Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | MARIA PILAR DE OLIVEIRA | ||
| Descritores: | PECULATO TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE BEM JURÍDICO PROTEGIDO CONCURSO EFECTIVO | ||
| Data do Acordão: | 05/22/2013 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 30.º, N.º 1 E 375.º, N.º 1, DO CP; ARTIGO 21.º, N.º 1, DO DL 15/93, DE 22-01 | ||
| Sumário: | I - A criminalização do peculato radica na necessidade de defesa do bom andamento e legalidade da administração ligada à fidelidade dos seus funcionários (interesse patrimonial do Estado), enquanto a criminalização do tráfico de estupefacientes assenta fundamentalmente na necessidade de defesa da saúde pública (integridade física e vida das pessoas). II - Consequentemente, na situação dos autos, em que a arguida, farmacêutica num hospital inserido no sistema nacional de saúde, retirou, de um cofre existente nesse estabelecimento, e fez seus 42,96 gramas de cloridrato de cocaína, que destinou ao seu consumo e à cedência a terceiros, existe concurso efectivo entre os dois referidos crimes, p. e p., o primeiro, pelo artigo 375.º, n.º 1, do CP, e o segundo, pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo nº 174/10.2JACBR da Vara de Competência, 1ª Secção, do Tribunal Judicial de Coimbra, a arguida A...., identificada nos autos, foi submetida a julgamento acusada da prática, em concurso real, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1, e 24.º, alínea e), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01 e de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. artigo 375º, nº 1 e 30º, nº 2, ambos do Código Penal. Os B..., EPE deduziram pedido de indemnização civil contra a arguida, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de global de € 4775,00 (quatro mil setecentos e setenta e cinco euros) acrescida de juros de mora, contados desde a notificação do pedido, até integral pagamento, correspondendo ao valor de 514 gramas de cloridrato de cocaína alegadamente por ela subtraídos, nos termos exarados na acusação pública.
Realizada que foi a audiência de julgamento, em 18 de Janeiro de 2011, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, e decidindo, acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em: 1. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, nos termos referidos, a acusação deduzida, E nessa medida: Þ a) Condenar a arguida como autora material de um crime de peculato, na forma continuada consumada e dolosa, p. e p. pelos art. art. 375º º, nº1 e 30º, nº 2, ambos do Código Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão . Þ b) Absolver a arguida como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, na forma consumada e dolosa, p.º e p.º pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, al.ª h), ambos do D. Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A, anexa ao referido diploma legal, Þ c) Condenar a arguida como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes na forma consumada e dolosa, p.º e p.º pelos art.ºs 21.º, n.º 1 do D. Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A, anexa ao referido diploma legal, na pena de 4 (quatro ) anos de prisão. Þ d) Condenar a arguida em concurso real de infracções, nos termos do art. 77º do C.Penal, numa pena única de 5 (cinco) anos de prisão; I. Pelos fundamentos supra expostos, suspender a execução de tal pena aplicada à arguida por igual período de 5 (cinco) anos suspensão essa com a aplicação de regime de prova: a suspensão será acompanhada do regime de prova, e bem assim dos deveres de a arguida se submeter ao plano individual de readaptação social a elaborar pela DGRS, com subsequente homologação do Tribunal, e responder às convocatórias do técnico de reinserção social, colocando à sua disposição as informações necessárias, designadamente alterações de residência (art.ºs 52.º e 54.º do C.Penal - com particular enfoque no problema do acompanhamento da cura da toxicodependência ( sendo recomendável que possa beneficiar de um regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico, para garantir a sua abstinência.”). II. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado o pedido de indemnização cível dos B ... contra a arguida deduzido, termos em que se condena a mesma no pagamento da quantia de 340,00 (trezentos e quarenta) euros a pagar àquela demandante, a que acrescem juros de mora, à taxa supletiva legal aplicável às dividas de natureza civil (de 4% ao ano, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 08-04, ou outra taxa que entretanto venha a vigorar em substituição desta), desde a data da notificação para contestação do pedido cível e até integral pagamento, com custas na proporção, por requerente e requerida. III. Condenar o arguido no pagamento da quantia correspondente ao mínimo legal de taxa de justiça (sem redução a que alude o art.º 344.º, n.º 2, al. c), do CPPen.), e, bem assim, nos legais encargos do processo. IV. Determinar se comunique à DGRS, que apresentará relatório semestral quanto ao cumprimento pela arguida dos deveres inerentes ao regime de prova e evolução da mesma. V. Declarar perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto no art.º 35.º do D. Lei n.º 15/93, de 22/01, os estupefacientes apreendidos, assim bem como os referidos medicamentos, e demais objectos apreendidos. VI. Após trânsito em julgado, determinar se proceda à destruição da droga apreendida (cf. art.º 62.º, n.º 6, do D. Lei n.º 15/93, de 22-01), que ainda o não tenha sido assim como tais medicamentos e objectos.
