Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | PROVA PROIBIDA GRAVAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DO VISADO CRIMES COMETIDOS EM LOCAIS NÃO PÚBLICOS VIOLÊNCIA DOMÉSTICA RECÍPROCA | ||
Data do Acordão: | 10/25/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 152.º E 199.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 126.º, N.º 3, 167.º E 204.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
Sumário: | I - A gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado, como é o caso de crimes cometidos em locais não públicos, sem outras testemunhas, dos quais muito dificilmente se obteria prova, não fora a gravação.
II - Nos casos, não muito frequentes, de violência doméstica recíproca e grave, em que não é possível atribuir a qualquer dos cônjuges maior responsabilidade, mantendo-se ambos inflexíveis e irredutíveis, sendo muito sério o perigo de continuação e escalada da actividade criminosa, justifica-se que ambos sejam proibidos de permanecer na e frequentar a casa de morada da família. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: João Abrunhosa Adjuntos: Maria José Guerra Rosa Pinto *
Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: No Juízo de Instrução Criminal de Leiria, por despacho de 05/07/2024, foram aplicadas medidas de coacção aos Arg.[1] AA … e BB …, com os restantes sinais dos autos, nos seguintes termos: “… «I- Factos fortemente indiciados: … * II- Motivação: A factualidade indicada resulta da análise critica e conjunta da prova indicada na promoção do Ministério Público, nomeadamente: Testemunhal: … Documental: … - CD´s com áudios e transcrições constantes a fls. 399-454, 460-466; - Fotografias, fls. 420-425, 455-457, 492 … Para além da prova indicada pelo Ministério Público no despacho de sujeição dos arguidos a interrogatório Judicial, foi possível verificar, em função das declarações prestadas pelos arguidos nessa qualidade e enquanto ofendidos, que tais factos se verificaram, sendo que as ofensas e as tentativas de agressão permanecem até à atualidade. * III - Qualificação jurídica dos factos: Resulta fortemente indiciado a prática por cada um dos arguidos, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, alínea a) e nºs 4 e 5 do Código Penal, cuja moldura penal em abstrato aplicada é de dois a cinco anos de prisão. * IV - Medidas de Coação: … Determina o artº 193º do CPP que as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação. Na aplicação da medida de coação há que ponderar a gravidade do crime praticado, a personalidade do delinquente e a necessidade da medida de coação ao caso concreto. … Determina, pois, o artigo 204º, nº. 1, als. a) a c), do CPP que nenhuma medida de coação, à exceção do Termo de Identidade e Residência, pode ser aplicada se, em concreto se não verificar: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. Os requisitos enunciados no artigo 204º do CPP são alternativos, bastando que exista algum deles para que, conjuntamente com os especiais previstos na medida de coação, essa medida possa ser aplicada. No caso concreto estando em causa um crime de violência doméstica impõe-se de acordo com o disposto no art. 20º da Lei nº. 112/2009 de 16 de setembro assegurar um nível adequado de proteção à vítima e, sendo caso disso, à sua família ou a pessoas em situação equiparada, nomeadamente no que respeita à segurança e salvaguarda da vida privada. ** V - Exigências cautelares e Medidas de Coação. No caso presente, é manifesto o perigo de continuação da atividade criminosa a que alude o artigo 204º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Tal perigo resulta da natureza dos factos indiciados, verificando-se que primordialmente desde 2023 os mesmos se têm vindo a intensificar, como insultos, agressões verbais, ameaças e tentativa de agressão física praticados por ambos os arguidos um contra o outro. No âmbito deste inquérito foi tentado no dia 18-06-2024 uma acareação tendo os arguidos mantido as suas versões, ou seja, negando a factualidade cuja autoria lhes é imputada e confirmando a veracidade dos factos de que são vítimas. Após a realização desta diligência, logo no dia 19-06-2024, foram comunicados aos autos novos factos relativos a um desentendimento ocorrido entre ambos, no interior da habitação também de ambos. Das declarações prestadas neste interrogatório, resulta evidente que o conflito já ultrapassou a relação do casal, estendendo-se também a um filho de ambos que vive numa casa pertença do ainda casal. Subjacente ao conflito atual estão questões de ordem patrimonial, de ciúmes, de um manifesto desgaste da relação entre os arguidos e falta de respeito mútuo. Neste enquadramento, existe o risco fundamentado de ocorrerem novos factos, os quais podem assumir contornos mais graves, estando em causa a salvaguarda da vida e da integridade de ambos os arguidos/ofendidos. Os arguidos foram questionados relativamente à possibilidade de partilharem a casa em