada ao arguido uma medida de coação, que não o TIR,  por se entender que este (única medida de coação até então aplicada) não era suficiente.

Somente com tal decisão se ponderaram, pela primeira vez, as exigências cautelares que se faziam sentir,  perante os factos que a assistente deu a saber ao tribunal através dos requerimentos em apreço, bem como se decidiu pela consequente necessidade, em face destas, de aplicar ao arguido medidas de coação para além do TIR.

Deste modo, decorrendo o TIR automaticamente do ato de constituição do arguido, para a aplicação do qual não se exige a verificação de qualquer circunstância de facto que justifique a sua aplicação, cremos ser difícil, ou mesmo impossível, admitir-se que a decisão recorrida – a única que procedeu à avaliação das exigências cautelares – violou o princípio rebus sic stantibus.

Como se referiu no Ac. do Tribunal Constitucional nº121/2021, proferido no âmbito do processo nº1126/2019, “o ato de constituição de arguido e a imposição de TIR estão umbilicalmente ligados. Efetivamente, esta imposição a todo aquele que for constituído arguido é obrigatória nos termos do artigo 196º, nº1, do CPP”. “(…) Alguma doutrina chega a duvidar que o TIR possa ser rigorosamente classificado como medida de coação em sentido rigoroso, tendo em consideração a inexistência de um dever de fundamentação da decisão e a sua imposição em todos os casos, sem avaliação prévia de necessidade e proporcionalidade (Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2018)”.

Sempre se dirá que os factos trazidos à liça pelo recorrente, com base nos quais sustenta ter sido violado pela decisão recorrida o princípio “rebus sic stantibus”, prendem-se com aqueles que consubstanciam a prática pelo arguido dos dois crimes de violência doméstica que lhe vêm imputados na pronúncia, e não com quaisquer circunstâncias de facto indiciadoras das exigências cautelares (a violação do princípio está associada a estas), as quais, aliás, como já referimos, não foram objeto de ponderação aquando da aplicação do TIR, apenas tendo ocorrido com a decisão recorrida, servindo-se a Mma Juiz, para o efeito, dos factos ocorridos posteriormente àquela, mais concretamente dos enunciados nos pontos 117 e segs.).

 Em suma, inexiste qualquer violação do princípio “rebus sic stantibus”

- Do “erro de julgamento”/da inexistência dos indícios fortes e da violação do principio do contraditório, do direito de defesa, do principio da investigação da verdade material e dos princípios da imediação e da oralidade.

 

Veio também o recorrente alegar que o tribunal incorreu em “erro de julgamento”, julgou mal os factos indiciários, violou os princípios da imediação e da oralidade, do contraditório, da investigação da verdade material e o seu direito de defesa.

O tribunal recorrido julgou mal os factos indiciários porque não os adquiriu de acordo com os princípios e regras processuais; “não foi permitida a produção de prova que corrobora as suas declarações, nem a junção de meios de prova para esse efeito”; “o tribunal a quo recusou produzir os meios de prova que permitiam ao recorrido comprovar a falsidade do declarado por escrito pela Assistente no requerimento de 20.11.2023”; “não foi assegurado o contraditório, nem cumprido o dever de apurar a verdade material ao nível indiciário”; “o tribunal a quo aderiu, sem nenhuma espécie de juízo crítico, e sem reservas, à tese da Assistente apresentada no requerimento de 20.11.2023 que não foi confirmada por ninguém”.

Esqueceu o recorrente, mais uma vez,  que o recurso que interpôs foi da decisão que lhe aplicou as medidas de coação, e não da sentença final, a qual, como certamente saberá,  será proferida uma vez terminada a audiência de julgamento que se encontra a decorrer.

Como resulta dos autos, foi na sequência dos requerimentos apresentados pela assistente em 26/9/2023 e 20/11/2023 e perante os factos já fortemente indiciados na pronúncia, que a  Mma Juiz entendeu por bem, na sequência de promoção do Ministério Público, determinar o interrogatório do arguido (não detido), com vista a aferir da necessidade de aplicar-lhe uma medida de coação, dando-lhe igualmente a possibilidade de se pronunciar a respeito do que a assistente havia transmitido ao tribunal através de tais requerimentos.

