Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ MATOS | ||
Descritores: | CONFISSÃO DO ARGUIDO DECLARAÇÃO DOS FACTOS IMPUTADOS COMO PROVADOS IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUE CONSIDEROU A CONFISSÃO DO ARGUIDO VÁLIDA IMPUGNAÇÃO DOS FACTOS JULGADOS PROVADOS COM BASE NA CONFISSÃO DO ARGUIDO PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS AUTOMÓVEIS | ||
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Data do Acordão: | 12/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 125.º E 344.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGO 69.º DO CÓDIGO PENAL | ||
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Sumário: | I - Resulta do artigo 125.º do C.P.P. que são permitidos, por regra, todos os meios de prova que não atentem contra a dignidade da pessoa humana, nem contra os princípios penalmente relevantes.
II - Um dos meios de prova admitidos por lei reside nas declarações do arguido. III - A confissão livre, integral e sem reservas faz prova plena dos factos, sem necessidade de corroboração por outro meio de prova, determina a consideração dos factos imputados como provados, não se admitindo qualquer alteração, revisão ou condição dessa factualidade. IV - Pode ser impugnada por via de recurso a decisão judicial acerca do carácter livre, integral e sem reservas da confissão feita pelo arguido, mas não o pode ser a consideração como provados dos factos confessados, seja a que título for, nomeadamente com a invocação de eventuais causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. V - A pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal não tolhe qualquer garantia constitucionalmente garantida no artigo 30.º da Constituição da Republica Portuguesa. | ||
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Decisão Texto Integral: | …
RELATÓRIO
…, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido … Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
O arguido não apresentou contestação, nem requerimento de prova.
Foi levado a efeito o julgamento, findo o qual veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:
. Condenar o arguido … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal: a) na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, e, b) na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, pelo período de 4 (quatro) meses, devendo o arguido apresentar a respectiva carta de condução, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste tribunal, ou em qualquer posto policial, sob pena de não o fazendo poder incorrer na prática de um crime de desobediência, . Condenar o arguido nas custas do processo e respetivos encargos, tendo sido fixada a taxa de justiça de 1 (uma) Unidade de Conta, atendendo à confissão, simplicidade da causa e duração do julgamento. . Considerando que o arguido foi detido no âmbito destes autos, nos termos do disposto no artigo 80º do Código Penal, foi determinado o desconto de 1 (um) dia à pena única de multa a que o mesmo ora vem condenado, por efeito da detenção sofrida, sendo liquidada, assim, a mesma em 74 (setenta e quatro) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o montante de € 444,00 (quatrocentos e quarenta e quatro euros).
Inconformado com tal decisão condenatória, o arguido … interpôs recurso, que se apresenta motivado e com as seguintes conclusões, após convite ao respectivo aperfeiçoamento:
a) O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o Arguido na pena acessória de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do artigo 69.º do CP; b) O tribunal a quo deu, designadamente, como provado que: … c) O tribunal a quo aplicou ao Arguido a pena acessória de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir veículos motorizados; d) O direito de necessidade e a forma desculpante do estado de necessidade determina, pois, a exclusão da ilicitude do Arguido no caso concreto. e) Para a exclusão da ilicitude prevalecer, tem de se tratar de um perigo atual não suscetível de ser conjurado de outro modo. f) Da factualidade apurada observa-se que o Arguido procedeu à condução do seu veículo na via pública, não obstante se encontrar embriagado. g) O Arguido apenas conduziu o automóvel por se ter visto confrontado com uma situação que representava perigo iminente (atual) para a sua integridade física e de terceiros. … j) O Arguido confessa que no dia da prática dos factos (23/03/2024), realizou um lanche para a sua família, na sua habitação, sita em … … l) Pelas 18h e 30m, o Arguido apercebe-se que a – cerca de – 100 (cem) metros da sua habitação, num terreno contiguo ao seu, estavam a decorrer queimadas com grande ignição. m) Contactou a GNR com o intuito de perceber se os responsáveis pelas referidas queimadas, possuíam o licenciamento/autorização necessárias para as referidas queimadas. n) A fonte de ignição (queimadas) era tanta, que o Arguido suspeitou que as referidas queimadas não poderiam estar a ocorrer, ainda para mais, ao final do dia e com aquela intensidade e calor. o) O terreno onde se realizavam as queimadas, era contiguo à habitação e terreno do Arguido. p) O Arguido deslocou-se até ao local, na sua viatura (carrinha), transportando dois “bidões” com água. q) Percorreu – cerca – de 100 (cem) metros com a sua viatura. r) Chegou ao local e estacionou na berma da estrada. s) Metade do veículo do Arguido ficou estacionado na via e a outra metade no terreno onde se realizavam as queimadas. t) Os Agentes da GNR já se encontravam no local (no terreno onde se realizavam as queimadas). … v) Após a referida explicação ao Arguido, um dos Agentes questionou o Arguido se a viatura estacionada era sua e se podia retirar o veículo da estrada. w) O Arguido acatou a “ordem” dos Agentes, entrou na viatura e percorreu cerca de 5 (cinco) metros, retirando a viatura do eixo da via (berma). x) Após sair do veículo, o Agente da Autoridade solicitou que o Arguido realizasse o exame de álcool. y) O Arguido acatou a ordem do Agente e soprou no balão, tendo acusado a referida taxa crime. z) Os factos referidos anteriormente foram confessados pelo Arguido e dados como provados em audiência de julgamento. … hh) Conclui-se, destarte, que o Recorrente atuou ao abrigo do direito de necessidade, e, em conformidade, de uma causa legal de exclusão da ilicitude do facto (cf. arts. 31.º, n.º 2, al. b), e 34.º do Código Penal), pelo que se considera justificada a conduta atinente à condução de veículo em estado de embriaguez, impondo-se a sua absolvição. …
Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, …
O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer …
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.
Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:
II. FUNDAMENTAÇÃO A) DOS FACTOS 1. FACTUALIDADE PROVADA Discutida a causa, resultaram como provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos: . No dia 23/03/2024, pelas dezanove horas e trinta minutos (19h30), em … o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula … . Uma vez submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado apurou-se que o arguido efetuava a condução do mencionado veículo automóvel sob influência de álcool revelando uma taxa de álcool de pelo menos 2,16 gramas de litro após deduzido o erro máximo admissível. . Ao agir como descrito, o arguido atuou de modo livre e voluntário tendo perfeito conhecimento que não podia conduzir o mencionado veículo na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas impedindo-o de efetuar uma condução prudente, influenciando de igual modo a sua capacidade de destreza, atenção e segurança com perfeita consciência da reprovabilidade do seu comportamento. . O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente pois sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e ainda assim não se coibiu de a praticar. … No que diz respeito à convicção alcançada pelo Tribunal, no entender do Tribunal provaram-se todos os factos com interesse para a decisão da causa e a convicção alcançada pelo Tribunal assenta essencialmente naquelas que foram as declarações prestadas nesta audiência pelo arguido, o qual confessou de forma integral e sem reservas os factos pelos quais vem acusado e, para além deles, aduzindo a explicação que o Tribunal atentou relativamente ao circunstancialismo que (impercetível) essa atuação do arguido. …
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DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente …, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:
. Impugnação da sentença, por erro de direito, dada a existência de direito de necessidade ou estado de necessidade desculpante, implicando a sua absolvição;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, por erro de interpretação e aplicação dos artigos 69º e 71º do Código Penal, sendo excessiva a pena acessória.
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DECISÃO
Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.
