Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1129/21.7 BELRA |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 03/17/2022 |
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Relator: | DORA LUCAS NETO |
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Descritores: | CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL CONTRAINTERESSADO ADJUDICATÁRIO LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO NULIDADE CITAÇÃO DIREITO À PROVA |
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Sumário: | I - A não citação do réu implica a nulidade do processado posterior – cfr. art. 187.º do CPC, ex vi art.s 1.º e 23.º, do CPTA -, desde que a falta não se encontre sanada; II - Há falta de citação nas situações descritas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 188.º CPC, designadamente, «Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável» -cfr. respetiva alínea e). III - No caso em apreço a Recorrente alega que não chegou a ter conhecimento do ato (da ação) por facto que não lhe foi imputável - cfr. citado art. 188º, nº 1, alínea e), CPC -, tendo requerido a produção de prova, designadamente testemunhal, para o efeito; IV - Por ter prescindido dos meios de prova requeridos pela Recorrente, a despacho recorrido não pode manter-se, muito particularmente, por violação do princípio da proibição de indefesa que decorre do art. 20.º da CRP; V - A falta de citação do contrainteressado adjudicatário, numa ação de contencioso pré-contratual que visa a anulação, entre outros, do ato de adjudicação, não pode deixar de significar a preterição do litisconsórcio necessário passivo – cfr. disposições conjugadas dos art.ºs 78.º, n.º 2, al. f), 87.º, n.º 1, al. a), 88.º, n.º 2 e 89.º, n.º 1, al. f), e art. 102.º, do CPTA –, pois que o resultado a que o despacho recorrido chega – da irrelevância da falta de citação do contrainteressado adjudicatário, numa ação de anulação do ato de adjudicação e do contrato, que foi, entretanto, celebrado - é, para este tribunal de recurso, um resultado inadmissível. |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | D/
Admite-se a junção do documento de fls. fls. 2938 e ss., ref SITAF - comprovativo do visto prévio emitido pelo Tribunal de Contas, em 06.10.2021, no âmbito do Processo nº 1… -, ao abrigo do art. 651.º do CPC, ex vi art.s 1.º e 140.º, do CPTA, e devidamente ponderados que foram os fundamentos invocados pelo Recorrente Município de Leiria. Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório O Município de Leiria, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, de 19.10.2021, que julgou procedente a ação de contencioso pré-contratual interposta por T…, S.A., assim decidindo pela anulação do ato de adjudicação da empreitada de construção do Pavilhão Desportivo e Centro Escolar de Marrazes à contrainteressada N…, S.A., exclusão da sua proposta e consequente anulação do contrato celebrado entre si e o Município Recorrente, assim como a exclusão da proposta da Contrainteressada E…, mais condenando o Município Recorrente a adjudicar a empreitada em causa à concorrente T…, S.A. «(…) 1. Como se infere da douta Sentença recorrida (página 28/38), no presente recurso está em causa a análise e interpretação do documento exigido pelo artigo 10.º, n.º 1, alínea d), subalínea I) do Programa do Procedimento, o qual determinava que as propostas deveriam ser constituídas, entre outros, por um Plano de Trabalhos sob a forma de diagrama de barras, Plano de mão de obra e Plano de Equipamento. 3. Não pode concordar-se com esta afirmação, atenta a interpretação que o Tribunal a quo faz da expressão “espécies de trabalhos”. A palavra “espécie” deriva do latim species, que significa "tipo" ou "aparência". “Espécie de trabalhos” de uma empreitada refere-se, pois, a um tipo geral e abstrato de trabalhos, e não a todos os trabalhos que integram, densificam ou detalham o Mapa de Quantidades. 4. A expressão “espécie de trabalhos” ínsita no artigo 361º-1 do CCP não postula a descrição de todos os trabalhos ou tarefas em que se desdobra a execução da obra, mas apenas o tipo, geral e abstrato, dos trabalhos a realizar. 5. Assente que não é preciso ser-se exaustivamente detalhado na enumeração dos trabalhos levados ao Plano de Trabalhos - não se exigindo, designadamente, a enumeração de cada uma das tarefas em que se decompõem os trabalhos - não pode acompanhar-se o decidido quando se afirma que o Plano de Trabalhos apresentado pela Contrainteressada N… “apenas parcialmente se encontra em conformidade com as regras que regulam a sua elaboração, uma vez que o plano não contém previsão de todas as espécies de trabalhos anunciadas no mapa de quantidades que integra o caderno de encargos patenteado a concurso”. 