Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
273/23.0GCPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: PROVA PROIBIDA
GRAVAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DO VISADO
CRIMES COMETIDOS EM LOCAIS NÃO PÚBLICOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA RECÍPROCA
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 152.º E 199.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 126.º, N.º 3, 167.º E 204.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - A gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado, como é o caso de crimes cometidos em locais não públicos, sem outras testemunhas, dos quais muito dificilmente se obteria prova, não fora a gravação.

II - Nos casos, não muito frequentes, de violência doméstica recíproca e grave, em que não é possível atribuir a qualquer dos cônjuges maior responsabilidade, mantendo-se ambos inflexíveis e irredutíveis, sendo muito sério o perigo de continuação e escalada da actividade criminosa, justifica-se que ambos sejam proibidos de permanecer na e frequentar a casa de morada da família.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Maria José Guerra
Rosa Pinto
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Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo de Instrução Criminal de Leiria, por despacho de 05/07/2024, foram aplicadas medidas de coacção aos Arg.[1] AA … e BB …, com os restantes sinais dos autos, nos seguintes termos:

“… «I- Factos fortemente indiciados:


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II- Motivação:

A factualidade indicada resulta da análise critica e conjunta da prova indicada na promoção do Ministério Público, nomeadamente:

Testemunhal:

Documental:

- CD´s com áudios e transcrições constantes a fls. 399-454, 460-466;

- Fotografias, fls. 420-425, 455-457, 492

Para além da prova indicada pelo Ministério Público no despacho de sujeição dos arguidos a interrogatório Judicial, foi possível verificar, em função das declarações prestadas pelos arguidos nessa qualidade e enquanto ofendidos, que tais factos se verificaram, sendo que as ofensas e as tentativas de agressão permanecem até à atualidade.


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III - Qualificação jurídica dos factos:

Resulta fortemente indiciado a prática por cada um dos arguidos, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, alínea a) e nºs 4 e 5 do Código Penal, cuja moldura penal em abstrato aplicada é de dois a cinco anos de prisão.


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IV - Medidas de Coação:

Determina o artº 193º do CPP que as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.

Na aplicação da medida de coação há que ponderar a gravidade do crime praticado, a personalidade do delinquente e a necessidade da medida de coação ao caso concreto.

Determina, pois, o artigo 204º, nº. 1, als. a) a c), do CPP que nenhuma medida de coação, à exceção do Termo de Identidade e Residência, pode ser aplicada se, em concreto se não verificar: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Os requisitos enunciados no artigo 204º do CPP são alternativos, bastando que exista algum deles para que, conjuntamente com os especiais previstos na medida de coação, essa medida possa ser aplicada.

No caso concreto estando em causa um crime de violência doméstica impõe-se de acordo com o disposto no art. 20º da Lei nº. 112/2009 de 16 de setembro assegurar um nível adequado de proteção à vítima e, sendo caso disso, à sua família ou a pessoas em situação equiparada, nomeadamente no que respeita à segurança e salvaguarda da vida privada.

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V - Exigências cautelares e Medidas de Coação.

No caso presente, é manifesto o perigo de continuação da atividade criminosa a que alude o artigo 204º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Tal perigo resulta da natureza dos factos indiciados, verificando-se que primordialmente desde 2023 os mesmos se têm vindo a intensificar, como insultos, agressões verbais, ameaças e tentativa de agressão física praticados por ambos os arguidos um contra o outro.

No âmbito deste inquérito foi tentado no dia 18-06-2024 uma acareação tendo os arguidos mantido as suas versões, ou seja, negando a factualidade cuja autoria lhes é imputada e confirmando a veracidade dos factos de que são vítimas. Após a realização desta diligência, logo no dia 19-06-2024, foram comunicados aos autos novos factos relativos a um desentendimento ocorrido entre ambos, no interior da habitação também de ambos.

Das declarações prestadas neste interrogatório, resulta evidente que o conflito já ultrapassou a relação do casal, estendendo-se também a um filho de ambos que vive numa casa pertença do ainda casal. Subjacente ao conflito atual estão questões de ordem patrimonial, de ciúmes, de um manifesto desgaste da relação entre os arguidos e falta de respeito mútuo.

Neste enquadramento, existe o risco fundamentado de ocorrerem novos factos, os quais podem assumir contornos mais graves, estando em causa a salvaguarda da vida e da integridade de ambos os arguidos/ofendidos.