O recorrente … inicia a sua impugnação alegando que, conforme a confissão operada em julgamento, adiantou que no dia da prática dos factos, concretizou um lanche para a sua família, na sua habitação, … Outrossim que, nessa ocasião, por volta das 18h30, se apercebeu de que a cerca de 100 metros da sua habitação, num terreno contiguo, estavam a decorrer queimadas com grande ignição, razão porque logo contactou a Guarda Nacional Republicana com o intuito de aperceber se os responsáveis pelas referidas queimadas possuíam o licenciamento para o efeito. Ademais, alega, após tal contacto, deslocou-se até ao local, na sua viatura automóvel, transportando dois bidões com água, isto para o caso de acontecer alguma ignição descontrolada que, eventualmente, pudesse criar um incêndio. Mais alude que naquele local já se encontrava aquela força policial, que lhe deram conta das diligências encetadas e lhe determinaram que removesse a sua viatura para a berma, tendo percorrido cerca de 5 metros, vindo a ser-lhe solicitado, após a saída da viatura, pelo agente de autoridade que soprasse no balão, por se lhe afigurar que “tinha álcool”, ordem que acatou, soprou ao balão e acusou a taxa de alcoolemia considerada. Considera, todavia, que ressuma de toda a factualidade provada que procedeu à condução da seu veiculo na via publica, não obstante se encontrar embriagado, por se ter visto confrontado com uma situação que representava um perigo iminente e actual para a sua integridade física e da sua família, assim concluindo que actuou ao abrigo do direito de necessidade, e em conformidade, de um causa legal de exclusão da ilegalidade do facto, nos termos prevenidos nos artigos 31º, nº 2, alínea b) e 34º do Código Penal, pugnando, assim, pela sua absolvição, na medida em que a sua conduta se apresenta justificada.
Conheçamos
Compulsados os autos verificamos que o Ministério Publico deduziu acusação, em Processo Especial Sumário e para julgamento perante Tribunal Singular contra o arguido, ora recorrente …, pela prática dos seguintes factos:
. No dia 23.03.2024, pelas 19:30horas, em … o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula … . Uma vez submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, apurou-se que a arguida efectuava a condução do mencionado veículo automóvel sob influência do álcool, revelando a TAS de pelo menos 2,16gr/l, após deduzido o erro máximo admissível. . Ao agir como descrito o arguido actuou de modo livre, voluntário, tendo perfeito conhecimento de que não podia conduzir o mencionado veículo na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas, impedindo-o de efectuar uma condução prudente, influenciando de igual modo a sua capacidade de destreza, atenção e segurança, com perfeita consciência da reprovabilidade do seu comportamento. . O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, pois sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e, ainda assim, não se coibiu de a praticar.
Imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
Uma vez sujeito a julgamento, conforme decorre da respectiva acta, o ora recorrente, arguido nos autos, decidiu prestar declarações, confessando a integralidade dos factos que lhe são imputados. Face a tal declaração confessória de todos os factos imputados na acusação veio a ser questionado pela Meritíssima Juiz de Direito, se tal confissão era feita de forma livre, fora de qualquer coação, integral e sem reservas, tendo o mesmo respondido afirmativamente. Razão por que, em cumprimento da lei adjectiva penal, e face àquelas declarações confessórias prestadas pelo arguido, aquela Meritíssima Juiz de Direito concedeu a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e ao Ilustre Mandatário arguido, tendo ambos referido nada terem a opor à confissão do arguido, tendo mesmo, a Digna Magistrada do Ministério Público declarado prescindir das duas testemunhas arroladas em sede da acusação pública. Não obstante, seguidamente, foram tomadas declarações complementares ao arguido quanto à sua situação pessoal, social e económica.
