Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1120/13.7TXPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
PRESENCIALIDADE
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 61.º, N.º 1, B), DO CPP; ART.º 32.º, DA CRP; ART.º 125.º DO CEPMPL
Sumário: I - Interpretando o princípio do contraditório na sua plenitude e tendo em conta o bem jurídico que está em causa – a revogação ou substituição da prisão por dias livres pela de prisão contínua – entendemos que a audição do condenado deve ser interpretada e efectivada no sentido de uma audição presencial pelo Juiz de execução de Penas.

II - O argumento de que já tinha sido ouvido uma vez, não justifica esta falha de audição, pois a quando da primeira audição nem sequer lhe foi aplicada esta medida ou decisão.

III - Se for necessário ouvir mais que uma vez o condenado ao longo do processo, assim terá que se proceder. Caso contrário, a simples falta ou falha de uma audição presencial, põe em crise todo o princípio do contraditório aplicável.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

1. Nos autos de processo supletivo nº 1120/13.7TXPRT ao abrigo da Lei nº 115/2009 de 12 de Outubro (Código de Execução de Penas),

            Por despacho judicial de 14 de Julho de 2014[1] – v. fls. 67 a 69 -, foi decidido não considerar justificadas faltas de entrada no estabelecimento prisional do arguido A... , melhor id. nos autos e, em consequência, determinado que a pena de 10 meses de prisão em que tinha sido condenado mas entretanto substituída pela prisão por dias livres, passe a ser cumprida em regime contínuo, pelo período que faltar, tendo em conta o facto de que se tornou evidente o desinteresse do condenado no cumprimento da pena nos moldes inicialmente fixados.

2. Deste despacho/decisão recorre o arguido/condenado, formulando as seguintes conclusões:

I - O recorrente discorda da decisão do Tribunal de Execução de Penas que converteu o regime de cumprimento por dias livres da pena de prisão, em regime contínuo.

II - O Tribunal acima mencionado, salvo melhor opinião, fez uma errada interpretação e aplicação das normas jurídicas dos artigos 125°, n°4 do CEPMPL, dos artigos 488°, n°3 do CPP e 32°, n°5 da CRP e dos artigos 147°. 149°. 155°. 173º a 182, e 234° todos do CEPMPL, ao caso sub judice. Com efeito, a correcta interpretação do preceituado nos artigos referidos impunha a realização de uma audição presencial do recorrente, acompanhado do defensor, perante o Juiz do Tribunal de Execução de Penas, antes da prolação da decisão da revogação do regime referido para o regime de cumprimento contínuo da peia de prisão.

III - O Tribunal não garantiu o efectivo direito ao contraditório e de audiência ao não viabilizar a realização de uma audição presencial do recorrente.

IV - Não obstante o arguido ter sido inquirido junto do EP de Lamego, aquando das primeiras faltas. não se pode confundir esse procedimento com a necessidade de audiência perante o Juiz do Tribunal de Execução de Penas, para melhor prova e justificação das faltas, antes de urna decisão tão gravosa, como a possível alteração e conversão da pena de prisão por dias livres, em pena de prisão contínua, que constituiu um autêntico prolongamento” da sentença. e de onde pode resultar a alteração significativa no cumprimento de uma pena de prisão para o recorrente.

V - O Tribunal não diligenciou saber de forma adequada, atentos os princípios do contraditório e de audiência, as razões dos alegados incumprimentos e da culpa do recorrente, corno resulta dos artigos 488°,n°3 e 125° do CEPMPL e do artigo 32°.n°5 da CRP. o que é revelador também, salvo o devido respeito, de uma decisão desprovida de concretização fáctica.

VI - No caso sub judice entendemos que foram violados os direitos de defesa do arguido, na medida em que está em causa urna questão de direito, urna vez que para além dos factos da vida do recorrente para a justificação ou injustificação das faltas, trata-se também de urna interpretação e aplicação de normas por forma ao preenchimento do conceito jurídico de falta injustificada para fundamento da determinação de cumprimento contínuo da pena de prisão. conforme o estatuído no artigo 125° do CEPMPL.

