Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
237/10.4TBFVN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
FACTOS-ÍNDICES
ÓNUS DA PROVA
INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3º, 11º, 20º, 30º CIRE
Sumário: 1.- O pressuposto objectivo para a declaração de insolvência radica na verificação da insolvência, tal como a define o nº1 do artigo 3º do CIRE, e quando a mesma é requerida por alguém que não o próprio devedor, designadamente um seu credor, terá este de fundamentar a pretensão deduzida com a alegação de factos mencionados no artigo 20º do citado diploma, factos-índice ou presuntivos da situação de insolvência ou circunstancialismo que exteriorize esse mesmo estado.

2.- Mas ainda que comprovado algum do circunstancialismo elencado no artigo 20º do CIRE, poderá tal não ser suficiente para a declaração de insolvência do devedor; basta que este ilida a presunção de insolvência fundada em algum dos factos aí enunciados, demonstrando a inexistência da situação de insolvência tal como lhe é facultado pelo artigo 30º, nº3, última parte do mencionado diploma.

3.- Se a oposição deduzida pelo requerido se fundar na inexistência da situação de insolvência, cabe ao mesmo demonstrar a sua solvência, baseando-se na escrituração, quando legalmente obrigatória, devidamente organizada e arrumada.

4.- O regime previsto no artigo 11º do CIRE – que permite ao juiz fundamentar a sua decisão sobre o pedido de declaração de insolvência em factos não alegados pelas partes e, através do exercício dos poderes inquisitórios, a livre investigação dos factos – não se destina a suprir a inércia das partes quanto à actividade probatória a que estão sujeitas, antes constitui um meio complementar de investigação de factos reputados com interesse para a decisão a proferir, independentemente de alegados ou não pelas partes.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

V (…), SOCIEDADE UNIPESSOAL, LD.ª, NIPC ...., com sede (…)– Sacavém requereu a declaração de insolvência de I (…) LD.ª, NIPC ...., com sede (…) Figueiró dos Vinhos, alegando, em síntese que:

- no decurso das suas relações comerciais com a requerida celebrou, em 17/04/2008, contrato de aluguer com o n.º 5001277 referente à máquina cilindro CA 302 D, S/N 68410942, e, em 06/05/2008, o contrato de aluguer n.º 5001282, referente a uma escavadora EC 240 S/N 120005;

- a requerida utilizou os referidos bens, não procedendo, porém, à liquidação das facturas descritas no art. 5º da petição inicial;

- a requerente instaurou procedimento de injunção, ao qual veio a ser conferida força executória;

- a requerente instaurou, então, acção executiva, com vista à recuperação do montante em dívida;

- das pesquisas efectuadas junto das bases de dados apurou-se que a requerida não detinha, em seu nome, quaisquer bens imóveis;

- apurou-se a existência de quatro veículos automóveis onerados com penhoras anteriores;

- em sede de penhora de saldos bancários apurou-se que a requerida era titular de duas contas bancárias cujo saldo ascendia a € 100,00 e a € 82,36.

Citada a requerida, a mesma deduziu oposição, negando encontrar-se em situação de insolvência por os seus activos serem muito superiores ao passivo.

Realizado julgamento, veio a final a ser proferida sentença que, entre o mais, julgou procedente o pedido de insolvência formulado contra a requerida I (…) Lda ”, declarando a insolvência da mesma.

Por não se conformar com tal decisão, dela veio a requerida insolvente interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

- “1ª - O depoimento de (…) foi claro, preciso, sem hesitação alguma ao declarar como contabilista da Requerida:

a) O activo da Requerida é superior ao passivo;

b) O que declarou tinha por suporte a contabilidade;

c) Os dois documentos juntos com a contestação foram elaborados pela testemunha como contabilista;

2ª – A Srª Juíza “ a quo” não reputou credibilidade ao depoimento da testemunha nem aos documentos que esta elaborou e juntos à contestação.