No âmbito de tal interrogatório foram-lhe comunicados os factos constantes da pronúncia (embora já do seu conhecimento) e ainda aqueles que resultaram dos requerimentos da assistente.

Quanto aos primeiros, a sua forte indiciação e respetiva qualificação jurídica já se encontravam definidas no despacho de pronuncia, o qual delimitou o objeto do processo que está a ser discutido em sede de audiência de julgamento.

Não pretenderia certamente o recorrente vir agora novamente discutir, no âmbito da diligência do seu interrogatório, a forte indiciação de tais factos.

Tais factos são, aliás, aqueles que permitiram à Mma Juiz ponderar a possibilidade de aplicação de uma medida de coação, pois sem crime, suficiente ou fortemente indiciado, não há lugar à aplicação de medidas de coação, com exceção do TIR.

Por conseguinte, mostra-se completamente descabida a pretendida eliminação dos mesmos do elenco dos factos considerados na decisão recorrida.

Já quanto aos demais factos objeto de comunicação, surgidos posteriormente à dedução da pronúncia, porquanto indiciadores de eventuais exigências cautelares, foram os mesmos objeto de contraditório por banda do arguido, tendo a Mma Juiz, perante as declarações por este prestadas e os demais meios probatórios elencados na decisão recorrida, vindo a concluir pela sua forte indiciação.

Como se aduziu na decisão recorrida:

No que concerne aos demais factos elencados, estes resultam fortemente indiciados da análise conjugada da prova já produzida e junta aos autos – mormente, do teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 2925, das cópias das decisões, peças processuais e de actas de audiência de julgamento e outras diligências realizadas nos demais processos que correm termos neste Tribunal, do teor das informações prestadas pela PSP a fls. 2935, verso, 2936 e 2937, declarações da assistente vertidas nos requerimentos entrados em juízo a 26 de Setembro de 2023 e a 20 de Novembro de 2023 – e bem assim, das declarações prestadas pelo arguido aquando da sua recente audição em sede de interrogatório judicial de arguido não detido.

Com efeito, no que às declarações do arguido concerne, importa notar que este confirmou os factos enunciados nos pontos 117., 118., 119. e 120. e 127.

Ademais, no que respeita aos demais factos, e contrariamente ao que parece ser o entendimento da Defesa, as declarações do arguido não só não são de molde a infirmá-los como os corroboram parcialmente, não negando o arguido ter visto a vítima nos dias 14 e 18 de Novembro de 2023.

Com efeito, como resulta das declarações do arguido a propósito dos factos ocorridos no passado dia 18 de Novembro de 2023, não estamos perante um mero encontro fortuito entre vitima a arguido, não se tendo este limitado a cruzar-se com a assistente, antes parando o veículo, saindo e regressando uma vez mais ao local onde aquela se encontrava por forma a certificar-se que se tratava da arguida, fotografando-a.

Na verdade, ainda que o arguido tenha, num primeiro momento, avistado a assistente quando se dirigia para a sua [do arguido] habitação por mero acaso, a verdade é que o arguido decidiu ali permanecer e regressar (de forma visível para a vitima), não se coibindo de o fazer não obstante a existência dos presentes autos  - conduta que, de resto, não é compatível com a postura de afastamento que este diz assumir em relação à vitima.

De salientar, também, que o arguido se apresentou com um discurso visivelmente ensaiado e que, de resto, não conseguiu sustentar quando confrontado com as incongruências e contradições do mesmo, não colhendo, por isso, as explicações avançadas pelo arguido.

De referir, por fim, que os documentos juntos aos autos pelo arguido em sede de interrogatório judicial não são de molde a infirmar tampouco o medo e temor que a assistente declara sentir, já que ainda que o número de telefone constante do “print screen” junto aos autos seja da assistente, ignora o Tribunal se mensagem apagada foi enviada por engano (e por isso apagada de imediato e antes de ser lida) ou por um dos filhos da vitima e do arguido que com este, porventura, pudesse querer contactar. Do mesmo modo, a correspondência trocada no âmbito societário manifesta uma disponibilidade conjunta de ambos os gerentes para receber o arguido por forma a que este pudesse consultar os documentos na sede social, não resultando de tal missiva que a assistente estaria fisicamente presente ou que, estando, estivesse desacompanhada”

Cremos que nenhum reparo merece a decisão recorrida ao concluir pela forte indiciação, nos termos em que o fez, forte indiciação essa sustentada, aliás, no essencial, nas declarações do arguido.

