Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
128/05.0JAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO
BEM JURÍDICO
VIOLÊNCIA
CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
DIMINUIÇÃO DA CULPA
Data do Acordão: 11/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CIRCULO JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º E 164.º, N.º 2 DO C.P
Sumário: I. – Com a previsão contida no artigo 164.º do C.P. o legislador pretendeu proteger a «liberdade sexual», entendida como aquela parte da liberdade referida ao exercício da própria sexualidade e, em certo modo, à disposição do próprio corpo.
II. Tratando-se de pessoa de idade inferior a certo limite, pretende-se proteger a normal evolução da sua personalidade, para que quando seja adulto decida em liberdade o seu comportamento sexual.
III. - Para o preenchimento da materialidade ilícita prevista na norma incriminadora deverá entender-se por “violência” toda a acção exercida sobre a vítima que contrarie a sua vontade nela se incluindo a aparente anuência oferecida como meio de evitar um mal maior.
IV. – A ameaça a que se alude no n.º 1 do art. 164.º, deve assumir gravidade e estar conecta com a agressão sexual, devendo a gravidade da intimidação e a sua suficiência ser aferida em função da causalidade suficiente entre a acção e o resultado, de acordo com os critérios gerais da causalidade e da imputação objectiva, transportados para as relações interpessoais.
V. - A gravidade do mal com que se ameaça deve medir-se de forma objectiva e deve ter um carácter de imediatividade na sua realização que praticamente não deixe à pessoa intimidada outra saída que aceitar a realização do acto sexual.
V. – Existe um só crime desde que a actuação do agente, concretizada numa pluralidade naturalística de acções e executada em momentos separados no tempo estejam subordinadas a uma única resolução criminosa.
VI. – Para que ocorra uma diminuição da culpa propiciadora da qualificação de uma continuação criminosa como um só crime (continuado) torna-se mister que ocorra um condicionalismo exterior, isto é, uma envolvência alheia e estranha à vontade do agente que facilite a realização plúrima das acções típicas.
VII. – Não ocorre esse condicionalismo, de acordo com a jurisprudência maioritária, «quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa”.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Círculo Judicial de Aveiro, após julgamento em processo comum colectivo, por acórdão de 11 de Junho de 2008, foi o arguido …, casado, empregado de armazém, nascido em 28/03/69, filho de … e de …, natural da freguesia de Tuias, Marco de Canaveses, titular do B.I. n.° …, residente na Rua de Santa Cecília, n.° …, S. Bernardo, Aveiro, condenado, pela prática, em autoria material e em concurso efectivo:

- de dois crimes de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164°, n.° l e 177°, n°s l, al. a) e n.° 4, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um deles;

- de um crime de ofensa á integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, do Código Penal, na pena de 1( um) ano de prisão; e

- de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152.°, n.°s l e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Operado o cúmulo jurídico destas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

A) Da questão prévia:

Encontrando-se por gravar uma das cassetes (n.º 3) do julgamento, e tendo sido proferido despacho de repetição dessa prova, sem nada dizer sobre a questão de correr novo ou não novo prazo para recurso;

Entende o arguido, salvo o devido respeito, que deve recorrer deste despacho, pelas razões já mencionadas, sendo o seu entendimento que após a produção da prova não gravada anteriormente, poderá a prova ser relevada noutros termos, de tal forma que possa implicar a alteração do douto Acórdão proferido e por conseguinte, deve correr novo prazo para recurso; o que desde já se requer a V. Excelências.

Até porque doutra forma, poderá estar comprometido o recurso e defesa do arguido.

B) Insuficiência da matéria de facto/erro na apreciação da prova/violação do princípio in “dubio pro reo

(Ver transcrições)

No nosso modesto entendimento e conforme resulta das motivações apresentadas, é inaceitável que, estando em discussão crimes com esta gravidade como é o caso de uma violação, se condene alguém praticamente com as declarações da vítima/queixosa; declarações essas imprecisas e contraditórias, sem qualquer base irrefutável do tipo médico-legal.

Pelas provas que foram produzidas em julgamento, nomeadamente a testemunhal, em nosso ver, não foi produzida qualquer prova convincente, credível, que demonstrasse que efectivamente o pai arguido neste processo violasse a menor.

Mas mesmo que pairasse a mera dúvida sobre esses factos, o que não se conjectura, não poderia o Colectivo de Juízes do Tribunal a quo decidir outra coisa que não a absolvição do arguido pelos crimes de violação.

Até porque se assim não fosse, estariam a subverter e a violar um princípio basilar  do Direito Penal conhecido como in dubio pro reo.

Motivo pelo qual se requer a absolvição do arguido, José Adão Ribeiro Pinto.

C) Do crime continuado:

Ao analisarmos os factos em discussão nos autos, constatamos uma realização plúrima do mesmo tipo de crime, uma homogeneidade na execução, uma unidade de dolo e ainda a tal persistência exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

Em suma, haverá só um crime se tiver havido uma única resolução criminosa que tenha persistido ao longo de toda a realização; tendo em consideração ainda o consignado no art. 30.º, n.º 3 CP.

Assim, e na hipótese meramente académica de o arguido vir a ser condenado pelos crimes de violação, o que não se concede, deve o mesmo ser condenado por um crime continuado de violação agravada e não dois crimes de violação agravada conforme resulta do acórdão recorrido.

D) Quanto à qualificação jurídica:

Também no nosso modesto entendimento, a conjecturar a remota possibilidade de não se absolver o arguido, o que não se concede;

O Tribunal a quo, ao punir o arguido pelo n.º 1 do art. 164.º do CP, fê-lo incorrectamente, pois em nosso entender, deveria o mesmo ser punido pelo n.º 2 desse preceito, face à prova produzida em sede de julgamento; Tal facto de per si, implica uma moldura penal muito diferente.

E) Quanto à medida da pena:

Na nossa modesta opinião, quanto à medida da pena, o colectivo de Juízes não considerou os critérios objectivos/subjectivos plasmados no art. 71.º do CP, nomeadamente as circunstâncias atinentes ao cometimento de crimes e às condições pessoais do arguido, penalizando-o excessivamente.

F) Sucessão de leis no tempo:

Não nos podemos esquecer que, tendo havido sucessão de leis no decurso do deste processo, ter-se-á sempre que salvaguardar e aplicar a lei que pressuponha um tratamento mais favorável ao arguido – o que não se constata no Acórdão recorrido, que nada diz a respeito.
3. A Magistrada do Ministério Público concluiu a resposta que apresentou ao recurso nestes termos:
1. Os elementos de prova que alicerçaram a formação da convicção do Tribunal são suficientes, processual e substancialmente válidos e aptos a tal.
2. A matéria de facto dada como provada – donde resulta claramente que a conduta do arguido … integra os elementos objectivos e subjectivos de todos os crimes por que foi condenado – mostra-se bastante para fundamentar a decisão no seu todo, foi correctamente apreciada e ponderada.
3. O Tribunal efectuou o exame crítico da matéria probatória atendível, ponderando e correlacionando os elementos que a integram, o que fez com base em critérios de razoabilidade, de forma correcta e com a clareza suficiente a poder ser avaliado o processo lógico-formal e o raciocínio inerentes a esse exame, que conduziu, motivando-a, à decisão alcançada.
4. O acórdão em causa não enferma de qualquer vício integrável na previsão do art. 410.º, n.º 2 do C.P.P..
5. Ao formar a sua convicção e posteriormente decidir, o Tribunal não se deparou com qualquer dúvida insanável que o levasse a favorecer o arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
6. Também não é aplicável ao caso concreto a figura da continuação criminosa, concretamente no que concerne ao crime de violação, uma vez que os seus pressupostos não se verificam, tendo, sim, o arguido praticado, em concurso efectivo, dois crimes de violação agravada.
7. Para alcançar a medida concreta da pena, ponderou o Tribunal todas as circunstâncias que devia efectivamente considerar, socorrendo-se de todos os dados disponíveis e atendíveis, de acordo com os comandos legais aplicáveis.
8. A medida concreta das penas parcelares e da pena única de prisão aplicada, alcançada de modo equitativo, mostra-se apropriada à situação em apreço e não merece censura.
9. Não foi violado qualquer princípio ou norma jurídica, designadamente de entre as aplicáveis e aplicadas in casu.
10. O acórdão impugnado deverá ser mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto elaborou douto parecer, no qual pugna pela improcedência da questão prévia e do recurso.
Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Questão prévia:

Para uma indispensável compreensão dos contornos de facto relativos à  enunciada questio problemática, faremos previamente uma sucinta abordagem sobre os elementos relevantes que os autos sobejamente nos revelam.

a) Após a leitura e depósito do acórdão, no decurso do prazo de recurso, em 17 de Junho de 2008, o arguido, manifestando o propósito de o recurso a interpor versar matéria de facto, veio requerer que lhe fossem facultadas as cassetes de gravação áudio, pretensão que foi satisfeita, como se vê do “termo de entrega” de fls. 368 dos autos.

b) Em 2 de Julho de 2008, o arguido (cfr. fls. 370) deu conhecimento da inexistência de qualquer registo de gravação na cassete n.º 3 (lado A e B) que lhe tinha sido entregue; solicitou a confirmação no original da ausência de registo gravado; e requereu, perante este quadro, a suspensão do prazo de recurso até à resolução da situação exposta e repetição da prova, na parte necessária.

d) Em 7 de Julho de 2008, foi lavrado despacho do seguinte teor:

«Na sequência da informação prestada nos autos pelo arguido a fls. 370, aquando da manifestação da sua intenção de interpor recurso do acórdão proferido nos autos, mormente quanto à matéria de facto, e da qual se extrai que um dos depoimentos testemunhais prestados em sede de audiência de julgamento não será audível na sua totalidade, veio a confirmar-se que, efectivamente, também no original das cassetes, o depoimento da testemunha Maria da Conceição Neves Batista Coelho Abrantes não se encontra totalmente audível.