3ª- Face aos documentos elaborados pela testemunha e ao seu depoimento sem hesitação e de forma clara deveria a Srª Juíza “ a quo” nos termos do artº. 11º do CIRE ter lançado mão ao “princípio do inquisitório” e no mínimo, solicitar à Repartição de Finanças se era ou não verdade o crédito da Requerida sobre o Estado.

4ª – É que as declarações da testemunha foram verdadeiras, conforme se alcança dos embargos deduzidos e dos documentos aos mesmos juntos.

5ª - A Srª Juíza “ a quo” é que não reputou credibilidade aos documentos juntos à contestação e ao que a testemunha confirmou.

6ª – Assim a Requerida é detentora de activo superior ao passivo e essa situação não ficou provada, pelo facto de a Srª Juíza “ a quo” não se ter certificado disso.

7ª – Daí que, porque a Srª Juíza “ a quo” não lançou mão do que determina o artº. 11º do CIRE deverá em sede de recurso ser determinado que a Requerida não é insolvente, porque o seu activo é superior ao passivo”.

Não foram apresentadas contra – alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Considerou o tribunal de primeira instância provados os seguintes factos:

1.A requerente é uma sociedade comercial que se dedica à compra, venda e aluguer de máquinas e equipamentos, e a prestar serviços de aluguer e gestão de máquinas e equipamentos, e a prestar serviços de aluguer e gestão de máquinas e equipamentos industriais, da marca VOLVO (cfr. www.portaldaempresa.pt, cujo código de acesso é o 4185-7360-3259).

2.A requerida tem por objecto o aluguer de máquinas e equipamentos para movimentação de terras, execução de empreitadas de infra-estruturas, saneamento básico, arruamentos, redes de água e de esgotos, incluindo fornecimento de materiais de construção, comércio por grosso e a retalho de matérias de construção, transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem (cfr. certidão permanente on-line no site www.portaldaempresa.pt).

3.No decurso das relações comerciais mantidas com a requerida, a requerente celebrou com a mesma, em 17.04.2008, o contrato de aluguer que atribuiu o n° 5001277 referente a máquina cilindro CA 302 D, S/N 68410942 no qual a requerente cedeu, temporária e onerosamente, o gozo da máquina referida pelo período inicial de duas semanas prorrogável, mediante o pagamento diário de € 100,00, acrescido de IVA – vide doc. l.

4.A requerente celebrou com a requerida, em 06.05.2008, um segundo contrato de aluguer, que atribuiu o n° 5001282 e é referente a uma escavadora EC 240 S/N: 120005 – vide doc. 2.

5.A requerida, não obstante ter utilizado em benefício próprio os Equipamentos em apreço não procedeu à liquidação dos alugueres/valores em dívida, melhor descritos nas facturas que a seguir se descriminam:

5.1. Do contrato de aluguer n°5001282:

a) Factura aluguer n° 5003461, com a data de vencimento de 13.05.2008, no valor de €2.117,50-vide doc. 3;

b) Nota de crédito n° 5003469, datada de 16.05.2008 no valor de €907,50 – vide doc. 4.

5.2.Do contrato de aluguer n° 5001277:

a) Factura aluguer n° 5003468, com a data de vencimento de 16.05.2008 no valor de €1.694,00-vide doc. 5;

b) Factura aluguer nº 5003491, com data de vencimento de 30.05.2008, no valor de €1.694,00-vide doc. 6;

c) Factura aluguer n° 5003527, com data de vencimento de 16.06.2008, no valor de 6847,00-vide doc. 7;

d) Factura aluguer n° 5003537, com data de vencimento de 20.06.2008, no valor de € 847,00- vide doc. 8;

e) Factura aluguer n° 5003548, com data de vencimento de 27.06.2008, no valor de €847,00- vide doc. 9;

f) Factura aluguer n°5003556, com data de vencimento de 04.07.2008, no valor de €840,00-vide doc.10;

g) Factura aluguer n° 5003566, com data de vencimento de 11.07.2008, no valor de €840,00- vide doc. 11;

h) Factura aluguer nº 5003576, com data de vencimento de 18.07.2008, no valor de €840,00-vide doc. 12;

i) Factura aluguer n° 5003586, com data de vencimento de 25.07.2008, no valor de € 3.360,00- vide doc. 13;

j) Factura aluguer n°5003636, com data de vencimento de 25.08.2008, no valor de €3.360,00-vide doc. 14;

k) Factura aluguer n°5003680, com data de vencimento de 19.09.2008, no valor de €3.360,00-vide doc. l5.

