Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00237/20.6BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:12/17/2020
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Paula Moura Teixeira
Descritores:EXCEÇÃO DA LEGITIMIDADE; REMOÇÃO DE FIEL DEPOSITÁRIO;
Sumário:I - O art.º 276.º do CPPT, em sintonia com o artigo 95.º da LGT, permite ao executado ou a qualquer interessado impugnarem judicialmente (reclamar) a decisão proferida ou o ato praticado pelo órgão da execução fiscal, desde que seja lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos.

II – Nesta medida, assiste legitimidade ao executado/depositário, para reclamar do ato que o removeu do cargo de depositário, obtendo a sua anulação, se esse ato tinha como fundamentos errados pressupostos de facto e de direito.

III- Estando em causa erro nos pressupostos de facto – foi notificado para apresentar os documentos e não o bem – e erro nos pressupostos de direito – a falta de entrega dos documentos do veículo não é fundamento de destituição do cargo - são razões suficientes para que o fiel depositário se oponha ao ato e tenha legitimidade e interesse em agir.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA,
Recorrido 1:S., SA
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*
1. RELATÓRIO
A Recorrente, AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a reclamação interposta por S., S.A., melhor identificada nos autos, nos termos do art.º 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário, do ato do órgão da execução fiscal, que a removeu do cargo de fiel depositário, no processo de execução fiscal n. º 3050201801116541 e apensos para cobrança coerciva de dívidas de IRC dos anos de 2014 e 2016.

O presente recurso foi interposto para o STA, o qual por acórdão de 28.10.2020 considerou incompetente em razão da hierarquia e competente este TCAN.