Tal situação configura uma irregularidade, já que não se encontra prevista no rol de nulidades a que aludem os artigos 119.º a 120.º do CPP (cfr. artigo 118.º do mesmo compêndio). Tal anomalia na gravação do depoimento da testemunha, como irregularidade que é tem influência na decisão da causa e ulteriores trâmites do processo, atenta a manifesta intenção de o arguido interpor recurso do acórdão proferido.

A ser assim, como entendemos ser, haverá que proceder nesta fase tão só à repetição do acto (audição do depoimento da testemunha em apreço) por forma a suprir a irregularidade verificada, não se anulando qualquer dos demais actos praticados. É o que resulta do disposto no art. 123.º, n.º 1, do CPP (…).

Nesta conformidade, delibera o colectivo de Juízes, proceder à reabertura da audiência, com vista à audição do depoimento da testemunha em apreço, designando-se desde já o próximo dia 17 de Julho pelas 14,30 horas, para o efeito».

e) Em 11 de Julho de 2008, o arguido apresentou requerimento de interposição de recurso, acompanhado da respectiva motivação (cfr. fls. 383 a 430 dos autos).

f) Em 17 de Julho de 2008, o tribunal colectivo procedeu, em audiência, à reinquirição da testemunha … e proferiu a final o seguinte despacho: «Mostrando-se registado o depoimento da testemunha que não foi audível, aguarde-se pela tramitação do recurso».

Como se vê do enunciado supra, o despacho de 7 de Julho de 2008 decidiu no sentido da supressão da irregularidade verificada, determinando, para o efeito, a repetição do acto em causa (audição do depoimento não registado no suporte magnetofónico), sem que, no entanto, se tivesse pronunciado sobre a expressa pretensão formulada pelo arguido no sentido da suspensão do prazo de recurso.

Tal despacho omitiu, assim, pronúncia sobre questão de que deveria ter tomado conhecimento, circunstância que, não integrando o capítulo das nulidades taxativamente previstas na lei (cfr. artigo 118.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), configura uma mera irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal.

Ora, as irregularidades têm de ser arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, sem prejuízo de o poderem ser nos três dias subsequentes ao termo de tal prazo, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 45.º do Código de Processo Civil.

No caso sub judicio, suscitada a irregularidade no prazo legalmente estabelecido (cfr. n.º 1 do artigo 123.º), em face da decisão que viesse a ser proferida definiria o arguido a atitude a tomar, dela recorrendo ou não.

Sucede que o arguido, devidamente notificado do despacho em causa em 11 de Julho de 2008, não arguiu a irregularidade que efectivamente se verificava no prazo legalmente estabelecido. Ao invés, optou por interpor recurso do acórdão, impugnando a matéria de facto com base, nomeadamente, nas declarações e depoimentos que entende imporem decisão diversa da recorrida.

Assim, por estar a referida irregularidade sanada, não pode ser concedido ao arguido o novo prazo de recurso que o mesmo reclama no recurso que interpôs da decisão final.

2. Delimitação do objecto do recurso e poderes cognitivos do tribunal ad quem:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Assim, há que apreciar e decidir:

1. Da ocorrência dos alegados erros de julgamento em matéria de facto;

2. Se a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal;

3. Violação do princípio in dubio pro reo;

4. A verificar(em)-se o(s) crime(s) de violação, se a conduta do arguido é subsumível ao n.º 1 ou ao n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal; 
5. Se a conduta do arguido, relativa às condutas integradoras do crime de violação, se situa no âmbito de uma continuação criminosa, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal;
6. Da sucessão de leis no tempo;
7. Da medida das penas.

2. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


-I-

1. O arguido é pai de …, nascida a 29/01/1992.

2. Em dia não concretamente apurado do ano de 1997, no lugar de Caldolaria, Marco de Canaveses, o arguido, aproveitando o facto de que a … se encontrava sozinha na residência familiar, deitou-a na cama e despiu-a, tirando-lhe a roupa que envergava.

3. Após, o arguido despiu-se e acto seguido, o arguido colocou-se em cima da menor e introduziu o pénis erecto na vagina da …, aí o friccionando.

4. Tendo a menor … começado a gritar e chorar, o arguido obrigou-a a calar-se. Após, o arguido retirou o pénis.

5. A partir do dia acima descrito e até ao ano de1999/2000, data em que a menor veio viver para S. Bernardo, nesta comarca, com a sua mãe, o arguido, por várias vezes, sempre que se encontrava sozinho com a menor …, na residência supra referida, aproveitando-se da ausência da mãe da menor (sua mulher) e da sua superioridade física, despia a menor, deitava-a na cama e colocando-se em cima da mesma introduzia o seu pénis erecto na vagina da …, aí o friccionando.

6. A ofendida, à data da prática dos factos aqui narrados, tinha entre 5 e 8 anos, idade que era do conhecimento do arguido, dado que este era seu pai.

7. Após um período de separação que ocorreu entre data indeterminada do ano de 1999/2000 e Junho de 2003, em dia indeterminado do mês de Junho de 2003, o arguido passou a residir novamente com a sua esposa e a menor …, na Rua …, n.° … S. Bernardo, nesta comarca.

8. Assim, a partir de dia não concretamente apurado de 2003, mas após Maio de 2003 e até ao dia 4 de Março de 2005, o arguido, por diversas vezes, aproveitando-se do facto de se encontrar sozinho em casa com a menor …, obrigava esta a deitar-se na sua cama, tirava-lhe a roupa e após, tirar a roupa que envergava, colocava-se em cima da menor, introduzindo o pénis erecto na vagina da …, aí o friccionando, e ejaculando sémen para o seu interior.

9. Durante os factos acima descritos, o arguido ameaçava a ofendida … que caso contasse a alguém a agrediria.

10. Durante tais factos, o arguido obrigou a menor a manter-se em silêncio, ameaçando-a, dizendo-lhe que caso contrário sofreria as consequências, ou seja, seria por si agredida.

11. A ofendida, à data da prática dos factos narrados em 8. a 10., tinha entre 11 e 13 anos, idade que era do conhecimento do arguido, dado que este era seu pai.

12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a ofendida era menor de 14 anos e que ao actuar contra a vontade da mesma punha em crise os sentimentos de pudor e vergonha desta, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas.


-II-

13. No dia 27 de Dezembro de 2005, cerca das 20h30m, no interior da residência do agregado familiar, sito na Rua …, n.° …, S. Bernardo, nesta comarca, o arguido encetou uma discussão com a sua filha … relacionada com o facto desta ter vários papéis alusivos ao grupo musical “D’ZRT”.

14. Acto seguido, o arguido desferiu várias bofetadas e murros na face e cabeça da ofendida ….

15. Em consequência de tal agressão sofreu a ofendida dores físicas e as lesões descritas a fls. 228 a 233, que aqui se dá por reproduzida para todos os legais efeitos, designadamente traumatismo nasal, que lhe determinaram 4 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.

16. Acto seguido, o arguido usando a força física obrigou a ofendida … a sentar-se à mesa de refeições e a ingerir três pratos de sopa.

17. Tais agressões surgiram após a ingestão, por parte do arguido, de bebidas alcoólicas.

18. O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, com intenção de lesar, no seu corpo, saúde e psiquicamente, a ofendida, sua filha, o que efectivamente sucedeu.

19. Fê-lo com total indiferença para com os deveres de cuidado, guarda e educação devidos à sua filha, de 13 anos de idade, e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência e à intimidação.


-III-

20. O arguido é casado com a aqui queixosa, …, melhor id. a fls. 156, há mais de 18 anos.

21. O arguido há vários anos que ingere bebidas alcoólicas, tendo já efectuado tratamentos médicos devido ao seu alcoolismo crónico.

22. Após um período de separação, o arguido, em Junho de 2003, reintegrou o agregado familiar, passando a residir com a sua mulher, a aqui ofendida M..., e a sua filha S..., na residência sita na Rua …, n.° …, S. Bernardo, nesta comarca.

23. Desde tal data, ou seja Junho de 2003, e em dias e meses não concretamente apurados, mas que se situam ao fim-de-semana, e após a ingestão de bebidas alcoólicas, o arguido quando chegava a casa a pretexto de qualquer motivo fútil encetava discussões com a sua mulher ….

24. Durante tais discussões, o arguido dirigindo-se à sua mulher proferia, de um modo repetitivo, as seguintes expressões “puta, vaca, andas aí a dá-la”.

25. O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, com intenção de amedrontar a ofendida, sua esposa, …, injuriando-a, cerceando a sua liberdade de movimentos e vexando-a, o que efectivamente sucedeu.