VII - De relevar que a prisão por dias livres, enquanto verdadeira pena de substituição, é uma forma de reagir contra os perigos que se contêm nas normais penas de curta duração e de, ao mesmo tempo. manter. em grande parte, as ligações do condenado a sua família e à sua vida profissional.

VIII- A não realização de uma audição prévia presencial do recorrente. antes da decisão da conversão da pena de prisão em regime contínuo, tendo sido realizada urna mera notificação postal, não assegura de forma suficiente e adequada os princípios do contraditório e de audiência, pois que está em causa urna questão de direito. que afectará de forma inequívoca o cumprimento do remanescente da pena a cumprir pelo recorrente.

IX- Aquela não realização de audiência prévia presencial do arguido, nos termos referidos, constituiu urna nulidade insanável nos termos da alínea e) do artigo 119° do Código de Processo Penal. que aqui expressamente se invoca para OS devidos efeitos, devendo a decisão em causa ser revogada e substituída por outra que dê cabal cumprimento às garantias e direitos supra expostos.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, com as legais consequências, determinando-se a nulidade insanável do despacho ora recorrido nos termos dos artigos 119°, alínea e) e 122°, n.º 1 do Código de Processo Penal, e a consequente substituição da decisão recorrida por outra que dê cumprimento e garanta a audição do arguido nos termos supra expostos.

Assim decidindo. farão V. Exas. Justiça.

            3. Respondeu o Ministério Público, dizendo, em síntese[2], que não existe qualquer nulidade por não audição do condenado presencialmente, pelo que deve a decisão ser mantida integralmente.

            4. Nesta instância, o Exmº Srº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde defende que o recurso deve ser julgado improcedente, pois ao condenado foram dadas todas as condições para apresentar a sua defesa, tendo mesmo o tribunal sido condescendente para com a sua conduta processual.

            5. Foram os autos a vistos e procedeu-se a conferência.

II

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

            “ Resulta dos elementos que documentam o processo que A..., com os demais sinais dos autos, foi condenado no processo comum singular 1902/09.4TAVIS, do 1º juízo criminal do Tribunal de Viseu, em pena de prisão de 10 meses, substituída por prisão por dias livres, a cumprir em 60 períodos, de 38 horas cada.

            O recluso iniciou o cumprimento de tal pena em 29 de Novembro de 2013 – fls. 2.

            O estabelecimento prisional de Lamego informou as faltas do recluso nos dias 21 de Fevereiro (fls. 25) e 14 de Março (fls. 34).

            Inquirido presencialmente no EP de Lamego (fls. 36) justificou as suas faltas com motivos económicos, solicitou que a pena em execução passasse a ser cumprida no EP Viseu e comprometeu-se a cumprir a pena de forma ininterrupta.

            Posteriormente foram comunicadas as faltas em 11 e 18 de Abril (fls. 44, 47), 9, 16, 23 e 30 de Maio (fls. 49, 53, 55 e 59) e junho (fls. 61 e seguintes).

            A fls. 45 consta ofício da DGRSP no qual se informa que no EP de Viseu não existe valência para o cumprimento da pena de prisão por dias livres.

A fls. 51 (com a data de 22 de Maio de 2014) veio o Ministério Público pronunciar-se pela injustificação das faltas, e pelo cumprimento da pena em causa no regime contínuo.

Notificada o ilustre defensor oficioso veio requerer que a pena em execução seja cumprida no EP de Viseu, cidade onde o condenado reside, justificando as suas faltas com motivos económicos.

Não se vislumbra a necessidade de se proceder a qualquer outra diligência.

Cumpre apreciar e decidir.

            Desde já cumpre concluir pela clara falta de justificação para as faltas dadas (aliás, diremos nós pelas inúmeras faltas dadas).

            As penas de prisão por dias livres implicam, necessariamente, um sacrifício (nomeadamente económico) por parte do condenado, no que se refere às suas deslocações para o estabelecimento prisional, pelo que, por muitas que sejam as dificuldades económicas, nos parece exigível a um cidadão que, de entre o seu trabalho, a família e os amigos, consiga obter meios que o façam cumprir a pena em causa.

            No caso dos autos não podemos deixar de dizer que nunca o condenado se preocupou em justificar as faltas (ou pedir sequer, antecipadamente, a alteração do regime de execução da pena) a não ser quando confrontado pelo Tribunal.