6. Ao ajuizar nestes termos, a Sentença incorreu em erro de julgamento. 7. A Contrainteressada N… indicou, para todos os pontos do Plano de Trabalhos, a respetiva duração, datas de início e datas de conclusão e, outrossim, as atividades predecessoras, como se documenta em 17º e 18º destas Alegações. Neste conspecto, só uma visão estrenuamente formalista permite afirmar que se verificam omissões no Plano de Trabalhos apresentado por aquela Contrainteressada. 8. As espécies de trabalho estão individualizadas, assinalando-se, para cada uma delas, a duração, a respetiva data de início e a data de conclusão e a(s) atividade(s) predecessora(s), permitindo-se, assim, à Entidade Demandada e à Fiscalização da obra um controle efetivo do ritmo e sequência da execução da obra. 9. Do mesmo modo, a Contrainteressada E… apresenta cada espécie de trabalhos, indicando a duração, as respetivas datas de início e conclusão, como se evidencia em 23º e 25º destas Alegações, de novo se incorrendo em formalismo exacerbado, quando conclui estarmos em presença de um Plano de Trabalhos omissivo. 10. O plano de trabalhos é um documento elaborado pelo empreiteiro em que este descreve o ritmo que se compromete a imprimir na execução da obra. 11. Nem o artigo 361º do CCP, nem o artigo 10º, nº 1, alínea d), subalínea I) do Programa de Concurso definem o que são “espécies de trabalhos”. 12. À falta de uma noção legal própria e de elementos de interpretação da lei que apontem noutro sentido (seja a sua letra, a ratio, a inserção sistemática ou outro) é insuscetível de censura, a metodologia adotada pela Contrainteressadas N… e E…, que apresentaram, sem detalhar, as categorias ou espécies dos trabalhos a executar. 13. Nada impede que na elaboração de planos de trabalhos se agreguem atividades de uma mesma espécie, conquanto seja possível ao dono da obra pública controlar a execução das atividades em que se decompõe a prestação do empreiteiro, o que acontece in casu. 14. Inexiste qualquer incompletude relevante nos Planos de Trabalho considerados: embora não evidenciem os artigos em que se decompõem algumas espécies de trabalhos, os Planos de Trabalho apresentados pelas Contrainteressadas N… e E… satisfazem plenamente o exigido na lei e nas peças do procedimento, ao explicitarem a duração de cada atividade, as respetivas datas de início e de termo, e as atividades predecessoras, indicando, pois, as espécies de trabalhos necessárias para o controlo dos prazos contratuais e de gestão da obra, quer por parte da equipa de fiscalização, quer da própria Entidade Adjudicante, ao conterem o total das atividades/tarefas previstas, todas elas com expressa indicação de sequenciação de trabalhos e dos respetivos prazos de execução, incluindo a representação/ identificação do caminho crítico do plano de trabalhos. 15. Tendo presente a teleologia que preside às normas do artigo 361º CCP - controlar o ritmo e sequência da execução empreitada e, reflexamente, o prazo de execução da obra-os Planos de Trabalhos apresentados pelas Contrainteressadas N… e E… são suficientes para dar cumprimento ao estatuído no seu número 1 e no artigo 10º, nº 1, alínea d), subalínea I) do Programa do Procedimento, incorrendo a douta sentença em erro de julgamento quando considera que assim não é. 16. Tendo em conta que é indicada a duração dos trabalhos e a respetiva data de início de execução, cabe à fiscalização averiguar se os trabalhos se iniciaram, e se foram disponibilizados os meios humanos e equipamentos para a sua execução. Em fase de execução da obra, o "modus operandi" da fiscalização baseia-se na análise do cumprimento do descrito no MQT (tarefas descritas, unidades de medida e quantidades), servindo os Planos de Trabalho apresentados o fim a que se destinam. Com os elementos constantes dos Planos de Trabalho apresentados pelas Contrainteressadas N… e E…, a servirem de indicação do ritmo de execução dos trabalhos que os concorrentes se propõem implementar, a fiscalização e o dono da obra conseguem apurar qualquer desvio ao Plano de Trabalhos, reagindo nos termos legais aplicáveis. 17. Aberta está, pois, a possibilidade de o Dono da obra intervir, modificando, em qualquer momento, o Plano de Trabalhos em vigor por razões de interesse público (cláusula 8.º do Caderno de Encargos). 