6.Ao total das facturas mencionadas no artigo anterior, há a abater o valor da nota de crédito n° 5003713, datada de 07.10.2008, no valor de €1.560,00 – vide doc.16. 

7.Tendo em vista o ressarcimento do seu crédito, a Reclamante propôs o procedimento de injunção n° 262301/08.5YIPRT, em 09.10.2008, tendo sido conferida força executiva nos termos da qual a requerida ficou obrigada a pagar à requerente a dívida de capital e juros, conforme peticionado por sentença condenatória do tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, datada de 26.06.2009 – vide doc. 17.

8.Em 22.07.2009 a Reclamante propôs a respectiva execução comum, que foi distribuída sob o n° 262301/08.5YIPRT-A, à secção única do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos – vide doc. 18.

9.Com vista à recuperação do montante em dívida, foram efectuadas diversas pesquisas junto das entidades competentes para o efeito, no sentido de descobrir bens que satisfizessem o crédito.

10. Das consultas previstas no art. 833°-A do CPC, resultou que a executada não possuía quaisquer bens imóveis registados junto do Serviço de Finanças –vide doc. 19.

11. Em sede de registo automóvel, a requerida era titular de quatro veículos automóveis de matrículas PC...., RP...., EH.... e HA...., que se encontraram todavia onerados com penhoras anteriores — vide doc. 20 a 23.

12. A requerente desconhece o paradeiro das viaturas já oneradas.

13. Atenta a antiguidade das viaturas referidas, o respectivo valor não é susceptível de garantir o pagamento do crédito da requerente.

14. Relativamente à penhora de saldos bancários, apenas se apurou a existência de €100,00 no Banco .... e de €82,36 junto do Banco ...., SA – vide doc. 24.

15. A requerente desconhece outros bens susceptíveis de penhora.

III. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

B.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se houve erro na apreciação da matéria de facto e se os elementos probatórios produzidos permitem concluir ser superior ao passivo o activo da recorrente.

C. Antes, porém, como questão prévia ao conhecimento do objecto do recurso, importa indagar da admissibilidade da junção dos documentos apresentados pela recorrente com as suas alegações, com omissão de qualquer justificação para essa junção tardia.

Dispõe o artigo 693º-B do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8 (correspondente ao artigo 706º, na sua anterior versão):
“As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art.º 524, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do n.º 2 do art.º 691.”

O artigo 523º, nº1 do Código de Processo Civil estabelece: Os documentos destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”, acrescentando o nº 2: “Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas a parte será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.”

Por sua vez, dispõe o nº1 do artigo 524º do mesmo diploma: “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”; e o seu nº 2: “os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo”.

São os seguintes os casos previstos naquelas alíneas do n.º 2 do artigo 691º do diploma em causa:

a) Decisão que aprecie o impedimento do juiz;

b) Decisão que aprecie a competência do Tribunal;

c) Decisão que aplique multa;

d) Decisão que condene no cumprimento de obrigação pecuniária;

e) Decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;

f) Decisão que ordene a suspensão da instância;

g) Decisão proferida depois da decisão final;

(…)

i) Despacho de admissão ou rejeição de meios de prova;

j) Despacho que não admita o incidente ou que lhe ponha termo;

l) Despacho que se pronuncie quanto à concessão da providência cautelar determine o seu levantamento ou indefira liminarmente o respectivo requerimento;

m) Decisões cuja impugnação com o recuso da decisão final seja absolutamente inútil;

n)Nos demais casos expressamente previstos na lei.(…)”.

Nenhuma destas previsões se configura nos autos.

