Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | SARA REIS MARQUES | ||
Descritores: | MEDIDA DE COAÇÃO OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO SOB VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA AFASTAMENTOS DO ARGUIDO DA RESIDÊNCIA DETEÇÃO PELA VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA EFICÁCIA DA MEDIDA COACTIVA CONTINUAÇÃO DA PRÁTICA DA ACTIVIDADE CRIMINOSA. | ||
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Data do Acordão: | 02/19/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 152.º, N.º 1, AL. A) DO CÓDIGO PENAL E ARTS. 191.º, N.º 1, 192.º, 193.º, N.º 1, 2 E 3, 194.º, 196.º, 200.º, N.º 1, ALS. D) E F), 202.º, N.º 1, AL. B) E 204.º, ALS. B) E C), TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. | ||
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Sumário: | I- O arguido demonstrou, ao praticar os factos em causa neste processo, possuir uma personalidade manipuladora, egoísta e violenta, dificuldades de controlo de impulsos, mostrando-se indiferente ao sofrimento que causou à vítima, não tendo pejo em aproveitar-se da debilidade da vítima - fruto das doenças do foro psiquiátrico de que esta padece e da sua toxicodependência - para satisfazer os seus impulsos sexuais e as suas necessidades de domínio.
II- A circunstância de ter já cumprido pena de prisão pela prática de crimes contra as pessoas revela que o arguido possui uma personalidade temerária, impermeável à ação da justiça e ao dever-ser jurídico penal. III- A declaração do arguido de que pretende cessar o relacionamento com a vítima e não mais a contactar vê a sua seriedade contrariada por todo o seu comportamento e que por isso, não tem a virtualidade de atenuar as exigências cautelares e a sua situação profissional estável não o inibiu de levar a cabo os actos criminosos. IV- A medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mesmo sob vigilância eletrónica (artigo 201.º do Código de Processo Penal), não é uma medida eficaz e suficiente para obstar à continuação da prática da actividade criminosa, pois não impede que o arguido, num ato de impulsividade, saia de casa e repita comportamentos sobre a vítima de idêntica natureza ou até mesmo que concretize as ameaças de morte que não se coíbe de proferir. A vigilância eletrónica detecta afastamentos do arguido da residência mas não os impede. ( Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | * * * Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório: Nos presentes autos de Inquérito, que correm termos na Procuradoria do Juízo de Competência Genérica de Trancoso – Secção de Inquéritos da 2ª Secção – por despacho de 08 de fevereiro de 2024, o M.º Juiz de Instrução determinou que o arguido detido AA aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação: - Termo de Identidade e Residência já prestados nos autos, - Prisão Preventiva, - Proibição de Contactos, sob qualquer forma ou meio, com a Ofendida; - Obrigação de se sujeitar a avaliação clínica e tratamento, caso se revele necessário, clínico/médico a problemática psiquiátrica ou psicológica, e seguir o tratamento fixado, para o qual o Arguido já prestou o seu consentimento, Tudo nos termos dos arts. 191.º, n.º 1, 192.º, 193.º, n.º 1, 2 e 3, 194.º, 196.º, 200.º, n.º 1, als. d) e f), 202.º, n.º 1, al. b) e 204.º, als. b) e c), todos do Código de Processo Penal), tudo conforme registado no auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e por se encontrar indiciado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal a que corresponde as penas acessórias previstas pelos n.ºs 4 e 5 do mesmo preceito legal, perpetrado na pessoa de BB e existir perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação do decurso do inquérito. e para a instrução do processo, na vertente de aquisição, conservação e veracidade da prova e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
* Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões (transcrição): 1ª - O quid do presente recurso cinge-se à apreciação dos fundamentos de aplicação da medida de coação extrema, de ultima ratio, de prisão preventiva, da qual o arguido discorda 2ª – É pacífico que a medida de prisão preventiva, independentemente da gravidade intrínseca ou do impacto social e comunitário do(s) crime(s) indiciado(s), persiste como sendo a medida de coação de ultima ratio. 3ª – A prisão preventiva apenas deve ser aplicada quando, num juízo gradativo de proporcionalidade, adequação e necessidade, se mostre ser a única capaz de garantir as finalidades cautelares que subjazem à fixação do estatuto coativo do arguido. 4ª - O Juiz de Instrução, quando procede à aplicação das medidas de coação, deve, num raciocínio motivado e crítico, descartar fundamentadamente a adequabilidade de todas as medidas de coação alternativas previstas pela lei processual penal, de modo a concluir pela aplicação da prisão preventiva, atenta a extrema compressão que a mesma representa para o cidadão. 5ª – Para o que, e em face do que dispõe o n.º 1 do artigo 204º do CPP, se propôs o Exmo. Senhor Juiz a quo verificar da ocorrência, no caso concreto, dos pressupostos de aplicabilidade das medidas de coação taxativamente contemplados no predito normativo, o que efetivamente fez, concluindo pela demonstração do “perigo de continuação da atividade criminosa” (cf. al. c) do n.º 1 do artigo 204.ºdo CPP), e bem assim, pelo “perigo de perturbação do inquérito” (cf. al. b) do n.º1 do artigo 204.º do CPP), e, de igual sorte, pela grave perturbação da “tranquilidade e paz públicas” e, consequentemente, do “alarme social” provocado pelas condutas indiciadas (cf. al. c) do n.º 1 do artigo 204.º do CPP). 6ª - Dando por demonstrados os pressupostos para a aplicação de uma ou mais medidas de coação que transcendessem o termo de identidade e residência (TIR), evoluiu o Exmo. Senhor Juiz a quo para “…decidir as medidas de coação, dentro das legalmente admissíveis ao caso sub iudice e que se revelem adequadas, proporcionais e necessárias”. 7ª - Efetivamente, em tese geral, e no plano teórico e científico, o juízo valorativo do Sr. Juiz está correto, sendo de admitir que, em face dos indícios – e, note-se, indícios apenas, atenta a fase dos autos em que nos encontramos – apontados no despacho de indiciação de fls., se justificasse a aplicação de uma (ou mais) medida de coação outra que não apenas o TIR. 8ª – Todavia, se o Sr. Juiza quo, em tese geral, calibrou antecipada e adequadamente o raciocínio que subjaz a uma decisão cautelar, funestamente, não o pôs em prática, dado que, como vimos, se decidiu pela aplicação da prisão preventiva. 9ª – O Tribunal “ a quo” aplicou a prisão preventiva sem antes, como lhe competia, ter gradativamente descartado a adequabilidade ao caso concreto de todas as demais medidas de coação potencialmente aplicáveis. 10ª – No seu iter cognitivo e decisório, impunha-se designadamente ao julgador “a quo” ponderar a adequabilidade da obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, às exigências cautelares impostas pelo caso concreto, o que manifestamente não foi feito na decisão recorrida. 11ª - O erro de avaliação jurídica de que enferma o despacho recorrido de fls. é, pois, manifesto e ostensivo, e evola do próprio texto do mesmo quando alise lê que “Desta forma, crê-se que a aplicação das medidas infra e a perceção de que o Arguido terá que violando estas será sujeito a um estatuto coativo mais severo, poderão ter um efeito de prevenção na repetição de comportamento como os imputados.”. 12ª – Qual, então, o estatuto coativo mais severo que, em face de uma eventual delinquência futura do arguido, lhe poderá ser ainda imposto, considerando que no caso concreto foi já aplicada a prisão preventiva?! Com o devido respeito, desconhecemos qual seja… 13ª - O Exmo. Senhor Juiz, no seu iter decisório, foi calcorreando gradualmente as etapas típicas de um despacho de fixação do estatuto coativo do arguido, procedendo, prima facie, ao recenseamento dos factos indiciados e evoluindo, posteriormente, para a qualificação dos mesmos em vista dos pressupostos gerais de aplicabilidade das medidas de coação – em tudo o que transcendam o TIR –, nos termos do disposto no artigo 204.º do CPP. 14ª –Contudo, quando chegado ao momento de se decidir pela medida (ou medidas) a fixar, o Juiz “a quo” deu um claro salto lógico, limitando-se a aderir à promoção do Ministério Público (MP), concluindo que “…não existem dúvida que as medidas de coação requeridas pelo Ministério Público relativamente ao Arguido se apresenta adequada e proporcional à gravidade dos actos ilícitos cuja prática se encontra fortemente indiciada, bem como consentânea com a previsível pena ao mesmo aplicada por força do respetivo cometimento, para além do necessário acautelar dos referidos perigos”. 