Inconformados, recorreram o Ministério Público e a arguida A.... O Ministério Público extraiu da sua motivação as seguintes conclusões: 1 - Nos presentes autos foi a arguida A..., acusada da prática de factos integradores, em concurso real e sob a forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.s 21.°, n.º 1, e 24.°, al.ª e), do D. Lei n.º 15/93, de 22-01 e um crime de peculato na forma continuada, p. p. art. 375°, nº 1 e 30°, nº 2, ambos do Código Penal. 2 - Efectuado o julgamento, foi a arguida condenada pela prática de um crime de peculato, na forma continuada consumada e dolosa, p. e p. pelos art. art. 375º, nº 1 e 30°, nº 2, ambos do Código Penal e pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na forma consumada e dolosa, p. e p. pelos art.ºs 21.°, n.º 1 do D. Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A, anexa ao referido diploma legal, na pena única de 5 anos de prisão. 3 - O presente recurso visa sindicar a matéria de facto dada como provada e não provada no acórdão recorrido entendendo o Ministério Público que há determinados factos que foram incorrectamente julgados uma vez que existem elementos probatórios que impõem decisão diversa. 4 - Com efeito, face ao teor dos depoimentos das testemunhas de acusação produzidos em audiência de julgamento, com especial relevo para os depoimentos das testemunhas G... (acta de audiência de julgamento de 7/12/2011) Q... (acta de audiência de julgamento de 7/12/2011) e E... (acta de audiência de julgamento de 22/12/2011), conjugados com o resultado da busca domiciliária (fls. 164-165) com os documentos juntos aos autos, mormente os exibidos na audiência de 22/12/2011 (todas as fichas de prateleira e guias de produção), com as imagens da vídeo vigilância, relatórios periciais, analisando todos estes elementos de acordo com as regras da experiência e à luz do normal acontecer, não podemos deixar de concluir que foi a arguida quem se apoderou de 471,3 gramas de cloridrato de cocaína que desapareceram, pelo menos, entre Janeiro e Abril de 2010. 5 - Assim, entendemos que se mostram incorrectamente julgados: - os factos constantes dos pontos 10. e 24. dos factos provados. - e dos factos não provados, pontos: - Pelo modo supra descrito, e pelo menos desde Novembro de 2009 a Abril de 2010, a arguida, por diversas vezes, em dias e horas não concretamente apurados, apoderou-se também de 471,3 gramas de cloridrato de cocaína. A quantidade de produto estupefaciente de que a arguida se apoderou - cerca de 514 gramas, num período de quase um ano, correspondia sem corte, a 2596 doses, num cômputo diário de 6/7 doses e com lucro estimado de € 51 000,00 euros. Com tal conduta, provocou a arguida um prejuízo ao ... de cerca de 4775,00 euros. 6 - Sendo que, da conjugação de todos aqueles elementos de prova analisados de acordo com as regras da experiência, deveria o Colectivo ter eliminado os factos constantes dos pontos 10. e 24. dos factos provados e dar como provado que - Pelo modo supra descrito, e pelo menos desde Janeiro a Abril de 2010, a arguida, por diversas vezes, em dias e horas não concretamente apurados, apoderou-se também de 471,3 gramas de cloridrato de cocaína. A quantidade de produto estupefaciente de que a arguida se apoderou - cerca de 514 gramas, num período de quase um ano, correspondia sem corte, a 2596 doses, num cômputo diário de 6/7 doses e com lucro estimado de € 51 000,00 euros. Com tal conduta, provocou a arguida um prejuízo ao ... de cerca de 4775,00 euros. 7 - Tendo em conta a quantidade de produto de que a arguida se apoderou, a pena aplicada necessariamente terá de ser alterada. 8 - Assim, tendo em conta os critérios a que alude o art. 71° do C. Penal, devidamente ponderados no acórdão recorrido, com especial relevo para a quantidade de estupefaciente subtraído, entendemos justa e equilibrada: - a pena de 3 anos de prisão para o crime de peculato. - a pena de 5 anos de prisão para o crime de tráfico. 9 - Em cúmulo jurídico, deve a arguida ser condenada na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão. 10 - Foi violado o disposto no artigo 127°, do CPP e o princípio in dúbio pró reo por errónea aplicação do mesmo. 11 - Deve, assim, - alterar-se o acórdão recorrido, quanto à matéria de facto, nos termos expostos, - ser aplicada à arguida a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão pela prática dos crimes por que foi condenada nos autos. Porém, V.as Ex.as, decidindo, farão, como sempre, JUSTIÇA!
A arguida extraiu da sua motivação as seguintes conclusões: B1: O processo não fornece prova licitamente assumível dos factos constantes dos pontos 6°, 8° e 11° dos "factos provados", pelo que, no que o mesmo concerne a respetiva matéria deve passar para a não provada B2: dada, além do mais, a inexistência expressamente reconhecida pelo areópago de "qualquer prova direta" o que conduz a que o mesmo tenha acabado por fazer apelo a dois pesos e duas medidas, relativamente ao que julgou e da forma que o fez, no que atine, desde logo, ao "desaparecido" entre novembro de 2009 e abril de 2010 B3: como flui do próprio teor literal do acórdão, onde os senhores juízes se limitaram a considerar, ante a inexistência de prova direta da autoria, que a recorrente "terá" perpetrado os acontecimentos relevantes neste processo alegadamente ocorridos nos dias 17 e 19 de Setembro. Como assim B4: ao julgarem como o fizeram este setor da matéria de facto, os senhores juízes incorreram em erro de julgamento, ostracizando o princípio geral do processo penal relativo à prova do in dubio pro reo, princípio este constitucionalmente consagrado no artigo 32°-2 da CRP e que nos termos do artigo 18°-1 do mesmo compêndio é de aplicação direta, tudo normas violadas pela referida decisão e outrossim tutelado, à semelhança dos demais consabidos princípios gerais do processo penal, no artigo 4° do código respetivo e, como tal, também violada. Assim, B5: no que tange os pontos 6°, 8° e 11° deve a matéria de facto ser alterada, de jeito a considerar-se não provada a matéria deles constante, como é, desde logo, imposto pelas declarações prestadas por C..., prestadas na sessão do dia 7 de dezembro de 2011, ficheiro nº 20111207104649, com início às 10H 46M 49S, gravadas em sistema habilus, disco compacto identificado com data e número do processo, B6: ou ainda do depoimento prestado por D... na sessão do dia 7 de dezembro de 2011, ficheiro 20111207101418, com início às 10H 14M 185, gravadas em sistema habilus, disco compacto identificado com data e número do processo. B7: Também a matéria do ponto 10° é reveladora do inultrapassável confusionismo que se apoderou dos espíritos dos doutos julgadores ao pôr em questão o que anteriormente dará como assento: a apropriação de duas porções de cocaína, que haviam, forçosamente, de ter o peso global de 42, 96 gramas B8: Quanto à "conclusão" 11a dos factos que o acórdão julgou provados, a mesma, por constituir apenas matéria de direito, deve ser tida por não escrita, sendo certo que B9: o depoimento da testemunha E... prestado na sessão de 22 de dezembro de 2011, constante do ficheiro n° 20111222100428, com início às 10H 04M 28S, gravado em sistema habilus, disco compacto identificado com data e número do processo, confirma tudo o que tem vindo a ser dito nas conclusões anteriores, no que concerne a matéria de facto. Com efeito B10: a resposta 11a ressuma de uma mera presunção tantum iuris - decorrente da tal matéria de direito - e dos pré-juízos judiciais que lhe subjazeram, pelo que a mesma também radica num erro de direito que inquinou a assunção probatória. B11: No que toca as atuações descritas no artigo 21°-1 do decreto-lei nº 15/93, aquela que recobre o comportamento da recorrente é a da "detenção ilícita" - ilicitamente detiver, a qual, atentas as caraterísticas do concreto atuar humano, consome ou retira campo de aplicação a qualquer uma e a todas das demais. Porém B12: atenta a porção de estupefaciente comprovamente adquirida, de forma reta e lícita atribuída à recorrente - 1,3 gramas de cocaína - tendo em conta as disposições conjugadas dos artigos 1° e 2° da Lei nº 30/2000, de 29 de novembro e da portaria 94/96, de 26 de março, deve considerar-se que no que atine os estupefacientes a recorrente se encontra incursa numa mera contraordenação, por a lei presumir que a porção cuja detenção lhe foi validamente atribuída se destina ao mero consumo. Com efeito, B13: o ponto 17° da matéria tida como provada, ao referir-se à concomitantemente à "detenção, consumo, etc", constitui uma clara violação da proibição de uma condenação bis in idem e, por conseguinte, do artigo 29°-5 da Constituição. Por outro lado B14: atenta a porção de estupefaciente (cocaína) ilicitamente, de forma comprovada sem mácula, da qual a recorrente se apropriou - 1,3 gramas - tendo em conta as disposições conjugadas do artigo 2° da Lei nº 30/2000, de 29 de novembro e da Portaria nº 94/96, de 26 de março a recorrente está incursa numa mera contraordenação e B15: por assim não ter decidido o acórdão recorrido violou o disposto nos normativos acabados de referir e, bem assim, o artigo 21 do decreto-lei n° 15/93, de 22 de Janeiro. B16: Não há cabimento para discretear acerca de um eventual concurso real/concurso aparente de infrações, pois a contraordenação percute domínio de proibição não jurídico-penalmente tutelado. E assim B17: de acordo com o entendimento dominante, a discordar-se do anteriormente referido e respetivos pressupostos, teríamos então que o delito de dano (peculato) consumiria o de perigo (tráfico), ficando apenas aquele a subsistir. B18: Se assim for considerado, o presente recurso deve obter provimento, mantendo-se a condenação pelo peculato e apenas por este, na pena de dois anos de prisão, suspensa a mesma na respetiva execução durante o mesmo período com submissão a regime de prova B19: e condenação a indemnizar os ... do preço de 1,3 gramas de cocaína, acrescida de juros sobre igual montante, tudo nos demais termos a este propósito decorrentes do acórdão B20: e absolvendo-se a arguida do crime de tráfico de estupefacientes.
Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela Arguida, concluindo que não merece provimento. Notificada, a Arguida respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público pugnando pela sua improcedência. Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer no sentido de que o recurso do Ministério Público merece provimento, não o merecendo o recurso da arguida. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, a arguida exerceu o direito de resposta, para reafirmar os argumentos do seu recurso e da sua resposta ao recurso do Ministério Público. Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir. *** II. Fundamentos da decisão recorrida A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos: A) – Factos provados Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos: Da factualidade criminosa 1. A arguida desempenha funções de farmacêutica nos Serviços Farmacêuticos dos B... ( ...) desde Janeiro de 2000. 2. No Laboratório daqueles serviços encontra-se um cofre, no interior do qual estava armazenado, em frascos, cloridrato de cocaína. 3. Esta substância estupefaciente destina-se exclusivamente à manipulação e preparação de produtos farmacêuticos, na sequência da utilização de prescrição médica, a nível hospitalar. 4. A abertura daquele cofre era feita através de um código e de uma chave. 5. Apenas por força das suas funções e no exercício delas, a arguida era conhecedora do referido código e tinha acesso à chave, e, consequente e necessariamente, ao interior do cofre. 6. Porém, aproveitando-se de tais circunstâncias e a coberto, maioritariamente, de serviços do turno nocturno, mas também de horários pós-laborais e férias, a arguida desde pelo menos, 17 de Agosto de 2010, até Setembro de 2010, dirigiu-se, por diversas vezes, ao cofre e dali retirou e fez sua aquela substância em quantidades variáveis. 7. Para tanto, a arguida abria o cofre e de seguida o (s) frasco (s), e após vertia o cloridrato de cocaína para o interior de um saco ou envelope, abandonando o local. 8. Concretamente no período compreendido entre 17 de Agosto e 4 de Setembro de 2010, a arguida apoderou-se de 41,66 gramas do cloridrato de cocaína. 9. Mas também no período compreendido entre 17 e 19 de Setembro de 2010, apoderou-se de quantidade não concretamente apurada, até aproximadamente 1,3 gramas daquela mesma substância. 10. A quantidade total de produto estupefaciente de que a arguida comprovadamente se apoderou – entre 41,66 e 42,96 gramas - apresentava-se em estado puro, correspondendo, sem corte, a cerca de 217 doses, num cômputo diário de 6/7 doses, e com lucro estimado de € 4.263 euros. 11. Destinou a arguida tal produto a consumo próprio e também, atenta designadamente a quantidade e grau de pureza supra-aludidos, – porque não lhe seria fisicamente possível o consumo integral do mesmo – à cedência a terceiros, que se não logrou identificar. 13. A arguida subtraiu ainda por diversas vezes, dos Serviços farmacêuticos, vários fármacos de origem hospitalar, designadamente Alprazolam, Tiocolquicosido, e de Cetirizina. 14. A arguida sabia que o cloridrato de cocaína e os fármacos não lhe pertenciam, que os mesmos se destinavam a uso exclusivo no hospital e que não tinha qualquer autorização para os retirar. 15. A arguida aproveitou-se da sua qualidade de farmacêutica e da possibilidade de aceder ao cofre para fazer suas as várias quantidades de produto estupefaciente e fármacos, como efectivamente fez. 16. Com tal conduta, provocou a arguida um prejuízo apurado ao B... de ao menos cerca de 340,00 euros. 17. Conhecia ainda a arguida a natureza e características do cloridrato de cocaína, bem sabendo que se tratava de um produto estupefaciente e que, por isso, não lhe era permitido deter, consumir, transportar, ceder ou, por qualquer forma, proporcionar a outrem aquelas substâncias fora do uso exclusivo do hospital. 18. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. 19. A arguida tinha na sua posse aquando da busca à casa onde reside uma unidade de cada um dos medicamentos,- à excepção do ALPRAZOLAM, que é um ansiolítico. 20. O Tiocolquicosido é um antiinflamatório/relaxante muscular. 21. A Cetirizina é um produto anti-histamínico a que faz apelo em situações de alergias. 22. De entre o pessoal da Farmácia, há ao menos 22 pessoas com acesso ao código do Cofre. 23. Aquando da instauração dos autos de inquérito, as condições de armazenamento da cocaína não permitiram ter como únicos suspeitos da investigação os funcionários com legitimidade para poderem aceder ao cofre. 24.Entre 1995 e Abril de 2010, em dias e horas não concretamente apurados, foram ainda subtraídos 471,3 gramas de cloridrato de cocaína do referido cofre.