18. Os planos de trabalhos apresentados permitem controlar, sem necessidade de maior detalhe ou decomposição de capítulos, se há derrapagem de prazo, aferindo o eventual incumprimento das atividades identificadas, destarte permitindo, de acordo com o n.º 1 do artigo 404.º do CCP, solicitar à entidade executante a apresentação de um Plano de Trabalhos Modificado, adotando as medidas de correção que sejam necessárias para recuperar o atraso verificado, de modo a cumprir o prazo estipulado contratualmente. 19. Atendendo a que não existe qualquer omissão ou contradição ao nível das espécies dos trabalhos a executar há que reconhecer que os planos de trabalho, mão de obra e equipamentos apresentados pelas empresas em causa são aptos ao fim a que se destinam: correta perceção do ritmo e sequência da obra, consequentemente controlo e fiscalização efetiva dos trabalhos. 20. Não se lobriga qualquer violação do artigo 43º do CCP, 361º do CCP (por remissão do artigo 57º-2 b) do mesmo diploma), artigo 10º nº 1, alínea d), subalínea I) do Programa de Procedimento, inexistindo, outrossim, falta de qualquer documento a que alude a alínea c) do nº1 do artigo 57º CCP, configuradora de causa de exclusão das propostas das contrainteressadas N… e E…, conforme disposto no artigo 70º-2 f) daquele diploma. 21. Ao invés, os Planos de Trabalhos foram corretamente apresentados, quer no que toca ao diagrama gráfico (barras) exigido, quer quanto às especificações que deles devem constar para permitir a sua função, bem tendo andado o júri do procedimento quando não excluiu as propostas da 1ª e 2ª contrainteressadas. 22. Os fundamentos de exclusão de propostas, ao reduzirem o universo concorrencial, devem ser interpretados restritivamente. 23. Ao ter procedido à adjudicação da empreitada à 1ª Contrainteressada, o Réu cumpriu escrupulosamente o bloco de legalidade aplicável ao procedimento de concurso público nº 11/2021/DCIP – T- 16/2021- Construção do Pavilhão Desportivo e Centro Escolar de Marrazes e, outrossim, os princípios que norteiam a atividade administrativa e a contratação pública em particular, mormente os da legalidade, da prossecução do interesse público, da concorrência, da imparcialidade e da boa-fé. 24. Mal andou o Tribunal a quo ao referir que as omissões apontadas na Sentença recorrida não poderiam ser supridas através de um pedido de esclarecimentos, nos termos do artigo 72.º do CCP. 25. Nesta matéria, ao invés do ajuizado, deve prevalecer a doutrina do Acórdão do STA, de 03/12/2020, Processo nº02189719.6BEPRT disponível em segundo o qual a não apresentação dos planos de trabalhos exigidos na proposta só pode levar à exclusão de uma proposta quando, na situação concreta em que a questão se coloque, se comprove que a sua falta contende com a avaliação da mesma ou que resulte do caderno de encargos a sua essencialidade. 26. Ainda que se entendesse existir omissão nos Planos de Trabalhos, por exibirem um grau de minúcia ou completude tidos por insuficientes, o Tribunal a quo deveria averiguar se a falta reveste intensidade, gravidade ou censurabilidade tal que seja idónea para pôr em causa a adjudicação e os princípios estruturantes da contratação pública, mormente os princípios da concorrência e da proporcionalidade. É que sendo obrigatória a apresentação do Mapa de Trabalhos, importa aferir das consequências que resultam da respetiva incompletude, quando compaginada com os termos previstos nos preceitos legais aplicáveis, designadamente, se a falta conduz irremediável e imediatamente à exclusão da proposta, como se entendeu na decisão recorrida. 27. O artigo 4º-1 do CCP determina que “À contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência". Na situação sub judice, excluir as propostas das Contrainteressadas redunda em violação do princípio da concorrência. 28. A análise da intensidade das pretensas omissões deve ser efetuada tendo como referencial uma ideia de proporcionalidade, de modo que pequenas omissões não redundem em desproporcionadas exclusões. 29. A entender que se estava perante omissões relevantes, o Tribunal a quo deveria ter-se colocado a seguinte questão: a pretensa omissão não poderia ser sanada através de esclarecimentos a solicitar e prestar nos termos do artigo 72º do CCP? Convidar as Contrainteressadas a apresentar esclarecimentos, seria, então, a solução justa, ao invés da exclusão de propostas. 