Com a interposição do recurso, apresentou alegações e formulou as conclusões que se reproduzem:
“(…)
1 - A presente reclamação dos actos do órgão de Execução Fiscal foi apresentada do acto proferido despacho de 29/01/2020, proferido pelo Director de Finanças de Coimbra que ordenou a remoção da reclamante do cargo de fiel depositária do veículo matrícula XX-XX-XX, penhorado no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º 3050201801116541 e apensos, contra si instaurados.
2- A Mma. Juíza do Tribunal a quo, considerou improcedente a excepção peremptória de ilegitimidade da reclamante, invocada por esta Representação da Fazenda Pública, que consiste na inexistência de prejuízo na esfera da executada, causado pela sua remoção do cargo de fiel depositária do veículo penhorado, na esteira de jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.
3- Com efeito decidiu a Mma Juíza, quanto à questão da legitimidade da reclamante em discordância com essa jurisprudência, conforme reproduzido no ponto 3.º das presentes alegações, que existe um interesse específico do executado na guarda e conservação do bem penhorado decorrente do próprio conteúdo funcional do cargo de fiel depositário que vai para além das obrigações legais que impendem ao executado que tenha sido nomeado como mero fiel depositário: em primeiro lugar, porque o executado é proprietário do bem e, portanto, o cuidado naquela guarda e conservação será sempre acrescido face a um normal depositário; em segundo lugar, porque o proprietário do bem detém normalmente a sua posse e o direito de posse fica desde logo comprometido se o bem ficar na posse (precária) outrem, nomeado depositário; e, em último lugar, porque só o executado (e o exequente, mas nunca o depositário), tem o interesse em que o bem seja vendido pelo maior valor possível, pois só assim verá a divida tributária ser reduzida ou completamente paga, e tal valor depende, e muito, do estado em que o bem se encontrar no momento da venda.
Pelo que a partir do momento em que tenha sido nomeado fiel depositário de um seu veículo automóvel, penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal, sendo posteriormente destituído de tal cargo, terá sempre legitimidade para reclamar de tal decisão do órgão de execução fiscal, pois tal remoção poderá lesar o seu direito de posse, bem como o interesse legítimo na guarda e conservação do bem, com repercussão na sua valorização.
4- Com todo o respeito pelo entendimento plasmado da douta sentença e reconhecendo a profunda análise levada a cabo, não pode, no entanto, esta Representação da Fazenda conformar-se com ela, por entender existir erro de direito, na subsunção da situação concreta à norma do art.º 276.º do CPPT, quando esta dispõe que as "decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1.ª instância" (sublinhado nosso).
5- Pois, no nosso entendimento, o segundo requisito, exigido pela norma, para que o meio processual aí consagrado possa ser utilizado, que as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal (e outras autoridades da administração tributária) afectem os direitos e interesses legítimos do executado (ou de terceiro), não se verifica na situação concreta.
6- Com efeito, reitera-se o entendimento defendido em sede da contestação apresentada nos autos, que inexistem direitos e interesses legítimos do executado que seja colocados em causa, não lhe causando a remoção do cargo de fiel depositário qualquer prejuízo, nomeadamente um interesse específico do executado na guarda e conservação do bem penhorado decorrente do próprio conteúdo funcional do cargo de fiel depositário, como doutamente foi entendido na sentença recorrida.
7- Tal como foi decidido em jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, nomeadamente o acórdão do STA, de 14/08/2013, proferido no processo n.º 01279/13, cuja fundamentação subscrevemos na íntegra: “Apesar de, como já referimos, a escolha do fiel depositário pelo funcionário poder recair sobre o executado, este não tem direito a ser nomeado quando o bem penhorado seja um veículo automóvel (Tanto quanto nos recordamos, o direito de escolha do depositário só não existe nos casos previstos no art. 839.º, n.º 1, do CPC. Consequentemente, a sua remoção do cargo também não afecta qualquer direito que lhe advenha da sua qualidade de executado.
É certo que o Recorrente argumenta com o seu «interesse na preservação do automóvel», uma vez que entende que este seria «mais bem conservado nas suas mãos do que nas de um qualquer estranho». Mas essa argumentação não procede.
Desde logo, a lei entendeu não tutelar esse “interesse”; caso contrário, teria estabelecido uma preferência pela nomeação do executado como fiel depositário do veículo que lhe seja penhorado, solução que não foi a adoptada.
Depois, porque o alegado interesse do Executado só estaria melhor assegurado pela sua nomeação como fiel depositário se estivesse demonstrado que reúne condições para o exercício do cargo e que o fiel depositário que o substituiu no exercício do cargo não as reúne, demonstração que nem sequer foi ensaiada.
Finalmente, o interesse do executado na guarda e conservação do bem penhorado está garantido pelo conteúdo funcional do cargo de fiel depositário, do qual destacamos o dever de guarda (cfr. art. 1187.º do Código Civil), e pela responsabilidade que a lei lhe assaca pelo incumprimento dos seus deveres. Note-se que se o fiel depositário incumprir com os seus deveres, designadamente os de guarda ou conservação, não só ele, como também o Estado, podem ser responsabilizados. Na verdade, o Estado pode ser responsabilizado pelos actos do depositário, que deve ser considerado como um seu agente ad hoc (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., III volume, anotação 7 ao art. 233.º, págs. 645/646.), como decidiu já este Supremo Tribunal Administrativo (Vide o acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 2007, proferido no processo n.º 491/07, publicado no Apêndice ao Diário da República de 21 de Maio de 2008 (…)”..
8- Pelo que se verifica, na situação concreta, a excepção peremptória da ilegitimidade da reclamante, conducente à absolvição do pedido da Representação da Fazenda Pública e impeditiva do conhecimento, pelo Tribunal, dos restantes fundamentos da Reclamação.

Nestes termos e nos melhores de direito e com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, deve a douta sentença ser revogada e proferido douto acórdão que conclua pela existência da excepção peremptória da ilegitimidade da reclamante, absolvendo a Representação da Fazenda Pública do pedido, assim se fazendo,
JUSTIÇA (…)”