No nosso sistema adjectivo penal são permitidos, por regra, todos os meios de prova que não atentem contra a dignidade da pessoa humana, nem contra os princípios penalmente relevantes, conforme se acha prevenido no artigo 125º do Código do Processo Penal. Esta inexistência de limites quanto ao uso de meios de prova, desde que não feridos de ilegalidade, põe em evidencia a importância que o princípio da descoberta da verdade material tem no nosso sistema processual. Contudo, ainda que principio e finalidade do próprio procedimento, tendo o direito processual penal a natureza de direito constitucional aplicado, nunca o legislador processual pode admitir a restrição de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, em busca da verdade material, para além do que a própria Constituição permite.[3] Assim o direito probatório, intrinsecamente ligado às normas relativas à produção de prova e respectiva valoração, constitui um factor essencial para qualquer processo. Como o salienta Germano Marques da Silva “A actividade probatória destina-se toda a convencer da existência ou não dos factos que são pressuposto da estatuição da norma”[4] sendo que “a premissa menor do chamado silogismo judiciário é precisamente constituído pela situação concreta, factual, subsumível à premissa maior que é constituída pela previsão normativa. A aplicação das consequências jurídicas previstas na norma (estatuição) está, pois, dependente da prévia demonstração da ocorrência dos factos descritos hipoteticamente na previsão da norma. É a esta demonstração que se dirige a actividade probatória”.[5] Tal demonstração só será possível através dos meios de prova. E, pese embora, a nossa lei adjectiva penal não defina meio de prova, não deixa, contudo, de delimitar o respectivo objeto - constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, conforme se aduz no nº 1 do artigo 124º do Código do Processo Penal. Entre esses meios de prova encontramos as declarações do arguido.[6]
Centrando-nos nas declarações produzidas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, quando as mesmas assumem natureza confessória, temos estipulado o respectivo regime no artigo 344º do Código do Processo Penal, do qual ressuma que aquela confissão só tem eficácia se forem respeitados os requisitos impostos pela lei, apenas, assim, sendo admissível como meio de prova.
Estipula, pois, aquele normativo, sob a epigrafe “Confissão”, que: …
Entendemos, pois, ser de concluir, na senda da lição de Teresa Beleza que a confissão do arguido para que seja integralmente valorada tem, necessariamente, de respeitar as exigências que a lei estabelece e, ainda, algumas das suas limitações. Afirma aquela autora que “o art. 344º do actual Código permite ao tribunal condenar um arguido com base, exclusivamente, numa confissão.”[7] E, assim, é. Para tanto a confissão tem de ser prestada em julgamento, de modo livre, ser integral e sem reservas. Todavia, como alude a mesma autora, o tribunal pode sempre pôr em causa o carácter livre e espontâneo da confissão, «nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido» e pode duvidar da veracidade dos factos confessados, conforme reza a alínea b) do nº 3 do art. 344º.[8] Tudo de molde a concluir, pois, que o nosso direito veio a estabelecer uma grande mudança relativamente à relevância probatória da confissão, uma vez que, actualmente, a confissão fará prova plena, sem necessidade de corroboração, sendo certo, porém, que o tribunal tem uma margem de liberdade na aceitação ou rejeição da confissão, situação que nos afasta do modelo anglo-americano, não sem que considere que “assim sendo, o art. 344º do Código de Processo Penal, mais do que estabelecer uma verdadeira e plena excepção ao princípio da livre apreciação, dá ao juiz uma série de linhas de orientação que devem presidir à valoração da confissão.”[9]