30. Na ausência de solicitação de esclarecimentos, o Tribunal a quo até poderia decidir pela anulação do ato de adjudicação da empreitada de Construção do Pavilhão Desportivo e Centro Escolar de Marrazes à Contrainteressada N… e pela anulação do contrato, mas não poderia decretar a exclusão das propostas das Contrainteressadas e condenar o ora Recorrente a adjudicar a empreitada em causa à Autora. Uma tal decisão faria regredir o procedimento à fase de análise das propostas, admitindo-se, então, esclarecimentos que, naturalmente, não poderiam resultar em ampliação dos prazos das espécies de trabalhos constantes dos Mapas de Trabalho alegadamente incompletos, ou em ampliação do prazo de execução da obra. 31. Assim se impunha, tanto mais que a decisão sob recurso acarreta um enorme e irreparável prejuízo para o interesse público. 32. Na verdade, a decisão sob recurso implica, para o Município de Leiria, um brutal dispêndio de mais € 1.455.116,33, numa obra cuja adjudicação foi submetida a visto prévio do Tribunal de Contas e por ele já visada. 33. E nem se diga que os esclarecimentos podem redundar numa alteração da proposta das concorrentes em apreço, num momento em que as contrainteressadas já conheciam as propostas das demais concorrentes, porquanto tais esclarecimentos estarão sempre limitados pelo princípio da intangibilidade das propostas e pelo próprio nº 2 do artigo 72º do CCP, não sendo de todo admissíveis esclarecimentos que “contrariem elementos constantes dos documentos que constituem as propostas”, que “alterem ou completem os respetivos atributos” (in casu o único atributo relevante é o preço) ou que “visem suprir omissões que determinem a sua exclusão nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 70º CCP” (situação afastada pela indicada ponderação da proporcionalidade). 34. Nem todas as omissões ou incompletudes dos Planos de Trabalho determinam a exclusão das propostas (neste sentido Pedro Matias Pereira, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 14/06/2018, publicada na Revista de Contratos Públicos, nº 19 (janeiro 2019), páginas 137 a 139 que data venia se transcreve: “Haverá certamente casos em que os esclarecimentos que se peçam e prestem sobre incompletudes e omissões do Plano de Trabalhos (de certo tipo e natureza) se conterão dentro do legalmente admissível, designadamente por não colocarem em causa as restrições inscritas no nº 2 e na parte final do nº 3 do artigo 72º do CCP, o que aliás se coaduna com a doutrina e jurisprudência citada no próprio Acórdão sob anotação”) 35. Partindo do enquadramento legal que enunciámos, consideramos que uma racional interpretação da lei, que atenda aos elementos histórico, sistemático, teleológico e à unidade do sistema jurídico, aponta no sentido de a não densificação dos Planos de Trabalhos só poder levar à exclusão de uma proposta caso, na situação concreta em que a questão se coloque, se comprove que a sua falta contende com a avaliação da proposta, o que in casu não acontece uma vez que o critério de adjudicação é o da proposta economicamente mais vantajosa, na modalidade de avaliação do preço da proposta enquanto único aspeto de execução do contrato a celebrar. 36. A decisão recorrida viola os artigos 43º, 57º-1 c) e 2 b), conjugado com o artigo 361º, e artigo 70º-2 f) todos do CCP, aprovado pelo DL nº 18/2008, de 29 de janeiro, na redação aplicável ao concurso em causa, a qual lhe foi conferida pelo DL nº 170/2019, de 4 de dezembro e, outrossim, o artigo 10º, nº 1, alínea d), subalínea I) do Programa de Procedimento.(…)»
I. 1. Questões a apreciar e decidir Tendo presentes as alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente Município e pela Recorrente CI e respetivas conclusões, importa delimitar as questões a decidir no âmbito dos presentes recursos, nos seguintes termos: Do recurso interposto da sentença pelo Recorrente Município e pela Recorrente CI, por erro de julgamento de direito, por referência ao disposto nas disposições conjugadas dos art.s 43º, 57º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, alínea b), 361º, e 70º, n.º 2, alínea f), todos do CCP, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29.01, na redação aplicável ao concurso em causa, a qual lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 170/2019, de 04.12. e, bem assim, o art. 10º, nº 1, alínea d), subalínea I) do Programa de Procedimento, por ter decido, em consequência, pela: i) anulação do ato de adjudicação da empreitada de "Construção do Pavilhão Desportivo e Centro Escolar de Marrazes", mais determinando a exclusão da sua proposta; ii) anulação do contrato de empreitada outorgado pela Entidade Demandada Município de Leiria e a Recorrente; e, por fim, pela iii) condenação da Entidade Demandada a adjudicar a empreitada à A., ora Recorrida T…, S.A..