Os arguidos foram questionados relativamente à possibilidade de partilharem a casa em condições que fosse evitado o contacto entre ambos, uma vez que o Tribunal está ciente dos rendimentos auferidos por ambos, da existência de animais que dependem do cuidado dos arguidos e, ainda, da situação referente a um filho maior de idade que padece de deficiência mental e que, apesar de estar institucionalizado, passa em casa os fins de semana. Não obstante, tal não foi possível, mantendo-se os arguidos irredutíveis na sua posição, recusando cada um deles sair da habitação e imputando essa responsabilidade ao outro.

Ora, os factos imputados a cada um dos arguidos assumem uma gravidade semelhante, os rendimentos são igualmente semelhantes, dado que é o arguido que assume o pagamento de despesas fixas, quer referentes a consumos domésticos, quer referentes a encargos decorrentes de bens móveis e imóveis de que ambos são proprietários. Os arguidos, apesar das suas idades, apresentam autonomia e capacidade física semelhante. A casa onde ambos residem é património comum do casal.

Assim, não existe nenhum facto ou circunstância que permita ao Tribunal optar pela permanência de um em detrimento do outro, dado que ambos recusam sair da casa, recusam partilhar a mesma e alegam incapacidade económica para obterem uma habitação alternativa. No que concerne a este último ponto, estamos em crer que ambos os arguidos podem solucionar a sua situação, uma vez que, no âmbito do processo de divórcio, foi arrolado como pertencente a ambos um valor próximo de cem mil euros.

Assim, em caso de necessidade e estando os mesmos representados por advogado podem diligenciar pela obtenção do valor que necessitem para garantirem uma habitação até que consigam a partilha do património comum, dado que já se encontra pendente a ação de divórcio.

O Tribunal não pode ser indiferente à situação atual em que os mesmos se encontram, dado que, como já se deixou exposto, se teme uma intensificação dos conflitos com consequências mais gravosas do que as verificadas até à presente data.

Assim, neste circunstancialismo, consideram-se proporcionais e adequadas as medidas de coação promovidas pelo Ministério Público, sendo as mesmas necessárias para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa, não se vislumbrando a aplicação de qualquer outra que no imediato garanta a proteção dos ofendidos


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VI - Decisão:

Face ao que se deixa exposto, ao abrigo dos artigos 191º a 193º, 196º, 200º nº 1, alíneas a) e d) e 204°, nº1, alínea c), do Código de Processo Penal e 31º, nº 1, alíneas c) e e), da Lei nº 112/2009, de 16/09, decide-se que os arguidos … e … aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos, para além do termos de identidade e residência já prestados, às seguintes medidas de coação:

- proibição de permanecerem e de frequentarem a casa sita na Rua ..., ..., ..., concedendo-se o prazo de quinze dias para abandonarem a mesma;

- proibição de os arguidos contactarem um com o outro e por qualquer meio. ...”.


*

Não se conformando, a Arg. AA … interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, que concluiu da seguinte forma:

“… 1) A medida de coacção aplica à Arguida … mostra-se excessiva, violando os princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (arts. 191.º e 193.º, do CPP), na aplicação desta medida.

2) A imposição à Arguida de afastamento da habitação constitui uma medida bastante gravosa, pois posterga um direito fundamental – direito à habitação – e pode afectar profundamente a socialização da Arguida, designadamente quando não tenha meios económicos que lhe permitam acolher-se noutro local ou familiares/ amigos que o recebam, ou sequer de conseguir, com o seu rendimento, conseguir habitação para si.

3) A sua aplicação viola a própria CRP, no domínio de restrição de direitos, liberdades e garantias em que, de harmonia com o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição, rege o princípio da proporcionalidade - também designado princípio da proibição do excesso -, por sua vez desdobrado em três sub-princípios: os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito.

4) Sucede que no caso dos presentes autos, a Meret.ª Juiz de Instrução não teve o acuidade de ponderar a diferente capacidade económica dos Arguidos, para fazer face à medida aplicada de afastamento.

5) Pois resulta à evidência, nos próprios autos, que os rendimentos do Arguido … são 3 vezes superiores ao rendimento da Arguida ….

6) Pelo que deverá a mesma ser revogada em relação à Arguida …

7) Deverá ainda ser revogado o despacho, proferido em ata de interrogatório, que indeferiu a nulidade invocada pela Arguida, nomeadamente no que concerne aos cds com áudios captados pelo Arguido …, obtidos sem o consentimento da Arguida …, uma vez os mesmos constituem prova proibida, atendo o disposto no artigo 167.º do Cód. Processo Penal.

8) Por conseguinte, entendemos que tais elementos constituem prova proibida, ex vi art. 167.º do CPP, por referência ao disposto no art. 199.º, n.º 2 do CP, não podendo ser valorados pelo tribunal, …

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, ...”.