15ª - Mais sentenciando o Tribunal recorrido que “Neste momento, perante os atos violentos praticados pelo Arguido, mesmo que sujeito a controlo por vigilância eletrónica, poderá este empreender em atos de violência contra a ofendida, repetindo estes comportamentos, sendo que tal medida, menos gravosa, não acautela suficientemente os perigos supra enunciados, o que resulta por demais evidenciado, atendendo ao incumprimento da medida de coação de proibição de contactos com a Ofendida aplicada ao Arguido.”, resulta claro - embora o Exmo. Senhor Juiz a quo não o refira expressamente –, que tais meios de vigilância eletrónica são aqueles a que alude o artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09. 16º - Meios esses que, efetivamente, em face da indiciação dirigida contra o arguido, cuja substância, nesta fase, todavia, e sem prescindir ou conceder, nos demitimos de comentar, pelas razões de ordem pragmática primitivamente enunciadas, são de caracterizar como insuficientes. 17ª - É, pois, de aceitar, que o Tribunal recorrido, em face dos indícios colocados perante si, descartasse tais meios. 18ª – Contudo, merece total discordância por parte do recorrente que o Tribunal recorrido descartasse – aliás, e em rigor, que nem sequer cogitasse –, a aplicabilidade, por adequável ao caso concreto, da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com controlo à distância, i.e., com vigilância por meios eletrónicos, nos termos do disposto no artigo 201.º, nºs 1 e 3, do CPP. 19ª - Medida esta cumulável com a proibição de utilização de quaisquer equipamentos eletrónicos e informáticos e, naturalmente, da proibição de contactos com a ofendida. 20ª - Medidas estas que, conjugadamente, em nosso entender, e com o devido respeito, acautelariam suficientemente as necessidades preventivas e cautelares que ressumam da indiciação. 21ª – O confinamento do arguido a uma habitação, com vigilância eletrónica é materialmente adequado a prevenir, de forma eficaz, o mesmo risco que o Tribunal pretende evitar com o confinamento do arguido num estabelecimento prisional, assegurando de igual modo as exigências cautelares que no caso concreto se fazem sentir. 22ª - É certo que o arguido, recluído a uma prisão, dificilmente dela se poderá ausentar para estabelecer qualquer contacto com a vítima, todavia – e confinado à sua habitação, e sujeito a vigilância eletrónica - é de prever razoavelmente que o arguido não irá estabelecer qualquer contacto (físico) ou aproximação à ofendida, sabendo que está a ser permanentemente monitorizado. 23ª – E isto tanto mais que a violação desse confinamento obrigatório determinará o acionamento das autoridades policiais, garantindo-se, assim, e de forma eficaz, a proteção da ofendida. 24ª - A aplicação ao arguido da medida de coação vulgarmente designada de OPHVE é, no caso concreto, uma medida adequada e proporcional, a qual permite restringir severamente a liberdade do arguido, mas sem o sujeitar aos efeitos decorrentes do confinamento a um estabelecimento prisional, sendo conhecidos os impactos de tal circunstância, mormente na perspetiva da (re)integração societária do mesmo e na pacificação das relações familiares, parentais e comunitárias. 25ª - A lei processual penal consente que tal medida de coação possa ser conjugada, e a mais da proibição de contactos com a ofendida com a imposição de outras obrigações de conduta, designadamente com a obrigação de “Não adquirir, não usar ou, no prazo que lhe for fixado, entregar armas ou outros objectos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a prática de outro crime”, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 200.º do CPP. 26ª - Inclui-se no segmento normativo ínsito na al. e) do nº 1 do artigo 200º do CPP a proibição de utilização de meios informáticos e eletrónicos, ficando, assim, igualmente prevenida, e da perspetiva da factualidade indiciada, a possibilidade de o arguido contactar a ofendida. 27ª – Poderia, em tese, argumentar-se que tal imposição de conduta tendente ao corte de toda e qualquer comunicação entre o arguido e a ofendida não é fiscalizável da mesma forma que a permanência na habitação, sujeita a controlo e monitorização eletrónica à distância. 28ª – Contudo, e considerando que na decisão recorrida refere expressamente que a medida aplicável é “…absolutamente essencial para proteção da própria, uma vez que o Arguido pode lograr chegar a contacto com a mesma a partir do estabelecimento prisional”, temos então que o próprio Tribunal recorrido aplica uma medida cautelar de cuja eficácia não está ele próprio seguro, no que tange a prevenir o contacto entre o arguido e a ofendida. 