26. Fê-lo com total indiferença para com os deveres de respeito e cooperação com o seu cônjuge e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência e à intimidação.

27. Conhecia, o arguido, o carácter ilícito e proibido de todas as suas condutas. 

28. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por decisão de 11.12.1998, pela prática de um crime de furto qualificado; por decisão de 11.01.2002, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguês; por decisão de 3.02.2004, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

29. É de modesta condição social e económica; aufere mensalmente, como empregado de um talho, a quantia de € 411; tem de habilitações literárias a 1.ª classe; não sabe ler nem escrever; a esposa aufere de vencimento 420€ mensais. Pagam de renda de casa cerca de 210€.

30. O arguido sofre de síndroma de dependência alcoólica, tendo já sofrido internamentos para tratamento; mantém acompanhamento na Unidade de Alcoologia de Coimbra do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência (anterior Centro Regional de Alcoologia de Coimbra), tendo abandonado o acompanhamento no C.A.R.D.A. (Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito de Aveiro).

31. Segundo o relatório de avaliação psicológica efectuado ao arguido …, e cujo teor e conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido, concluiu-se que o arguido sofre de debilidade mental ligeira, podendo a fragilidade intelectual detectada estar associada à sua condição de alcoolismo crónico.

32. Segundo as conclusões apostas no relatório psicológico efectuado à menor e junto aos autos a fls.100 e segs., cujo teor e conteúdo se dá por reproduzido, consignou-se para além do mais aí expressamente referido, que: “…. De registar ainda a baixa pontuação registada na escala L (Mentira), que pressupõe uma atitude de franqueza e sinceridade por parte da examinada. …-A história pessoal desta menor, contada na primeira pessoa, reflecte um ambiente familiar instável, que poderá condicionar a sua personalidade, ainda em fase de formação. Notou-se nesta criança alguma ambivalência de sentimentos o que, no plano teórico, é frequente em quadros de abuso sexual em contexto intra-familar…. ”.

33. No dia 7 de Fevereiro de 2006, a menor foi acolhida no Centro de Acolhimento temporário do Centro Social e Paroquial de Recardães, no âmbito de um acordo de promoção e protecção de menores.

34. Na perícia de natureza sexual junta a fls. 274 e 277, cujo teor e conteúdo se dá por reproduzido, consignou-se, para além do mais, que a menor apresenta hímen complacente e que o ostíolo himeneal é permeável aos dedos indicador e médio justapostos de um dos peritos que procederam ao exame.    
3. Foram estes os factos provados e mais nenhum outro se provou com relevância e pertinência para a boa decisão da causa, designadamente não se provou:
• Que o arguido disse à …, sua filha, que “um dia mais tarde iria ter filhos dele e que seria ela que os iria criar”.
• Que na situação descrita em 3.º o arguido tivesse ejaculado sémen para o interior da vagina da menor.
• Que entre o ano de 1997 e o ano de 2000, nas situações descritas na factualidade provada, o arguido ejaculasse sémen para o interior da vagina da menor.
• Que no dia 4 de Março de 2005, o arguido, aproveitando-se do facto de se encontrar sozinho em casa com a menor …, usando a força física, agarrou-a pelos braços e obrigou-a a deitar-se na cama, acto seguido, retirou-lhe a roupa que a menor envergava da cintura para baixo, e após retirar a roupa que envergava, colocou-se em cima da menor, introduzindo o pénis erecto na vagina da …, aí o friccionando, e ejaculando sémen para o seu interior.
• Para além das circunstâncias descritas, em várias outras ocasiões não concretamente apuradas mas situadas a partir de Junho 2003, data em que o arguido regressou ao agregado familiar, que agredia e ameaçava a menor, dizendo-lhe que a iria agredir.
• Que o arguido na situação descrita em 8. deitava a menor na cama que partilhava com a esposa.
• Que o arguido se encontra totalmente integrado em termos sociais.

4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

A convicção do tribunal para dar os factos como provados alicerçou-se na ponderada conjugação de toda a prova produzida em audiência e sua análise crítica aliada às regras da experiência comum, mormente e no que tange aos factos descritos em -I- nas declarações prestadas pela menor …, a qual apresentou um depoimento simples, esclarecedor e convincente sobre os factos ocorridos e abusos sofridos, cujo relato efectuou, atento o contexto intrafamiliar destes e a forma naturalmente constrangedora para quem relata este tipo de factos, credível e consentâneo no relato que dos factos efectuou. Valorado foi também o depoimento prestado pela testemunha …, agente da PSP - Escola Segura - o qual havia feito uma acção de sensibilização sobre valores sociais e cidadania na sala da escola da menor e foi a primeira pessoa a quem a menor relatou, alguns dias depois, os abusos sexuais de que era alvo por parte do pai, tendo esta testemunha relatado a forma emotiva, perturbada e credível, no entender da testemunha, como a menor lhe fez o relato dessas ocorrências. Também o depoimento da mãe da menor foi auxiliar no enquadramento de toda a factualidade aduzida pela menor, no relato que fez da vivência do casal, ausências de casa da testemunha ficando a menor só com o pai, agressões físicas e verbais que o arguido perpetrava na sua pessoa e agressão que fez à menor, bem como na forma desinibida que se verificava existir entre o arguido e a menor (no relato que efectuou de uma ida da menor nua à cozinha, onde se encontrava o pai); também a tia da menor, … referiu sobre o relacionamento do casal, agressão que o arguido efectuou à menor nas circunstâncias descritas no ponto -II- da factualidade provada e às quais assistiu, bem como motivos que lhe estiveram subjacentes e relacionamento demasiado “à vontade” que constatava existir entre a menor e o pai.

Foi também relevante na conjugação com toda a prova descrita, o depoimento prestado pela testemunha …, psicóloga do Centro Social e paroquial de Recardães, onde a menor se encontra institucionalizada após a ocorrência dos factos descritos, e que referiu sobre o estado psicológico da menor na sequência dos factos a que foi sujeita.

Toda a prova produzida na sua análise crítica e conjugada, aliada ao relatório de avaliação psicológica efectuado pelo I.M.L. à menor e que se mostra junto a fls. 97 a 102 dos autos, do qual se extrai, para além do mais nele constante, que a menor regista uma baixa pontuação na escala da mentira, que pressupõe uma atitude de franqueza e sinceridade no relato que efectuou, bem como uma ambivalência de sentimentos o que, no plano teórico, é frequente em quadros de abuso familiar em contexto intra-familiar. Por outro lado, a perícia de natureza sexual efectuada pelo IML, junta a fls. 274 a 277, na qual se conclui que a menor apresenta hímen complacente, e que o ostíolo himeneal é permeável aos dedos indicador e médio justapostos de um dos peritos que procederam ao exame. O referido exame foi explicitado em audiência de julgamento pelo perito médico que o subscreveu, Dr. Francisco Gomes Branco, o qual reafirmou que o hímen da menor permite a penetração sem deixar qualquer lesão e esclareceu que o facto de permitir a entrada de dois dedos justapostos pode indiciar a penetração prolongada no tempo.     

 Por seu turno, face à prova produzida nos termos acabados de explicitar, as declarações prestadas pelo arguido no que tange ao abuso sexual à sua filha não mereceram qualquer credibilidade ao tribunal, limitando-se este a negá-las. O arguido admitiu, todavia, a agressão que perpetrou na situação referida em -II- à menor, bem como confessou, de forma livre e voluntária, os factos descritos em -III-.

Valorados foram ainda na sua objectividade o teor de fls. 25, informação social da C.P.C.J. de fls. 41, registos de acompanhamento da menor pela C.P.C.J. de fls. 56 a 58, 64 a 69; relatórios de fls. 80 a 83, 88; assento de nascimento da menor a fls. 71, relatório médico-legal, relativo à situação descrita em -II-, a fls. 228 a 233, 238 a 240, queixa de fls. 190 e auto de fls. 32 do vol. I apenso; informações hospitalares de fls. 225 e 226 (processo principal) e 40 a 65 do vol. I apenso; a decisão de acolhimento da menor de fls. 263 a 265.

 É sabido que este tipo de criminalidade “escondida” e “sem testemunhas” é normalmente de difícil prova e constatação, todavia a apreciação dos depoimentos prestados pela menor e testemunhas supra indicadas, bem como o teor dos relatórios acima referidos, permitiram nos termos acima expostos o esclarecimento do tribunal quanto à matéria factual em questão.

  Valoradas as declarações do arguido no que se refere à sua situação pessoal. Quanto à sua personalidade e vivência pessoal também foram valorados os relatórios clínicos juntos aos autos, mormente os de fls. 457; relatório de avaliação psicológica junto aos autos a fls. 485 a 488; e relatório do IRS a fls. 496 a 500.

 No que se refere aos antecedentes criminais do arguido, no C.R.C. junto aos autos, a fls.492 e segs.

No que se refere aos factos não provados resultaram estes da ausência de prova suficiente atinente aos mesmos.
5. Dos alegados erros de julgamento em matéria de facto:
Como é sabido, não existe no âmbito do processo penal, contrariamente ao que sucede no domínio do processo civil, um verdadeiro ónus de prova, em sentido formal, que recaia sobre qualquer sujeito do processo; nele vigora o princípio da aquisição da prova ligado ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem, devendo o Tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos na procura incessante da verdade material, como determina o art. 340.º, n.º 1 do CPP.
No entanto, a verdade que se busca em processo penal «é o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificadamente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtido por meios válidos. A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida.

A lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, e, por isso também, as autoridades judiciárias, mormente o juiz, não dispõem de um poder ilimitado de produção de prova. O thema probandi vai sendo delimitado em cada fase processual e limitados são também os meios de prova admissíveis no processo, os métodos para a sua obtenção e o momento e forma da sua produção: a verdade obtida com tais limitações nos métodos e meios há-de ser por isso também apenas uma verdade histórica-prática, uma determinação humanamente objectivada de uma realidade humana»[i].

Assim, a verdade que o direito encerra é a processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente à “parcela de vida” acontecida), na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana.

Colocado o Tribunal de julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção de inocência.

Intimamente ligado com o referido estado de dúvida operante do princípio in dubio pro reo está o da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do CPP.

Livre apreciação da prova a formar não em observância a qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes estribada na sua análise segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio de cariz intelectual e de consciência que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Ou seja, uma livre valoração entendida como “…valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”[ii].

Enquanto não se afastar a compreensão do livre convencimento do juiz como sinónimo de uma liberdade indiscriminada, sem controlo, a fronteira da dúvida não poderá ser estabelecida com recurso a qualquer padrão de cariz objectivo, obstando a que o princípio apto a resolver a dúvida possa ser visto, em rigor, como regra de direito.

A uma convicção subjectiva corresponderá necessariamente uma dúvida subjectiva.

Daí que a livre convicção do juiz no domínio do processo penal moderno não se deva confundir com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, devendo ser objectivável e motivável, assim sendo, quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável.

Ou, como escreve Castanheira Neves, do que se trata é “uma liberdade para a objectividade, não uma mera liberdade intuitiva, mas aquela que se concebe e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros”.[iii]

Intimamente conexionados com o princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.

Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e conditio sine qua non para a respectiva admissibilidade. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Na realidade, só estes princípios permitem, com efeito, o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido e testemunhas, a recolha da impressão deixada pelas suas personalidades e a avaliação mais correcta possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais, bem como uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem do direito do caso.

Por isso, quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende as regras da experiência comum.

O duplo grau de jurisdição em recurso de matéria de facto não tem, pois, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que, nos termos e com os limites expostos, está conferido ao julgador de 1.ª instância, podendo o tribunal ad quem, na reapreciação das provas oralmente produzidas em audiência de julgamento, sujeitas a gravação, modificar a decisão recorrida nos casos em que ela não colhe qualquer apoio nos elementos de prova que o processo comporta.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza/conteúdo das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

Posto o que ficou dito, retomando o caso concreto, vejamos, pois, se as provas produzidas no âmbito deste processo impõem, relativamente aos concretos pontos de facto discriminados pelo recorrente, decisão diversa da recorrida.

Em jeito de parêntesis, importa deixar registado que o recorrente, embora se insurja contra os factos provados atinentes ao crime de violação - quanto aos demais, como refere na motivação do recurso, «foram confessados» -, acaba por indicar como factos impugnados os constantes dos pontos n.ºs 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 14 e 19 do acervo factológico provado, não obstante os pontos 14 e 19 se circunscreverem no quadro do imputado crime de ofensa à integridade física e não no âmbito dos crimes de violação.

Apesar da incongruência de que se dá conta, e para que nenhuma dúvida subsista quanto aos verdadeiros desígnios do recorrente, não deixaremos de estender a apreciação do recurso também aos aludidos pontos de facto 14 e 19.

Pelo que é dado ver do contexto global da petição de recurso, aduz o arguido:

As declarações da menor, sem a indispensável corroboração de outros meios de prova, nomeadamente de natureza médico-legal, são manifestamente insuficientes para dar como provados os pontos de facto 2 a 6 e 8 a 11 da factualidade provada.

Ora, as testemunhas que coabitavam com a menor, como a mãe, o tio e a tia, acabaram todas por dizer nunca terem visto qualquer acto de abuso sexual do pai relativamente à filha.

Mais, a mãe afirmou que, quando a menor era pequena e lhe tratava da sua higiene íntima, nunca se apercebeu de nada do mínimo pormenor que sugerisse a prática de acto de violação.

Já na idade da adolescência da menor, na sequência das denúncias desta, a mãe simulava, por vezes, saídas e, aparecendo repentinamente, nunca detectou qualquer acto suspeito que lhe gerasse dúvidas sobre o comportamento do arguido.

Acresce até que, de acordo com as declarações da tia da menor, esta, quando confrontada com a possibilidade de reatamento da vida comum por parte dos seus pais, consentiu no regresso do pai ao lar conjugal.

Por outro lado, decorre dos depoimentos de diversas testemunhas que o arguido sempre tratou bem a menor, com excepção de uma única vez em que a agrediu fisicamente.

A própria perícia médico-legal não permite tirar qualquer ilação no sentido de se afirmar com um grau de certeza que a menor foi efectivamente vítima de violação, muito menos por parte do pai.

Aliás, existem contradições entre a perícia-médico legal e o depoimento da “médica de família” da menor, porquanto esta referiu ter feito um exame ginecológico à … e que, em contrário do referido na perícia, a menor não apresentava um hímen complacente.

Há ainda que ter em conta as declarações da piscóloga da instituição onde a menor se encontra actualmente, a qual, quando confrontada com a hipótese de a versão apresentada pela menor não ser mais do que uma represália da mesma, admitiu esta possibilidade.

As circunstâncias consideradas pelo tribunal a quo na exposição dos motivos determinantes da decisão de facto, de a menor se sentar ao colo do pai e, numa situação isolada, ter surgido nua à frente dos pais, não justificam racionalmente o sentido decisório tomado.

Além de que, as próprias declarações da menor mostram-se eivadas de incongruências e contradições, relativamente às idades em que a mesma refere ter sofrido os imputados actos abusivos, ao número de vezes que foi violentada, e ao motivo que a levou a tornar públicos os comportamentos do seu pai.

Passando à análise do conteúdo das declarações/depoimentos, o arguido negou peremptoriamente a prática dos factos descritos supra, correlacionados com os imputados crimes de violação, como se pode ver das declarações por aquele prestadas na sessão de julgamento do dia 12 de Março de 2008, gravadas na cassete 1, lado A, rotações 000 a 1243.

Por sua vez, a menor … atribui ao arguido a prática dos factos que os questionados pontos de facto consagram (sessão de julgamento do dia 12 de Março de 2008, cassete 1, desde 1244 até ao fim do lado A e 000 a 169 do lado B).

E foram estas declarações, globalmente apreciadas, correlacionadas com os demais elementos de prova postos em relevo na motivação da decisão de facto - os quais, em si mesmos e nas suas interdependências, analisaremos mais adiante com o devido pormenor -, que determinaram a fixação do acervo factológico provado nos termos que constam do acórdão sob recurso.

Contrapõe, contudo, o recorrente que as declarações da menor Marlene são inconsistentes e contraditórias, não merecendo, em consequência, o grau de credibilidade e verosimilhança que o tribunal de 1.ª instância lhe atribuiu.

Escalpelando os apontados focos de contradição e inconsistência, cumpre registar:

1. Começa por anotar o recorrente: «Interpelada pela Senhora Juíza qual a idade que teria quando o pai começou a abusar dela e se era com uns quatro ou cinco anos, a testemunha afirma que na altura tinha oito anos. Posteriormente, foi feita a mesma pergunta e já diz que é seis anos. Depois afirma que o pai abusava quase todos os dias dela, porquanto era pequenina. Mas quando a Juíza posteriormente lhe pergunta se foram mais de dez, ela responde simplesmente: “mais”; o que é estranho, porque no decurso do mesmo depoimento afirma que o pai abusava quase todos os dias dela, ao longo de vários anos e que depois ele volta a fazer o mesmo quando vem viver para Aveiro».

Porém, as objecções apostas pelo recorrente não têm a mínima razão de ser, porquanto as declarações da menor, no contexto em análise, evidenciam que a mesma não soube determinar, com exactidão, por referência à sua idade, o momento em que começaram os actos de abuso sexual (às repetidas perguntas da M.ma Juíza no sentido da concretização da idade, a menor começou por alvitrar como possível a idade de 8 anos, dizendo em seguida “para aí uns seis”, acabando, depois, por exclamar: “não me lembro muito bem que idade é que tinha”), situação perfeitamente compreensível em função da tenra idade da menor, naquela fase da sua vida, e dos sucessivos e prolongados abusos de índole sexual a que referiu ter sido submetida.

No que concerne à frequência dos actos sexuais, a menor foi clara e espontânea na resposta à pergunta que lhe foi feita: eles verificavam-se “quase todos os dias”. Na sequência de nova pergunta do seguinte teor: “Portanto, isso aconteceu várias vezes, mais de cinco? Mais de dez?”, a menor, sem hesitar, respondeu: “mais”.

Diversamente do recorrente, não vemos aqui qualquer ponto de contradição ou sinal de menos firmeza na posição da menor perante as questões que lhe foram colocadas. Pelo contrário, o seu discurso apresenta-se manifestamente lógico e coerente.