            No que se refere à alteração de EP de execução da pena a pretensão do condenado já se revelou impossível de concretizar, atenta a posição da DGRSP.

            Tudo visto, ponderado o disposto no artigo 125.º, n.º 4, do CEP, não considero justificadas as mencionadas faltas de entrada no estabelecimento prisional, em consequência do que determino que a prisão passe a ser cumprida em regime contínuo, pelo período que faltar, tendo em conta o facto de ter sido condenado na pena de 10 meses de prisão, pois tornou-se evidente o desinteresse do condenado no cumprimento da pena nos moldes inicialmente fixados.

            Custas pelo condenado fixando a taxa de justiça de uma UC - artigo 8º, n.º 9 e Tabela anexa III ao RCP.

            Notifique e comunique ao processo da condenação.

            Mais comunique ao EP de Lamego solicitando o envio da folha de registos de entradas e saídas do condenado informando ainda que não poderá o condenado cumprir novos períodos da pena de prisão por dias livres em que foi condenado.

            Após trânsito vão os autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes no que se refere ao cumprimento da pena ora determinada”.

                                                                       III      

Questão a apreciar:

1. A eventual nulidade por não audição presencial do condenado antes da decisão recorrida.

                                                            IV

Cumpre decidir:

1. Dos autos resulta o seguinte com interesse para a apreciação do recurso[3]:

            1.1. O recorrente iniciou a execução da pena (por dias livres) no dia 29/11/2013, apresentando-se no Estabelecimento Prisional de Lamego naquela data para cumprir o primeiro dos 60 períodos de 38 horas de prisão.

            1.2. No dia 21/02/2014, quando deveria iniciar o 13º período de prisão, o condenado dá a primeira falta, tendo sido designado o dia 27/03/2014 para tomada de declarações.

            1.3. O recorrente volta a faltar no dia 14/03/2014, quando devia ter cumprido o 15º período de prisão.

            1.4. No dia 27/03/2014, o recorrente foi ouvido pelo Mm.º Juiz, com a presença do Ministério Público e sem a presença do Ilustre Defensor, que foi notificado para o ato (fls. 29). O recorrente, quando notificado, foi devidamente advertido da finalidade da diligência (fls. 30), sendo conhecedor de que devia comprovar o eventual impedimento que redundou nas faltas. Quanto a tal matéria, disse, em síntese, que:

            • Nos dias 21 e 23 de Fevereiro de 2014 faltou por ter de fazer “companhia à sua mãe, diabética, e que teve uma crise nessa altura” (transcrição do auto de audição de condenado que consta fls. 36);

            • No fim de semana de 15 e 16 de Março de 2014 faltou por não dispor dos €18 necessários para custear o transporte público entre a sua residência e o estabelecimento e vice-versa;

            • Foi despedido em Março de 2014, não dispondo de qualquer rendimento;

            • No dia 22 de Março de 2014 compareceu no estabelecimento prisional por um vizinho lhe ter emprestado a quantia necessária à viagem de ida;

            • Solicitou a alteração do local de cumprimento da pena e, apesar das alegadas dificuldades económicas, comprometeu-se a cumprir a pena pontualmente, de aí em diante.

            1.5. Na sequência da audição do condenado, foi determinado que se averiguasse junto do EP de Viseu (que informou negativamente) a possibilidade de aí ser cumprida a prisão por dias livres e ordenou-se que os autos aguardassem por 30 dias o decurso da execução da pena.

            1.6. O recorrente voltou novamente a faltar no dia 11 de Abril de 2014, data em que deveria iniciar o cumprimento do 18º período de prisão.

            1.7. Voltou a faltar nos dias 18/04/2014, 09/05/2014 e 16/05/2014

            1.8. O Ministério Público pronunciou-se pelo cumprimento da prisão por dias livres em regime contínuo no dia 22/05/2014, tendo o Ilustre Defensor sido notificado para se pronunciar sobre esta posição, tendo alegado o seguinte, por requerimento entrado nos autos a 17/06/2014 (síntese):

            • O condenado vive com a mãe em Viseu, estando, à data do requerimento, desempregado;

            • “Alguns” (sic) dos incumprimentos foram motivados por circunstancialismos relacionados com a sua atividade profissional (construção civil), que se revelaram inconciliáveis;

            • Para não perder o trabalho, acabou por faltar algumas das vezes assinaladas e, ainda assim, acabou por cessar a relação laboral;

            • À data do requerimento, não auferia qualquer rendimento, fazendo pequenos biscates do qual retira alguma ajuda para o seu sustento, sendo, no resto, auxiliado pela progenitora e por um irmão;

            • A escassez económica levou a que não tivesse meios para assegurar o transporte para e de o estabelecimento prisional, afirmando que, por regra, o fazia em transportes públicos, sendo também esse um dos motivos que o levou a faltar.