Os elementos probatórios suportam-nos, designadamente as declarações prestadas pelo arguido aquando do seu interrogatório, analisadas criticamente à luz dos critérios legais e do princípio da livre apreciação.

Não foram violados os parâmetros de decisão de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127 do CPP e válido para todas as fases processuais.

            Em conformidade com o acervo probatório constante dos autos e levado em conta no despacho recorrido nos termos expostos, é possível assim formular, como a Mma Juiz  formulou, um juízo de forte indiciação em relação aos factos enunciados nos pontos 117 e seguintes.

            Juízo esse que, ao contrário do defendido pelo recorrente, não violou qualquer um dos princípios invocados.

            O arguido, ora recorrente, teve a possibilidade de pronunciar-se sobre os factos objeto da sua audição, cumprindo-se o contraditório e, desse modo, se assegurando o seu direito à defesa. As declarações do arguido em qualquer fase do processo revestem uma dupla natureza de meio de prova e de meio de defesa (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 4ªEd., 2008, pág.197).

A Mma Juiz, dentro do princípio da legalidade e no âmbito da sua livre apreciação, deferiu a produção dos meios probatórios apresentados pelo arguido que entendeu serem pertinentes tendo em conta o objeto da diligência, indeferindo os demais por entender não revestirem os mesmos qualquer utilidade ou pertinência para a ponderação do estatuto coativo do arguido, o que fez de forma fundamentada, como resulta da respetiva ata.

A coberto de uma pretensa violação dos princípios da oralidade e da imediação - princípios que norteiam a audiência de discussão e julgamento – e também do princípio da investigação, veio o recorrente insurgir-se com o facto de a Mma Juiz não ter tomado declarações à assistente, antes se tendo bastado com a tese por ela trazida através dos requerimentos em apreço.

É verdade que a Mma Juiz podia ter procedido a tal diligência em momento prévio ao interrogatório do arguido, ouvindo a assistente a respeito dos factos que através de requerimento escrito havia transmitido ao tribunal.

Mas também é verdade que não estava impedida de o fazer após o interrogatório do arguido.

Todavia, face ao teor das declarações do arguido, compreende-se a desnecessidade de tal diligência.

Com efeito, alcança-se da decisão recorrida que tais declarações, analisadas criticamente à luz das regras da experiência comum, permitiram à Mma Juiz, em conjugação com os demais elementos probatórios de que se serviu, formar a sua convicção nos termos em que veio a concluir.

Por tudo o exposto, sem necessidade de mais considerações, por despiciendas, improcedem as invocadas violações.

- Da não verificação do perigo de continuação da atividade criminosa e da desnecessidade, desadequação e desproporcionalidade da medida de coação aplicada.

Ora, o decretamento de uma qualquer medida de coação, para além do termo de identidade e residência, está sujeito aos requisitos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal, os quais devem verificar-se em concreto, ainda que não sejam cumulativos.

Ou seja, basta a ocorrência de um destes pressupostos para justificar a restrição cautelar das liberdades fundamentais de um cidadão.

Assim, e de acordo com o previsto na citada disposição normativa, para que possa ser aplicada medida de coação mais gravosa que o simples termo de identidade e residência, exige-se a verificação, em concreto, de pelo menos um dos seguintes requisitos:

- Fuga ou perigo de fuga;

- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,

- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Concluiu a decisão recorrida existir agora perigo de o arguido continuar a sua atividade criminosa, e daí que, em face desta exigência cautelar, tenha alterado o seu estatuto coativo.

Ora, o perigo de continuação da atividade criminosa a que alude a alínea c) do artigo 204º, relevante para o caso vertente, não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos atos criminosos, mas deve antes ser aferido em função de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efetuar a partir dos factos indiciados (a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta) e da personalidade do arguido neles revelados (neste sentido Acórdãos da Relação de Coimbra, de 11-03-2009, proc. n° 16/08.GBA VR e da Relação do Porto, de 25/03/2010, in www.dgsi.pt.).