Obtempera ainda o recorrente:

«(…) A instâncias da defensora oficiosa do arguido, que lhe perguntou em que momento é que ela se tinha lembrado de fazer queixa por o pai abusar dela e se esse momento tinha sido na sequência de um acontecimento, a testemunha começa por dizer que não; mas posteriormente, já afirma outra coisa, ou seja, que foi na sequência de ter fugido para a casa de um amigo e por achar que já estava um processo aberto, que se lembrou de falar no assunto.

Como veremos (…), à psicóloga da instituição que a acolheu já veio com uma nova versão; pois a testemunha … afirma que a … lhe contou que foi na sequência de uma acção de formação da PSP na escola onde andava que se lembrou de fazer queixa (…)».

A tese argumentativa do recorrente espelha tão só uma conclusão pessoal sobre as declarações da menor. Estas, contudo, se devidamente contextualizadas, não permitem semelhante conclusão.

Assim, à pergunta: “Oh …, esta situação que tu vieste falar do teu pai abusar de ti, foi na sequência de um acontecimento não foi?”, respondeu a menor: “Não”.

Ora, é evidente que ao “não” da resposta não pode ser o atribuído o significado que lhe dá o recorrente, mais não seja porque a pergunta, genérica e abstracta, não permite alcançar o seu alcance e sentido.

A nova pergunta: “Mas foi na sequência disso (fuga da casa) e dos teus pais te irem buscar que tu depois vieste comentar com alguém”, esta resposta: “Sim”.

Ainda a outra pergunta: “E porque não falaste antes, tu nessa altura já tinhas treze anos?”, a seguinte resposta: “Porque por exemplo, a minha mãe aí … já tinha o processo aberto, não é, de ter fugido”.

Todavia, a menor acabou a final por dar a conhecer o motivo por que não revelou antes os abusos sobre si praticados: “(…) Sabia que a reacção da minha mãe não ia ser boa. E ela não ia, talvez não ia acreditar em mim”; “Depois conheci o Sr. Malta (o Sr. Da PSP, escola-segura), confiei nele e contei-lhe”.

E se a fuga da menor pode estar correlacionada com a revelação dos actos, fazendo fé nas declarações, insuspeitas, da testemunha … (cfr. cassete n.º 2, rotações 2243 até ao fim do lado A, e rotações 005 a 1141 do lado B), psicóloga no Centro Social Paroquial de Ricardães - instituição a quem a menor está entregue -, e da testemunha … (cfr. cassete 2, lado B, rotações 1142 a 1785, sessão de julgamento do dia 9 de Abril de 2008), a acção de sensibilização por parte dos elementos da PSP afectos à escola-segura pode ter constituído o marco decisivo para o referido fim.

A este respeito, são sugestivas as declarações da testemunha …, agente da PSP, em serviço exclusivo na “escola-segura”, quando dá a conhecer as sucessivas tentativas da menor no sentido de lhe comunicar os abusos praticados e o estado de perturbação e ansiedade em que aquela se encontrava[iv].

Como são esclarecedoras as declarações da testemunha …, ao dar a conhecer o estado de sofrimento em que a menor chegou Centro Social Paroquial de Ricardães e a posição de incredibilidade da mãe da menor perante os factos por esta a final relatados.

De tudo o que fica exposto, não revemos no depoimento da menor … os pomos de contradição e incoerência que o recorrente assinala.

Antes, como bem assinala o tribunal a quo, afigura-se-nos ser o depoimento espontâneo, pormenorizado, esclarecedor e convincente sobre os factos ocorridos e abusos sexuais infligidos pelo seu progenitor, não estando a sua credibilidade afectada quer pelas invocadas contradições e incoerências que, como vimos, não existem, quer pelas reservas de verosimilhança acima sintetizadas, as quais, de seguida, serão objecto de análise.

Como é sabido, os crimes de natureza sexual são crimes “encobertos, escondidos”, praticados longe do olhar comprometedor dos alheios, muitas das vezes dentro do lar conjugal e parental, não assumindo, por isso, a mínima relevância a circunstância de os familiares mais próximos da menor nunca terem visto qualquer acto de abuso sexual do pai relativamente à filha ….

Aliás, como decorre abundantemente dos variados elementos de prova produzidos nos autos (v.g. documentação de fls. 8, 130, 496/500, cotejada com as declarações, da menor[v] e das testemunhas …[vi] e …[vii], respectivamente mãe e tio da menor), a infância da … foi marcada pelos hábitos alcoólicos de ambos os pais e pela existência de violência doméstica, do pai em relação à mãe, sucedendo que a mãe da menor, em certas e variadas ocasiões, se viu obrigada ao abandono do lar conjugal durante a noite, pernoitando ao relento, nas imediações da habitação, deixando a menor em casa.

Neste quadro específico, não se vê como poderia a mãe da menor prestar-lhe os cuidados necessários e estar vigilante a todo e qualquer problema da menor, nomeadamente às sequelas, quer físicas quer psíquicas, decorrentes dos abusos sexuais do pai.

Quanto à vigilância da mãe da menor, já em Aveiro, exercida a partir do momento em que lhe foi dada conta, pela cunhada …, do conteúdo das denúncias, sem que nada de suspeito tivesse verificado, evidentemente assim tinha de ser.

De acordo com as suas declarações isentas (nenhum motivo se detecta para que o não fossem), a testemunha … teve conhecimento, em “primeira-mão”, dos factos denunciados através do seu marido, …. Segundo o relato deste, o mesmo só tomou conhecimento dos factos denunciados pela menor através da PJ, o que significa dizer, após a participação dos factos, pela menor, ao Agente da Policia de Segurança Pública, ….

Ora, de acordo com o relato da menor[viii], o qual, enfatiza-se, é digno de crédito, a partir da denúncia da situação o seu pai não mais abusou de si.

Sem significado são também as considerações a propósito da aceitação pela menor do regresso do pai ao lar conjugal, em Aveiro, e do “bons tratos” do pai à menor, afirmado pelas testemunhas.

Reconhecidamente, a criança sujeita em contínuo, desde tenra idade, a abusos sexuais pelas figuras que lhe são próximas vivenciam uma situação caracterizada pela ambivalência.

Utilizando aqui as expressões da psicóloga, também testemunha, …, o pai agressor não deixa de ser aquele pai que a menor sempre conheceu. Daí que aos olhos da criança, o pai “agressor” seja ao mesmo tempo o pai “protector”.

No mais, “contra a realidade não há argumentos”. Aparte os factos alusivos aos abusos sexuais, o circunstancialismo dos autos, em que um pai alcoólico inflige, repetidamente, ao longo dos autos, maus tratos à sua mulher, mãe dos filhos de ambos, obrigando-a a pernoitar na rua em inúmeras situações, deixando, neste contexto, uma filha de tenra idade entregue a si própria, está longe de merecer, convenhamos, o epíteto de “bons-tratos”.

Noutra perspectiva, não vale a pena divagar sobre as situações recorrentes de abusos sexuais em que a aparência encobre a realidade.

Enfrentando outra das objecções do recorrente aos factos provados que impugnou, qual seja a de a psicóloga … ter admitido a possibilidade de a denúncia efectuada ser o resultado de uma represália da menor …, essa é uma extrapolação que as declarações da testemunha não consentem.

Na verdade, a testemunha não deu resposta à seguinte pergunta da ilustre defensora do arguido: “E não pode ser uma represália dela?”. Deu sim resposta a uma outra pergunta “(…) Isto é uma idade muito complexa, 13, 14 anos, 15, 16, é ou não é, Senhora Doutora?”, nos seguintes termos: “Sim, sim Doutora, é verdade”. Ou seja, a testemunha apenas admitiu que as idades em causa são idades muito complexas. Em abono da verdade, se atentarmos na globalidade do depoimento da testemunha, facilmente nos damos conta de que a resposta “posta na boca” daquela pelo recorrente estaria em flagrante contradição com o demais dito pela mesma, porquanto esta, em função do acompanhamento regular que vem fazendo à menor, expressou sempre a convicção de a …ter falado verdade e de ela ter sido sujeita “a actos sucessivos de violação” (em itálico, sic).

Seguindo em frente, as alusões à consagração na motivação da decisão de facto do acórdão recorrido das duas circunstâncias referidas pelo recorrente só se justificam por uma deficiente leitura da referida peça processual, pois nesta, no contexto visado pelo recorrente, apenas é dito o que se passa a transcrever:

«Também a tia da menor, …, referiu (…) o relacionamento demasiado “à vontade” que constatava existir entre a menor e o pai”.

E se se quiser perscrutar o que foi dito pela testemunha …, “o demasiado à vontade”, embora carecendo de concretização, reconhece-se, “ia um bocadinho além do sentar no colo”.

Acrescenta ainda o recorrente não permitir o relatório de perícia médico-legal tirar qualquer ilação segura no sentido de se afirmar, com um grau de certeza processualmente relevante, ter sido a menor vìtima dos actos de abuso sexual em causa, muito menos praticados pelo pai, e também a existência de contradições entre o referido relatório e o depoimento da “médica de família” da menor.