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A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, …

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Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …

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É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a questão fundamental a decidir no presente recurso é a seguinte:

I – Utilização de prova proibida na fundamentação do despacho recorrido;

II – Verificação dos requisitos da aplicação, à Recorrente, da medida de proibição de permanecer e frequentar a casa de morada de família.


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Cumpre decidir.

I – O despacho recorrido fundamentou a sua decisão de facto na análise crítica e conjunta da prova indicada pelo MP, nomeadamente, “... CD´s com áudios e transcrições constantes a fls. 399-454, 460-466 ...”.

A Recorrente, em 05-07-2024, alegou que os mesmos constituem prova proibida.

Quanto a essa matéria, no interrogatório dos Arg., o tribunal recorrido proferiu despacho com o seguinte teor:

“... Veio a arguida invocar que se encontram junto aos autos CDs com áudios captados pelo arguido e obtidos sem consentimento da arguida, o que poderá indiciar a prática de um crime de gravações ilícitas, previsto no artigo 199º, nº 2, do Código Penal, entendendo assim que os mesmos constituem prova proibida atento o disposto no artigo 167º do Código de Processo Penal, não podendo ser valorados pelo Tribunal.

A presente diligência reporta-se à realização de interrogatório de ambos os arguidos pela indiciação do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal e visando a aplicação, a ambos os arguidos, das medidas de coação tidas por necessárias e adequadas.

Assim sendo, o Tribunal apenas poderá levar em consideração na decisão a proferir a prova indicada pelo Ministério Público no requerimento de folhas 505 e seguintes, concretamente a prova testemunhal e documental mencionada a folhas 507 frente e verso.

Na referida prova apenas é indicada por referência a áudios as transcrições constantes de folhas 399 a 454, de folhas 460 a 466.

As referidas transcrições foram juntas aos autos em 31 de maio de 2024, pelo arguido, sendo aí mencionado que estão em causa vídeos efetuados pelo arguido com recurso ao seu telemóvel nos dias 02-12-2023 e 20-12-2023, referindo-se ainda nesse requerimento que nas referidas gravações se encontram evidenciadas as injúrias e humilhações praticadas pela arguida em relação ao arguido e que as mesmas se destinam a fazer prova de tais factos.

Ora, se em termos abstratos poderá estar em causa a captação de imagens e a gravação de voz que poderá integrar a prática de um ilícito, também resulta indicado que tais elementos foram captados com o único objetivo de servirem de prova em relação a crimes praticados pela arguida sendo diretamente visado o aqui arguido/assistente.

Não se discutindo, nesta fase, se havia ou não consentimento prestado pela arguida, sempre se dirá que, em nossa opinião, não estará aqui em causa um método proibido de prova, dado que as gravações efetuadas foram feitas apenas com o objetivo da demonstração probatória de factos ilícitos de que foi vítima o arguido e constituem elemento essencial para prova dos mesmos. Importa ainda sublinhar que o meio a que recorreu se impunha pois constituía a única forma de provar factos de que era vítima.

Assim sendo, indefere-se o requerido pela arguida. ...”.

A gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado, não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado.

É o caso de crimes cometidos em casas particulares, como o presente, sem outras testemunhas, dos quais muito dificilmente se obteria prova, não fora a gravação.

Quanto a esta questão, porque se trata de uma argumentação exaustiva, com aplicação directa ao presente caso e com a qual concordamos inteiramente, passamos a citar o acórdão da RL de 23/05/2023[5]:

“... Em tese, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva, as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», (cfr. Costa Andrade in "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, 1992, p. 83).

Reflexo deste entendimento, encontra-se plasmado no artigo 126° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "métodos proibidos de prova", que refere, no seu n° 3, que "ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular".

Seguindo muito de perto a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, diremos que, sendo o processo penal «direito constitucional aplicado», "ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.°/ 3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187. CPP ou 6.° da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.° e 34.° da CRP".

Continua dizendo: "No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade. Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.° do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal" (cfr. Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, Proc. n° 10210/2008-9, disponível nas bases de dados da dgsi).

Aqui chegados, cumpre verificar se estamos ou não perante um crime de gravações ilícitas.

Assim, refere o n° 1 do artigo 199° do Código Penal que incorre na prática de um crime quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas" ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas".

Na senda de Costa Andrade, "o art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis". E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o Senhor Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida "sem consentimento", enquanto a fotografia só será ilícita quando produzida "contra a vontade", o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa (para maiores desenvolvimentos, cfr. Costa Andrade in "Comentário Conimbricense do Código Penal", em anotação ao artigo 199).

Mas voltemos ao caso...