Assinala-se ainda no Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-06-99, disponível em htt://www.trc.pt. que tal perigo "terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstrata ou genérica) (…) o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efetivo) de continuação da atividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coação, maxime a prisão preventiva".

            Refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol.II, págs. 359/360, que “o fundamento da medida de coacção referido na alínea c) do art. 204º deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada. O perigo de continuação da actividade criminosa há-de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade. (…)A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual actividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado. Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coacção (…)”.

A respeito do novo circunstancialismo que levou o tribunal recorrido a concluir pela verificação deste perigo, aduziu-se na decisão recorrida, o seguinte:

           “Revertendo à factualidade indiciariamente apurada, cumpre destacar que os comportamentos do arguido para com a vítima foram assumindo gravidade e intensidade crescente.

Ademais, não pode o Tribunal deixar de atentar na natureza do crime em causa nos autos e ao ascendente que, não raras vezes, o agressor exerce sobre a vítima, sendo certo que, resulta dos factos fortemente indiciados são reveladores de uma personalidade conflituosa e agressiva do arguido.

 Na verdade, o crime da violência doméstica caracteriza-se por se cíclico e de intensidade crescente, sendo que a médio prazo, os ciclos tendem a repetir-se e a ser cada vez mais próximos entre si aumentando a gravidade das condutas até aos desfechos trágicos, razão pela qual encerram, via de regra e como sucede in casu, um intenso perigo de continuação da actividade criminosa.

De salientar, também, que a circunstância de o arguido e a vítima se encontrarem actualmente divorciados e a circunstância de o arguido ter refeito a sua vida amorosa em nada diminui o perigo de continuação de actividade criminosa.

Na verdade, considerando a recente improcedência do recurso interposto pelo arguido na acção de divórcio (concernente à data dos efeitos patrimoniais do casamento), e atentando, também, na circunstância de o arguido e a assistente continuarem a ter assuntos pendentes relacionados o exercício das responsabilidades parentais e com os questões patrimoniais decorrentes do divórcio e das divergências societárias contribuem para que o arguido persista na conduta descrita nos autos, com comportamentos de gravidade e intensidade crescente, encontrando-se a vitima actualmente numa situação de particular fragilidade.

De salientar a propósito dos episódios ocorridos a 14 e a 18 de Novembro de 2023, que, há muitas formas de comunicação para além da comunicação verbal, sendo que, como é sabido, a mera presença física de alguém que se teme pode ser vista como uma forma de comunicação não verbal com potencial intimidatório como o de uma ameaça directamente dirigida.

Ademais, não pode o Tribunal olvidar que o arguido é caçador e é titular da licença de uso e porte de arma cuja renovação (requerida pelo arguido) está iminente e, bem assim, que o arguido tem acesso a armas de fogo.

Verifica-se, pois, existir in casu um concreto e actual perigo de continuação da actividade criminosa por parte do arguido (artigo 204º, alínea e c) do Código de Processo Penal), a que importa pôr cobro”.

Ora, é facto notório que o crime de violência doméstica tem um padrão cíclico, reiterado, que não se cinge a uma atuação isolada e que tem tendência a agravar-se, culminando muitas vezes em situações trágicas.

E dai que, como decorre da decisão recorrida, tal crime encerre, via de regra, um intenso perigo de continuação da atividade criminosa.

            No caso vertente, temos para nós que embora tal perigo já se intuísse, um pouco, da descrição fática da acusação e da pronúncia, atenta a personalidade do arguido aí evidenciada, encontra-se agora manifestamente verificado em face dos novos factos.

            Na verdade, pese embora o tempo já decorrido sobre os factos descritos na pronúncia  - encontrando-se os autos na fase do julgamento – decurso temporal esse que já poderia ter servido para acalmar os ânimos, tanto mais que, como alega o recorrente, já tem a sua vida sentimental organizada, não podemos deixar de reconhecer que os episódios ocorridos no passado mês de novembro, configurando ameaças veladas do arguido para com a assistente, quando associados aos factos já descritos na pronúncia, nos quais se incluem, para além do mais, ameaças de morte, inculcam, sem dúvida, um perigo de continuação da atividade criminosa.