No dito “relatório de perícia de natureza sexual” (fls. 274 a 277), elaborado por perito do Instituto Nacional de Medicina Legal (Gabinete Médico-Legal de Aveiro) está referido, a dado passo: “O estiolo himenial é permeável aos dedos indicador e médio justapostos de um dos peritos que procederam ao exame”. No mesmo, foram extraídas as conclusões infra transcritas:

«- Examinada do sexo feminino, com idade aparente à sua idade civil;

- Não se observaram sinais objectivos de lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da superfície corporal, em geral, na região genital ou anal;

- A examinanda apresenta hímen complacente, isto é, que pode ter permitido a cópula sem se lacerar».

Ouvida em audiência de julgamento, na qualidade de testemunha, a médica Sr.ª Dr.ª … (cfr. CD-R, relativo à sessão de julgamento do dia 30 de Abril de 2008) deu conhecimento da observação ginecológica que fez à menor …, em Fevereiro de 2006, altura em que esta ingressou no Centro Social Paroquial de Ricardães, tendo afirmado:

«Fiz, com a maior das facilidades, o exame ginecológico, com a penetração do espéculo. Não vi hímen». A menor não «tinha hímen complacente. O espéculo deslizou sem dificuldade, o que me fez pensar que havia actividade sexual (…) com alguma regularidade.

(…)

Acho estranho que o exame pericial referia hímen complacente».

Perante as contradições evidenciadas, o médico subscritor do relatório pericial prestou esclarecimentos em audiência de julgamento. (cfr. CD-R relativo à sessão do dia 20 de Maio de 2008), tendo reafirmado «não haver qualquer dúvida sobre o hímen complacente» da menor, «porque se não o fosse estava lacerado».

À pergunta da Sr.ª Procuradora da República: “Então sendo o hímen complacente (…), a introdução do pénis de um adulto na vagina de uma criança pode fazer-se sem deixar vestígios”, respondeu o Sr. Perito: “Pode ser na totalidade e sem deixar vestígios; os vestígios só são detectados se houver líquido seminal.

Mais adiante, acrescentou o Sr. Perito: Se o estiolo himenial permite a introdução de «dois dedos justapostos, de certeza há a possibilidade de introdução de um pénis» para realização da cópula. «E pode acontecer que isso derive de uma actividade que se tivesse prolongado no tempo».

Como é sabido, no sistema processual penal vigora, como já ficou dito, a regra da livre apreciação da prova, em termos tais que, em conformidade com o disposto no artigo 127.º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Porém, estabelece o artigo 163.º, n.º 1, do CPP, uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do mesmo diploma, atribuindo um valor presuntivamente pleno (presunção juris tantum que pode ceder perante uma contraprova) ao juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial, daí decorrendo que o julgador, face à prova pericial, terá de aceitar o juízo técnico, científico ou artístico a ela inerente, a menos que fundamente a sua divergência.

Se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente á prova pericial, nada terá de dizer. Se o não acatar, e dele divergir, terá de fundamentar a sua divergência[ix].

Todavia, sem embargo do teor científico das declarações da testemunha Sr.ª Dr.ª …, essas declarações têm de ser apreciadas com base em critérios distintos da prova obtida através de perícias efectuadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.

Assim sendo, no caso sub judice, o tribunal a quo, procedeu correctamente na apreciação e valoração da prova, uma vez que de nenhuma forma divergiu da conclusão do parecer médico-legal.

Como assim, não merece o tribunal a quo a mínima censura relativamente aos impugnados pontos de facto 2 a 6 e 8 a 11 da factualidade provada.

As declarações da menor …, esclarecedoras e convincentes sobre a realidade acontecida, têm ainda certas corroborações periféricas, nalguns casos de carácter objectivo.

Assim, com se assinalou, o exame pericial e os esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito; o conteúdo do relatório da avaliação psicológica efectuada à menor no Instituto de Medicina Legal (Delegação de Coimbra), onde consta, na parte que, para o efeito, temos como relevante, registar a menor uma “baixa pontuação (…) na escala L (Mentira), que pressupõe uma atitude de franqueza e sinceridade por parte da examinada” e as declarações, nos termos expostos, das testemunhas … e ….

Por fim, nenhum reparo há que fazer também ao juízo valorativo do tribunal de 1.ª instância por ter dado como provados os pontos de facto 14 e 19.

O ponto de facto 14 decorre das declarações da menor, da mãe e tia daquela, testemunhas … e …, respectivamente, as quais, com pequenas diferenças de pormenor, relataram as “chapadas na cara”; os murros” e as “bofetadas” desferidas pelo arguido na sua filha ….

O ponto de facto n.º 19 é a decorrência lógica e racional, assente nas regras da experiência comum de vida, daqueles outros pontos vertidos nos n.ºs 14. a 16. do acervo factológico provado.

6. Do invocado erro notório na apreciação da prova:
Dispõe o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
«c) Erro notório na apreciação da prova».
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[x].
O erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.
Percorrendo a globalidade da motivação de recurso e centrando a atenção na conclusão n.º 4, facilmente se vislumbra que o recorrente questiona, não o texto da decisão recorrida, mas sim o processo de valoração da prova seguido pelo tribunal a quo que, como vimos, está isento de qualquer reparo.

7. Da violação do princípio in dubio pro reo:

A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

O referido princípio é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).

Colocado o tribunal de julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o dito princípio.

Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que o referenciado princípio se afirma.

Retomando o caso que se nos depara, não existe o mínimo indício de o tribunal a quo ter ficado na dúvida em relação aos pontos de facto postos em destaque pelo recorrente, reapreciados por este tribunal ad quem nos termos supra indicados.

Como assim, não existe non liquet no caso vertente: mostrando-se o tribunal a quo convicto da prova dos factos que deu como provados, não poderia aplicar o princípio in dubio pro reo.

8. Da qualificação jurídica dos factos:

Parco em palavras, invoca o recorrente que a sua conduta é tão só subsumível ao n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal (serão deste diploma as referências que se vierem a fazer sem indicação de fonte legal).

Dispunha este normativo (redacção da Lei nº 65/98, de 2 de Setembro):

2 - Quem, abusando de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, constranger outra pessoa, por meio de ordem ou ameaça não compreendida no número anterior, a sofrer ou a praticar cópula, coito anal ou coito oral, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 3 anos».

Actualmente, com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a norma em causa passou a ter a seguinte redacção:

«Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se do temor que causou, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;

é punido com pena de prisão até 3 anos».

Para se ver da interpretação espúria do recorrente, basta ler com a devida atenção os preceitos que se acabaram de citar, concatenados com o n.º 1 do artigo e com o artigo 172.º (actualmente, artigo 171.º). Se assim for, desde logo se vê que, se o agente utilizar qualquer um dos meios de execução previstos no n.º 1 do arguido 164.º para constranger a vítima (“violência”, “ameaça grave”, “ter tornado a vítima inconsciente ou pondo-a na impossibilidade de resistir”), incorre no crime de violação do n.º 1 do referido artigo. Caso não se verifique a utilização dos ditos meios de execução mas a vítima for menor de 14 anos, o crime será necessariamente o do artigo 172.º (hoje, artigo 171.º).

Deste modo, no caso dos autos, está indelevelmente afastada a previsão típica do n.º 2 do artigo 164.º, havendo que ver, então, se o arguido cometeu o(s) crime(s) do n.º 1 do mesmo artigo ou o(s) crime(s) do artigo 172.º, n.º 2 (171.º, n.º 2, na revisão da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).

Dentro da liberdade em geral, a «liberdade sexual», entendida como aquela parte da liberdade referida ao exercício da própria sexualidade e, em certo modo, à disposição do próprio corpo, aparece como um bem jurídico merecedor de protecção penal específica, não sendo suficiente para abarcar toda a sua dimensão a protecção genérica que se concede à liberdade.

Na verdade, com a revisão de 1995 do Código Penal, os crimes sexuais, considerados anteriormente crimes “contra os bons costumes” (Código Penal de 1886) ou “crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade” (Código Penal de 1982), foram integrados nos crimes contra as pessoas, constituindo aí um capítulo autónomo epigrafado “crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”. Fica assim indelevelmente reconhecido que o bem jurídico protegido não é mais os bons costumes ou os sentimentos de moralidade da comunidade, mas sim a liberdade e a autodeterminação sexual, consideradas “como um dos vectores em que se analisa a liberdade humana, direito fundamental constitucionalmente reconhecido”[xi].

Quando se trate de menores de idade inferior a certo limite, pretende-se proteger a normal evolução da sua personalidade, para que quando seja adulto decida em liberdade o seu comportamento sexual.

Assim, no caso de adultos, só são criminalizadas as actividades sexuais obtidas por meios que afectem a livre vontade de aceitação da vítima nomeadamente, cfr. ao n.º 1 do artigo 164.º (revisão de 1998), quando o agente aja «por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, coito anal ou coito oral».

Em relação a crianças de idade inferior a 14 anos, o Código Penal proíbe todos os contactos de natureza sexual. Parte-se da ideia nuclear de que, abaixo da referida idade, a criança não é livre de se decidir em termos de racionamento sexual, sendo, portanto, indiferente que os factos tenham sido praticados com ou sem a sua adesão.

Volvendo ao circunstancialismo dos autos, diz-nos a matéria de facto provada que o arguido realizou cópula com a sua filha … quando esta tinha idades compreendidas entre os 5 e os 13 anos.

Nestes termos, para a correcta qualificação das condutas do arguido tudo está em saber se a menor foi constrangida (ou não) à prática da cópula por meio de violência ou ameaça grave.