A vítima B procedeu a gravações de uma conversa que o arguido teve consigo, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento. Encontram-se, por isso, preenchidos os elementos do tipo legal (artigo 199° do Código Penal).

Diríamos, portanto, numa análise mais superficial, que a gravação é ilícita e que, consequentemente, não poderá servir de meio de prova (nem tão pouco as transcrições da gravação, por dela decorrerem). Todavia, como bem chama a atenção o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, "ao estabelecer-se, no art. 167.° do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.

(...) Importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos crimes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) novas expressões de comportamento penalmente relevante», concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e necessidade do meio".

Idêntica jurisprudência, resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, onde se considerou que "as imagens recolhidas pela assistente só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal, por isso, importa apurar se a conduta da assistente integra um ilícito criminal". E acrescenta: "tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui a obtenção de imagens, mesmo sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento (como p. ex. estado de necessidade, legitima defesa) ou quando enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, Proc. n° 2499/08.8TAPTM.E1. No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.06.2012, Proc. n° 914/07.7TDLSB.L1-9, os dois disponíveis nas bases de dados da dgsi).

No caso em apreço, as gravações áudios reportam-se a discussões que o arguido teve com a vítima, aos berros, por vezes na presença do filho menor, onde a insultou, ameaçou e atormentou.

Resulta do teor das mesmas que o arguido se encontrava muito alterado e perturbado, o que é revelador de uma personalidade violenta e impulsiva. Não se coibiu de atormentar a sua ex-companheira, mesmo na presença do filho menor, diminuindo-a enquanto ser humano.

A vítima explicou em audiência de julgamento que sente medo do arguido e que as gravações foram a forma que encontrou de explicar o que se estava a passar, pois achava que ninguém iria acreditar em si ou até conseguir explicar por palavras suas o que se estava a passar com o arguido.

Encontramos um arguido descontrolado e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer).

De facto, analisado o teor das gravações e aquilo que a vítima relatou em audiência de julgamento, concluímos que esta se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido).

A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações.

Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal.

Em suma, o Tribunal conclui que a vítima B, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou, pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado.

E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal.

Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Código Penal, declaro válidas as gravações das conversações entre o arguido e a vítima B.» ...”[6].

É, justamente, o que se passa no presente caso.

Concluímos, pois, pela validade probatória das gravações em causa.

Improcede, pois, nesta parte o recurso.


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II – A Arg. Recorrente não põe em causa a existência dos indícios, nem do perigo de continuação da actividade criminosa referidos no despacho recorrido, mas discute as legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de proibição de permanecer e frequentar a casa de morada de família, que lhe foi aplicada.

A aplicação de qualquer medida de coacção, para além do TIR[7], pressupõe que se verifique, em concreto[8], fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (art.º 204.º do CPP[9]).

Para a proibição ou imposição de condutas, exige ainda a lei que o crime seja punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (art.º 197º/1 do CPP).

É a existência, em concreto, dos “perigos” enunciados no art.º 204° do CPP, e não a gravidade do/s crime/s indiciariamente cometido/s, que fundamenta a imposição de medidas de coacção, ainda que esta gravidade tenha relevância em termos de proporcionalidade e de previsão da pena a aplicar em julgamento (art.º 193º/1 do CPP)[10].

Aplicando os princípios decorrentes dos normativos citados ao caso em apreço, vejamos se os mesmos justificam a manutenção da aplicação da referida medida à Recorrente ou apontam para a sua substituição ou revogação.

O crime imputado à Arg. Recorrente admite a aplicação a medida aqui em causa.

Está estabilizada a existência do perigo de continuação da actividade criminosa.

Como consta do despacho recorrido, “... Os arguidos foram questionados relativamente à possibilidade de partilharem a casa em condições que fosse evitado  o contacto entre ambos, uma vez que o Tribunal está ciente dos rendimentos auferidos por ambos, da existência de animais que dependem do cuidado dos arguidos e, ainda, da situação referente a um filho maior de idade que padece de deficiência mental e que, apesar de estar institucionalizado, passa em casa os fins de semana. Não obstante, tal não foi possível, mantendo-se os arguidos irredutíveis na sua posição, recusando cada um deles sair da habitação e imputando essa responsabilidade ao outro. ... os factos imputados a cada um dos arguidos assumem uma gravidade semelhante, os rendimentos são igualmente semelhantes, ... não existe nenhum facto ou circunstância que permita ao Tribunal optar pela permanência de um em detrimento do outro, dado que ambos recusam sair da casa, recusam partilhar a mesma e alegam incapacidade económica para obterem uma habitação alternativa ... ambos os arguidos podem solucionar a sua situação, uma vez que, no âmbito do processo de divórcio, foi arrolado como pertencente a ambos um valor próximo de cem mil euros ...” (sublinhados nossos).