Por outro lado, a conflitualidade entre o arguido e a assistente mantém-se, bastando atentar nas ações pendentes em tribunal relativas ao exercício das responsabilidades parentais, a questões patrimoniais decorrentes do divórcio e das sociedades às quais se encontram ligados de uma maneira ou de outra.

Ademais, não podemos olvidar a personalidade conflituosa e agressiva do arguido que evola dos factos vertidos na pronúncia – traços esses que não se mostram beliscados com as invocadas “duas situações limite” trazidas à liça pelo recorrente - nem tampouco que o mesmo tem acesso a armas de fogo, encontrando-se, aliás, a renovar a sua licença de uso e porte de arma.

Em suma, ao contrário do que defende o recorrente, cremos, sem margem para dúvidas, que o perigo de continuação da atividade criminosa é, pois, real e efetivo, o que justifica, por si só, uma agravação da sua situação coativa.

            É verdade que o arguido não tem antecedentes criminais ( vale o que vale em crimes graves, como é o de violência doméstica), e beneficia de uma boa inserção profissional e social.

            Todavia, tal circunstancialismo, na medida em que também não o inibiu de levar a cabo a atuação fortemente indiciada na pronúncia, não é de molde a anular a verificação de tal perigo de continuação da atividade criminosa.

            Já quanto aos termos de tal agravação importa ter presente o seguinte:

O Código de Processo Penal consagra no seu art.191º, nº1, o princípio da legalidade e da tipicidade das medidas de coação, estatuindo que “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”.

Sendo inquestionável que quando se pondera a aplicação de uma medida de coação não podem desconhecer-se os direitos do arguido à sua livre autodeterminação e circulação, tais direitos têm que ceder quando confrontados com os direitos da vítima à sua liberdade de determinação e movimentação, à sua integridade física e psíquica, à tranquilidade e segurança no seu dia à dia da sua vida pessoal, familiar e social, tanto mais que se há alguém que tem de ser protegido nos crimes de violência doméstica é a vítima e não o infrator.

Ora, inexiste qualquer dúvida que as medidas de coação em processo penal têm que respeitar os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da intervenção mínima.

Segundo Castro e Sousa, tais princípios «nada mais são do que emanação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido que impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser socialmente necessária mas também suportável» (in “Os meios de coacção no novo código de processo penal”, Jornadas de direito processual penal. O novo código de processo penal, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pág. 150).

Os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade encontram-se consagrados no art.º 193º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, no qual se estabelece que as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias, adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso.

Já o princípio da adequação exige que a medida seja apta e idónea para satisfazer as exigências cautelares do caso, devendo ser escolhida de acordo com estas exigências.

Segundo Germano Marques da Silva, uma medida é adequada «se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares» (in “Curso de Processo Penal”, II, 4.ª edição, Verbo, Lisboa, 2008, pág. 303).

Este princípio afere-se por um critério de eficiência, através da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade desta para o neutralizar ou conter.

A adequação é, assim, qualitativa (aptidão da medida, pela sua natureza, para realizar os fins cautelares pretendidos) e quantitativa (no que toca à sua duração ou intensidade).

O princípio da adequação é ainda integrado pelo princípio da proporcionalidade, que impõe que a medida seja proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada.

O princípio da proporcionalidade assenta, pois, num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.

De acordo com o art.º 18º, nº 2 da CRP, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, pelo que, em matéria de aplicação das medidas de coação, o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito» (Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 264).

Deste modo, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, exige-se que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida de privação da liberdade individual aplicada, a gravidade do crime praticado e a natureza e medida da pena em que, previsivelmente, o arguido virá a ser condenado.

Tal gravidade deverá ser ponderada em função do modo de execução do crime, dos bens jurídicos violados, da culpabilidade do agente e, em geral, de todas as circunstâncias que devam ser consideradas em sede de determinação da medida concreta da pena.