Não tem sido inteiramente pacífica, na doutrina, o conceito de “violência”.

 Assim, para o Professor Figueiredo Dias[xii],  «não basta nunca à integração do tipo objectivo de ilícito (…) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar» acto de violação, «isto é, que este acto tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima». «Actos sexuais súbitos e inesperados praticados sem ou contra a vontade da vítima, mas aos quais não preexistiu a utilização de um daqueles meios de coacção, não integram o tipo objectivo de ilícito».

Seguindo ao pé da letra o insigne Professor, meio típico de coacção é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada.

Em sentido não inteiramente coincidente, refere o Juiz Sénio Alves[xiii] que, na falta de referência expressa do artigo 164.º, n.º 1, à violência física, parece ser de concluir que tanto a violência física como a moral, se determinaram a cópula, são elementos constitutivos do tipo de violação. «É que a violência moral (consistente, v.g., no perigo de um mal maior para a vítima ou sua família) pode determinar a cópula e, a não ser que se reconduzissem factos deste tipo à noção de “ameaça grave” (com as dificuldades inerentes á determinação do que é “grave” e à respectiva prova), ela ficaria impune. (…) A “grave ameaça” é algo diferente, de um ponto de vista qualitativo. Consiste, penso, no colocar a vítima perante a iminência da verificação da violência (física ou moral) provocando-lhe um tal temor que a determine à cópula».

Em plano assaz diverso, se pronuncia o Juiz Mouraz Lopes[xiv], para o qual - não tendo o legislador português, contrariamente ao que sucede com a legislação penal espanhola e italiana, autonomizado a tipificação do crime de abuso sexual para os casos em que, sem violência ou intimidação e sem consentimento, haja realização de actos que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa (art. 179.º) -, «não pode deixar de se levar em consideração o “carácter estático ou passivo da liberdade sexual, que consiste na protecção do aspecto defensivo de tal liberdade, no direito de não sofrer qualquer espécie de intromissão física ou moral dirigida para a realização de actos sexuais”».

Acrescenta ainda o mesmo Juiz: «o entendimento amplo do conceito de violência, para efeitos da concretização do crime permite, desde logo, que nos casos em que haja, porventura, algum “consentimento” da vítima no desenrolar do acto, tão só e apenas para evitar o mal maior de ser brutalizada com agressões físicas, sejam, mesmo assim, considerados como situações de violação».

É neste sentido a posição quase unânime dos nossos Tribunais Superiores, como se pode ver, a título meramente exemplificativo, dos Acs. do STJ de 22-02-2006 e 14-03-2002[xv], da Relação de Coimbra de 17-02-1993[xvi], da Relação do Porto de 06-03-1991[xvii], e da Relação de Évora[xviii].

Quanto ao segundo meio de coacção previsto no n.º 1 do art. 164.º, a ameaça deve ter uma certa gravidade e guardar alguma relação com a agressão sexual. A gravidade da intimidação e a sua suficiência para constituir um crime de violação é um problema de causalidade suficiente entre a acção e o resultado que deve ser resolvido com os critérios gerais da causalidade e da imputação objectiva, transportados para as relações interpessoais. A gravidade do mal com que se ameaça deve medir-se de forma objectiva e deve ter um carácter de imediatividade na sua realização que praticamente não deixe à pessoa intimidada outra saída que aceitar a realização do acto sexual. Assim, não é o mesmo coagir uma criança ou um adulto. Nas agressões sexuais, a idade do sujeito passivo e o contexto social e familiar que o rodeiam são, pois, factores decisivos para o julgador valorar até que ponto a intimidação pode ter o grau suficiente para integrar o tipo de crime em causa[xix].

Entrando de novo na apreciação da matéria de facto provada, dela se colhe que:

- O arguido, em dia não apurado do ano de 1997, deitou a sua filha …, então com 5 anos, na cama, despiu-a e, acto seguido, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, aí o friccionando. Tendo a menor começado a gritar e chorar, o arguido obrigou-a a calar-se;

- A partir desse dia e até ao ano de 1999/2000, quando a sua filha … tinha apenas a idade de 5/8 anos, o arguido, por várias vezes, valendo-se da sua superioridade física, despiu-a, deitou-a na cama e, colocando-se em cima dela, introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, aí o friccionando;

- Após Maio de 2003 e até ao dia 4 de Março de 2005, o arguido, por diversas vezes, obrigou a menor a deitar-se na sua cama, tirou-lhe a roupa e, depois de ter retirado a roupa que envergava, colocou-se em cima da menor, introduzindo o pénis erecto na vagina desta, aí o friccionando e ejaculando sémen para o seu interior;

- No decurso destes factos, o arguido ameaçava a ofendida … que caso contasse a alguém a agrediria e obrigava a menor a manter-se em silêncio, ameaçando-a, dizendo-lhe que caso contrário sofreria as consequências, ou seja, seria por si agredida.

Perante este conspecto fáctico, afigura-se-nos patente, sob qualquer perspectiva, que a menor foi constrangida à prática dos referidos actos de cópula, através de violência e de ameaças suficientes graves, verificando-se, assim, o crime de violação do artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal[xx], agravado nos termos do artigo 177.º, n.ºs 1, alínea a), e 4, do mesmo diploma legal.

9. Crime continuado?
Como claramente decorre do conteúdo do art. 30.º, n.º 1, do Código Penal («O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente»), o critério de distinção entre unidade e pluralidade de infracções não é um critério naturalístico mas, antes, normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais negados, expressos nos tipos legais de crimes, correspondendo à unidade ou pluralidade de juízos de censura tendo na base a unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.
Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores ou diversas vezes ao mesmo preceito, o juízo de censura será determinante para saber se concretamente se verifica um ou mais crimes. Isto se deduz do advérbio «efectivamente» contido na citada norma e dos princípios basilares sobre a culpa - neste sentido, vide Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 10.ª edição, como sendo a consagração do que já vinha ensinando o Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções.
O que se vem de dizer significa que, para a existência de uma infracção penal, não é bastante a antijuricidade, ou seja, a realização do tipo legal de crime; é necessário que a conduta seja reprovável, isto é, passível de culpa. E, assim, poderemos dizer que há tantos crimes, na realização do mesmo tipo legal, quantas vezes a conduta se tornar reprovável. A pluralidade de infracções resultaria, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação.
As normas jurídico-penais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contramotivo no momento da resolução.
Deste modo, haverá tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade.
E o que indica quantas vezes se verifica essa ineficácia é a resolução.
Quantas vezes o indivíduo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma, tantas vezes se verifica a sua ineficácia, ou seja, a sua violação.
Em jeito de síntese, ressalta a seguinte ideia predominante: mesmo que a actuação do agente se traduza numa pluralidade naturalística de acções, executadas em momentos separados no tempo, existe um só crime desde que aquelas estejam subordinadas a uma única resolução criminosa, sendo de esclarecer que a existência de certa conexão temporal que ligue os vários momentos da conduta do agente é um índice importante da unidade de resolução, mas não é decisivo, havendo que atender a todo o circunstancialismo fáctico revelador da forma como se desenvolveu a actividade criminosa do agente para então se chegar à aludida determinação de vontade, concreta, determinada, e não a qualquer uma resolução abstracta, geral.
Contudo, o comando do n.º 1 do art. 30.º do CP, sofre, com cobertura da lei, duas importantes restrições: os casos de concurso legal ou aparente (onde pontificam as regras da especialidade, da consunção e da subsidiariedade) e de crime continuado.
Esta figura, a do crime continuado, constitui uma excepção à regra do concurso em caso de pluralidade de infracções, consentida graças à concorrência de determinados requisitos mitigadores enunciados no n.º 2 do art. 30.º do Código Penal, a saber:
- plúrima realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
- homogeneidade da forma de execução, o chamado injusto objectivo da acção;
- lesão do mesmo bem jurídico,  isto é, a unidade de injusto de resultado;
- situação exterior propiciadora da execução e susceptível de diminuir consideravelmente a culpa.
Porventura o requisito mais problemático de toda esta plêiade de pressupostos cumulativos será o último: saber, em cada caso concreto, quando é que podemos afirmar que houve, de modo exterior ao agente, um condicionalismo que facilitou a sua acção e consequentemente degradou a respectiva culpa. Tem-se por adquirido que o fundamento da aludida minorização da culpa há-de ir buscar-se em algo que, de fora, isto é, alheio ao agente, e de modo considerável, ou seja, significativamente, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente - como anota Eduardo Correia - que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito»[xxi].
Por conseguinte, a pedra de toque deste requisito será sempre um condicionalismo exógeno ao agente que lhe facilita a recaída e o torna, na circunstância, menos culpado.
Assim, se o agente concorre, minimamente que seja, para que esse quadro exterior se desenhe, não pode obviamente aproveitar-se das condições que criou e ver configurada uma situação de continuação criminosa.
É exactamente esta a linha de orientação da nossa jurisprudência, quando afirma que não haverá crime continuado, mas concurso de infracções, «quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa»[xxii].
No caso dos autos, não existe a necessária situação exterior apta a proporcionar as subsequentes repetições e a facilitar a reiteração da actividade criminosa, por forma a que a culpa do arguido se tenha de haver como consideravelmente diminuída. No processo de motivação ou de vontade do arguido não avulta um arrastamento para o crime por força da “disposição exterior para o facto”, pois de nenhum modo se pode considerar o arguido arrastado pela oportunidade: a ausência de freios leva-o a abusar sexualmente de uma filha menor, numa situação de completa fragilidade da mesma, revelando, assim, uma personalidade completamente deformada, avessa aos mais elementares valores éticos e morais, não lhe servindo de constrangimento a tenra idade da menor e a relação parental existente. 