Subscrevemos, inteiramente, estes fundamentos e preocupações do tribunal recorrido.

Estamos perante um caso, não muito frequente, de violência doméstica recíproca e grave, em que não é possível atribuir a qualquer dos Arg. maior responsabilidade, mantendo-se ambos inflexíveis e irredutíveis, sendo muito sério o perigo de continuação e escalada da actividade criminosa.

Certamente que, se os Arg. se vierem a entender quanto à utilização provisória da casa de morada de família, a medida aqui em causa poderá ser alterada em conformidade.

Mas, quando foi proferido o despacho recorrido, momento relevante para a decisão do presente recurso, a existência daquele perigo e a sua intensidade, levavam, razoavelmente, à conclusão de que eram ajustadas e adequadas as medidas de coacção aplicadas a ambos os Arg./Ofendidos.

Assim, entendemos que a medida aqui posta em causa, atento o circunstancialismo apurado, se conforma, inteiramente, com os princípios da proporcionalidade, da necessidade, da adequação e da subsidiariedade, e está judiciosamente encontrada.

Improcede, pois, ainda nesta parte, o recurso.

Assinalamos que a situação resultante da aplicação destas medidas de coacção, suscita a necessidade continuar a tratar dos animais e plantas da casa onde ambos os Arg. viviam.


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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos o despacho recorrido, mantendo a medida da coacção aplicada, durante cuja execução se deve acautelar o tratamento dos animais e plantas da casa onde ambos os Arg. viviam.

Custas pela Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.


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Notifique.

D.N..


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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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Voto de vencida:

Votei vencida por entender que o despacho recorrido viola o princípio da necessidade.

Para acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa basta que seja aplicada a um dos arguidos a medida de coação de proibição de permanecer e de frequentar a casa …

De facto, nos termos do artigo 193º, nº 1, do Código de Processo Penal, “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.

Como bem explica Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar e outros, pág. 858, “o nº 1 consagra, no âmbito das medidas de coacção e de garantia patrimonial, o princípio da proporcionalidade, que tem sede constitucional no artigo 18º, nº 2, 2ª parte, da CRP. Este princípio desdobra-se em três subprincípios: da necessidade (as medidas restritivas são indispensáveis para obter os fins visados); da adequação (as medidas restritivas são idóneas para a prossecução dos fins visados); da proporcionalidade em sentido restrito ou proibição do excesso (as medidas restritivas não excedem os fins visados).

O princípio da necessidade (ou subsidiariedade) determina que seja selecionada a medida de coação estritamente indispensável para a promoção do fim visado; por outras palavras, o fim visado não pode ser obtido por outra medida menos gravosa para o arguido”.

O que o tribunal a quo não fez.

Assiste razão à recorrente quando defende que foi violado o princípio da necessidade, razão pela qual daria procedência ao recurso no que respeita à aplicação à arguida da medida de coação de proibição de permanecer e de frequentar a dita casa.