Da personalidade e condições pessoais: 25. A arguida passou a ser seguida em consulta do CRI (Centro de Respostas integradas) da Delegação Regional do Centro do Instituto da Droga e Toxicodependência, IP, desde 29 de Setembro de 2010, apresentando uma síndroma de abstinência de cocaína não complicada, revelando humor disfórico, com anedonia, fadiga e perturbação de sono; pela história clínica, e apresentou desde Novembro de 2008 sindroma de dependência de cocaína (F14.2), com desejo imperioso, incapacidade de controlo dos consumos de cocaína, e evidência de tolerância. 26. A sua personalidade é pautada por traços de instabilidade emocional, bem como traços dependentes e evitantes – um fundo de personalidade onde releva uma acentuação de traços de imaturidade e de impulsividade. 27. Efectua psicoterapia cognitiva comportamental e é seguida em consultas de psiquiatria. 28. A arguida é uma pessoa geralmente estimada e apreciada, não só a nível familiar como no dos amigos e a situação ajuizada apanhou de surpresa familiares, amigos e colegas de trabalho. 29.Foi uma mãe excepcional pois praticamente sozinha se ocupou da educação do filho. 30. Casou tinha 18 anos e a relação perdurou, por um período de seis anos, com dificuldades, culminando em divórcio, a que se seguiu um processo de regulação do poder paternal do filho nascido ainda era estudante, o que lhe dificultava os estudos, tendo de dividir o seu tempo entre esses cuidados e a actividade lectiva. 31. É tida nos B... como profissional de mérito para o que contribuiu a sua formação permanente a que se dedicou, designadamente de post-graduação. 32. É a primeira de uma fratria de 4 irmãos, sendo oriundo da família de classe média alta, teve uma infância sem dificuldades económicas, um percurso escolar normal e um ambiente familiar afectuoso. 33. Concluiu a sua licenciatura em 1992 e fez ainda duas pós-graduações na mesma área, em Lisboa e Porto. 34. Desenvolveu períodos de tensão e stress emocional com a adopção de comportamentos de risco - por força da gravidez não planeada, aos 18 anos, casamento e divórcio do pai do filho e exercício da maternidade concomitante com o desejo de estudar e se licenciar. 35. Integra o agregado familiar dos seus progenitores desde a sua separação - há cerca de 20 anos, mantendo com os mesmos uma relação de vinculação e proximidade. 36. Em Janeiro de 2006 desempenhava em acumulação com as funções nos B..., actividade privada na Clínica Médico-Cirúrgica, o que lhe conferiu uma situação confortável. 37. Está suspensa da actividade profissional desde Setembro de 2010. 38. O processo causou impacto social e sofrimento no contexto familiar, surpreendendo progenitores, colegas e amigos que detinham uma imagem muito positiva da arguida bem como o desconhecimento da problemática da toxicodependência. 39. Tem suporte afectivo, económico e social nos progenitores, amigos e colegas mais íntimos.
Antecedentes criminais: 40. A arguida é primária. A quantidade de produto estupefaciente de que a arguida se apoderou – cerca de 514 gramas, num período de quase um ano, correspondia sem corte, a 2596 doses, num cômputo diário de 6/7 doses e com lucro estimado de € 51 000,00 euros. Quanto às incursões dos dias 17 e 19 de Setembro de 2010, - em que se apoderou de substância de aproximadamente “até” cerca de 1,3 gramas -a própria arguida as admitiu em contestação escrita apresentada, constando registadas as respectivas imagens de vídeo vigilância, captadas também em fotogramas: Ø no dia 17 de Setembro foram captadas duas idas ao cofre - a primeira, pelas 16h55m, e a segunda pelas 23h32m, sendo manifesta a intenção de subtracção na primeira e tentativa de ocultação de vestígios na segunda ; Ø a 19 de Setembro, domingo, a mesma volta a abrir o cofre – pelas 21h11m- e a verificar conteúdos abrindo o segundo cofre, olhando em redor, desconfiando que pudesse estar a ser vigiada - nesse dia efectuava serviço de turno iniciado pelas 9h00m e terminado às 17.00hm ( tendo trocado turno de 18 para 19 a pedido da testemunha Q...). Sabemos que no dia 15 de Setembro, e após autorização do director, fora preparado frasco com 1,3 gramas de cloridrato de cocaína ( o remanescente do frasco, e que se colocara de parte para eventual necessidade), sendo no fundo colocadas 48,5 gramas de substância inerte (placebo) - acrescentando à superfície os referidos 1,3 gramas- num peso bruto total de 137 gramas; ora, admite-se que a arguida não tenha subtraído na sua absoluta totalidade -dos 23,4 gramas subtraídos do frasco - , os dittos 1,3 gramas de cloridrato: apesar de detectada diminuição da volumetria, de a cocaína estar à superfície e se confirmar, no dia 20, que o peso global do frasco se reduzira a 113,6 gramas, não há garantia de que na quantidade subtraída se achasse a “ totalidade” daqueles 1,3 gramas acrescentados à superfície - mas a análise deste (segundo) frasco mostra que era constituída por latose com vestígios de cloridrato de apenas cerca de 1,6% ,- assim, terão sido, na sua quase totalidade, retirados pela arguida, aqueles 1,3 gramas. A 22 de Setembro, pelas 18h33m, a mesma desloca-se ao local, não obstante se achar de férias iniciadas a 20 de Setembro retomando o serviço a 27 de Setembro - não se apurando a sua actuação nesse mesmo dia.(veio a arguida a ser inequivocamente identificada pelo visionamento de tal filme pelas testemunhas G... e Dr. E... - sendo devidamente registadas as incursões lícitas levadas a cabo por testemunhas autorizadas)- cf. auto de gravação e visionamento de fols. 97 e ss. e fotogramas juntos de fols. 98 a 123; e o auto de gravação e visionamento de fols. 240 e fotogramas de fols. 242 e ss. – atinentes a 22-09. Detectada por alturas de Abril de 2010 a falta de produto estupefaciente, sabemos que já anteriormente - em meados de Outubro de 2009-, desaparecera do interior do Cofre o documento de registos(ficha de prateleira) respeitante aos consumos efectuados entre Novembro de 2008 e Outubro de 2009, e a maior parte do cloridrato de cocaína em falta teria sido subtraído entre Janeiro e Abril de 2010- apontaram algumas das testemunhas (de acordo com os depoimentos das testemunhas G... e C... ). Mas subsistiu dúvida quanto à possibilidade de imputação à arguida da subtracção continuada entre Novembro de 2009 a Abril de 2010, da quantidade total de 471,3 gramas de cloridrato de cocaína, e que resultou da conjugação dos vários depoimentos e documentos carreados, deles se extraindo dúvida que perpassa da fase inicial da investigação policial - exarada já em fase de inquérito: Ø Que sendo o cloridrato de cocaína armazenado num Cofre, na área de farmacotecnia, com segredo, este estava numa sala de acesso livre a largas dezenas de farmacêuticos e funcionários (cerca de 89 a 90- todos os elementos da farmácia hospitalar), cf. listagem junta a fols. 19 a 21 e cota 22, no mesmo piso onde se encontram as demais áreas dos serviços farmacêuticos, como tal de grande afluência, inexistindo controlo nocturno pois após as 23 horas apenas ficava de serviço um farmacêutico e um técnico, e em salas afastadas da do cofre; Quanto à subtracção cuja detecção foi feita em 4 de Setembro de 2010, da quantidade total de 41,66 gramas, nos termos expostos - tendo sido encomendada e adquirida de empréstimo a 17 de Agosto de 2010, uma frasco de 50 gramas, ao