Por regra, os documentos devem ser apresentados com o correspondente articulado[3], ou seja, com a petição inicial, se pretenderem a demonstração dos factos fundamentadores da acção, ou com a contestação, se se destinarem a comprovar os fundamentos da defesa.

Só poderão ser juntos na fase de recurso nos casos excepcionais expressamente previstos na lei[4].

A recorrente, tendo deduzido oposição à pretendida declaração de insolvência, sabia que estava onerada com o dever de demonstrar a factualidade em que fundamentou essa oposição, como adiante melhor se dirá, e que, no caso concreto consistia na comprovação da por si sustentada situação de solvência.

Por se ter demitido desse dever, não pode agora, em sede de recurso, corrigir essa inércia probatória, juntando documentos que devia então ter apresentado (tanto mais que alguns, como os elementos de contabilidade, deviam estar em seu poder, não tendo sequer alegado impossibilidade de os apresentar tempestivamente). O recurso não visa obter um segundo julgamento sobre matéria de facto, como parece pretender a recorrente com a junção dos documentos com as alegações, mas apenas se destina a corrigir eventuais erros de julgamento dessa mesma matéria.

            Como salienta o Acórdão do STJ de 27-06-2000[5], “se (…) a parte dispunha de uma prova documental que entendeu não necessitar de usar, é vítima da sua própria negligência, já que não usou a possibilidade de a apresentar em devido tempo; se o resultado havido a surpreende, tal só poderá resultar de ter errado nas previsões feitas a respeito de questão que estava abertamente em discussão.”

Os documentos agora juntos pela recorrente não se destinam à demonstração de factos cuja relevância apenas emerge da decisão proferida na primeira instância; a sua relevância já era patente face à discussão da matéria de facto operada na primeira instância, não podendo a mesma desconhecer que sobre si recaía o ónus de demonstrar os factos da defesa por si alegados, nem que incumbia indicar os meios probatórios para alcançar esse fim.

Assim, não se configurando qualquer das situações excepcionais que permitam a apresentação dos documentos com as alegações de recurso, se decide indeferir tal junção.

D.1. Erro na apreciação da matéria de facto:

A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º do C.P.C. Ou seja:

“a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.

E segundo o citado artigo 690º-A do Código de Processo Civil:

  “1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Após o alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, introduzido a partir de 1995, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção da segunda instância.

Saliente-se, e fazendo apelo à letra do preâmbulo do Decreto - Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro[6], o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador. Como escreve Abrantes Geraldes[7], “foi (…) no campo da oralidade pura e, complementarmente, no reforço dos poderes da Relação que o legislador interveio em 1995, com o objectivo de permitir uma efectiva sindicância do julgamento da matéria de facto, assegurando o reclamado segundo grau de jurisdição.

Foram recusadas soluções maximalistas que permitissem ou impusessem a realização de segundo julgamento na segunda instância ou que generalizassem a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos. Ao invés, a competência da Relação é residual, circunscrevendo-se os seus poderes à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a pontos de facto concretamente impugnados, sendo recusada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto”.

Para além do mais, a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[8] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância se encontra em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[9].

O que não obsta, naturalmente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade ou de discricionariedade ilimitada.

D.1.1. “Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida[10], constitui uma das situações elencadas pelo artigo 712º, nº1 do Código de Processo Civil que conferem à Relação a possibilidade de proceder à alteração da matéria de facto fixada pela 1ª instância, como já se adiantou.

Enquadrando-se a situação em apreço neste recurso na segunda parte da referida norma processual, importa apelar à regra contida no nº2 do artigo 712º do mencionado diploma: “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.

Mas na sequência do que já se deixou expresso anteriormente, importará sempre atentar que “…a gravação dos depoimentos por registo áudio ou até por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado pelo tribunal a quo. Além disso, sem embargo da possibilidade da Relação proceder à renovação dos meios de prova, nos termos do nº 3, a mera audição dos registos gravados impede o confronto dos depoentes com pedidos de esclarecimento sobre determinadas afirmações que seriam proporcionados por uma efectiva mediação”[11]. É que, como já defendia Lopes Cardoso[12], “…os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe. O magistrado experiente sabe tirar partido desses elementos intraduzíveis e subtis. Nisto consiste a sua arte. As próprias reacções quase imperceptíveis do auditório se vão acumulando no espírito do julgador, ávido de verdade, e vão formar uma convicção cujos motivos lhe será muitas vezes impossível explicar”.