Rosa Pinto


[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4] Nesse sentido, ver Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pág. 1292.
Ver também a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que com a devida vénia, reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[5] Relatado por Jorge Gonçalves, no proc. 924/20.9PBCSC.L1, in www.dgsi.pt.
[6] No mesmo sentido, para além da já referida, veja-se a seguinte jurisprudência:
- acórdão da RE de 28/06/2011, relatado por José Maria Martins Simão, no proc. 2499/08.8TAPTM, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I – A obtenção das imagens da testemunha e do arguido através do videograma, instalado pela assistente tendo em vista a identificação dos autores do dano provocado na porta de entrada da sua habitação, não constitui um método proibido de prova, dado que existe uma causa de justificação para a sua obtenção, isto é, visava documentar uma infracção criminal e não diz respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada. II – A conduta da assistente constitui um meio necessário e apto ao exercício do seu direito de defesa pelo que está excluída a ilicitude da mesma.”;
-  acórdão do STJ de 28/09/2011, relatado por Santos Cabral, no proc. 22/09.6YGLSB.S2, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “... XIV – O artigo167 do CPP faz depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude face ao disposto na lei penal. Significa o exposto que a admissibilidade da prova depende da sua configuração como um acto ilícito em função da integração de tipos legais de crime que visam a tutela de direitos da personalidade como é o caso do direito á intimidade. Questão distinta é a ponderação sobre a eventual concessão de autorização pela Comissão Nacional de Protecção de Dados pois que esta poderá relevar para uma valoração do respeito pela legislação de protecção de dados, designadamente a Lei 67/98 (aplicável à videovigilância nos termos do seu art. 4.º/4) mas não define a licitude, ou ilicitude, da recolha ou utilização das imagens. (o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º, constituem o crime da previsão do art. 43.º dessa lei, pois tratando-se de uma conduta negligente haverá apenas a contra-ordenação cominada no antecedente artigo 37.º).Como A verificação da existência, ou não, de licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de videovigilância no prédio do assistente poderá eventualmente, integrar desrespeito pela legislação de protecção de dados, designadamente a Lei 67/98, aplicável à videovigilância nos termos do seu art. 4.º/4. XV-É criminalmente atípica a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente, constituindo único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado. ...”;
- acórdão da RG de 19/10/2015, relatado por Luís Coimbra, no proc. 1348/13.0PBBRG.G1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... Dispõe o art. 125º, do Cód. Proc. Penal que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”
Daqui decorre que não foi estabelecido o princípio da tipicidade dos meios probatórios mas antes o da legalidade.
Os métodos proibidos de prova foram consignados no art. 126.º, do Código Processo Penal, e estão intimamente associados às garantias constitucionais de defesa consagradas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa
Assim, a consagração do n.º 8 desse artigo 32º de que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, no que se reporta, desde logo à intromissão na vida privada, aparece legalmente transposta no n.º 3, do citado art. 126º, que estatui, além do mais, que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (…) sem o consentimento do respectivo titular”.
Todavia, ressalvadas as situações de intromissão no núcleo duro na vida privada (que o que, como veremos, não ocorre no casos dos autos), actualmente é quase entendimento uniforme da jurisprudência portuguesa de que não constituem provas ilegais e como tal podem ser valoradas pelo tribunal a gravação de imagens por particulares em locais públicos ou acessíveis ao público assim como os fotogramas oriundos dessas gravações, «desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada (onde se inclui a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas)» – Ac. da Relação do Porto de 23/10/2013 (proc. n.º 585/11.6TABGC.P1, relatora Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, entre outros, Ac. do STJ de 28/9/2011 (proc. n.º22/09.6YGLSB-S2, relator Santos Cabral, in www.dgsi.pt) Ac. da Relação do Porto de 16/1/2013 (proc. n.º 201/10.3GAMCD.P1, relator Ernesto Nascimento), Ac. da Relação de Lisboa de 28/5/2009 (proc. n.º 10210/08.9, relatora Fátima Mata-Mouros) e Ac. da Relação de Coimbra de 10/10/2012 (proc .n.º 19/11.6TAPBL.C1, relatora Elisa Sales), todos estes também acessíveis in www.dgsi.pt.
Como vínhamos atrás referindo, o art.126.º do CPP, que tem por epígrafe “Métodos proibidos de prova” e que traduz o consagrado no art.32.º n.º 8 da CRP, prevê nos n.ºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no n.º3 as provas relativamente proibidas.
Porém, este normativo não é suficiente para compreender a questão da validade das provas em processo penal, nomeadamente no caso das provas obtidas por reproduções mecânicas. É isso que resulta do art.167.º do CPP (cuja epígrafe é “Valor probatório das reproduções mecânicas) quando no seu n.º 1 refere que as mesmas «só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal», ou seja, há uma influência do direito penal no regime de proibição das provas. Sobre esta ligação ao direito penal substantivo, refere o supra mencionado Ac. da Relação de Lisboa de 28/5/2009: «na verdade, ao estabelecer-se, no art. 167.º do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.»
Dispõe o art.199.º do Código Penal, sob a epígrafe “Gravações e fotografias ilícitas”: ...
O direito à imagem está tutelado criminalmente neste normativo, mas na medida em que não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude.