Hospital de K... do X... - inexistindo prova directa da autoria - não obstante, o tribunal firma convicção, atenta a contiguidade temporal relativamente aos factos dos dias 17 e 19, da sua autoria pela arguida - de que também terá sido perpetrada pela arguida - em número de incursões não concretamente determinado: dos mapas de Escalas de Serviços de Turnos, referentes aos meses de Agosto e Setembro de 2010, bem como a listagem dos funcionários que estiveram de férias no período entre 17 de Agosto a 4 de Setembro - extrai-se que a arguida não esteve de férias entre 17 de Agosto e 20 de Setembro e esteve de turno no dia 17-08-2010, no turno das 16.00hm às 6.00 hm ( dia da recepção dos 50 gramas); a 29-08-2010, entre as 17.00 hm e as 6.00 hm (domingo) e no dia 3-09-2010, entre as 16.00 hm e as 6.00 hm, - (fols.59 a 61 e 83 e s. a contrario) - tendo assim oportunidade para tal subtracção - numa multiplicidade de ocasiões; ademais, as actuações da arguida nos fotogramas denotam uma conduta sistematizada, automática e ordenada, perfeitamente de acordo com uma multiplicidade de incursões - sendo certo que a mesma nunca necessitara - em todo o seu percurso de farmacêutica, nos ..., de proceder a qualquer preparado com finalidade analgésica. O documento de fols. 18 enuncia os movimentos de stock de cloridrato - e a asserção de que nos anos de 2008 só se fizeram 8 preparações, com gasto de 25,3 gramas e em 2009 apenas nove, com gastos de 16,6 gramas - assim bem como os carreados em sede de audiências de julgamento pela testemunha E.... Na busca domiciliária realizada em 27 de Setembro de 2010- conforme auto de fols. 164 e ss., foram apreendidos alguns objectos conexionados com manipulação e consumo de cocaína como tubos de plástico, sacos com resíduos de cocaína, um objecto metálico com resíduos, alguns fármacos de origem hospitalar e um panfleto de 0,7 gramas pertencente ao filho; assim bem como os referidos fármacos de origem hospitalar. Na busca ao seu cacifo particular nesse mesmo dia, no hospital - cf. auto de busca e apreensão de fols. 178 foram achados comprimidos de morfina e outros objectos - como palhinhas - afectos ao consumo de drogas. 2. … 3. … Tal como a apropriação indébita, o peculato pressupõe no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada. A posse antecedente da coisa e a infidelidade do agente ao seu dever funcional são elementos tradicionalmente incluídos no conceito de peculato, (Nélson Hungria, apud Leal‑Henriques / Simas Santos 1617 e 1618). Os factos são ainda subsumíveis, na óptica acusatória, ao crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.s 21.º, n.º 1, e 24.º, al.ª e), do D. Lei n.º 15/93, de 22-01, correspondendo moldura legal agravada de 5 a 15 anos de prisão (as balizas de 4 a 12 anos sofrem agravação: será aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo). Dispõe o primeiro dos citados preceitos legais (art.º 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93) que – afastados os casos de consumo – quem, sem para tanto estar autorizado, (...) oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, (...) fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.º 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. E preceitua o art.º 24.º, al.ª e), aludido que esta pena será aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se o agente “ for … farmacêutico … e o facto for praticado no exercício das suas funções.” No crime de tráfico de estupefacientes o bem jurídico protegido é a saúde pública, constituindo crime de perigo comum: o legislador visa evitar, através da punição do tráfico de estupefacientes, a degradação e destruição humana provocada pelo consumo de drogas, que o tráfico sempre potencia; protege-se, assim, uma multiplicidade de bens jurídicos, embora todos eles possam entroncar, e reconduzir-se, a um mais geral, qual seja a saúde pública. Trata-se de um crime de perigo abstracto, donde que não pressuponha o dano nem a sua verificação sobre um dos concretos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora, mas tão-só a perigosidade da acção, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência (cf. AC Tribunal Constitucional de 02-04-1992, “in” BMJ 411, pag. 56). O conceito legal de tráfico admite, como logo resulta do teor da norma incriminadora citada, toda uma série de actividades, entre as quais constam, para além da venda, a aquisição, cedência, o transporte ou a detenção, sem a legal autorização, de substâncias ou preparados compreendidos em tabela anexa ao dito diploma. Para a consumação da infracção não releva o destino efectivo ou a intenção lucrativa, antes relevando a quantidade total do produto estupefaciente. Sendo o normativo do art. 21º especialmente mais gravoso do que os estabelecidos nos art.ºs 25.º e 26.º do dito diploma legal, importa verificar da aplicabilidade daqueles, já que a respectiva aplicação, como tipos menos gravosos, excluiria a aplicação do tipo do art.º 21.º. O art.º 25.º tem aplicação às situações em que, “... nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações ...” (sic.). E o art.º 26.º desse diploma tem como campo de aplicação as situações em que, “... pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal ...” (sic., n.º 1), desde que estas não excedam a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias (cfr. n.º 3). Cremos manifestamente afastada a verificação de tais tipos menos gravosos: num período de aproximadamente um mês, subtraiu produto estupefaciente comprovadamente se apoderando de uma quantidade entre 41,66 e 42,96 gramas - substância que se apresentava em estado puro, correspondendo, sem corte, a cerca de 217 doses, num cômputo diário de 6/7 doses. As imputações não resultaram provadas na totalidade, em julgamento, mas ficou inequivocamente apurado que ocorreu a detenção e posse pela arguida do produto em questão, e que pelas quantidades e número de doses, era manifestamente excedido o montante diário destinado a consumo. Não se provando que a mesma afectava a substância - exclusivamente - a consumo, a sua conduta não poderá, obviamente, configurar-se como mero consumo, mostrando-se preenchidos in casu, os elementos do tipo legal de crime previsto no art.º 21.º, n.º 1 (tráfico), daquele diploma legal: os meios utilizados pela arguida não diminuem a ilicitude da sua conduta, a qual também não pode ter-se por consideravelmente diminuída ante a modalidade e circunstâncias da sua acção, considerando a quantidade e qualidade da substância apreendida. A arguida aproveitou-se de cargo de enorme responsabilidade – pertencendo à única classe profissional que pode aceder e fazer uso, licitamente de tal droga, mormente para fins hospitalares e - assim dar satisfação aos seu hábitos aditivos -de consumo. Para tal diminuição de ilicitude não bastaria a mera intenção de consumo ou cedência gratuita, posto que a quantidade mostra a gravidade da conduta. Também por este prisma, se não vislumbra que a conduta da arguida possa enquadrar-se no tipo do art.º 25.º. Igualmente haverá de ter-se por afastada a aplicação ao caso do disposto no art.º 26.º do mesmo diploma, pois que, desde logo, se não demonstra que a arguida tinha por finalidade exclusiva o seu próprio uso. Do exposto decorre que, e tendo a arguida agido de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo punida por lei a sua conduta, os factos apurados consubstanciam um ilícito a enquadrar no tipo previsto pelo art.