            1.9. O condenado veio, ainda, a faltar nos dias 23/05/2014, 06/06/2014, 13/06/2014, 27/06/2014 e 04/07/2014.

            1.10. A decisão que determinou o cumprimento da prisão em regime contínua veio a ser proferida no dia 14/07/2014 e teve em consideração o referido requerimento do recorrente.

2. Pugna o recorrente pela violação do princípio do contraditório na medida em que entende que, antes de ser tomada a decisão pelo julgador a quo, o mesmo deveria ter sido ouvido presencialmente, pelo Sr. Juiz do TEP. Só assim este princípio é respeitado tal como deve ser entendido à luz da CRP e do artigo 125º, do Código de Execução de Penas.

Por sua vez, o recorrido MºPº, embora entenda que o condenado tem o direito de ser ouvido presencialmente, no caso concreto não foi violado tal direito, o que significa que não existe qualquer nulidade insanável.

3. Ao princípio do contraditório se refere o disposto no artigo 32º, nºs 1 e 5 da CRP, com o seguinte teor:
            1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”;
            …
            5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

Também o artigo 61º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, consagra o direito de o arguido ser ouvido ao estipular que o arguido goza, em especial, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.

Sendo esta, sem dúvida, uma clara manifestação da garantia do direito de defesa e do princípio do contraditório consagrado no referido artigo 32º, da CRP.

Princípio que, segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, in CRP Anotada de Coimbra Editora, 2007, vol. I, em anotação ao art. 32º, fls. 522 e 523, tem a seguinte interpretação:

“ …relativamente aos destinatários significa: (a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo…

Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição e em especial a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar devendo estes ser seleccionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido.”   

            Também o Prof. Figueiredo Dias perspectiva o funcionamento do processo penal numa base do princípio do contraditório, explicitando:

“ A propósito da aludida necessidade de dar maior fixidez e concretização ao princípio do contraditório, importa acentuar a moderna tendência para lhe conferir verdadeira autonomia substancial perante o princípio da verdade material e perante o direito de defesa do arguido – com que vimos que ele se aparenta -, através da sua concepção como princípio ou direito de audiência; como, isto é (numa formulação intencionalmente enxuta), oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo[4].

E mais à frente, mesma obra, a fls. 158 e 159, afirma:

“ Respeita a outra consequência[5] ao âmbito dos titulares do direito de audiência. Legitimado ao seu exercício, na verdade, não deverá estar só o arguido, mas todo aquele participante no processo (seja qual for a veste em que intervenha) relativamente ao qual deva o juiz tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte: e dai que sejam titulares possíveis deste direito no processo penal, além do arguido, v.g. o Ministério Público, o defensor, o assistente, as testemunhas, os peritos”.

Finalmente, a fls. 160 e 161, especifica:

“ O respeito pelo princípio em epígrafe implica pois, no mínimo, que se dê ao interessado oportunidade para intervir no debate e se pronunciar sobre a decisão a tomar. Quantas vezes isso haja de acontecer é coisa que depende da natureza da concreta situação do processo[6], sendo em todo o caso seguro que não basta que lhe seja dada tal oportunidade antes da decisão final, mas sim antes de qualquer decisão que o possa afectar juridicamente”.

            Por sua vez, dispõe o artigo 125.º C.E.P.M.P.L.:

            “1 - A execução da prisão por dias livres e da prisão em regime de semidetenção obedece ao disposto no presente Código e no Regulamento Geral, com as especificações fixadas neste capítulo.

            2 - As entradas e saídas no estabelecimento prisional são anotadas no processo individual do condenado.