A Recorrida contra alegou tendo formulado as seguintes conclusões:
1) A reclamação do acto do Órgão de Execução Fiscal foi apresentada ao despacho do Director de Finanças de Coimbra que ordenou a remoção da reclamante do cargo de fiel depositária do veículo matrícula XX-XX-XX penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal.
2) A Instância recorrida considerou improcedente a excepção peremptória de ilegitimidade da reclamante que foi invocada pela representação da Fazenda pública e que consistiu no entendido como inexistente prejuízo na esfera da executada, causado pela sua remoção do cargo de fiel depositária.
3) A Meritíssima Juiz recorrida afirmou e bem:
Que existe um interesse específico do executado na guarda e conservação do bem penhorado, que vai para além das obrigações legais que lhe impendem enquanto fiel depositário;
Porque o executado é proprietário do bem, como tal sempre terá um cuidado acrescido na sua guarda e conservação, face a um normal depositário;
Porque enquanto proprietário do bem detém a sua posse, direito que fica desde logo comprometido se o bem ficar na posse (precária) de outrem;
Finalmente porque só o executado (e o exequente, mas nunca o depositário) têm o interesse em que o bem seja vendido pelo maior valor possível, pois só assim verá a dívida tributária ser reduzida ou completamente paga, e tal valor depende, e muito, do estado em que o bem se encontrar no momento da venda.
4) Ao que tudo acresce que para além do montante garantido pela penhora, que a executada pretende pagar, constituiu a favor de terceiro, que aceitou, uma hipoteca sobre o referido veículo para garantia de capital em dívida e das respectivas despesas emergentes do contrato.
5) É evidente que o terceiro, credor hipotecário, tem interesse na melhor conservação do veículo para poder ressarcir-se do seu crédito.
6) Interesse face ao direito de ressarcimento que a remoção da requerente como pretende o Órgão de Execução Fiscal poderá vir a lesar, acrescendo à previsível lesão do seu direito de posse.
7) Nos termos do artigo 276º do CPPT “as decisões proferidas pelo Órgão de Execução Fiscal e outras Autoridades da Administração Tributária que no processo afectem os direitos e interesses do executado ou de terceiro, são susceptíveis de reclamação para o Tribunal Fiscal de 1ª Instância”.
8) Não colhe por isso a argumentação do Órgão de Execução Fiscal contra a improcedência da excepção peremptória de ilegitimidade da reclamante.
9) Diga-se finalmente que não se vislumbra sequer que interesse possa ter o Órgão de Execução Fiscal na pretendida remoção do cargo de fiel depositária da reclamante, mais parecendo tratar-se de mais um caso de retaliação da Direcção de Finanças de Coimbra, face ao comportamento da reclamante perante o seu funcionário António Batata.
Termos em que e nos melhores de Direito:
- Deve ser proferido Douto Acórdão que confirme a decisão recorrida, concluindo pela inexistência da excepção peremptória da ilegitimidade da reclamante.

Assim se fazendo JUSTIÇA.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no qual concluiu pela procedência do recurso.

Com dispensa dos vistos legais (artigos 36.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e 657.º, n.º4, do Código de Processo Civil), cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente, nos termos dos artigos 608., nº 2, 635.º, nº 4 e 5 todos do CPC “ex vi” artigo 2º, alínea e) e artigo 281.º do CPPT, a questão que importa conhecer é a de saber se sentença incorreu em erro de julgamento de facto e de direito por violação dos artigos 276.º do CPPT, ao julgar não verificada a exceção perentória da ilegitimidade da reclamante e consequentemente absolvendo do pedido a Recorrente.

3. JULGAMENTO DE FACTO.
Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:
“(…)
1. Em 03.08.2018 foi instaurado contra a ora Reclamante, pelo Serviço de Finanças de Coimbra-2, o processo executivo fiscal n.º 3050201801116541 para cobrança coerciva de dívidas de IRC e respectivos juros do ano de 2014, no valor global de €3.159,40;
___________________________________________________________________
[Cfr. capa e certidão de dívida n.º 2018/1399895, a fls. 5-7 dos autos - processo electrónico.]

2 Em 07.08.2018 foi instaurado contra a ora Reclamante, pelo mesmo Serviço de Finanças, o processo executivo fiscal n.º 3050201801118021 para cobrança coerciva de dívidas de IRC e respectivos juros do ano de 2016, no valor global de €9.929,04, o qual foi apensado em data indeterminada ao PEF referido no ponto anterior;
___________________________________________________________________
[Cfr. capa do PEF aludido no ponto anterior, certidão de dívida n.º 2018/1420669 e informação de 19.02.2020 do SF de Coimbra-2 , a fls. 5, 8 e ss. e 35 e ss. dos autos - processo electrónico.]