Como se decidiu no acórdão do TRL de 19/06/2019, proferido no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, em que foi relator João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt, «Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coação escolhida deverá manter uma relação direta com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos (…) ».

No caso vertente, parece-nos inquestionável, tendo em conta a gravidade da moldura penal abstrata correspondente aos crimes fortemente indiciados, o elevado grau de ilicitude e da culpa que emergem dos factos, as acentuadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de criminalidade e ainda a personalidade conflituosa e agressiva do arguido, que o perigo de continuação da atividade criminosa - exigência cautelar que se verifica em concreto -  e a necessidade de proteger a vítima apenas ficam acauteladas com as medidas de coação que foram aplicadas ao arguido.

No que em especial se refere às medidas de afastamento e de proibição de contatos, temos também para nós que a sua sujeição a vigilância eletrónica, mostra-se necessária, adequada e proporcional à exigência cautelar que no caso em apreço se faz sentir e proporcional à gravidades dos crimes e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada.

De facto, há que prevenir males maiores, impedir os encontros, a aproximação do arguido à vítima, evitando-se, dessa forma, a prática de atos mais graves que possam resultar dessa aproximação, como frequentemente sucede nos casos em que estão em causa crimes de violência doméstica, nos quais, como já salientámos, o padrão de comportamento, cíclico e reiterado, tende a agravar-se.

Ainda que a assistente se encontre a beneficiar da medida e proteção de teleassistência,  sempre se dirá que não impedindo tal mecanismo de proteção que o arguido dela se aproxime sem que tal aproximação fosse sinalizada por geolocalização, mostra-se o mesmo insuficiente para acautelar o perigo que se verifica e proteger a vítima de forma eficaz.

Reconhecendo-se que a vigilância eletrónica possa causar constrangimentos ao arguido, a mesma é necessária, proporcional e adequada à supremacia dos direitos da vítima que se pretendem acautelar.

Constrangimentos que, diga-se, não impedem o recorrente, de exercer a sua atividade profissional e de manter a sua vida familiar e social.

Posto isto, resta concluir, no sentido em que concluiu a decisão recorrida, ou seja, que as medidas de coação aplicadas mostram-se necessárias, adequadas e proporcionais à exigência cautelar que o caso em apreço requer e proporcionais à gravidade dos crimes e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, improcedendo, neste segmento, o recurso interposto.

- Da falta de fundamentação do juízo de imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e da dispensa de consentimento do arguido para a aplicação dos mesmos.

  

Defende o recorrente que a decisão recorrida não procedeu à fundamentação de que a vigilância eletrónica se mostra imprescindível para a proteção da vítima e muito menos que tal imprescindibilidade justifique a dispensa do consentimento do arguido, pelo que não se mostram reunidos os pressupostos para que, dispensando o consentimento do arguido/condenado, haja lugar à utilização dos meios técnicos de controlo à distância, ao abrigo do disposto no n.º 7 do art.º 36.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, introduzido pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro.”

            Conforme resulta da decisão recorrida, a Mma Juiz fundamentou nos artigos 35º e 36º, nº7, da referida Lei, a aplicação ao arguido, sem o consentimento deste, dos meio técnicos eletrónicos de controlo à distância por forma a fiscalizar o cumprimento das medidas de coação.

Ora, dispõe o artigo 35º, da citada Lei nº 112/2009, que:

“1- O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

2 - O controlo à distância é efetuado, no respeito pela dignidade pessoal do arguido, por monitorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados.

3 - O controlo à distância cabe aos serviços de reinserção social e é executado em estreita articulação com os serviços de apoio à vítima, sem prejuízo do uso dos sistemas complementares de teleassistência referidos no n.º 6 do artigo 20.º

4 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o juiz solicita prévia informação aos serviços encarregados do controlo à distância sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou do agente.

5 - À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 212.º e 282.º do Código de Processo Penal”.

Já o artigo 36º, dessa mesma Lei, estatui que:

“1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.

2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.

3 - O consentimento do arguido ou do agente é prestado pessoalmente perante o juiz, na presença do defensor, e reduzido a auto.

4 - Sempre que a utilização dos meios técnicos de controlo à distância for requerida pelo arguido ou pelo agente, o consentimento considera-se prestado por simples declaração deste no requerimento.