condições que fosse evitado o contacto entre ambos, uma vez que o Tribunal está ciente dos rendimentos auferidos por ambos, da existência de animais que dependem do cuidado dos arguidos e, ainda, da situação referente a um filho maior de idade que padece de deficiência mental e que, apesar de estar institucionalizado, passa em casa os fins de semana. Não obstante, tal não foi possível, mantendo-se os arguidos irredutíveis na sua posição, recusando cada um deles sair da habitação e imputando essa responsabilidade ao outro. Ora, os factos imputados a cada um dos arguidos assumem uma gravidade semelhante, os rendimentos são igualmente semelhantes, dado que é o arguido que assume o pagamento de despesas fixas, quer referentes a consumos domésticos, quer referentes a encargos decorrentes de bens móveis e imóveis de que ambos são proprietários. Os arguidos, apesar das suas idades, apresentam autonomia e capacidade física semelhante. A casa onde ambos residem é património comum do casal. Assim, não existe nenhum facto ou circunstância que permita ao Tribunal optar pela permanência de um em detrimento do outro, dado que ambos recusam sair da casa, recusam partilhar a mesma e alegam incapacidade económica para obterem uma habitação alternativa. No que concerne a este último ponto, estamos em crer que ambos os arguidos podem solucionar a sua situação, uma vez que, no âmbito do processo de divórcio, foi arrolado como pertencente a ambos um valor próximo de cem mil euros. Assim, em caso de necessidade e estando os mesmos representados por advogado podem diligenciar pela obtenção do valor que necessitem para garantirem uma habitação até que consigam a partilha do património comum, dado que já se encontra pendente a ação de divórcio. O Tribunal não pode ser indiferente à situação atual em que os mesmos se encontram, dado que, como já se deixou exposto, se teme uma intensificação dos conflitos com consequências mais gravosas do que as verificadas até à presente data. Assim, neste circunstancialismo, consideram-se proporcionais e adequadas as medidas de coação promovidas pelo Ministério Público, sendo as mesmas necessárias para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa, não se vislumbrando a aplicação de qualquer outra que no imediato garanta a proteção dos ofendidos ** VI - Decisão: Face ao que se deixa exposto, ao abrigo dos artigos 191º a 193º, 196º, 200º nº 1, alíneas a) e d) e 204°, nº1, alínea c), do Código de Processo Penal e 31º, nº 1, alíneas c) e e), da Lei nº 112/2009, de 16/09, decide-se que os arguidos … e … aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos, para além do termos de identidade e residência já prestados, às seguintes medidas de coação: - proibição de permanecerem e de frequentarem a casa sita na Rua ..., ..., ..., concedendo-se o prazo de quinze dias para abandonarem a mesma; - proibição de os arguidos contactarem um com o outro e por qualquer meio. ...”. * Não se conformando, a Arg. AA … interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, que concluiu da seguinte forma: “… 1) A medida de coacção aplica à Arguida … mostra-se excessiva, violando os princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (arts. 191.º e 193.º, do CPP), na aplicação desta medida. 2) A imposição à Arguida de afastamento da habitação constitui uma medida bastante gravosa, pois posterga um direito fundamental – direito à habitação – e pode afectar profundamente a socialização da Arguida, designadamente quando não tenha meios económicos que lhe permitam acolher-se noutro local ou familiares/ amigos que o recebam, ou sequer de conseguir, com o seu rendimento, conseguir habitação para si. 3) A sua aplicação viola a própria CRP, no domínio de restrição de direitos, liberdades e garantias em que, de harmonia com o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição, rege o princípio da proporcionalidade - também designado princípio da proibição do excesso -, por sua vez desdobrado em três sub-princípios: os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito. 4) Sucede que no caso dos presentes autos, a Meret.ª Juiz de Instrução não teve o acuidade de ponderar a diferente capacidade económica dos Arguidos, para fazer face à medida aplicada de afastamento. 5) Pois resulta à evidência, nos próprios autos, que os rendimentos do Arguido … são 3 vezes superiores ao rendimento da Arguida …. 6) Pelo que deverá a mesma ser revogada em relação à Arguida … 7) Deverá ainda ser revogado o despacho, proferido em ata de interrogatório, que indeferiu a nulidade invocada pela Arguida, nomeadamente no que concerne aos cds com áudios captados pelo Arguido …, obtidos sem o consentimento da Arguida …, uma vez os mesmos constituem prova proibida, atendo o disposto no artigo 167.º do Cód. Processo Penal. 8) Por conseguinte, entendemos que tais elementos constituem prova proibida, ex vi art. 167.º do CPP, por referência ao disposto no art. 199.º, n.