º 21.º, n.º 1, do referido DLei n.º 15/93. Importa neste momento analisar se ocorre um concurso, real ou ideal, ou ainda se existe uma relação de consunção entre os dois ilícitos. A unidade e pluralidade de infracções mede-se pelo número de tipos legais de crime culposamente violados pelo agente isto é, usando a terminologia da lei pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (artigo 30, n. 1, do Código Penal). Porém, o nº 1 do art. 30º do CPenal sofre, no entanto, duas ordens de restrições, decorrentes, em parte, da doutrina e também da lei. Referimo-nos aos casos de concurso aparente de infracções e de crime continuado. No primeiro caso, a plúrima violação de preceitos ou tipos legais de crime é apenas aparente, porquanto resulta da interpretação da lei que só uma das normas ou preceitos tem aplicação ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Voltando ainda ao nº1 do art. 30º, dele podemos pois extrair a regra de que o agente cometerá tantos crimes, em concurso ou acumulação real, quantos os bens ou interesses jurídicos que, com o seu comportamento, violou: "O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente". O problema do concurso do crime de peculato com outros delitos tem sido objecto da discussão, sendo aceite que a capacidade consumptiva do peculato será extensível vg. aos crimes de furto (em certas circunstâncias), de abuso de confiança, de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, ou de abuso de poder.(cf. Conceição Ferreira Da Cunha (Comentário Conimbricense do Código Penal, III, pág. 702). No concurso aparente, plúrima violação é apenas e tão só aparente (passo a redundância; e é-o e não efectiva, porque resulta da interpretação da lei que unicamente uma das normas merece cabimento ou que a mesma norma deve funcionar por uma só vez. Para objectivar esta perspectiva, apontam-se, como sabido é, diversas regras como, por exemplo e entre outras, as da especialidade e da consumpção. Aquelas regras são enumerações do chamado concurso de normas quando desemboca em situações em que há várias normas que se podem aplicar ou são aplicáveis e que, no entanto, por (ou devido a) um certo tipo de relação em que essas normas se encontram entre si, uma delas é excluída pela outra ou algumas das normas são excluídas por uma outra, quer por via de existir um ilícito que pressupõe na sua própria previsão o preenchimento de uma outra anterior no sentido de que lhe está na base (especialidade), quer porque de um tipo de crime faça parte, não por uma definição normativa mas por forma característica ou típica, a realização de um outro tipo de crime (consunção). Está-se paredes meias com a aplicação daqueles princípios gerais de direito segundo os quais a norma especial afasta a efectividade da lei geral ou uma norma absorve uma outra, com evidentes reflexos constitucionais na preservação do princípio de que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime". Cavaleiro de Ferreira escreveu: "haveria uma duplicação da punição do mesmo facto, uma violação do princípio do "ne bis in idem", se ambas as normas (comum ou especial) fossem comulativamente aplicáveis; tem de prevalecer a norma especial, porque agarra mais de perto a situação de facto que regulamenta" (Direito Penal, 79/80, página 216) ou que" a aplicação de duas normas em relação de subsidariedade equivaleria à violação do princípio "ne bis in idem" substantivo, já que ambas produzem efeitos jurídicos da mesma natureza" (obra citada, página 223). O concurso aparente é campo de aplicação de duas ou mais normas funcionando em círculos concêntricos e incidentes sobre uma mesma situação, em termos de uma prevalecer sobre a outra ou outras, excluindo estas por só formalmente aplicáveis. No concurso real, o critério decisivo leva em conta o seguinte: a importância de autonomizar o juízo de censura e satisfazer a plena necessidade de assegurar a tutela dos bens jurídicos colocados em causa, na genuidade própria e independente que aquela tutela justifique e imponha ou seja, por outras palavras, um critério teleológico que distinga e diferencie a unidade da pluralidade de infracções não por atenção aos fins do agente delitivo mas pelos fins visados pela incriminação das normas violadas, desiderato que o legislador penal acaba por traduzir na sistemática conferida ao Código. É insofismável a diversidade dos interesses jurídicos, essencialmente protegidos pelas normas incriminadoras dos ilícitos aqui em análise. E como tal a sua autonomia. E haverá em regra um concurso efectivo de infracções, a serem diferentes os bens jurídicos atingidos (cfr. CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, op. cit., pág. 703 e Acs da Rel. Porto de 83.03.02, Col. Jur. VIII, 2, 269 e do STJ de 84.07.18, BMJ 339-289). Ocorre no caso tal concurso real, estando diversos bens jurídicos em causa, pelo que cremos afastada a possibilidade de concurso aparente. Mas outrossim, cremos que fazer funcionar a agravação a que alude al.ª e), do mesmo diploma - e reportamo-nos ao crime de tráfico - corresponderá a uma dupla consideração da circunstância “funcionária” e prática no “ exercício de funções”, até violadora do “in bis in idem”, porquanto a apropriação da qual emerge a detenção do estupefaciente já configura um crime específico. Assim, subsumimos ao crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos art.s 21.º, n.º 1 do D. Lei n.º 15/93, de 22-01 as referidas condutas, correspondendo moldura legal simples de 4 a 12 anos. F) Pedido de indemnização civil: Estabelece o artigo 483º do Código Civil (abreviadamente, CCivil). que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Dos factos ilícitos cometidos pela arguida resultaram causalmente danos que importa ressarcir nos precisos termos em que resultaram provados. Assim, porque também aqui se encontram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, deve o arguido suportar o valor da substância retirada. No caso em apreço, não há dúvidas de que todos os pressupostos da responsabilidade civil estão verificados. *** III. Apreciação dos Recursos A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal). Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes: - Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto devendo considerar-se como provado que a arguida de Novembro de 2009 a Abril de 2010 se apoderou de 471,3 gramas de cloridrato de cocaína e demais factos conexos que constavam da acusação com a consequente alteração das penas parcelares e única aplicadas (recurso do Ministério Público); - Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto não devendo ser considerado como provado que foi a arguida a autora da subtracção de 41,66 gramas de cloridrato de cocaína ocorrida entre 17 de Agosto e 4 de Setembro e respectivos factos conexos bem como que a arguida destinava o produto estupefaciente também a cedência a terceiros, para além do seu consumo. (recurso da arguida) com a consequente integração da factualidade provada restante como contra-ordenação p. e p. pelo artigo 2º da Lei nº 30/2000 de 29.11; - Se o crime de peculato por que a arguida foi condenada consome o crime de tráfico de estupefacientes, devendo a arguida ser absolvida deste último.