Volvendo ao caso dos autos é esdrúxulo que, na sequência de confissão integral e sem reservas, operada pelo arguido, ora recorrente, em sede de julgamento, perante a Meritíssima Juiz de Direito, a Digna Procuradora de Republica e o Excelentíssimo Mandatário, vieram a ser julgados provados todos os factos constantes da acusação publica. Ademais tal confissão ficou exarada em acta, de onde promana o rigoroso cumprimento das exigências previstas no artigo 344º da lei processual penal. E se é certo que, na sequência da confissão integral e sem reservas operada pelo arguido, a Digna Magistrada do Ministério Publico declarou prescindir das duas testemunhas arroladas em sede da acusação pública, o Tribunal não obstou a tomar declarações complementares ao arguido quanto à sua situação pessoal, social e económica. Faculdade que assiste ao juiz de julgamento, já que num sistema adjectivo penal integrado pelo princípio da investigação, como é o Código de Processo Penal vigente em Portugal, perspectivando-o, no que à aquisição e valoração da prova implica, que a condução e esclarecimento da matéria factual não pertence apenas aos sujeitos processuais – que não “partes” – mas ainda, e em primeiro lugar e como última instância, ao julgador. Isto é, a actividade jurisdicional não se limita ao controlo da legalidade dos actos, como ainda sobre o magistrado impende, como salienta Jorge Figueiredo Dias[10] “o dever de investigação judicial autónoma da verdade”
É certo que, no cumprimento desse seu dever, a Meritíssima Juiz de Direito fez assentar factos contemporâneos ao acto da condução sob o efeito do álcool, sendo certo, até, que os alinhou para o momento da escolha das penas concretas. Ademais não se eximiu, a nosso ver, ainda que modo incorrecto - face à apreciação lavrada quanto à validade da confissão e respectiva valoração - de enquadrar juridicamente tais factos, afastando a existência de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou justificação da culpa. Todavia aquela confissão, integral e sem reservas, com o valor probatório consignado na nossa lei processual não se acha beliscada no que à sua validade assiste, posto que tendo confessado os factos constantes da acusação, os mesmos vieram a ser consignados no segmento probatório dos factos provados, face ao disposto no nº 2, alínea a) do artigo 344º do Código do Processo Penal, factualidade esta que não admite qualquer alteração, revisão ou condição, na medida em que aquela confissão foi integral e sem reservas. Por outro lado, e pese embora tal confissão ter sido operada em sede de julgamento perante a Meritíssima Juiz de Direito, na presença da a Digna Magistrada do Ministério Publico e do Excelentíssimo Mandatário do arguido, que expressamente afirmaram nada terem a opor a tal confissão e à consideração da sua validade, nos termos a que alude o artigo 344º do Código do Processo Penal, o certo é que, em sede recursal, sempre poderia ter sido impugnada a decisão judicial acerca do caracter livre, integral e sem reservas daquela confissão[11], mas tal não ocorreu.
Vale tudo por dizer, assim, que não tendo o ora recorrente, arguido nos autos, colocado em crise a confissão operada, atenta a respectiva natureza, não pode pretender, em sede de recurso, alterar o espólio factual provado, mediante a apreciação de eventuais causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. A assentada do espolio factual dado como assente é consequência dessa confissão integral e sem reservas que foi livremente operada e, nessa medida, mantendo-se intactos os pressupostos de validade e eficácia da confissão não poderá tal espolio factual ser objecto de qualquer alteração, revisão ou sujeito a qualquer condição.
Contudo, ainda que assim não ocorresse, atento o espolio factual assente não se verifica o preenchimento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, tal como explicitado na sentença recorrida.
Importa, assim, concluir pela improcedência da lide recursal do recorrente, no qua tal matéria atina, sendo de manter a decisão recorrida.
O ora recorrente … ultima a sua lide recursal alinhando que o Tribunal recorrido levou a efeito uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 40º e 71 do Código Penal, afirmando, assim, que a pena acessória aplicada se apresenta excessiva. Alega, para o efeito, que as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção devem determinar a concretização de tal pena. Outrossim aduz que tem a profissão de vendedor de materiais de construção, utilizando o automóvel como instrumento de trabalho, acrescentando que, por não ter condições de contratar um motorista, a pena aplicada causar-lhe-á inúmeros prejuízos que podem coloca-lo numa situação de absoluta carência económica, atentos os encargos bancários e despesas básicas que tem a seu cargo, o que acarretará problemas sérios na sua vida profissional e pessoal.