3. Em 23.05.2019 foi penhorado à ordem do processo executivo identificado em 1. e seu apenso identificado em 2., o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula XX-XX-XX, propriedade da ora Reclamante, tendo esta sido então nomeada fiel depositária do mesmo;
____________________________________________________________________
[Cfr. cópia de print de aplicação informática da ATA relativa aos contribuintes e penhoras dos seus bens e ofício de notificação da penhora/nomeação de fiel depositário, a fls. 10 e 11 dos autos - processo electrónico.]

4. Em 28.06.2019 foi recepcionado no domicílio fiscal físico da ora Reclamante, por J., ofício assinado pelo Director de Finanças de Coimbra, com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Cfr. visado ofício e respectivo aviso de recepção, a fls. 17-18 dos autos - processo electrónico.];

5. A ora Reclamante não apresentou os referidos documentos do veículo penhorado;
______________________________________________________________________
[Factualidade não controvertida.]

6. Em 21.12.2019 foi emitido ofício dirigido à ora Reclamante, assinado pelo Director de Finanças de Coimbra, enviado no mesmo dia para a caixa postal electrónica daquela, Via CTT, com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Cfr. visado ofício, print de aplicação informática da ATA da Justiça Tributária SIPE, por referência ao visado documento e seu histórico de operações e comprovativo emitido pelos CTT em 13.05.2020 por referência ao documento, fls. 19-20 e 59 dos autos - processo electrónico.]

7. Em 29.01.2020 foi recepcionado no domicílio fiscal físico da ora Reclamante, por J., ofício assinado pelo Director de Finanças de Coimbra, com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Cfr. visado ofício e respectivo aviso de recepção, a fls. 79 e 22 dos autos - processo electrónico.];

8. Em 11.02.2020 foi enviada ao Serviço de Finanças de Coimbra-2 a petição de Reclamação que deu origem aos presentes autos.
____________________________________________________________________
[Cfr. etiqueta postal aposta no aviso de recepção e respectiva p.i., presentes a fls. 78 e 38 e ss. dos autos - processo electrónico.]
*
Compulsados os autos e analisada a prova produzida, dá-se como não provado, com interesse para a decisão, o seguinte facto:

1. A ora Reclamante foi notificada para apresentar o veículo automóvel identificado em 3. dos factos provados, e não o fez.
______________________________________________________________________
[Nada consta dos autos que comprove que a Reclamante tenha sido notificada para apresentar o bem, e que não o tenha feito, pese embora o conteúdo do despacho reclamado diga o contrário, conforme se retira do facto provado sob o ponto 7.. Por outro lado, o que a Fazenda Pública alega na sua contestação é que o despacho reclamado teve por base a não apresentação dos documentos do veículo, conforme resulta, desde logo, do facto provado sob o ponto 6..]
**

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos processos executivos em que a presente reclamação foi deduzida e nos demais documentos constantes dos presentes autos, tudo conforme o que se deixou plasmado a propósito de cada um dos factos dados como provados e não provados. (…)”+-