            3 - Não são passados mandados de condução nem de libertação.

            4 - As faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao tribunal de execução das penas. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias[7], não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.”

4. Após estas breves considerações, importa dizer que a questão a dirimir se traduz em saber se, no caso concreto, pese embora a notificação do defensor do condenado para se pronunciar sobre a questão das faltas, aquele (o condenado), deveria ter sido ouvido presencialmente, assistido pelo seu defensor, perante o Juiz de Execução de Penas.

Neste momento, diga-se, existem duas posições na jurisprudência dos Tribunais da Relação, de sentido oposto, como se faz eco quer nas alegações de recurso quer na resposta do MºPº.

Da nossa parte, interpretando o princípio do contraditório na sua plenitude e tendo em conta o bem jurídico que está em causa – a revogação ou substituição da prisão por dias livres pela de prisão contínua – entendemos que esta audição do condenado deve ser interpretada e efectivada no sentido de uma audição presencial pelo Juiz de execução de Penas. Trata-se de um direito fundamental, do direito à liberdade do arguido, expressão máxima a apreciar em qualquer decisão jurisdicional. Está em causa um Bem Supremo, em nosso entender, apenas superado pelo Direito à Vida. Pois sem o direito à vida, não faz sentido falar do direito à liberdade.

Como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.7.2011, proferido no proc. nº 2914/10.0TXLSB-A.L1-3:

“Em segundo lugar, ter-se-á de reconhecer que a decisão do incidente contende com os direitos fundamentais à liberdade e segurança e conduz a efeitos substancialmente importantes para a esfera jurídica do condenado: a decisão judicial que julga injustificada a falta de comparecimento no EP e que determina o cumprimento contínuo do remanescente da pena de prisão significa obviamente o insucesso, ainda que parcial, da pena de substituição e conduz a um sacrifício ou custo para o condenado, ao perder a possibilidade de manter a actividade económica e a ligação familiar que a prisão por dias livres ainda permitia.

Nesta perspectiva, uma mera notificação postal do condenado não cumpre as exigências de garantia do exercício de defesa e de pronúncia esclarecida da pessoa visada; A particular relevância da decisão e das previsíveis consequências para o condenado no incidente de apreciação de incumprimento impõe interpretar a referência a audiência do condenado do artigo 125º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, como pressupondo necessariamente uma participação “eficaz”, “direta” e presencial.

Ou seja, torna-se indispensável que ao condenado e defensor seja facultada a possibilidade de exposição dos argumentos e de comprovação dos motivos de eventual justificação de faltas, em diligência presencial, directamente perante o juiz do Tribunal de Execução das Penas. Esta é de resto a solução que resulta da aplicação do artigo 176º (sob a epígrafe audição do recluso) por força do artigo 234º (aplicação supletiva dos trâmites do processo de concessão da liberdade condicional), ambos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

No caso dos autos, esse direito à audiência foi preterido de forma clara, pois que imediatamente antes da decisão nem se deu possibilidade ao defensor de apresentar os meios de defesa nem se viabilizou a realização de uma audição presencial do condenado”.

Por sua vez, no ac. da Relação do Porto de 19/12/2012, proferido no Proc. nº561/11.9TXPRTA.P1, decidiu-se:

“Aliás, se atentarmos nas normas do próprio CEPMPL e as conjugarmos entre si, concluiremos que este mesmo diploma assegura, no ponto que ora nos interessa, a efetivação do princípio do contraditório com a amplitude constitucionalmente consagrada, ao prever no seu artigo 176º a audição prévia e presencial do recluso no processo de concessão de liberdade condicional, cujos trâmites, por força da remissão do artigo 234º, são supletivamente aplicáveis a todos os outros processos nele tramitados e, como tal, obviamente também ao processo de justificação de faltas de entrada no estabelecimento prisional de condenado em regime de cumprimento de prisão por dias livres; (neste sentido cfr. o acórdão do TRP de 13.07.2011, proc. nº 3737/10.2TXPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt).

É pois com o sentido de audição presencial do condenado que tem de ser interpretado o nº 4 do artigo 125º do CEPMPL, pois é a única interpretação consentida pelas regras do artigo 9º do Código Civil, na medida em que tem assento na letra da lei e respeita simultaneamente o seu espírito, considerando a norma no âmbito do diploma em que está inserida, na coerência de todo o sistema processual penal e sempre sob a égide dos princípios fundamentais enformadores do Estado de direito democrático, com garantia constitucional”.