A Recorrente CI recorre ainda do despacho proferido pelo tribunal a quo a 20.12.2021, sobre a suscitada nulidade da sua citação, imputando-lhe os seguintes erros de julgamento: i) por impossibilidade deste dar sem efeito o ordenado em despacho anterior, sobre a mesma questão, e por consubstanciar uma decisão surpresa por ter decido de imediato a questão em causa; ii) por violação do direito à prova, ao ter indeferido a prova por si requerida no âmbito deste incidente, por requerimento de 24.11.2021; e, consequentemente, iii) por ter julgado improcedente a invocada nulidade de citação, por falta de citação, com as demais consequências legais.
II. Fundamentação II.1. De facto A matéria de facto constante da sentença recorrida, é aqui transcrita ipsis verbis - cfr. fls. 228 e ss., do SITAF: II.2. De direito Embora a sentença recorrida, de 19.10.2021, seja cronologicamente anterior ao despacho interlocutório recorrido, de 20.12.2021, por uma questão de lógica de cognição dos fundamentos apresentados pela Recorrente CI, no âmbito do recurso interposto das decisões constantes deste despacho, e atendendo às repercussões processuais que poderão ser retiradas de uma decisão favorável à Recorrente, neste âmbito, entende-se ser adequado que a ordem de conhecimento dos erros de julgamento invocados se inicie por estes. Vejamos então por partes. i) Do erro de julgamento em que incorreu o tribunal a quo ao ter dado sem efeito, no despacho recorrido de 20.12.2021, o que havia ordenado em despacho anterior, proferido em 09.12.2021 – cfr. fls. 3131, ref. SITAF. Alega a Recorrente CI que o despacho recorrido, de alguma forma, não poderia ter “revogado” o despacho anterior, por esgotamento do poder jurisdicional e por se consubstanciar uma decisão surpresa. Mas sem razão. Desde logo porque o despacho anterior, de 09.12.2021, ao determinar que « notifique a Contra-Interessada N… para, no prazo de 2 dias, indicar a morada do Posto dos CTT a que se refere no seu requerimento de 24.11.2021. Após fornecimento dos dados solicitados, notifique o Posto dos CTT em causa para, no prazo de 5 dias, vir identificar o funcionário que procedeu à entrega do ofício de citação da Contra-Interessada N… e, bem assim, para prestar os esclarecimentos que tiver por convenientes quanto aos procedimentos adoptados para efeitos de entrega do expediente em questão.», nada decide, pois que apenas determinou a prática de diversos atos nos autos, pelo que não faz sentido falar em “esgotamento do poder jurisdicional”. Assim como não é correto aplicar a figura da decisão surpresa, pois que esta apenas surge quando existe uma violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído, designadamente, no art. 3.º, nº 3, do CPC, o que não sucedeu no caso em apreço pois que a Recorrente CI expressamente admite ter sido ouvida em relação a todos os aspetos da decisão tomada no despacho em apreço, e efetivamente foi – cfr. requerimentos de 24.11.2021 e 03.12.2021. Outra questão é saber se a decisão imediata da suscitada nulidade da citação da Recorrente CI pode ter contendido, designadamente, com o seu direito à prova e com o princípio da proibição de indefesa, o que conheceremos de seguida. ii) Do erro de julgamento em que incorreu o despacho recorrido ao ter indeferido a prova requerida pela contrainteressada, ora Recorrente CI no seu requerimento de 24.11.2021 – cfr. fls. 3005 e ss., ref. SITAF – do qual consta, designadamente, o seguinte: «(…) 15°. A Requerente, que é uma pessoa colectiva constituída sob a forma de sociedade anónima, tem a sua sede social na Rua P….., n.° ……., escritório 3, 1600-8….. Lisboa, desde o dia 30.12.2019 - cf. impressão da certidão permanente online, com o código de acesso 8…-1…..6-1….., mais precisamente a Insc. 8, Ap. 22/2……….., doc. 10. 16°. A Requerente, fosse através de qualquer legal representante, fosse através de qualquer seu trabalhador, nunca recebeu, incluindo na predita sede, qualquer carta de citação referente aos presentes autos. 17°. E jamais chegou ao conhecimento da Requerente qualquer citação para a presente acção. 18°. Pelo que, ou o digno tribunal não efectuou qualquer citação tendo a aqui Requerente como destinatária, 19°. Ou, então, se a citação foi expedida, esta, por razões que a Requerente desconhece, nunca chegou ao seu conhecimento. 20°. Mais se refira, aliás, que a Requerente, até à presente data, nunca foi notificada de qualquer termo do processo. 21°. A Requerente, na realidade, desconhecia completamente a existência do mesmo. 