Conheçamos
Estabelece o artigo 40º do Código Penal, sob a epígrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança” que: 1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. 3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
Corolário do princípio vertido no artigo 18º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa, o que consagra o princípio da proporcionalidade – posto que ao Direito Penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se, por um lado, na necessidade de subtrair à disponibilidade da pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdade e garantias e, por outro, a preservação dos bens jurídicos essenciais da comunidade, a pena está subordinada à verificação dos seguintes parâmetros:
a) Tem de ser a adequada face aos fins visados pela lei; b) Tem que ser a necessária posto que os fins visados pela lei têm que ser obtidos pelos meios menos onerosos para os direitos; c) Tem que ser justa, por não ser a restritiva, desproporcionada e excessiva face aos fins visados na lei.[12]
…
…[13] …[14] …
…
Estipula o mencionado artigo 69º do Código Penal, sob a epígrafe de “Proibição de conduzir veículos com motor” que: … Firmando-nos nos princípios vertidos no artigo 40º do Código Penal e atendo-nos à ponderação de todo o sedimento factual que ressuma da decisão recorrida, somos de concluir que a pena acessória de 4 meses de proibição de conduzir veículos motorizados, de acordo com o nº 1 do artigo 69º da lei substantiva penal, é a que se mostra justa, necessária e adequada face aos fins visados pelas penas. Para o efeito havemos de considerar a modalidade da acção e o grau de ilicitude com que foi perpetrada, nomeadamente o grau de alcoolemia, uma TAS de 2,16 g/l, não desguarnecendo as necessidades de prevenção geral. Determinante para o efeito é, ainda, a ausência de antecedentes criminais e as atenuadas exigências de prevenção especial.
As imposições da versada pena acessória, nos termos assim gizados, nessa medida, não tolhem qualquer garantia constitucionalmente garantida ao arguido, ora recorrente, nos termos gizados no artigo 30º da Constituição da Republica Portuguesa.
…
J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira após darem nota que tal norma “levanta algumas dificuldades de interpretação” e logo afastando que a mesma “seguramente não proíbe que as penas consistam, elas mesmas, na perda desses direitos”, salientam que “o que se pretende é proibir que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecanicamente, independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra «pena» daquela natureza”, tudo para, num passo final, esclarecerem que “a teleologia intrínseca da norma consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir que, de forma mecânica, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou politica do cidadão.”
Vale tudo por dizer que, atentos os fundamentos de facto e de direito aludidos, será de julgar pela improcedência da lide recursal do recorrente …, ainda no que atende à medida da pena acessória aplicada.
* DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido … e, em consequência, mantém integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo do arguido que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta).
O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.
Coimbra, 11 de Dezembro de 2024 Maria José dos Santos de Matos Maria José Guerra Helena Lamas [1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271. [2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82. [3] Vide Rui da Silva Leal, “Eu sou arguido…amanhã. Os direitos de garantia”, in. Que futuro para o processo penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, p. 120. [4] “Curso de Processo Penal”, Volume II, 5ª Edição, Editorial Verbo, 1993, p. 78 [5] Curso de Processo Penal”, Volume II, 5ª Edição, Editorial Verbo, 1993, página 78, nota 1. [6] Vide por todos os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no Processo nº 1830/08.2 com data de 09/02/2009 e do Tribunal da Relação de Évora prolatado no Processo nº 734/10.1PAPTM.E1 com data de 14/07/2015, publicados em www.dgsi.pt [7] «Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do depoimento de coarguido no Processo Penal português”, in Revista do Ministério Público, nº 74, página 52. [8] «Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do depoimento de coarguido no Processo Penal português”, in Revista do Ministério Público, nº 74, página 53. [9] «Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do depoimento de coarguido no Processo Penal português”, in Revista do Ministério Público, nº 74, página 54. [10] Direito Processual Penal I, 193 [11] Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado no Processo nº 13/20.6GHCVL.C1com data de 26/04/2023, disponível em www.dgsi.pt [12] Constituição da Republica Portuguesa Anotada, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 4ª edição, 392 e 393. [13] Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os fundamentos da doutrina Penal/Sobre a doutrina geral do crime, Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 104 e seguintes. [14] Acórdão de 04/03/2015, proferido no processo nº 30/14.5PAACB.C1, publicado na dgsi.pt. |