            Mas este primado da imediação da prova testemunhal não poderá, como o sustentou alguma corrente jurisprudencial, servir de fundamento para afirmar que o tribunal de recurso está impedido de sindicar a convicção da primeira instância, salvo se a mesma se mostrar contrária às regras da experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos, restringindo a possibilidade de, na reapreciação das provas na segunda instância, ser reformulada convicção distinta.

Vale dizer: “…se à Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Na execução desta tarefa, de modo algum pode a Relação ser dispensada da reapreciação efectiva dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, sob o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na primeira instância, sob pena de não se dar seguimento aos objectivos projectados pelo legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, admitiu a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação”[13].

O que pressupõe que, tendo sido gravados os depoimentos prestados na audiência da primeira instância, e tendo sido impugnada a decisão de facto fundamentada nesses depoimentos, a Relação, na tarefa da reapreciação da prova, deva, ouvidos tais depoimentos, valorar os mesmos, segundo o princípio da livre apreciação, ou fazer incidir as regras de experiência.

(…)

Deste modo, não merece reparo a decisão da primeira instância ao dar como não provada aquela factualidade, justificando-se a manutenção da decisão da matéria de facto impugnada.

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            No termos do nº1 do artigo 3º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, o que não terá de respeitar a todas as dívidas, bastando que a/as vencida/s pelo seu montante e significado no passivo do devedor mostre a sua impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações, impossibilidade essa que inexiste se o devedor não cumpre apenas porque se recusa a cumprir ou por entender justificada a recusa de cumprimento”[14].

            Como esclarecem Carvalho Fernandes e João Labareda[15], “o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos”.

            O pressuposto objectivo para a declaração de insolvência é, pois, a verificação da insolvência tal como a define o nº1 do artigo 3º do CIRE, e quando a mesma é requerida por alguém que não o próprio devedor, designadamente, um seu credor, deverá fundamentar a pretensão deduzida com a alegação de factos mencionados no artigo 20º do citado diploma, factos-índice ou presuntivos da situação de insolvência ou circunstancialismo que exteriorize esse mesmo estado.

            Para tanto, “o requerente da insolvência haverá de alegar factualidade concreta (demonstrável) que, se provada, revele a impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações. Cabe-lhe (quando a insolvência seja requerida por credor) alegar factos concretos (não devendo ficar-se por generalidades) sobre a situação financeira/patrimonial do devedor bastantes para se concluir por essa impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, sendo estas que, nesse caso, são consideradas para fundar o pedido quando não parte do devedor”[16].

            Mas ainda que comprovado algum do circunstancialismo elencado no artigo 20º do CIRE, poderá tal não ser suficiente para a declaração de insolvência do devedor; basta que este ilida a presunção de insolvência fundada em algum dos factos aí enunciados, demonstrando a inexistência da situação de insolvência tal como lhe é facultado pelo artigo 30º, nº3, última parte do mencionado diploma.

            No caso em apreço, a apelada fundamentou o pedido de declaração de insolvência da apelante com a invocação de factos que reconduz à previsão das alíneas a) b) e e) do artigo 20º do CIRE.

            De acordo com os preceitos em causa, “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se alguns dos seguintes factos:

a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;

b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, releve a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;

(…)

e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente  verificada em processo executivo movido contra o devedor”.  

A primeira das circunstâncias elencadas, “…reporta-se à hipótese tradicional que se reconduz a uma paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária (…).

Assume-se, assim, expressamente, que tal procedimento deve respeitar à generalidade das suas obrigações, o que se compreende visto que se autonomizou, na alínea b), como facto-índice próprio, a falta de cumprimento de uma só ou mais obrigações que, pelas respectivas circunstâncias, revele impossibilidade do devedor de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações”[17].