            Finalmente, referencia-se o decidido em ac. deste Tribunal da Relação e secção, de 6.13.2013, proferido no proc. nº 559/11.7TXCBR-A.C1:

            “Acresce que toda a filosofia do CEPMPL está vocacionada para assegurar o respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos demais princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, nos instrumentos de direito internacional e nas leis (artigo 3.º, n.º 1), sendo um dos princípios orientadores da execução das penas o da individualização do tratamento prisional (artigos 3.º, n.º 4 e 5.º, n.º 1).

            No que respeita ao modo de efectivar o contraditório e, especificamente, o direito de audiência, a jurisprudência dos tribunais superiores vem entendendo que a audição prevista no artigo 125.º, n.º 4 do CEPMPL deve ser presencial.

            Esta solução imposta pela dimensão constitucional dos direitos de defesa baseia-se na interpretação conjugada das normas do CEPMPL posto que este prevê no seu artigo 176.º a audição prévia e presencial do recluso no processo de concessão de liberdade condicional cujos trâmites, por força do artigo 234.º, são aplicáveis, com as devidas adaptações, ao processo de justificação de faltas de entrada no estabelecimento prisional de condenado em regime de cumprimento de prisão por dias livres”.

            5. Como já se anotou, o objecto do recurso não consiste em apreciar se as faltas do condenado devem ser ou não julgadas justificadas ou injustificadas. Esta apreciação fica para um segundo momento. Embora desde já se adiante quanto a este aspecto que, tendo o condenado alegado certos e determinados factos através do seu defensor e tendo o julgador a quo decidido não ouvir sequer o condenado, não se compreende muito bem o fundamento de o julgador ter decidido sem proceder a qualquer diligência, sendo certo que esta diligência está também expressamente prevista no nº 4 do art. 125º, do CEPMPL.

            O que está, pois, em análise, é se o condenado deveria ter sido ouvido presencialmente pelo Sr. Juiz do TEP.

            Entendemos que sim. Igual posição tem o recorrido Ministério Público, sendo certo que no caso concreto se pronuncia em sentido negativo. E toma esta posição, dizendo:

“Na presente, situação, contudo, parece-nos claro que foi integralmente cumprido o direito de audição e respeitado o contraditório, uma vez que o recorrente teve oportunidade de se pronunciar sobre as faltas que deu na presença do juiz de execução das penas, no âmbito em que a decisão foi tomada e, bem assim, foi notificado do parecer do Ministério Público e pronunciou-se sobre.

Acresce que o Ilustre Defensor foi notificado para os termos do processo, pelo que o recorrente teve sempre a oportunidade de beneficiar dos conhecimentos técnicos necessários à apreciação da relevância jurídicos dos seus atos e às consequências que dos mesmos podia decorrer.

Dir-se-á que o recorrente não se pronunciou na presença do juiz quanto a todas as faltas, mas isso seria levar o princípio da audiência longe de mais, a um nível que paralisaria o processo, porquanto, basta uma falta não justificada para fazer cumprir a prisão em regime contínuo (e a decisão considera injustificadas as primeiras faltas dadas pelo recorrente, sobre as quais se pronunciou presencialmente), os fundamentos alegados pelo condenado são, essencialmente, os mesmos e o visado teve oportunidade de se pronunciar novamente, ainda que por escrito (mas sempre com a intervenção do Ilustre Defensor), antes de a decisão ser tomada”.

É verdade que, conforme resulta do processo, a dado momento       no dia 27/03/2014, o recorrente foi ouvido pelo Mm.º Juiz, com a presença do Ministério Público e sem a presença do Ilustre Defensor, que foi notificado para o ato (fls. 29).

O recorrente pronunciou-se, na presença do Juiz, sobre a matéria em causa, explicando os reais motivos das suas faltas.

E a consequência não foi a consideração das faltas como injustificadas mas sim a continuação do cumprimento da pena de prisão por dias livres.