º 2 do CP, não podendo ser valorados pelo tribunal, … Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, ...”. * A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, … * Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, … * É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a questão fundamental a decidir no presente recurso é a seguinte: I – Utilização de prova proibida na fundamentação do despacho recorrido; II – Verificação dos requisitos da aplicação, à Recorrente, da medida de proibição de permanecer e frequentar a casa de morada de família. * Cumpre decidir. I – O despacho recorrido fundamentou a sua decisão de facto na análise crítica e conjunta da prova indicada pelo MP, nomeadamente, “... CD´s com áudios e transcrições constantes a fls. 399-454, 460-466 ...”. A Recorrente, em 05-07-2024, alegou que os mesmos constituem prova proibida. Quanto a essa matéria, no interrogatório dos Arg., o tribunal recorrido proferiu despacho com o seguinte teor: “... Veio a arguida invocar que se encontram junto aos autos CDs com áudios captados pelo arguido e obtidos sem consentimento da arguida, o que poderá indiciar a prática de um crime de gravações ilícitas, previsto no artigo 199º, nº 2, do Código Penal, entendendo assim que os mesmos constituem prova proibida atento o disposto no artigo 167º do Código de Processo Penal, não podendo ser valorados pelo Tribunal. A presente diligência reporta-se à realização de interrogatório de ambos os arguidos pela indiciação do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º do Código Penal e visando a aplicação, a ambos os arguidos, das medidas de coação tidas por necessárias e adequadas. Assim sendo, o Tribunal apenas poderá levar em consideração na decisão a proferir a prova indicada pelo Ministério Público no requerimento de folhas 505 e seguintes, concretamente a prova testemunhal e documental mencionada a folhas 507 frente e verso. Na referida prova apenas é indicada por referência a áudios as transcrições constantes de folhas 399 a 454, de folhas 460 a 466. As referidas transcrições foram juntas aos autos em 31 de maio de 2024, pelo arguido, sendo aí mencionado que estão em causa vídeos efetuados pelo arguido com recurso ao seu telemóvel nos dias 02-12-2023 e 20-12-2023, referindo-se ainda nesse requerimento que nas referidas gravações se encontram evidenciadas as injúrias e humilhações praticadas pela arguida em relação ao arguido e que as mesmas se destinam a fazer prova de tais factos. Ora, se em termos abstratos poderá estar em causa a captação de imagens e a gravação de voz que poderá integrar a prática de um ilícito, também resulta indicado que tais elementos foram captados com o único objetivo de servirem de prova em relação a crimes praticados pela arguida sendo diretamente visado o aqui arguido/assistente. Não se discutindo, nesta fase, se havia ou não consentimento prestado pela arguida, sempre se dirá que, em nossa opinião, não estará aqui em causa um método proibido de prova, dado que as gravações efetuadas foram feitas apenas com o objetivo da demonstração probatória de factos ilícitos de que foi vítima o arguido e constituem elemento essencial para prova dos mesmos. Importa ainda sublinhar que o meio a que recorreu se impunha pois constituía a única forma de provar factos de que era vítima. Assim sendo, indefere-se o requerido pela arguida. ...”. A gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado, não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado. É o caso de crimes cometidos em casas particulares, como o presente, sem outras testemunhas, dos quais muito dificilmente se obteria prova, não fora a gravação. Quanto a esta questão, porque se trata de uma argumentação exaustiva, com aplicação directa ao presente caso e com a qual concordamos inteiramente, passamos a citar o acórdão da RL de 23/05/2023[5]: “... Em tese, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva, as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», (cfr. Costa Andrade in "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, 1992, p. 83). Reflexo deste entendimento, encontra-se plasmado no artigo 126° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "métodos proibidos de prova", que refere, no seu n° 3, que "ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular". Seguindo muito de perto a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, diremos que, sendo o processo penal «direito constitucional aplicado», "ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.°/ 3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187. CPP ou 6.° da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.° e 34.° da CRP". Continua dizendo: "No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade. Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.° do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal" (cfr. Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, Proc. n° 10210/2008-9, disponível nas bases de dados da dgsi). Aqui chegados, cumpre verificar se estamos ou não perante um crime de gravações ilícitas. Assim, refere o n° 1 do artigo 199° do Código Penal que incorre na prática de um crime quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas" ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas". Na senda de Costa Andrade, "o art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis". E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o Senhor Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida "sem consentimento", enquanto a fotografia só será ilícita quando produzida "contra a vontade", o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa (para maiores desenvolvimentos, cfr. Costa Andrade in "Comentário Conimbricense do Código Penal", em anotação ao artigo 199). Mas voltemos ao caso... A vítima B procedeu a gravações de uma conversa que o arguido teve consigo, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento. Encontram-se, por isso, preenchidos os elementos do tipo legal (artigo 199° do Código Penal). Diríamos, portanto, numa análise mais superficial, que a gravação é ilícita e que, consequentemente, não poderá servir de meio de prova (nem tão pouco as transcrições da gravação, por dela decorrerem). Todavia, como bem chama a atenção o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, "ao estabelecer-se, no art. 167.° do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo. (...) Importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos crimes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) novas expressões de comportamento penalmente relevante», concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e necessidade do meio". Idêntica jurisprudência, resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, onde se considerou que "as imagens recolhidas pela assistente só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal, por isso, importa apurar se a conduta da assistente integra um ilícito criminal". E acrescenta: "tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui a obtenção de imagens, mesmo sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento (como p. ex. estado de necessidade, legitima defesa) ou quando enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, Proc. n° 2499/08.8TAPTM.E1. No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.06.2012, Proc. n° 914/07.7TDLSB.L1-9, os dois disponíveis nas bases de dados da dgsi). No caso em apreço, as gravações áudios reportam-se a discussões que o arguido teve com a vítima, aos berros, por vezes na presença do filho menor, onde a insultou, ameaçou e atormentou. Resulta do teor das mesmas que o arguido se encontrava muito alterado e perturbado, o que é revelador de uma personalidade violenta e impulsiva. Não se coibiu de atormentar a sua ex-companheira, mesmo na presença do filho menor, diminuindo-a enquanto ser humano. A vítima explicou em audiência de julgamento que sente medo do arguido e que as gravações foram a forma que encontrou de explicar o que se estava a passar, pois achava que ninguém iria acreditar em si ou até conseguir explicar por palavras suas o que se estava a passar com o arguido. Encontramos um arguido descontrolado e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer). De facto, analisado o teor das gravações e aquilo que a vítima relatou em audiência de julgamento, concluímos que esta se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido). A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações. Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal. Em suma, o Tribunal conclui que a vítima B, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou, pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado. E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal. Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Código Penal, declaro válidas as gravações das conversações entre o arguido e a vítima B.» ...”[6]. É, justamente, o que se passa no presente caso. Concluímos, pois, pela validade probatória das gravações em causa. Improcede, pois, nesta parte o recurso. * II – A Arg. Recorrente não põe em causa a existência dos indícios, nem do perigo de continuação da actividade criminosa referidos no despacho recorrido, mas discute as legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de proibição de permanecer e frequentar a casa de morada de família, que lhe foi aplicada. A aplicação de qualquer medida de coacção, para além do TIR[7], pressupõe que se verifique, em concreto[8], fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (art.º 204.º do CPP[9]). Para a proibição ou imposição de condutas, exige ainda a lei que o crime seja punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (art.º 197º/1 do CPP). É a existência, em concreto, dos “perigos” enunciados no art.º 204° do CPP, e não a gravidade do/s crime/s indiciariamente cometido/s, que fundamenta a imposição de medidas de coacção, ainda que esta gravidade tenha relevância em termos de proporcionalidade e de previsão da pena a aplicar em julgamento (art.