Quanto à segunda hipótese mencionada, ela traduz o que vinha já sendo entendimento perfilhado pela generalidade da doutrina e jurisprudência. Esclareça-se, todavia, que o que se passa é que, uma vez que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, o requerente deve então, juntamente com a alegação do incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada.

Só assim não será, precisamente, quando o incumprimento diga respeito a um dos tipos de obrigações enumeradas na alínea g)….”[18].

Quanto ao facto plasmado na alínea e) do citado normativo, importa salientar que “o legislador resolveu agora repor, entre os fundamentos que legitimam a iniciativa dos credores, o facto de, em processo executivo movido contra o devedor, não terem sido encontrados bens suficientes para o pagamento do crédito.

Há dois aspectos que justificam destaque. Um é o de nada exigir que o requerente da insolvência seja o credor insatisfeito na acção executiva; outro é o de, para se avaliar devidamente o impacto da situação, importar ter presente o actual regime da execução, em especial no que respeita ao registo informático das execuções e à penhora (vd. artºs. 806º e 832 e seguintes do C.P.Civ.).

Este último ponto é particularmente importante, projectando-se, nomeadamente, no desenvolvimento do processo de insolvência.

Na verdade, sendo este desencadeado com fundamento na aliena e), e tendo em conta o regime actual da execução singular, é de concluir pela insuficiência – pelo menos presumível – da massa insolvente para suportar o pagamento das dívidas e das custas do processo, pelo que haverá então lugar à aplicação do regime fixado no art.º 39º…”[19].

No caso concreto, não existem elementos fácticos nos autos que permitam concluir pela verificação do primeiro daqueles factos-índice. Com efeito, perante o desconhecimento da totalidade das dívidas da apelante, seus montantes, duração da mora, não é possível afirmar que, por parte dela, exista uma situação de paralisação/suspensão generalizada dos pagamentos.

A recorrente mantém para com a recorrida um débito no montante de, pelo menos, € 14.469,41.

Desconhecendo-se o volume total das dívidas da recorrente, esta indicou, pelo menos, outros cinco credores, para além da recorrida.

Para além dos veículos, de escassa expressão económica, e cujo destino se desconhece, e dos depósitos bancários, de que é titular, estes também de valor irrisório, não se conhecem outros bens ou valores à recorrente, que permitam solver a dívida que tem para com a recorrida, e que esta, apesar de todas as diligências efectuadas, ainda não logrou cobrar.

E o juízo presuntivo que emerge do preceito em causa não foi ilidido pela recorrente, que se limita a argumentar com a existência de um activo superior ao passivo, mas sem qualquer concretização dos elementos que integram quer uma, quer outra daquelas realidades.

Se bem que o valor da dívida para com a recorrida não seja particularmente elevado – sobretudo, por o sujeito passivo se tratar de uma sociedade – não é menos verdade que a recorrente se acha em situação de penúria tal que não lhe permite solver a mesma. Essa mesma situação é reconhecida pela técnica oficial de contas que presta serviços para a apelante, que expressamente admite não possuir esta liquidez suficiente para satisfazer os seus compromissos debitórios.

E tendo-se apurado que a apelada instaurou acção executiva contra a apelante e que no âmbito de tal acção apenas se constatou a existência de quatro veículos automóveis, já antigos e de escasso valor económico, e ainda assim sobre os quais pendem outras penhoras, sendo desconhecida a sua localização, e a existência de duas contas bancárias da titularidade da recorrente, de saldo de valor irrisório e manifestamente insuficiente para satisfação do crédito da recorrida, é inequívoco que tal realidade fáctica se integra na previsão da alínea e) do artigo 20º do CIRE.

A recorrente deduziu oposição e nela, para contrariar a pretensão da recorrida, negou a situação de insolvência, por esta alegada, sustentando ser o seu activo superior ao passivo.