Por outro lado, ainda que assim não fosse, muito embora a conexão temporal entre os vários actos não seja elemento essencial do conceito do crime continuado, a distância temporal ou espacial que separa as várias condutas do arguido (umas cometidas entre 1997 a 1999/2000 e as outras entre 2003 e 2005)  é tão larga que sempre afastaria a possibilidade de a mesma situação exterior presidir aos dois blocos de condutas[xxiii].

Não se verifica, assim, o crime continuado que o recorrente reclama.

10. Da sucessão da lei no tempo:

Efectivamente, o Acórdão recorrido nada disse sobre as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.

Contudo, nada havia para dizer, porquanto nenhuma das normas aplicadas pelo tribunal a quo sofreu qualquer modificação minimamente relevante para o caso dos autos.

Na verdade, a única nota digna de registo é o alargamento do campo de previsão do artigo 164.º, n.º 1 ao acto de «introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos», mantendo-se inalterada a pena abstracta cominada para o crime de violação agravado cometido pelo arguido.

Quanto aos crimes de maus tratos (actualmente, epigrafado  de “violência doméstica”) e ofensas à integridade física pelos quais o arguido foi condenado, também não há qualquer alteração a considerar, quer quanto aos elementos típicos quer no que respeita às penas previstas.

11. Medida das penas:

Insurge-se o recorrente contra as penas que lhe foram impostas, que tem por quantitativamente excessivas.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin, em passagens escritas perfeitamente consonantes com os princípios basilares no nosso direito penal, «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.

A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.
Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais».[xxiv]
Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, afim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena[xxv].
A submoldura da prevenção geral é fortemente influenciada pela importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva.
Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.

O arguido cometeu, em concurso efectivo, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, cuja moldura penal abstracta é prisão até 3 anos ou multa; um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2 [actualmente, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a)], punível com pena de prisão de um a cinco anos, e dois crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. a) e 4 [hoje, p. e p. pelos arts. 164.º, n.ºs 1 e 177.º, n.ºs 1, al. a) e 5], puníveis com pena de prisão de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão.

No caso, relevam especialmente as necessidades de prevenção geral, que são elevadas, particularmente nos crimes de violação, sobretudo pelo alarme social que provocam na comunidade.

A gravidade dos crimes é manifesta, sendo acentuado o grau de ilicitude dos factos. Nos crimes de violação o arguido veio repetindo ao longo de vários anos os abusos de natureza sexual. Relativamente ao crime do artigo 152.º, infligiu o arguido, de forma reiterada, maus tratos psíquicos ao seu cônjuge. Quanto ao crime de ofensa à integridade física, sobressai a brutalidade da agressão, determinante de traumatismo nasal na menor.

A culpa também se revela intensa, visto que o arguido sempre se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual, nos casos de violação, não lhe servindo de constrangimento a especial relação com a vítima.

Há que ter ainda em atenção as condições pessoais do arguido. É de modesta condição social e económica; aufere mensalmente, como empregado de um talho, a quantia de € 411; não sabe ler nem escrever; padece de síndroma de dependência alcoólica, tendo já sofrido internamentos para tratamento; mantém acompanhamento na Unidade de Alcoologia de Coimbra do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência; sofre de debilidade mental ligeira.

A dependência alcoólica do arguido não teve nenhuma relação causal com a prática dos crimes de violação. No que tange aos crimes de ofensa à integridade física e maus tratos, foram tais ilícitos praticados no referido estado. Todavia, se o alcoolismo é susceptível de atenuar o juízo de censura pelo facto concreto, diminuindo a culpa, noutra valência, é de molde a aumentar as exigências concretas de prevenção geral e especial, visto o maior risco de repetição dos comportamentos delituosos.

Tudo ponderado, atendendo às condutas do arguido, com dolo directo, ilicitude elevada, consequências danosas, forte necessidade de prevenção geral e especial de tais condutas, as penas parcelares aplicadas ao arguido/recorrente mostram-se justas e adequadas.
A moldura abstracta da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes não, podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art. 77.º, n.º 2 do CP).
Dentro da moldura encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, do CP), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o art. 71.º, n.º 1 do CP, bem como os factores elencados no n.º 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes.

Reproduzindo a palavra autorizada do Prof. Figueiredo Dias[xxvi], tudo deve passar-se, por conseguinte, «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».
No caso, é particularmente elevada a gravidade do ilícito global.

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos é já reconduzível a um desvalor que radica numa personalidade manifestamente defeituosa e propensa ao cometimento de crimes sexuais e de maus tratos.

Pelo que fica exposto, a pena única de 7 anos e 6 meses fixada pelo tribunal da 1.ª não é, de modo algum, excessiva.
12. Da responsabilidade pelas custas:
Face à total improcedência do recurso, ao arguido incumbe o pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais.
Tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica do arguido, fixa-se a taxa de justiça em 5 UC.
III. Dispositivo:
Posto o que precede, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, com 5 UC de taxa de justiça.


[i] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, pág. 114.
[ii] Germano Marques da Silva, idem, pág. 111/112.
[iii] Sumários de Processo Penal, 1967/1968, pág. 50.
[iv] «Um dia (...) pela manhã, a … chegou ao pé de mim, que queria falar comigo; e eu achei que estava um bocado perturbada; assim um pouco nervosa (…). Disse-lhe: “no dia seguinte falo contigo”. Ela no dia seguinte voltou a insistir e passados 2 ou 3 dias chegou ao pé de mim e começou a chorar (…). Ela estava bastante magoada e contou-me que andava a ser abusada sexualmente pelo pai. Achei-a muito perturbada. Não entrou em pormenores comigo. Devido à gravidade da situação, comuniquei de imediato à escola (…) e ao oficial de serviço (…) e levei a … nesse mesmo dia à PJ para ser ouvida.
(…) Pouco tempo antes tinham feito uma acção de sensibilização na turma dela».
[v] «Então, ele batia na minha mãe e a minha mãe saía (…) de casa. (…) A minha mãe deixava-me lá em casa, na cama a dormir, e depois ele chegava e (…) fazia sexo comigo. (…).
[vi] «Eu depois comecei a meter-me no álcool», situação que perdurou até ir para Aveiro. «Quando o meu marido me batia às vezes ia dormir fora. (…) Dois anos antes de vir para Aveiro é que comecei a fugir mais de casa. Às vezes passava a noite fora de casa. (…)». Ficava numa ramada ou numa casa de banho velha existentes no exterior da habitação.
[vii]Antes de virem para Aveiro «a vida deles era péssima, não cuidavam da vida. Chamei-a para Aveiro (a mãe da menor, sua irmã); «tinha o costume do álcool, estava alcoolizada (…)».
[viii] A pergunta da M.ª Juíza: “Diz-me uma coisa, depois desta situação e de (…) tu teres fugido de casa, ele continuou a abusar de ti?, teve esta resposta: “Não, ele depois parou”; Nova pergunta: “Depois de teres fugido de casa ele nunca mais te fez mal?”, nova resposta: “Não”.
[ix] V.g., Ac. do STJ de 07-11-2007, proc. n.º 3986/07.
[x] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 2000, Vol. III, pág. 338/339.
[xi] Figueiredo Dias, Actas, pág. 247.
[xii] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 453/454.
[xiii] Crimes Sexuais, Notas e Comentários aos artigos 163.º a 179.º do Código Penal, Livraria Almedina, Coimbra – 1995, pág.32 e ss.
[xiv] Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1998, pág. 35 e ss.
[xv] Publicados, respectivamente, in www.dgsi.pt., e, em sumário, no Boletim Interno do STJ.
[xvi] Colectânea de Jurisprudência, 1993, tomo I, pág. 70.
[xvii] Colectânea de Jurisprudência, 1991, Tomo II, pág. 287.
[xviii] Publicado in www.dgsi.pt.
[xix] Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte Especial, 12.ª edição, Tirant Lo Blanch, pág. 203.
[xx] Na apreciação de um caso concreto que, na parte a considerar, tem com o presente evidente similitude, veja-se o Ac. do STJ de 22-02-2006, publicado em www.dgsi.pt.
[xxi] In Direito Criminal, II, 209.
[xxii] Cfr. Ac. do STJ de 10/12/1997, proc. n.º 1192/97, sumariado no Boletim Interno do STJ, n.º 16. No mesmo sentido, v.g., Acs. do STJ de 07/03/2001 e 12/06/2002, com sumários publicados na ob. cit., n.ºs 49 e 62, respectivamente.
[xxiii] Neste sentido, Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1983, pág. 252, e o Ac. do STJ de 20-10-1999, sumariado no Boletim Interno do STJ.
[xxiv] Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), págs. 99/101 e 103.
[xxv] Prof. Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 184.
[xxvi] Direito Penal Português - Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, ed. Aequitas - Editorial Notícias - 1993, § 421, págs. 291 e 292.)