22°. Razão, pela qual a Requerente também nunca constituiu, anteriormente, mandatário para efeitos destes autos, 23°. Nem interveio nos mesmos em momento prévio ao do presente Requerimento, designadamente para apresentação da Contestação que entendesse deduzir. 24°. Conforme já supra se alegou, a Requerente apenas tomou conhecimento da existência do processo em questão e da sentença judicial porque o Município a informou de tal, 25°. Sendo a Requerente, assim, apanhada totalmente de surpresa! (…) Prova Testemunhal A) Requer-se a inquirição das seguintes testemunhas, a notificar para o efeito: 1- Dr. P…, com domicílio profissional na sede da ora Requerente; 2- Dr. P…, com domicílio profissional na sede da ora Requerente; 3- Dr. J…, com domicílio profissional na Avenida ……, n.° ……, …. ….., …. - ….. Lisboa; B) Mais requer a V. Ex.a que, no caso do digno tribunal ter expedido a citação e/ ou a notificação da sentença para a Requerente, por via postal, se oficie o posto local dos CTT de Lisboa (do conhecimento da Requerente, será o Posto de Carnide), a fim de vir indicar a identificações do(s) seu(s) funcionário(s) que terá(ão) executado a entrega de tal citação e/ou notificação na sede da Requerente (Rua P…, n.° ….., escritório…., 1…-… Lisboa, freguesia de C….., concelho de Lisboa). No seguimento de tal indicação, aquele(s) funcionário(s) seja(m) notificado(s) pelo tribunal a fim de serem inquirido(s) como testemunha(s), pois afigura-se que o seu depoimento será essencial para a descoberta da verdade material e para a boa decisão do presente Incidente. Junta: 10 documentos (…)». O tribunal a quo, ao decidir, considerou, em suma, o seguinte: «(…) A propósito das formalidades da citação, como bem salienta a N…, decorre do disposto nos artigos 223.°, n.°s 1 e 3 e 246.°, n.° 2 do Código de Processo Civil (CPC) que a citação das pessoas colectivas é efectuada por meio de carta de citação endereçada para a respectiva sede no caso de a mesma se encontrar inscrita no ficheiro central de pessoas colectiva do Registo Nacional de Pessoas Colectivas (como é o seu caso), sendo citadas na pessoa dos seus legais representantes, mas considerando-se, ainda, pessoalmente citadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração. Desde logo se constata que tais formalidades foram cumpridas no caso em apreço, por se verificar que o ofício de citação da Contra-Interessada, para os termos da presente acção, foi remetido para a sua sede (cf. 30-41, 125-126 e 138 dos autos). Mais se constata que no correspondente aviso de recepção se encontra aposta a informação de que o mesmo foi recebido por P…, constando ainda do mesmo o respectivo número de identificação. Ora, relativamente ao invocado pela N… quanto ao facto de o aviso de recepção não se encontrar assinado pelo referido P…, não correspondendo os escritos dali constantes à sua assinatura, cumpre chamar aqui à colação a Lei n.° 10/2020, de 18 de Abril, a qual estabelece o regime excepcional e temporário quanto às formalidades da citação e da notificação postal, no âmbito da pandemia da doença COVID-19. Decorre do artigo 2° do diploma em análise o seguinte: “(…) 1 - Fica suspensa a recolha da assinatura na entrega de correio registado e encomendas até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19. 2 - A recolha da assinatura é substituída pela identificação verbal e recolha do número do cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio idóneo de identificação, mediante a respetiva apresentação e aposição da data em que a recolha foi efetuada. 3 - Em caso de recusa de apresentação e fornecimento dos dados referidos no número anterior, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente na carta ou aviso de receção e devolve-o à entidade remetente. 4 - Nos casos previstos no número anterior, e qualquer que seja o processo ou procedimento, o ato de certificação da ocorrência vale como notificação, consoante os casos. 5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, as citações e notificações realizadas através de remessa de carta registada com aviso de receção consideram-se efetuadas na data em que for recolhido o número de cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio legal de identificação. 