4. JULGAMENTO DE DIREITO
4.1. A questão que cumpre apreciar e decidir, é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito por violação dos artigos 276.º do CPPT, ao julgar não verificada a exceção perentória da ilegitimidade da reclamante e consequentemente absolvendo do pedido a Recorrente.
A questão que vem colocada no presente recurso passa por saber se o fiel depositário (neste caso o executado) de um veículo automóvel, penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal, tem legitimidade para impugnar, por via da reclamação, o ato praticado neste processo, que procedeu à sua remoção de tal cargo de fiel depositário.
Na execução fiscal, foi efetuada a penhora de um veículo automóvel, e nomeado fiel depositário a executada, aqui Recorrida.
Ulteriormente, o fiel depositário foi destituído do cargo e substituído nessas funções por um terceiro. A remoção do cargo terá sido motivada pelo facto de o depositário não ter apresentado os documentos do veículo na sequência da notificação para o efeito (cfr. facto dado como provado sob o n.º 5, que não foi posto em causa).
Vejamos:
A presente reclamação dos atos do órgão de Execução Fiscal tem por base o ato constante do despacho de 24.01.2020, proferido pelo Diretor de Finanças de Coimbra que ordenou a remoção da Reclamante do cargo de fiel depositária do veículo matrícula XX-XX-XX, penhorado no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º 3050201801116541 e apensos, contra si instaurados.
A sentença recorrida julgou improcedente a exceção perentória de ilegitimidade da Reclamante/Recorrida, invocada pela Recorrente.
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Dispõe o art.º 276.º do CPPT que “As decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afetem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são suscetíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1.ª instância.”
Por sua vez, dispõe o art.º 95.º da LGT, sobre o direito de impugnação ou recurso, no seu n.º 1, que o interessado (qualquer interessado, isto é, qualquer pessoa que revele um interesse atendível) tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei, prevendo-se na alínea j) do n.º 2, como atos lesivos os que forem praticados na execução fiscal.
Entende a Recorrente que o segundo requisito para que o meio processual consagrado no art.º 276.º possa ser utilizado, é que as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal (e outras autoridades da administração tributária) afetem os direitos e interesses legítimos do executado (ou de terceiro), o que não se verifica na situação concreta sustentando-se no acórdão do STA n.º 1279/13 de 14.08.2013.
Lido e analisado o acórdão, porém não podemos concordar com as ilações retiradas dessa jurisprudência, pois a situação factual envolvida não é a mesma. No entanto o acórdão refere expressamente que: “(…) O Executado e fiel depositário discordou dessa decisão e dela veio recorrer para este Supremo Tribunal Administrativo.
Boa parte das alegações de recurso foi dedicada à demonstração da possibilidade de qualquer interessado impugnar judicialmente (reclamar ao abrigo do art. 276.º do CPPT) os actos praticados ou as decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Mas, salvo o devido respeito, é questão que não cumpre apreciar nos presentes autos, pois não foi com fundamento na impossibilidade de o fiel depositário/executado impugnar judicialmente a decisão que a reclamação foi julgada improcedente (A questão foi abordada sob a óptica da legitimidade pela sentença recorrida que, julgando improcedente a excepção da ilegitimidade arguida pelo Representante da Fazenda Pública, decidiu expressamente que o Reclamante é parte legítima. E, na verdade, não há qualquer dúvida de que o meio processual previsto no art. 276.º do CPPT está disponível, não só para o executado, como para qualquer interessado, como resulta inequivocamente do teor do preceito legal na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2002). Aliás, ainda antes (ou seja, quando a redacção do artigo se referia exclusivamente a executado), a doutrina e a jurisprudência vinham entendendo que o art. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 95.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, impunham que se admitisse a reclamação por qualquer interessado.
Sobre a questão, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 3 ao art. 276.º, págs. 268/269.); o motivo por que a reclamação foi julgada improcedente foi, exclusivamente, o de a decisão reclamada não ser lesiva dos direitos ou interesses legítimos do Reclamante.
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, na parte que importa considerar, o Recorrente discorda da sentença porque considera que, ao contrário do que nesta se decidiu, a sua remoção do cargo de depositário afecta os seus direitos, quer como depositário, quer como executado, quer como cônjuge: como depositário, porque «com a sua remoção foi posta em causa, nomeadamente a sua idoneidade»; como executado, porque foi preterido o seu «interesse na preservação do automóvel», uma vez que entende que este seria «mais bem conservado nas suas mãos do que nas de um qualquer estranho»; como cônjuge (não é bem perceptível a invocação da qualidade de cônjuge por quem é o próprio executado, mas, ao que parece, o Recorrente fá-la derivar do facto da sua mulher ter deduzido oposição), porque o bem penhorado é do casal.