Acontece que, dada a sua dificuldade em se deslocar para o EP de Lamego, o condenado requereu o cumprimento da pena no EP de Viseu, pedido que lhe foi indeferido por informação negativa deste estabelecimento prisional.

Na sequência de novas faltas do condenado no EP de Lamego, no seguimento de promoção do MºPº, foi decidido então por decisão 14/07/2014, o cumprimento da prisão em regime contínuo.

6. Como resulta dos autos, antes de proferida esta decisão – a mais gravosa que pode ser tomada contra o condenado atenta a sua situação processual – o tribunal a quo, ou seja, o Sr. Juiz do TEP, não ouviu presencialmente o condenado, nem só nem acompanhado do seu defensor, para se pronunciar sobre as suas faltas, sendo certo que da posição do tribunal sobre as mesmas iria resultar a decisão que resultou, que foi nem mais nem menos a de que o condenado deveria cumprir o restante da pena em regime de prisão contínua.

Ora, perante esta posição que o tribunal a quo tomou, é evidente que era mais que justificada a audição do condenado para, antes de ser tomada tal decisão, o mesmo ser ouvido sobre esta matéria. Estava como está, em causa, o destino da sua vida no que respeita à sua liberdade e à forma de cumprir uma pena de prisão.

O argumento de que já tinha sido ouvido uma vez, não justifica esta falha de audição, pois a quando da primeira audição nem sequer lhe foi aplicada esta medida ou decisão. E, como supra se anotou, citando o Prof. Figueiredo Dias, “ O respeito pelo princípio em epígrafe implica pois, no mínimo, que se dê ao interessado oportunidade para intervir no debate e se pronunciar sobre a decisão a tomar. Quantas vezes isso haja de acontecer é coisa que depende da natureza da concreta situação do processo” .

Assim também o entendemos. Se for necessário ouvir mais que uma vez o condenado ao longo do processo, assim terá que se proceder. Caso contrário, a simples falta ou falha de uma audição presencial, põe em crise todo o princípio do contraditório aplicável.

Pode mesmo acrescentar-se que, atenta a decisão que foi tomada contra o condenado, foi este o momento processual – prévio à decisão – o mais importante e relevante para ser ouvido presencialmente, pois foi o momento decisivo e determinante para a definição do seu estatuto processual, quão seja o de passar a cumprir a pena de prisão em regime contínuo. Decisão mais desfavorável não poderia ocorrer. Ora, não ser ouvido pelo juiz, presencialmente, com certeza que tal situação põe irremediavelmente em causa o cumprimento e a observação do princípio do contraditório.

            A omissão da prévia audição presencial do condenado – que deve ser acompanhada do seu defensor -, integra a nulidade insanável cominada na alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, a qual, nos termos prescritos no artigo 122.º, n.º 1 do mesmo diploma, implica que se decrete a nulidade do despacho recorrido e se determine que o tribunal recorrido ouça presencialmente o recorrente, após o que, devidamente esclarecido o sucedido com pleno exercício do contraditório, deverá ser proferida nova decisão em conformidade com toda a prova produzida.

V

Decisão

            Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente e, consequentemente, declara-se a nulidade do despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe data para a audição presencial do recorrente/condenado A..., com a assistência do seu defensor, após o que, sem prejuízo da realização das diligências consideradas úteis, deverá ser proferida decisão em conformidade com toda a prova produzida.

Sem custas.

Coimbra, 10 de Dezembro der 2014

                (Luís Teixeira - relator)

                (Calvário Antunes - adjunto,)


[1] Entende-se que existe lapso manifesto na data aposta no despacho quanto ao ano que se refere - ano de 2014 - e não ao de 2012, como do mesmo consta.
[2] Sem prejuízo das referências desta resposta que mais adiante serão feitas, pela sua relevância.
[3] Seguimos o resumo que dos factos é feito pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso e que traduz a realidade do ocorrido.

[4] Direito Processual Penal, Clássicos Jurídicos, Coimbra Editora, 2004 (1ª edição 1974), fls. 152 e 153.
[5] Refere-se, para melhor compreensão, que o autor está a tratar das duas consequências a ter em mente sempre que se trate de analisar as concretas manifestações do direito de audiência em todo o decurso do processo.
[6] Sublinhado nosso.
[7] Negrito nosso.