6 - O disposto neste artigo aplica-se, com as necessárias adaptações, às citações e notificações que sejam realizadas por contacto pessoal" — realce nosso. Ou seja, à luz da norma transcrita, a qual se mantém ainda em vigor, não é actualmente exigida a assinatura do aviso de recepção de correio registado, a qual se dispensa e é substituída pela identificação verbal e recolha do número do cartão de cidadão de quem recepciona o correio, tanto bastando para que se considere efectuada a citação realizada através de remessa de carta registada com aviso de recepção. Bem se compreende, portanto, que o aviso de recepção referente à citação da Contra- Interessada não se encontre assinado, mas não tinha de o ser, bastando para a perfeição da respectiva citação a identificação, pelo distribuidor do serviço postal, da pessoa que recepcionou o ofício em discussão e do seu número de identificação, o que foi concretizado em 11.08.2021 — data em que, portanto, se considera efectuada a citação da Contra-Interessada N…, nos termos do artigo 2.°, n.° 5 da Lei n.° 10/2020. Já no que se refere ao alegado pela Contra-Interessada quanto à circunstância de P… se encontrar de férias na referida data e, por esse motivo, não podia o mesmo ter recepcionado o ofício de citação, decorre da análise dos documentos constantes dos autos (concretamente do aviso de recepção de fls. 138 dos autos e da declaração de fls. 3129) que o número de identificação aposto no aviso de recepção corresponde efectivamente ao número de cartão de cidadão de P…. Atendendo a tal circunstância, assume-se como inverosímil a tese da Contra-Interessada de que o distribuidor postal não entregou o ofício em discussão a P…, porque na verdade conseguiu apurar correctamente o respectivo número de identificação, dados que naturalmente apenas poderia obter se tal lhe fosse transmitido por quem recebeu o correio. Por conseguinte, à luz dos elementos documentais contantes dos autos, forçoso é concluir que a citação da Contra-Interessada N… foi efectuada em cumprimento das formalidades legais impostas para esse efeito, tendo o ofício de citação sido remetido para a sua sede, tal como constante do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, tendo o mesmo sido recepcionado por quem se encontrava naquelas instalações e se comprometeu a entrega-lo ao destinatário, o qual não procedeu à assinatura do aviso de recepção, mas foi correcta e devidamente identificado pelo distribuidor postal, à luz das prescrições constantes da Lei n° 10/2020. (…)». (sublinhados nossos). Desde já se adianta que o assim decido não é para manter. Vejamos porquê. A citação é «o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa» - cfr. art. 219.º, nº 1, do CPC. As nulidades do processo, importando a anulação do processado, são desvios do formalismo processual, que operam através da prática de um ato proibido, por omissão de um ato prescrito na lei ou através da realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido. A não citação do réu implica a nulidade do processado posterior – cfr. art. 187.º do CPC, ex vi art.s 1.º e 23.º, do CPTA -, desde que a falta não se encontre sanada. Há falta de citação nas situações descritas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 188.º CPC, designadamente, «Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável» -cfr. respetiva alínea e). Sobre as garantias ínsitas ao ato de citação, e com particular interesse para o caso em apreço, importa ter presente a jurisprudência do Tribunal Constitucional, sintetizada no acórdão n.º 773/2019, de 17.12.2019, nos seguintes termos: «(…) a modalidade da citação por via postal simples não é, por si só, necessariamente e seja qual for o caso a que se aplique, incompatível com a Constituição; sê-lo-á, contudo, por violação do princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no seu artigo 20.º, quando não oferecer, desde logo, as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e tornar impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação. (…) Não impondo a Constituição a adoção de qualquer forma específica para tais atos, que cumpre ao legislador escolher, no exercício dos poderes autónomos que marcadamente detém no domínio do processo civil, proíbe claramente soluções que se bastem com uma probabilidade remota ou vaga de conhecimento pelo réu da citação ou impeçam a demonstração por este do seu não conhecimento; a norma que regula a forma de realização do ato de citação deve, pois, dar garantias mínimas de segurança e fiabilidade e não pode tornar impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento oportuno desse ato, sob pena de incorrer em violação do princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no seu artigo 20.