Na verdade, porque a sentença julgou a reclamação improcedente por considerar que a decisão administrativa em causa não viola qualquer direito ou interesse legítimo do Reclamante, cumpre verificar se tal violação ocorreu, pelos motivos invocados em sede de recurso ou por outros.
Note-se que o art. 276.º do CPPT, admitindo a impugnação judicial por qualquer interessado dos actos praticados ou decisões proferidas no âmbito da execução fiscal, faz depender essa possibilidade da circunstância desses actos serem lesivos dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, ou seja, serem susceptíveis de afectar negativamente a esfera jurídica dos particulares, quer retirando-lhes direitos ou impondo-lhes obrigações, quer recusando-lhe o reconhecimento de direitos ou a satisfação de pretensões (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., I volume, anotação 3 ao art. 96.º, pág. 28, e IV volume, nota 4 ao art. 276.º, págs. 269-271.
Na jurisprudência, vide os seguintes acórdãos desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 30 de Julho de 2008, proferido no processo n.º 553/08, publicado no Apêndice ao Diário da República de 7 de Novembro de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32230.pdf), págs. 887 a 889, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1263135885d267338025749e003b77c5?OpenDocument;
- de 6 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 42/13, ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/443d00ab9cdc3b0980257b210039e650?OpenDocument.).
É manifesto que a remoção do cargo de fiel depositário pode constituir acto lesivo dos direitos e interesses daquele que foi nomeado para esse cargo. Desde logo, porque dessa remoção, se motivada pelo incumprimento das obrigações que a lei faz recair sobre o depositário, designadamente pela falta injustificada de apresentação dos bens, podem advir-lhe consequências negativas sobre a sua esfera jurídica, quer a nível patrimonial, com a possibilidade de ser executado por uma importância equivalente ao valor dos bens depositados [cfr. art. 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) e art. 233.º, alínea a), do CPPT], quer a nível criminal, podendo ser responsabilizado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado ou de desobediência [cfr. arts. 205.º, n.ºs 1 e 2, e 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal].
(…)”
E se atentarmos nas conclusões I e II do sumário deste acórdão dele resulta claramente que: “ I - O art. 276.º do CPPT, em sintonia com os arts. 95.º, n.º 1, e 103.º, n.º 2, da LGT, permite ao executado ou a qualquer interessado impugnarem judicialmente (reclamar) a decisão proferida ou o acto praticado pelo órgão da execução fiscal, desde que seja lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos (cfr. art. 268.º, n.º 4, da CRP).
II - O fiel depositário pode, pois, reclamar ao abrigo do art. 276.º do CPPT da decisão que o removeu do cargo, se dessa remoção resultar para ele a lesão de algum seu direito ou interesse legítimo; mas já não se essa remoção não tiver qualquer repercussão imediata negativa na sua esfera jurídica.”
A sentença recorrida considerou que “(…) Ora, no que divergimos da jurisprudência supra referida, é na consideração de que inexiste um interesse específico do executado na guarda e conservação do bem penhorado decorrente do próprio conteúdo funcional do cargo de fiel depositário.
De facto, a nosso ver, existe tal um interesse específico, o qual vai para além das obrigações legais que impendem ao executado que tenha sido nomeado como mero fiel depositário: em primeiro lugar, porque o executado é proprietário do bem e, portanto, o cuidado naquela guarda e conservação será sempre acrescido face a um normal depositário; em segundo lugar, porque o proprietário do bem detém normalmente a sua posse e o direito de posse fica desde logo comprometido se o bem ficar na posse (precária) de outrem, nomeado depositário; e, em último lugar, porque só o executado (e o exequente, mas nunca o depositário), tem o interesse em que o bem seja vendido pelo maior valor possível, pois só assim verá a divida tributária ser reduzida ou completamente paga, e tal valor depende, e muito, do estado em que o bem se encontrar no momento da venda. Repare-se que o depositário só será executado pela importância do bem no caso de incumprir com o dever de o apresentar (e restituir), como decorre do disposto na al. a) do artigo 233.º do CPPT, mas já não se apresentar o bem em situação de conservação diferente (pior) daquela em que o mesmo se encontrava quando o recebeu. Nesse caso, apenas lhe poderá ser exigida eventual indemnização pela diferença do valor do bem, decorrente da deterioração em causa, caso seja culposa.
Logo, a partir do momento em que o executado tenha sido nomeado fiel depositário de um seu veículo automóvel, penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal, sendo posteriormente destituído de tal cargo, terá sempre, em nossa opinião, legitimidade para reclamar de tal decisão do órgão de execução fiscal, pois tal remoção poderá lesar o seu direito de posse, bem como o interesse legítimo na guarda e conservação do bem, com repercussão na sua valorização, conforme acima explanado.
Pelo que estando em causa a nomeação da Executada, ora Reclamante, como fiel depositária de veículo automóvel de sua propriedade, penhorado à ordem do processo executivo fiscal no âmbito do qual foi deduzida a presente reclamação, e sua posterior destituição do visado cargo, julga-se improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pela Fazenda Pública nesse mesmo conspecto.
(…)
Atento o que se deixou expresso no saneamento dos presentes autos, a questão decidenda resume-se em verificar se foi violado o direito à audição prévia à destituição da ora Reclamante do seu cargo de fiel depositária do veículo que lhe penhorado, e se a ora Reclamante violou o dever de apresentação do visado bem, conforme consta da fundamentação do despacho reclamado, ou se antes este incorre em erro sobre os pressupostos de facto, aferindo-se assim da legalidade do mesmo.
Ora, quanto à violação do direito de audição prévia, resulta evidente dos factos provados sob os pontos 6. e 7. que tal vício não se verifica, porquanto foi efectivamente enviada à ora Reclamante notificação para tal efeito, em momento anterior à decisão em causa, mormente para a sua caixa postal electrónica, via CTT, conforme previsto nos artigos 38.º, n.º 9 e 39.º, n.º 10 do CPPT.
Já no que se refere à violação do dever de apresentação do bem, atenta a matéria de facto dada como provada sob os pontos 4. a 6. e o facto dado como não provado, parece-nos evidente que o fundamento constante do despacho reclamado, aludido no facto provado sob o ponto 7., não se verifica.
Explicitemos.
Em primeiro lugar, não resultou provado que a Reclamante tenha sido notificada para apresentar o veículo automóvel que lhe foi penhorado, e não o tenha feito (cfr. facto não provado).
Aparentemente, e assim faz algum sentido perante a matéria de facto provada, a fundamentação (não expressa) do despacho reclamado não reside no não cumprimento do dever de apresentação do bem, que incumbe a qualquer fiel depositário, mas antes no facto de a ora Reclamante ter sido notificada para apresentar os documentos do veículo penhorado no prazo de 10 (dez) dias, e não o ter feito (cfr. factos provados sob os pontos 4. e 5.).
Ora, tal fundamentação não é a que consta do despacho reclamado, que faz antes referência à violação do dever de apresentar o bem, pelo que não pode a mesma ser tida em consideração, padecendo o despacho reclamado, claramente, de vício de erro nos pressupostos de facto.
Por outro lado, se o despacho reclamado tivesse como expressa fundamentação o incumprimento na entrega dos documentos do veículo, sempre se poderá afirmar que tal falta de entrega dos visados documentos não é fundamento de destituição do cargo de fiel depositário, pela simples razão que tal obrigação impende sobre o executado, proprietário do veículo e detentor dos visados documentos, e não sobre o depositário, que até podia ser, ab initio, pessoa diferente do executado.
(…)”
Assim sendo, por tudo quanto o exposto, tal absoluta razão aa Reclamante quando refere que não foi notificada para apresentar o bem e, não se verificando o fundamento constante do despacho reclamado, o mesmo não se pode manter, o que determina a procedência da presente Reclamação. (…)“
No que importa aqui decidir trazemos à colação o acórdão do STA n.º0892/14 de 17.09.2014 proferido num caso idêntico ao dos autos e com os mesmos contornos no qual se refere que: “(…) Em situação semelhante já este Supremo Tribunal decidiu que, também, o fiel depositário poderia lançar mão deste meio contencioso para defesa dos seus interesses legítimos, cfr. acórdão datado de 14/08/2013, recurso n.º 01279/13.
Aí se escreveu com interesse para o nosso caso: “…Note-se que o art. 276.º do CPPT, admitindo a impugnação judicial por qualquer interessado dos actos praticados ou decisões proferidas no âmbito da execução fiscal, faz depender essa possibilidade da circunstância desses actos serem lesivos dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, ou seja, serem susceptíveis de afectar negativamente a esfera jurídica dos particulares, quer retirando-lhes direitos ou impondo-lhes obrigações, quer recusando-lhe o reconhecimento de direitos ou a satisfação de pretensões….
…É manifesto que a remoção do cargo de fiel depositário pode constituir acto lesivo dos direitos e interesses daquele que foi nomeado para esse cargo. Desde logo, porque dessa remoção, se motivada pelo incumprimento das obrigações que a lei faz recair sobre o depositário, designadamente pela falta injustificada de apresentação dos bens, podem advir-lhe consequências negativas sobre a sua esfera jurídica, quer a nível patrimonial, com a possibilidade de ser executado por uma importância equivalente ao valor dos bens depositados [cfr. art. 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) e art. 233.º, alínea a), do CPPT], quer a nível criminal, podendo ser responsabilizado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado ou de desobediência [cfr. arts. 205.º, n.ºs 1 e 2, e 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal]…”