É nessa medida que se vem entendendo que não é crime a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente – cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 23/11/2011 (proc. n.º1373/08.2PSPRT.P1, relator Mouraz Lopes) e de 29/02/2015 (proc. nº 349/13.2PEGDM.P1, relatora Maria Deolinda Dionísio), ambos também acessíveis in www.dgsi.pt. ...”;
- acórdão da RP de 27/01/2016, relatado por Maria dos Prazeres Silva, no proc. 1548/12.0TDPRT.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... O recorrente sustenta que o tribunal a quo atendeu a prova nula, constituída pela gravação ilícita de alegada conversa telefónica, por força das disposições dos artigos 125.º, 126.º, n.º e 3, 167.º do Código Processo Penal, este último por referência ao disposto nos artigos 192.º, n.º 1, alínea a) e 199.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal. Invoca em abono da sua tese o Acórdão da Relação de Lisboa de 16-12-2008 [Vd. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20-11-2014, publicado no DR, 1.ª série, n.º 18, de 27-01-2015, onde foi decidido «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»], cuja fundamentação jurídica reproduz, e insurge-se contra o entendimento do tribunal a quo relativamente à existência de consentimento presumido da parte do arguido na gravação da conversa telefónica.
Vejamos.
Está em causa a gravação efetuada pelo assistente da chamada telefónica, proveniente do telemóvel usado pelo arguido e por ele estabelecida, tendo como destinatário o assistente, de acordo com a factualidade provada.
Como decorre da motivação de facto, o tribunal a quo ponderou o conteúdo da gravação, levada a cabo pelo assistente, de chamada telefónica rececionada no telemóvel deste, não existindo expresso consentimento por parte do arguido na gravação.
Face a tal procedimento, a questão que se coloca prende-se com a definição do valor probatório dessa gravação e não propriamente com a violação de proibição de prova.
Com efeito, as normas processuais convocadas pelo recorrente permitem distinguir duas distintas realidades, a que corresponde tratamento jurídico diferenciado, embora se possam traduzir num resultado comum, qual seja o não aproveitamento da prova recolhida contra o regime legal imposto.
Assim, as regras de proibição de prova obtida por intromissão na vida privada sem o consentimento do respetivo titular, consagradas no artigo 126.º, n.º 3, do Código Processo Penal, dirigem-se às instâncias formais de controlo, designadamente aos investigadores e autoridades judiciárias, mormente ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução. Trata-se de normas que visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, definindo os limites de interferência na vida privada com o objetivo de recolher prova, e que constituem orientações a observar no âmbito do processo penal.
Enquanto no tocante às provas obtidas por particulares e à tutela da vida privada, não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, antes o legislador remete para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal, na tutela do referido direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167.º, n.º 1, do Código Processo Penal [Vd. neste sentido Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, comentário ao artigo 167.º, elaborado pelo Ex.mo Sr. Conselheiro Santos Cabral;, P. 701; Também Acórdão do STJ de 28-09-2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2; e ainda Acórdão da Relação de Lisboa de 28-05-2009, proc. 10210/2008-9; Acórdão da Relação do Porto de 03-12-2010, proc. 371/06.5GBVNF.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.]. Donde, a validade da prova fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal [Como se refere no citado comentário, Código Processo Penal Comentado, e no Acórdão do STJ de 28-09-2011, «pode-se dizer, de forma redutora, que a gravação (..) que não é crime, é admissível como prova».].
Portanto, a validade da prova questionada no presente recurso está condicionada à inexistência de actividade criminosa na sua obtenção, por isso, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação da conversa estabelecida pelo arguido com o assistente se for de concluir que a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas nessa chamada telefónica configura um ilícito penal.
Ora, no concernente a gravações ilícitas a norma incriminadora corresponde ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado.
No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio [Vd. Acórdão do STJ de 28-09-2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2; Acórdão desta Relação de 23-10-2013, proc. 585/11.6TABGC.P1, disponíveis em www.dgsitpt, quanto ao registo de imagem.].
No caso sub judice, a gravação em causa documenta a comunicação telefónica, da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido, subsumível aos crimes de ameaça e de injúria [Não se esgotando quanto ao crime de injúrias nesse contacto telefónico.]. Perante tais circunstâncias surge justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente, sem o consentimento do autor daqueles ilícitos criminais, pois que, como considerou o STJ [Vd. citado Acórdão do STJ de 28-09-2011 e Código Processo Penal Comentado, página 705, «(…) o comportamento ilícito do titular do direito à palavra e imagem no uso da mesma determina a perda da dignidade penal da ofensa do referido direito e isto, desde logo, porque no caso concreto o mesmo não merece proteção. (…) Não se vislumbra qual a razão pela qual a protecção da vítima e a eficiência da justiça penal tenham de ser postergadas pela protecção da palavra e de imagem que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata. A protecção acaba quando aquilo que se protege consubstancia a prática de um crime».] «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime», sendo ainda de considerar, quando por meio da gravação é cometido o crime de ameaça, como sucede no caso dos autos, a verificação de legítima defesa como excludente da ilicitude da gravação [Vd. Código Processo Penal Comentado, página 706.].