29ª – Razão pela qual, e atendendo aos predicados lógicos acolhidos na decisão recorrida, a prisão preventiva não é dotada de maior aptidão no que toca a prevenir contactos entre o arguido e a ofendida, que a denominada OPVHE, razão pela qual não podia o Tribunal recorrido convocar tal argumento de modo a justificar a aplicação da prisão preventiva, por anódino. 30ª - É de concluir que a fixação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com controlo à distância, associada à imposição das preditas condutas – designadamente, a proibição de utilização de meios eletrónicos e informáticos –, e bem assim, com a obrigação de sujeitar a avaliação clínica e tratamento (caso o mesmo se mostre necessário), se mostra adequada e suficiente para acautelar as necessidades preventivas que ressumam da indiciação, 31ª – Sendo tal entendimento o único consentâneo com o segmento da motivação da decisão recorrida segundo o qual caso as medidas de coação ora aplicadas fossem violadas, poderia o arguido ser, então, alvo de um regime mais severo: esse sim, e a sim, o da prisão preventiva. 32ª - A decisão recorrida não pode subsistir, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que, de entre as medidas de coação privativas da liberdade, aplique ao arguido a de obrigação de permanência na habitação, com controlo à distância por meios eletrónicos, em substituição da prisão preventiva, mantendo-se por ora as demais medidas fixadas e, ainda, com a fixação da proibição de utilização de meios eletrónicos e informáticos. Termos em que, em conformidade com as conclusões supra, se deve dar provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida de fls., tudo com as legais consequências. * * -» O Mº P.º respondeu ao recurso, que motivou, concluindo do seguinte modo (transcrição): A. Os factos indiciados levam a imputar ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal a que corresponde as penas acessórias previstas pelos n.ºs 4 e 5 do mesmo preceito legal. B. Os factos mostram-se fortemente indiciados da credibilidade conferida à inquirição da vítima, que confirmou e relatou os factos, de forma credível e sincera, cujo depoimento mereceu a maior credibilidade, bem como do teor dos documentos juntos aos autos. C. Nos presentes autos existe um forte perigo de continuação da atividade perigosa, de perturbação do decurso do inquérito e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, não apenas olhando (em abstrato) para este tipo de criminalidade, cada vez mais presente na nossa sociedade e que urge combater eficazmente, mas também analisando, em concreto, a natureza e as circunstâncias do crime indiciado nos autos. D. Tais perigos apenas podem ser afastados, com a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva. E. Com efeito, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação não tem a virtualidade de afastar o forte perigo de continuação da atividade criminosa, podendo no recesso do lar, o arguido, atenta a sua personalidade descontrolada e perturbação emocional, procurar a vítima para atentar contra a sua vida. F. O despacho do Mm. Juiz está suficiente e adequadamente fundamentado, elencando os motivos que determinaram a decisão. G. Pelo que, a douta decisão recorrida não nos merece qualquer reparo. H. Entendendo-se que não se mostram violados os dispositivos legais invocados ou outros. Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos. * * -» Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, salientando que: “a espiral de violência” objetivada nas atitudes do arguido após o seu regresso a Portugal a 6.10.2024, com sucessivos episódios envolvendo a vítima (mas também os dois filhos, um dos quais menor), evidenciam uma personalidade que encerra em si um grau de perigosidade elevado (e descontrolado), não sendo possível fazer um juízo de prognose favorável (até pelos factos antecedentes relacionados com crimes de igual jaez e o seu desrespeito pelas decisões judiciais) quanto ao seu comportamento futuro no que diz respeito ao cumprimento das medidas de coação que lhe sejam fixadas. Como se sabe, o modo como é (ainda) executada e fiscalizada a pretendida medida de coação - OPHVE – não oferece garantias suficientemente eficazes nem para afastar os perigos existentes, nem para proteger devidamente a vítima. A impulsividade do arguido, a violência que lhe está latente, a falta de autocontrolo inibitório, desaconselham, de todo, que se lhe aplique a medida de cocção pretendida, por, salvo o devido respeito, a mesma nos parecer claramente insuficiente. * * Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP e o arguido respondeu, dizendo não se conformar com o parecer do MP junto desta relação, remetendo para os argumentos apresentados no recurso interposto. * * Os autos foram aos vistos e teve lugar a conferência. * *