Se é certo que na sentença recorrida se concluiu pela não verificação da excepção de ilegitimidade da reclamante para lançar mão deste meio processual, com os argumentos rebatidos pela Fazenda Pública, por outro lado na mesma sentença concluiu-se pela ilegalidade do acto praticado, quer por o mesmo enfermar de erro sobre os pressupostos de facto, quer por o mesmo enfermar de erro sobre os pressupostos de direito.
No tocante à primeira ilegalidade, concluiu-se que a fundamentação que serviu de justificação ao acto reclamado não faz parte do mesmo e no tocante à segunda ilegalidade, concluiu-se que a não entrega os documentos do veículo não é fundamento de destituição do cargo de fiel depositário, uma vez que tal obrigação impende sobre o executado.
Ora, nesta medida é que reside o direito ou interesse legítimo do fiel depositário em não ser removido do seu cargo, isto é, o mesmo não deve ser removido do seu cargo sem fundamento de facto e de direito que o justifique, independentemente de se saber se dessa remoção lhe advém qualquer prejuízo enquanto executado.
Ou seja, o simples facto de o acto em crise determinar a remoção do cargo de depositário, fundando-se no incumprimento de uma obrigação que recaía sobre si, mas enquanto executado (tal como se decidiu na sentença recorrida e não foi posto em causa pela Fazenda Pública neste recurso), é razão suficiente para que o executado/depositário se oponha a tal acto.
Temos, assim, que concluir que ao depositário/executado assiste legitimidade para impugnar o concreto acto praticado pelo órgão de execução fiscal e que estava em causa nestes autos.(…)”