No seguimento de tal entendimento, não sendo possível concluir pelo cometimento por parte do assistente de um crime mediante a gravação da comunicação telefónica que lhe foi dirigida pelo arguido, também não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação [Assim se não acolhendo os argumentos expendidos no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-12-2008 em que se apoia o recorrente.].
Assim sendo, nenhum obstáculo legal existia à respetiva valoração pelo tribunal e à sua reprodução em audiência, sendo certo que a audição, na audiência de julgamento, do conteúdo da gravação foi precedida de decisão judicial [Vd. despachos proferidos na ata de audiência de 26-05-2015, a fls. 374-377 dos autos, sendo o primeiro referente à reprodução do CD junto aos autos e o segundo à reprodução da gravação com uso de equipamento facultado pelo assistente.] que não foi impugnada.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso. ...”;
- Acórdão da RL de 02-07-2024, relatado por Luísa Alvoeiro, no proc. 233/24.4KRSXL-A.L1-5, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I.–A proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime. II.–Num contexto em que está fortemente indiciada da preocupação do agressor em agredir física e verbalmente a ofendida longe dos olhares de outras pessoas e que se fez valer da sua profissão para controlar a vida da ofendida e das pessoas que com ela se relacionam, a que acresce a sua postura de vitimização e acusação face à ofendida bem como a personalidade que procurou transmitir ao tribunal, é forçoso concluir que a gravação da “palavra falada” do agressor, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para demonstrar a verdadeira personalidade deste e consequentemente a veracidade da versão dos factos por si apresentada (a violência, a agressividade e a linguagem obscena a que era sujeita). III.–É inadmissível sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que através da gravação da “palavra falada” do agressor pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor, atuando a mesma ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.”.
[7] Termo/s de identidade e residência.
[8] Nesse sentido, cf. acórdão da RL de 07/01/2016, relatado por Antero Luís no proc. 576/14.5GEALR-F.L1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…  “… impõe-se ainda salientar que a verificação dos perigos previstos nas várias alíneas do artigo 204º deve ser aferida em concreto, isto é, os perigos previstos pelo legislador têm que ser densificados pelo intérprete e aplicador do direito perante situações concretas e materializáveis - perigos concretos - a partir dos quais se pode extrair uma conclusão objectiva e objectivável, motivada e motivável, passível de escrutínio seja pela via do recurso, seja pelo destinatário a que se dirige e não meras abstracções ou presunções que apontam para meras probabilidades de difícil ou impossível sindicância. …”.
[9] Código de Processo Penal.
[10] Nesse sentido, cf. acórdão da RE de 11/10/2016, relatado por Ana Brito no proc. 141/16.2GFELV-A.E1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “… Decorre do art. 191º, nº1 do CPP que as medidas de coacção são medidas intraprocessuais, consistentes em modos de limitação da liberdade pessoal, com natureza instrumental relativamente às finalidades intrínsecas do processo penal. “São meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial (…) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias” (Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 232).
Visam satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais – de garantia do bom andamento do processo e do efeito útil da decisão – e que resultem da concreta verificação dos perigos previstos nas três alíneas do art. 204º do CPP, sendo de considerar ilegítima qualquer outra finalidade, de natureza substantiva, retributiva, preventiva, ou mesmo de protecção do arguido (contra reacções populares).
Como condições gerais de aplicação exige-se, formalmente, a prévia constituição como arguido (art. 192º, nº1) e a existência de um processo criminal já instaurado; substancialmente, a verificação de um fumus comissi delicti, ou seja, um juízo de indiciação da prática de crime e a probabilidade de aplicação de uma pena (arts 192º,2; 193º,197º…).
Por último, do princípio da presunção de inocência (afirmado nos art. 11º da D.U.D.H., art. 6º, nº2 da C.E.D.H., art. 14º, nº2 do P.I.D.C.P. e art. 32º, nº2 da C.R.P.) resulta que seja sempre aplicada a medida de coacção menos gravosa de entre todas as admissíveis, com respeito pelos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade (art. 193º, nº1 do CPP) e intervenção mínima (num critério de concordância prática). Os princípios da adequação e da proporcionalidade das medidas serão “critérios de escolha das medidas possíveis” (Paulo de Sousa Mendes, Sumários de Direito Processual Penal, 2008/9, p. 124).
Assim, exige-se uma adequação qualitativa (aptidão à realização dos fins cautelares visados) e quantitativa (quanto à sua duração) da medida, a qual deve ser ainda proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido. Esta proporcionalidade obrigará à antecipação de um juízo de previsão quanto à sanção a proferir na decisão final.
De afirmação ope legis, ainda os princípios da precariedade – traduzido na consagração de prazos legais de duração máxima que obstam à transposição da barreira do comunitariamente suportável – e da judicialização – todas as medidas, à excepção do T.I.R., são aplicáveis exclusivamente por um juiz (arts 194º, 268, nº1-b do CPP).
No que respeita especificamente à medida de coacção prisão preventiva, reafirma-se o princípio da subsidiariedade (da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação - art. 193º, nº2: “…só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”). …”.