º 193º/1 do CPP)[10]. Aplicando os princípios decorrentes dos normativos citados ao caso em apreço, vejamos se os mesmos justificam a manutenção da aplicação da referida medida à Recorrente ou apontam para a sua substituição ou revogação. O crime imputado à Arg. Recorrente admite a aplicação a medida aqui em causa. Está estabilizada a existência do perigo de continuação da actividade criminosa. Como consta do despacho recorrido, “... Os arguidos foram questionados relativamente à possibilidade de partilharem a casa em condições que fosse evitado o contacto entre ambos, uma vez que o Tribunal está ciente dos rendimentos auferidos por ambos, da existência de animais que dependem do cuidado dos arguidos e, ainda, da situação referente a um filho maior de idade que padece de deficiência mental e que, apesar de estar institucionalizado, passa em casa os fins de semana. Não obstante, tal não foi possível, mantendo-se os arguidos irredutíveis na sua posição, recusando cada um deles sair da habitação e imputando essa responsabilidade ao outro. ... os factos imputados a cada um dos arguidos assumem uma gravidade semelhante, os rendimentos são igualmente semelhantes, ... não existe nenhum facto ou circunstância que permita ao Tribunal optar pela permanência de um em detrimento do outro, dado que ambos recusam sair da casa, recusam partilhar a mesma e alegam incapacidade económica para obterem uma habitação alternativa ... ambos os arguidos podem solucionar a sua situação, uma vez que, no âmbito do processo de divórcio, foi arrolado como pertencente a ambos um valor próximo de cem mil euros ...” (sublinhados nossos). Subscrevemos, inteiramente, estes fundamentos e preocupações do tribunal recorrido. Estamos perante um caso, não muito frequente, de violência doméstica recíproca e grave, em que não é possível atribuir a qualquer dos Arg. maior responsabilidade, mantendo-se ambos inflexíveis e irredutíveis, sendo muito sério o perigo de continuação e escalada da actividade criminosa. Certamente que, se os Arg. se vierem a entender quanto à utilização provisória da casa de morada de família, a medida aqui em causa poderá ser alterada em conformidade. Mas, quando foi proferido o despacho recorrido, momento relevante para a decisão do presente recurso, a existência daquele perigo e a sua intensidade, levavam, razoavelmente, à conclusão de que eram ajustadas e adequadas as medidas de coacção aplicadas a ambos os Arg./Ofendidos. Assim, entendemos que a medida aqui posta em causa, atento o circunstancialismo apurado, se conforma, inteiramente, com os princípios da proporcionalidade, da necessidade, da adequação e da subsidiariedade, e está judiciosamente encontrada. Improcede, pois, ainda nesta parte, o recurso. Assinalamos que a situação resultante da aplicação destas medidas de coacção, suscita a necessidade continuar a tratar dos animais e plantas da casa onde ambos os Arg. viviam. ***** Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos o despacho recorrido, mantendo a medida da coacção aplicada, durante cuja execução se deve acautelar o tratamento dos animais e plantas da casa onde ambos os Arg. viviam. Custas pela Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC. * Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). ***** Voto de vencida: Votei vencida por entender que o despacho recorrido viola o princípio da necessidade. Para acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa basta que seja aplicada a um dos arguidos a medida de coação de proibição de permanecer e de frequentar a casa … De facto, nos termos do artigo 193º, nº 1, do Código de Processo Penal, “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”. Como bem explica Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar e outros, pág. 858, “o nº 1 consagra, no âmbito das medidas de coacção e de garantia patrimonial, o princípio da proporcionalidade, que tem sede constitucional no artigo 18º, nº 2, 2ª parte, da CRP. Este princípio desdobra-se em três subprincípios: da necessidade (as medidas restritivas são indispensáveis para obter os fins visados); da adequação (as medidas restritivas são idóneas para a prossecução dos fins visados); da proporcionalidade em sentido restrito ou proibição do excesso (as medidas restritivas não excedem os fins visados). O princípio da necessidade (ou subsidiariedade) determina que seja selecionada a medida de coação estritamente indispensável para a promoção do fim visado; por outras palavras, o fim visado não pode ser obtido por outra medida menos gravosa para o arguido”. O que o tribunal a quo não fez. Assiste razão à recorrente quando defende que foi violado o princípio da necessidade, razão pela qual daria procedência ao recurso no que respeita à aplicação à arguida da medida de coação de proibição de permanecer e de frequentar a dita casa. Rosa Pinto
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