Determina o nº 3 do artigo 30º do CIRE: “a oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência”. Ou seja: o devedor que deduza oposição pode fundá-la, alternativa ou conjugadamente, na inexistência do facto-índice alegado pelo requerente da insolvência para fundamentar esse pedido, ou na inexistência de uma situação de insolvência.

E, por sua vez, do nº4 do mesmo dispositivo pode retirar-se: “cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 3º”.

Para tanto importará considerar o que dispõe o nº2 do artigo 3º do CIRE, quando prevê: “as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.

Dir-se-á, assim, que a recorrida alegou factualidade que reconduziu à previsão das alíneas a), b) e e) do nº1 do artigo 20º do CIRE, que, constituindo verdadeiras presunções[20], não foram ilididas pela devedora, tendo-se logrado comprovar a existência dos factos indiciados pelos dois últimos normativos.

A recorrente contrariou a existência de situação de insolvência. Limitou-se, porém, a indicar listagem do que considera integrar o seu activo, onde incluiu créditos condicionais, alguns dos quais objecto de litígio, activo imobilizado, sem discriminação do mesmo e com indicação de valor de mercado fornecido pelo seu próprio gerente, e, quanto ao passivo, limita-se a indicar os seus cinco maiores credores e os valores das dívidas, também sem menção da data do seu vencimento.

Apesar de legalmente obrigada a possuir escrituração, a recorrente não juntou a mesma, devidamente organizada e arrumada, como imposto pelo nº 4 do artigo 30º do CIRE.

Limitou-se à indicação vaga e genérica da existência de um activo superior ao passivo, sem individualização e concretização dos elementos que integram um e outro, e sem suporte probatório para sustentar aquela afirmação.

Ora, “tal como sucede com o requerente, o devedor oponente deve, com o articulado de oposição, oferecer os meios de prova de que disponha, seja qual for a sua natureza. A falta de cumprimento desta injunção determina a impossibilidade de produção da prova não indicada, salvo se, como acontece com o autor, puder demonstrar, a tempo, a impossibilidade em que se achou de fazer a indicação na altura da apresentação da oposição.

Por razões que, decerto, se prendem com o princípio geral da igualdade das partes, as regras aplicáveis à produção de prova pelo requerente são extensíveis ao devedor”[21].

Trata-se do mais elementar princípio da distribuição do ónus de prova: se sobre o requerente da declaração de insolvência recai o dever de alegar factos concretos fundamentadores dessa pretensão e de os comprovar, o requerido, deduzindo oposição, é igualmente onerado com o dever de alegar a factualidade em que se apoia para negar a existência dos factos alegados para a formulação daquele pedido ou da situação de insolvência.

O regime previsto no artigo 11º do CIRE – que permite ao juiz fundamentar a sua decisão sobre o pedido de declaração de insolvência em factos não alegados pelas partes e, através do exercício dos poderes inquisitórios, a livre investigação dos factos – não se destina a suprir a inércia das partes quanto à actividade probatória a que estão sujeitas, antes constitui um meio complementar de investigação de factos reputados com interesse para a decisão a proferir, independentemente de alegados ou não pelas partes.

Não pode, assim, a recorrente socorrer-se da faculdade reconhecida ao juiz pelo citado artigo 11º, para impor a este uma tarefa probatória que apenas a ela estava cometida, como a de juntar a escrituração, organizada e arrumada, que obviamente deve estar em poder da devedora, sabendo, de antemão, que a junção de tal elemento contabilístico era determinante para comprovar a alegada situação de solvência, nem poderá justificar a sua inércia probatória com o exercício daqueles poderes.

 De todo o modo, sempre se acrescentará que a investigação oficiosa sobre a existência de créditos fiscais da titularidade da recorrente, haveria de redundar numa tarefa inútil, e, portanto, desaconselhável, face à evidente situação de penúria da mesma, que não poderia ser suprida pelos mesmos. Estes teriam de ser certos e de valor que permitisse solver a totalidade das dívidas, o que, face, à restante factualidade apurada, não se afigura sequer provável.