5 - As vítimas e as pessoas referidas no n.º 2 prestam o seu consentimento aos serviços encarregados da execução dos meios técnicos de controlo à distância por simples declaração escrita, que o enviam posteriormente ao juiz.

6- Os consentimentos previstos neste artigo são revogáveis a todo o tempo.
7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.”.

Ora, a falta da fundamentação de despachos tem como efeito a sua irregularidade (cfr. artigo118º, nº 2 e 123, do CPP), se a lei não cominar de forma diferente (como já referimos, o citado artigo 194, nº6, apenas comina a nulidade do despacho que aplica a medida de coação para as situações previstas nas alíneas a) a d)).

Não se encontra prevista na lei, quer nos preceitos legais acima transcritos, quer em qualquer outra norma, a nulidade como sanção para a falta ou deficiente fundamentação do despacho pelo qual é determinada a aplicação de medidas de coação relativamente à aplicação de meios técnicos de controlo à distância sem o consentimento do arguido.

Assim sendo, a violação ou a inobservância da lei - no caso a apontada falta ou deficiente fundamentação do despacho - a existir constitui uma mera irregularidade processual, a qual deveria ter sido arguida nos termos do já citado artigo 123,nº1, pelo que, não o tendo sido mostra-se sanada, cfr. artigo 118º, nº1 e nº 2 do CPP.

De qualquer forma, ainda que assim não fosse, verificamos que o despacho recorrido, relativamente imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e à dispensa de consentimento do arguido para a sua aplicação encontra-se fundamentada, pese embora, é certo, por forma sucinta, mas ainda assim fundamentada.

Com efeito, do acima transcrito artigo 36º da Lei nº 112/2009 decorre que a regra é a de que a aplicação de meios técnicos de controlo à distância - que constitui inequivocamente uma restrição de direitos do arguido - depende do seu consentimento. A exceção é a de que este consentimento pode ser dispensado se a aplicação dos referidos meios técnicos se justificar de tal forma que sejam imprescindíveis para a salvaguarda dos interesses da vítima, o que mostra-se consentâneo com a ideia já atrás salientada de que as restrições de direitos do arguido devem limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP.

Assim, a dispensa do consentimento do arguido para aplicação dos aludidos meios técnicos somente é possível em face da imprescindibilidade para proteção dos interesses da vítima, cfr. nº 7 do citado preceito legal.

No caso em apreço, depois de ter sido decidido aplicar ao arguido, para além do mais, as medidas de coação de afastamento e de proibição de contactos, nos termos supra melhor descritos, determinou-se ao abrigo do citado artigo 35º, nº1, que o seu cumprimento fosse controlado de meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vitima, concluindo-se depois, invocando o disposto no art.º 36°, n.º 7, da referida Lei 112/2009, ser de dispensar a prestação do consentimento da vitima e do arguido, por a utilização de meios técnicos de controlo à distância se mostrar imprescindível para a proteção dos direitos da vítima (considerando, mormente, as ameaças de morte dirigidas pelo arguido à ofendida).

Ou seja, foi dispensado o consentimento do arguido quanto à aplicação de meios técnicos de controlo à distância pelo facto de estes serem imprescindíveis para acautelar os direitos da vítima, atentas as ameaças de morte do arguido contra a mesma.

Em suma, não só a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos e a dispensa do consentimento, se mostram fundamentadas, como os factos indiciários o permitem, nada tendo de excessiva a sua aplicação.

Sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que se confirma na íntegra, sendo improcedente o presente recurso.

III. Dispositivo

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª secção penal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se o despacho recorrido nos seus exatos termos.

           

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1, do C.P.P. e 8º, nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).

Comunique-se de imediato ao tribunal a quo a presente decisão, remetendo cópia da mesma.

                       

                      Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários       

                                                             


Coimbra, 22 de maio de 2024

  Cândida Martinho

(Juiz Desembargadora Relatora)

João Abrunhosa

(Juiz Desembargador 1ºAdjunto)

Teresa Coimbra


          (Juiz Desembargadora, em substituição legal da Juiz Desembargadora 2ªAdjunta, Maria José Matos (de baixa médica)).