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões (já supra mencionadas) da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância – artigos 403º e 412º, nº 1, do Código do Processo Penal. Assim, deve neste recurso ser apreciado o seguinte: - saber se deve ser revogada a medida de coação de prisão preventiva.
** O princípio da necessidade determina que seja aplicada uma medida de coação estritamente indispensável para a promoção do fim cautelar visado, ou seja, a exigência cautelar que o caso em concreto demanda não pode ser obtida por uma medida menos gravosa do que aquela aplicada. Os requisitos gerais previstos no art. 204.º do CPP consistem no perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e perigo de continuação criminosa e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. O Ministério Público realça que “tais condutas foram desenvolvidas no seio familiar o que propicia a reiteração, o que aliás decorre da concreta conduta do Arguido que, não apenas se prolongou por um período já extenso, como se vem agravando em intensidade e se reitera, não obstante saber da existência do presente processo e do demais, nomeadamente do processo n.º 8/24...., no qual já foi até constituído arguido e foram-lhe aplicadas medidas de coacção, mas tal não o demove, antes pelo contrário, desde que regressou a Portugal, e não obstante as medidas de coacção a que se encontra sujeito, o mesmo piorou o seu comportamento, culpabilizando a vítima, e tendo tido um comportamento violento e persecutório, não se abstendo de o fazer em sítios públicos e na presença de terceiros. Dos factos narrados pela vítima denota-se que a conduta do Arguido face à vítima tem vindo a crescer em agressividade e não é dissuadido pelo sistema penal. O Arguido não obstante saber que não pode contactar com a vítima, procura a mesma diariamente, ficando cada vez mais agressivo. Dos autos resulta que nada que não a aplicação de medida de coacção logrará acautelar a segurança da vítima. Assim, atenta a gravidade, reiteração e actualidade da conduta do Arguido AA, considero existir perigo de continuação da actividade criminosa, bem como de perturbação do decurso do inquérito nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova– cfr. art. 204.º, alíneas b) e c), do C.P.P. Quanto às medidas de coação de proibição de contactar com a ofendida e de obrigação de sujeição a avaliação clínica e tratamento, caso se mostre necessário, clínico/médico a problemática psiquiátrica ou psicológica, o recorrente também se conformou com a sua aplicação, razão pela qual não pode este Tribunal da Relação tecer qualquer juízo sobre a sua adequação, necessidade e proporcionalidade. Nesta medida, o objecto do recurso – como claramente resulta das conclusões da motivação – restringe-se à discussão de quais as exigências cautelares presentes no caso e a saber se a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva é necessária, adequada e proporcional. Vejamos então. A aplicação de medidas de coação implica, em maior ou menor grau, consoante os traços distintivos da medida em causa, restrições ao direito à liberdade, direito fundamental com tutela constitucional, estando por isso submetidas ao princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade e devendo conter-se, de acordo com o estabelecido no nº 2 do art. 18º da CRP, dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Lembramos também que a imposição de medidas de coação, mormente das privativas da liberdade, não contende com o princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º, nº 2, da C.R.P., sendo certo que não pode constituir uma antecipação da pena e que aquelas sempre hão-de ter natureza excecional e de ultima ratio, obedecendo estritamente aos requisitos fixados na lei. Em consonância com o referente constitucional, o nº 1, do art. 191º, do CPP estabelece os princípios da legalidade e