Apreciando:
Da impugnação da matéria de facto Quer o Ministério Público, quer a arguida, impugnam a decisão proferida sobre matéria de facto, direccionando as respectivas pretensões em sentidos opostos. O Ministério Público entende que por recurso a prova indirecta (inferência) deve considerar-se que foi a arguida a autora da subtracção de cloridrato de cocaína ocorrida entre Novembro de 2009 e Abril de 2010, enquanto a arguida pugna no sentido de que a prova indirecta não consentia a inferência de que foi ela a autora da subtracção de cloridrato de cocaína ocorrida entre 17 de Agosto e 4 de Setembro de 2010. A arguida sustenta a sua pretensão com base na inexistência de prova "licitamente assumível", na sua expressão, dos factos dos factos que impugna, invocando os depoimentos das testemunhas C..., D... e E..., dos quais não resulta prova do impugnado, resultando antes de mera presunção. Já o Ministério Público entende que da conjugação de todos os meios de prova produzidos (prova testemunhal acima mencionada, resultado da busca domiciliária, documentos juntos aos autos, imagens da videovigilância, relatórios periciais, analisados segundo as regras da experiência, também se poderá concluir que foi a arguida a autora da subtracção de cloridrato de cocaína pelo menos entre Janeiro e Abril de 2010, tendo ocorrido violação do artigo 127º do Código de Processo Penal e do princípio in dubio pro reo. O cerne da questão proposta com a dupla impugnação da matéria de facto não se centra, pois, em discordância sobre o conteúdo concreto da prova produzida, mas sim sobre as ilações/presunções que dessa prova foram (não deviam ter sido para a arguida) e não foram (deviam ter sido para o Ministério Público) extraídas. O que nos reconduz ao tema da prova indirecta ou indiciária ou ainda por presunção, conforme se prefira denominá-la e da sua admissibilidade em processo penal. Diga-se que a prova indirecta ou indiciária que contém efectivamente momentos de presunção ou inferência pode igualmente justificar certeza bastante à convicção positiva do Tribunal desde que indique com base nas regras da experiência que o facto em causa corresponde à realidade. A prova indirecta (ou indiciária) não será um "minus" relativamente à prova directa, pois se é certo que na prova indirecta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência o que permitirá alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será de equação mais difícil, como é o caso da credibilidade do testemunho. Acresce que a nossa lei penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação. Quando a base do juízo de facto é indirecta, impõe-se certamente um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros. Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios (sobre a prova indiciária em processo penal veja-se com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J. M. Bosch Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, páginas 231 a 249). Se atentarmos no disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal concluiremos sem esforço que admite a chamada prova indirecta ou por presunção quando preceitua que a prova é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência. E são precisamente as regras da experiência que permitem extrair ilações dos factos directamente percepcionados chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza. Com efeito, não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define. Pode ler-se no Acórdão do STJ de 12.9.2007 publicado em www.dgsi.pt “Vejamos que o indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere a impunidade.” “ E sobre a prova indiciária (…) entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos-base e se mostrarem provados, os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência da vida; dos factos base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.” Sendo este o quadro teórico em que se move a admissibilidade da prova indirecta, vejamos o que o Tribunal a quo explicitou a esse propósito que, por facilidade de análise, se transcreve novamente: Quanto à subtracção cuja detecção foi feita em 4 de Setembro de 2010, da quantidade total de 41,66 gramas, nos termos expostos - tendo sido encomendada e adquirida de empréstimo a 17 de Agosto de 2010, uma frasco de 50 gramas, ao Hospital de K... do X... - inexistindo prova directa da autoria - não obstante, o tribunal firma convicção, atenta a contiguidade temporal relativamente aos factos dos dias 17 e 19, da sua autoria pela arguida - de que também terá sido perpetrada pela arguida - em número de incursões não concretamente determinado: dos mapas de Escalas de Serviços de Turnos, referentes aos meses de Agosto e Setembro de 2010, bem como a listagem dos funcionários que estiveram de férias no período entre 17 de Agosto a 4 de Setembro - extrai-se que a arguida não esteve de férias entre 17 de Agosto e 20 de Setembro e esteve de turno no dia 17-08-2010, no turno das 16.00hm às 6.00 hm ( dia da recepção dos 50 gramas); a 29-08-2010, entre as 17.00 hm e as 6.00 hm (domingo) e no dia 3-09-2010, entre as 16.00 hm e as 6.00 hm, - (fols.59 a 61 e 83 e s. a contrario) - tendo assim oportunidade para tal subtracção - numa multiplicidade de ocasiões; ademais, as actuações da arguida nos fotogramas denotam uma conduta sistematizada, automática e ordenada, perfeitamente de acordo com uma multiplicidade de incursões - sendo certo que a mesma nunca necessitara - em todo o seu percurso de farmacêutica, nos ..., de proceder a qualquer preparado com finalidade analgésica.(negrito nosso). Como verificamos, foram elementos essenciais da prova indirecta, a prova directa no sentido de que a arguida nos dias 17 (por duas vezes) e no dia 19 de Setembro de 2010 (por uma vez) se deslocou ao local onde se encontrava guardado o produto em quantidade previamente controlada, retirando-o. Não existiam motivos de ordem profissional para tais deslocações. Tal foi verificado através de videovigilância efectuada na sequência de nova falta desse produto verificada em 4 de Setembro (de 41,66 gramas, das 50 gramas adquiridas em 17 de Agosto de 2010) tudo confirmado pela citada prova testemunhal e por documentos. A videovigilância teve início no dia 8 de Setembro mas ocorreram problemas técnicos e só a partir de 13 de Setembro foram recolhidas imagens. É manifesta a existência de um nexo temporal entre os acontecimentos de 17 e 19 de Setembro e o desaparecimento de produto, adquirido em 17 de Agosto, em 4 de Setembro, sendo certo que no decurso da vigilância apenas a arguida se deslocou ao local sem motivo profissional justificado. Acrescem elementos probatórios no sentido de que no período de tempo questionado a arguida esteve ao serviço. Como realça o tribunal recorrido, a visionada actuação da arguida (descrita noutro passo da motivação) denota carácter sistematizado, automático e ordenado, perfeitamente de acordo com uma multiplicidade de incursões - sendo certo que a mesma nunca necessitara - em todo o seu percurso de farmacêutica, nos ..., de proceder a qualquer preparado