Transpondo a jurisprudência deste acórdão para o caso sub judice, estando em causa erro nos pressupostos de facto – foi notificado para apresentar os documentos e não o bem – e erro nos pressupostos de direito – a falta de entrega dos documentos do veículo não é fundamento de destituição do cargo - são razões suficientes para que o fiel depositário se oponha ao ato e tenha legitimidade e interesse em agir.
Destarte improcede a pretensão da Recorrente.


4.2. E assim, apropriando-nos parcialmente, com a devida vénia, das conclusões do acórdão n.º 0892/14, formulamos as seguintes conclusões:
I - O art.º 276.º do CPPT, em sintonia com o artigo 95.º da LGT, permite ao executado ou a qualquer interessado impugnarem judicialmente (reclamar) a decisão proferida ou o ato praticado pelo órgão da execução fiscal, desde que seja lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos.
II – Nesta medida, assiste legitimidade ao executado/depositário, para reclamar do ato que o removeu do cargo de depositário, obtendo a sua anulação, se esse ato tinha como fundamentos errados pressupostos de facto e de direito.
III- Estando em causa erro nos pressupostos de facto – foi notificado para apresentar os documentos e não o bem – e erro nos pressupostos de direito – a falta de entrega dos documentos do veículo não é fundamento de destituição do cargo - são razões suficientes para que o fiel depositário se oponha ao ato e tenha legitimidade e interesse em agir.

5. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, em negar provimento ao recurso, embora com fundamentos não totalmente coincidentes com os da sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente, nos termos do art.º 527.º do CPC.
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Porto, 17 de dezembro de 2020.


Paula Maria Dias de Moura Teixeira
Maria da Conceição Soares
Carlos Alexandre Morais de Castro Fernandes