tipicidade das medidas de coação e de garantia patrimonial, prescrevendo que: “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”. Por seu turno, o nº 1, do art. 193º, do CPP estabelece que: «As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.» . O princípio da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) significa que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, o que obriga à escolha da medida de coação menos onerosa para o cidadão de entre aquelas que sejam adequadas. O princípio da adequação obriga a escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso. E para que respeite o princípio da proporcionalidade, a medida de coacção escolhida deverá manter uma relação directa com a gravidade do crime e com a sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos (cfr. Ac RL de 19-06-2019, Processo: 207/18.4PDBRR.L1-3 Relator: JOÃO LEE FERREIRA, in www.dgsi.pt). A prisão preventiva - que é a medida de coação mais gravosa, porque mais limitadora da liberdade - está sujeita a critérios de estrita legalidade, prevista como uma das exceções ao princípio enunciado no nº 2, do art. 27º da CRP. A sua natureza excecional e subsidiária encontra-se expressamente afirmada no nº 2 do art. 28º da C.R.P., nos termos do qual “a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.” O quadro legal da admissibilidade da prisão preventiva está estabelecido no art. 202º do CPP, preceito do qual decorre que o legislador, em consonância com o referente constitucional, fez depender a aplicação da prisão preventiva da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal. Ou seja, relativamente a medidas privativas da liberdade, as referidas exigências cautelares terão de ser de tal modo intensas que se deva concluir que não podem ser devidamente acauteladas com a aplicação de qualquer outra medida de coacção não privativa da liberdade, isolada ou cumulativamente, nos casos em que a cumulação é permitida. E, ainda que ao caso deva ser aplicada uma medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir ( cfr. nº 3, do art. 193º ). A prisão preventiva deve ser, de facto, a ultima ratio. No art.º 204º do CPP, são elencadas as exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coacção: “Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”. Revertendo ao caso dos autos, vemos que no despacho recorrido se considerou como verificado o perigo de continuação da atividade criminosa, o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e o perigo de perturbação do inquérito e para a instrução do processo, na vertente de conservação e veracidade da prova - artigo 204.°, n.° 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, justificando-se assim a aplicação à arguida das medidas de coação impostas. No que respeita ao perigo de continuação da atividade criminosa, é sabido que o juízo deve ter em conta a prática de crimes de natureza idêntica e a plausibilidade a reiteração criminosa deve aferir-se a partir das circunstâncias do caso concreto (quer anteriores, quer contemporâneas à conduta indiciada e relacionadas com esta) e da personalidade revelada pelo arguido (Ac. RC de 11-03-2009, in www.dgsi.pt). Escreve Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 3ª ed. revista e atualizada, 2002, págs. 268 e 269.: “o fundamento da medida de coação referido na alínea c) do art. 204º deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada. O perigo de continuação da atividade criminosa há de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade. tentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido pode ser de recear a continuação da atividade criminosa, o que importa evitar e a lei permite que para tal sejam aplicadas medidas de coação. Assim, por ex., se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pode justificar-se a prisão preventiva. A aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado” Justificou o Tribunal recorrido a existência deste perigo, como podemos ver na transcrição que supra consta. E, de facto - e tal como assinala o juiz ao quo - o arguido demonstrou, ao praticar os factos em causa nos autos, possuir uma personalidade impulsiva e violenta e não se deixar intimidar pelos contactos que já teve com o sistema de justiça. Salientamos, a este respeito, que o arguido foi já sujeito a deveres e regras de conduta no âmbito de uma suspensão provisória do processo, pela prática deste mesmo crime de violência