com finalidade analgésica, não sendo por isso procedimentos com que pudesse estar familiarizada em razão da sua actividade profissional corrente no hospital. Acrescem ainda um conjunto de dados probatórios no sentido de que a arguida era dependente de cocaína no período temporal em causa (o período a que se reportam os factos provados) desde a perícia médico-legal aos vestígios encontrados na busca à sua residência. Parece-nos, pois, claro que as inferências realizadas pelo Tribunal recorrido obedecem ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência e, portanto, a convicção alcançada, alicerçada numa certeza de que os factos se passaram tal como relatados, não pode ser posta em crise por este Tribunal de recurso, posto que não revela qualquer erro de julgamento por avaliação irrazoável ou arbitrária da prova. O mesmo se diga quanto à ilação de que o produto subtraído não se destinava exclusivamente ao consumo da arguida. A própria quantidade e grau de pureza do produto assim o indicavam, segundo o que é normal em faça das regras da experiência. Já quanto à falta de cloridrato de cocaína verificada entre Novembro de 2009 e Abril de 2010 inexiste, com toda a evidência, o referido nexo temporal com o evento situado entre 17 e 19 de Setembro de 2010 que permita formular mais do que uma mera probabilidade de que possa ter sido a arguida a autora da respectiva subtracção. Aliás, na sequência do que foi exposto sobre a admissibilidade da prova indirecta, essa falta de nexo temporal ilustra bem a fronteira entre uma inferência devidamente estruturada e sustentada nas regras da experiência e uma outra que conteria um grau de dúvida insuperável dado o hiato temporal de cinco meses que é avesso à formulação de qualquer certeza. E se o Tribunal recorrido tinha fundamento para a convicção positiva e negativa a que chegou não se pode concluir pela existência de violação de qualquer princípio probatório com o inerente erro de julgamento. Deve, em consequência, ser mantida nos seus precisos termos a matéria de facto provada e não provada do acórdão recorrido, até porque também não se divisa nessa decisão a ocorrência dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, não alegados, mas que seriam do conhecimento oficioso. Sendo assim soçobra a pretensão do Ministério Público de ver alteradas as penas aplicadas, bem como a pretensão de absolvição da arguida do crime de tráfico de estupefacientes por apenas se verificar o cometimento de uma contra-ordenação.
Dos crimes de peculato e de tráfico de estupefacientes No acórdão recorrido discorreu-se sobre a existência de concurso efectivo ou aparente entre os crimes de peculato e de tráfico de estupefacientes cometidos pela arguida de forma que qualificamos como extensa porque consideramos clara a distinção entre os referidos tipos de crime fundada na diversidade de valores jurídicos tutelados. Ainda assim, sucintamente, devemos referir o seguinte. Preceitua o artigo 30° n° 1 e nº 2 do Código Penal que: 1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número, de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de urna mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Assim, o normativo transcrito contempla, em matéria de unidade e pluralidade de infracções, três distintas situações: - a unidade criminosa em sentido próprio, quando a um só desígnio criminoso corresponde o preenchimento de um único crime (nº 1, “à contrário sensu”); - a unidade criminosa, juridicamente ficcionada, porque correspondente a pluralidade de resoluções e pluralidade de preenchimento de tipos de crime, do crime continuado quando toda a actuação não obedecer ao mesmo desígnio, mas estiver interligada por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas, ou seja, persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente, com a conexão objectiva de ofensa do mesmo bem jurídico. - a pluralidade criminosa em sentido próprio que pode corresponder a uma ou várias resoluções mas que sempre corresponderá ao preenchimento de vários tipos de crime. O critério de distinção entre unidade e pluralidade de infracções não é um critério naturalístico mas, antes, um critério normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais negados, expressos nos tipos legais de crimes e à unidade ou pluralidade de juízos de censura de que a conduta do agente é passível. Relativamente aos casos de pluralidade, pelo menos preliminar, de infracções, seja a resolução única ou plural, o artigo 30º, nº 1 do Código Penal, contém duas importantes restrições, como são o concurso legal ou aparente (onde pontificam as regras da especialidade, da consumpção e da subsidiariedade) e o crime continuado. No concurso aparente a plúrima violação não existe efectivamente porque resulta da interpretação da lei que unicamente uma das normas é aplicável, pontuando as referidas regras. E, resumidamente, apenas uma das normas é aplicável, quando um dos tipos de crime contém na sua própria previsão o preenchimento de um outro tipo de crime (especialidade), ou quando de um dos tipos de crime faça parte a realização em regra de conduta integrante de outro crime (consunção) ou ainda quando um tipo legal de crime deva ser aplicado de forma auxiliar ou subsidiária, se não existir outro tipo legal que comine pena mais grave. Estas considerações teóricas ganham, contudo, densidade se atentarmos que os tipos legais de crimes são determinados pela defesa de valores jurídicos, ocorrendo concurso efectivo de infracções sempre que as normas em confronto não visem prosseguir ou não prossigam, pelo menos parcialmente, a defesa do mesmo valor. Não existindo qualquer coincidência nesse ponto pode afirmar-se sem restrição a existência de concurso efectivo. Ora, a criminalização do peculato radica na necessidade de defesa do bom andamento e legalidade da administração ligada à fidelidade dos seus funcionários (interesse patrimonial do Estado) enquanto a criminalização do tráfico de estupefacientes radica essencialmente na necessidade de defesa da saúde pública (integridade física e vida das pessoas) não se conseguindo alcançar qualquer ponto de coincidência que em nome das enunciadas regras possa consolidar a pretendida ocorrência de concurso aparente de infracções. Tal como no acórdão recorrido concluímos, pois que "é insofismável a diversidade dos interesses jurídicos, essencialmente protegidos pelas normas incriminadoras dos ilícitos aqui em análise" ocorrendo concurso efectivo entre os crimes de tráfico de estupefacientes e de peculato. Deve, pois, manter-se a condenação da arguida por ambos os crimes. *** IV. Decisão Nestes termos acordam em negar provimento aos recursos interposto pelo Ministério Público e pela arguida A..., mantendo integralmente o acórdão recorrido. Pelo seu decaimento em recurso vai a arguida condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em cinco UC. Não há lugar a tributação do recurso do Ministério Público por ocorrer isenção legal. *** (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora) (José Eduardo Fernandes Martins) |