 Vale dizer: a recorrida alegou e comprovou factos em que fundamentou o pedido de declaração de insolvência; a recorrente, contrapondo àquela pretensão a existência de uma situação de solvência, não só não comprovou esta, como nem sequer alegou factos concretos que permitissem formular um juízo sobre a existência ou não da invocada solvência.

Perante este quadro, não se justificava outra decisão que não fosse a de declarar a insolvência da recorrente, não merecendo, como tal, qualquer censura a decisão recorrida.


*

Conclusão:

1- Os documentos devem ser juntos com o articulado correspondente; a admissibilidade da sua junção em sede de recurso tem natureza excepcional, só podendo ter lugar quando ocorra uma das situações previstas no artigo 524º do Código de Processo Civil, nos casos expressamente delimitados nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º do mesmo diploma ou quando a sua junção se torne necessária em virtude de julgamento proferido em 1ª instância.

2- O pressuposto objectivo para a declaração de insolvência radica na verificação da insolvência tal como a define o nº1 do artigo 3º do CIRE, e quando a mesma é requerida por alguém que não o próprio devedor, designadamente um seu credor, terá este de fundamentar a pretensão deduzida com a alegação de factos mencionados no artigo 20º do citado diploma, factos-índice ou presuntivos da situação de insolvência ou circunstancialismo que exteriorize esse mesmo estado.

3- Mas ainda que comprovado algum do circunstancialismo elencado no artigo 20º do CIRE, poderá tal não ser suficiente para a declaração de insolvência do devedor; basta que este ilida a presunção de insolvência fundada em algum dos factos aí enunciados, demonstrando a inexistência da situação de insolvência tal como lhe é facultado pelo artigo 30º, nº3, última parte do mencionado diploma.

4- Se a oposição deduzida pelo requerido se fundar na inexistência da situação de insolvência, cabe ao mesmo demonstrar a sua solvência, baseando-se na escrituração, quando legalmente obrigatória, devidamente organizada e arrumada.

O regime previsto no artigo 11º do CIRE – que permite ao juiz fundamentar a sua decisão sobre o pedido de declaração de insolvência em factos não alegados pelas partes e, através do exercício dos poderes inquisitórios, a livre investigação dos factos – não se destina a suprir a inércia das partes quanto à actividade probatória a que estão sujeitas, antes constitui um meio complementar de investigação de factos reputados com interesse para a decisão a proferir, independentemente de alegados ou não pelas partes.


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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando, assim, a decisão recorrida.

Custas: pela recorrente.




Judite Pires ( Relatora )
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma
[3] Artigo 523º, nº1 do Código de Processo Civil.
[4] Cf. Acórdão desta Relação, de 15-06.2010, processo nº 690/2002.C1, Acórdãos da Relação de Lisboa, de 04.3.2010 e de 06.10.2009, processos nºs 916/08.6TBRMR-A.L1-2 e 214/09-7, Acórdão da Relação do Porto, 20.10.2009, processo nº 4345/07.0TBVFR.P1, todos em www.dgsi.pt.
[5] CJ 2000, tomo II, pág. 131.

[6] Onde se refere: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”
[7] “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, pág. 273
[8]Arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 do Código de Processo Civil
[9] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[10] Alínea a) do nº1 do artigo 712º do CPC.
[11] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime “, págs. 280, 281.
[12] BMJ nº 80, págs. 220, 221
[13] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, pág. 284
[14] Acórdão da Relação do Porto, 18.02.2010, processo nº 374/09.8TBVPA.P1, www.dgsi.pt.
[15] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, pág. 72.
[16] Citado Acórdão da Relação do Porto, de 18.02.2010.
[17] Carvalho Fernandes, João Labareda, “ob. cit.”, pág. 134.
[18] Ibid, pág. 135.
[19] Ibid, pág. 137.
[20] Cf. Maria do Rosário Epifânio, “Manual do Direito da Insolvência”, pág. 28.
[21] Carvalho Fernandes, João Labareda, “ob. cit.”, pág. 172.