doméstica, que esteve preso preventivamente em França e que foi sujeito à medida de coação de proibição de contactar com a aqui vítima no âmbito do processo 8/24...., pela prática deste mesmo crime contra esta mesma vítima. O arguido não se deixou, pois, intimidar e, incapaz de controlar os seus impulsos, não conteve a agressividade e violência e retomou comportamentos desconformes ao Direito, praticando os factos acima descritos, que são graves. Para além duma personalidade temerária, impermeável à ação da justiça e ao dever-ser jurídico penal, o arguido demonstrou efetivamente, ao praticar os factos em causa neste processo, possuir uma personalidade egoísta e violenta, dificuldades de controlo de impulsos, falta de empatia para com a vítima, mostrando-se indiferente ao sofrimento que lhe causou e não respeitando a vontade da vítima em pôr cobro à relação que com ele mantinha, impondo-se à vítima, procurando-a e ameaçando-a. Daí que se conclua, tal como o fez o tribunal recorrido, que considerando estas características de personalidade que estiveram na base da atuação do arguido, há uma elevada probabilidade de que ele, tendo para tanto oportunidade, volte a praticar factos criminosos sobre a vítima, da mesma natureza daqueles que aqui estão em causa ou inclusivamente com consequências mais graves. Temos ainda o perigo para a conservação ou veracidade da prova. De facto, estando o arguido ciente da gravidade dos crimes em causa nos autos e da séria probabilidade de vir a ser condenado e temendo a aplicação de uma pena de prisão efetiva, tudo fará certamente para impedir que novas provas se conjuguem contra ele, não tendo pejo certamente em usar do ascendente que tem perante a ofendida para a forçar a alterar o depoimento já prestado, caso entenda que tal é necessário para evitar a sua responsabilização. Quanto à perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, a verdade é que numa sociedade cada vez mais global, dificilmente os cidadãos em geral compreenderão e aceitarão – e, por isso, dificilmente será compatível com a preservação da ordem e tranquilidade públicas, enfim, com a paz social – que atenta a natureza, gravidade, circunstâncias do crime e personalidade demonstrada pelo arguido ao praticar o mesmo (nas circunstâncias conhecidas em que o praticou), este não fosse sujeito a uma medida de coação detentiva. Parece-nos pois claro que as exigências cautelares acima expostas, mas sobretudo o perigo de continuação da atividade criminosa, que é o mais intenso, impõem a aplicação de uma medida de coação detentiva, tudo residindo em saber se se impõe a prisão preventiva ou se é suficiente a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, associada às medidas de coação de proibições de condutas que se entendam adequadas, como reclama o arguido. Ora, julgamos que, atenta intensidade do referido perigo, apenas a aplicação da medida de coação de prisão preventiva conseguirá conter o arguido e impedi-lo, por essa via, de praticar novos factos criminosos. A medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mesmo sob vigilância eletrónica (artigo 201.º do Código de Processo Penal), não é uma medida eficaz e suficiente para obstar à continuação da prática da actividade criminosa, pois não impede que o arguido, num ato de impulsividade (sendo que a sua natureza é impulsiva, como acima se referiu), saia de casa e repita comportamentos sobre a vítima de idêntica natureza ou até mais graves. Isto porque a vigilância eletrónica detecta afastamentos do arguido da residência mas não os impede. Acresce que a prisão preventiva é proporcional à gravidade dos crimes e às penas que previsivelmente lhe serão aplicadas, atenta a moldura penal cominada e as circunstâncias do caso concreto. Em conclusão, encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer. Em consequência, é de desatender à pretensão do recorrente. Improcede integralmente o recurso, mantendo-se o recorrente em prisão preventiva.
* IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam as Juízas da 5ª secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. * Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
* Coimbra, 19-02-2025 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques (Juíza Desembargadora Relatora) Cristina Branco (Juíza Desembargadora Adjunta) Maria Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora Adjunta)
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