º.» (sublinhados nossos). Nesta medida, as exigências garantísticas que decorrem da doutrina que dimana da citada jurisprudência constitucional quanto à citação por carta simples, no pressuposto de esta poder tornar impossível ou excessivamente difícil a elisão da presunção de recebimento oportuno desse ato, têm de estar subjacentes também à possibilidade de prova em tribunal para o mesmo efeito. Ou seja, se é certo que a o art. 20.º da CRP não proíbe em absoluto que a lei extraia de determinados factos certos, a presunção de que o réu ou requerido tomou ou podia ter tomado conhecimento do ato de citação ou notificação de modo a exercer em tempo o direito de defesa, esta não proibição tem como pressuposto que a mesma lei ou que os tribunais façam assentar essa presunção em elementos fiáveis e seguros e que não se vede ou inviabilize na prática a possibilidade de demonstração do contrário (1). No caso em apreço a Recorrente CI alega que não chegou a ter conhecimento do ato (da ação) por facto que não lhe foi imputável - cfr. art. 188º, nº 1, alínea e), CPC., tendo apresentado meios de prova, designadamente testemunhal, para o efeito. E bem, pois que para que se possa concluir pela falta de citação, não basta a alegação pela citanda de que não teve conhecimento do ato de citação, revelando-se ainda necessário que aquela alegue e demonstre não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu devido a circunstâncias que não lhe são imputáveis (2). E, tratando-se de citação de pessoa coletiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas coletivas, o recurso à respetiva sede estatutária (constante de tal ficheiro) como domicílio para efeitos de citação não se revela incompatível com os princípios de defesa e do contraditório, também não representando um excessivo ónus para a citanda a obrigação de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior. Salvaguardando-se, porém, que o exercício do direito de defesa e de acesso à justiça se mostra suficientemente assegurado mediante a possibilidade que é concedida à citanda de ilidir a presunção estabelecida quanto ao conhecimento da citação, nos termos supra enunciados. Não obstante, o tribunal a quo prescindiu da prova requerida pela Recorrente CI, em virtude de ter considerado inverosímil a tese da Recorrente, conciliada esta com a aplicação do disposto na Lei n.º 10/2020, de 08.04., que veio estabelecer um regime excecional e temporário quanto às formalidades da citação e da notificação postal previstas nas leis processuais e procedimentais e quanto aos serviços de envio de encomendas postais, atendendo à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19. Vejamos. A referida Lei nº 10/2020 de 18.04, na parte com interesse para o caso em apreço, refere que: «Artigo 2º Regime excecional 1- Fica suspensa a recolha da assinatura na entrega de correio registado e encomendas até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19. 2 - A recolha da assinatura é substituída pela identificação verbal e recolha do número do cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio idóneo de identificação, mediante a respetiva apresentação e aposição da data em que a recolha foi efetuada. 3 – (…) 4 - Nos casos previstos no número anterior, e qualquer que seja o processo ou procedimento, o ato de certificação da ocorrência vale como citação ou notificação, consoante os casos. 5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, as citações e notificações realizadas através de remessa de carta registada com aviso de receção consideram-se efetuadas na data em que for recolhido o número de cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio legal de identificação.» Vemos, pois, que mesmo em aplicação deste regime excecional, é necessário que o distribuidor do serviço postal identifique a pessoa que está a receber a carta e que recolha o número do respetivo cartão de cidadão, ou de qualquer outro documento idóneo de identificação, mediante a respetiva apresentação e aposição da data em que a recolha foi efetuada. É assim necessário que o distribuidor do serviço postal se assegure que alguém recebe a carta e que verifique a sua identidade. Ora, é nosso entendimento que a citação da Recorrente CI no autos em apreço, ao abrigo da citada Lei n.º 10/2020, não garante, com absoluta certeza, e ao contrário do que concluiu o tribunal a quo, que a CI, ora Recorrente, efetivamente tomou conhecimento do ato de citação transmitido desse modo, apenas permitindo concluir, verificado o primeiro daqueles pressupostos, que a CI provavelmente a recebeu ou que, atuando com a diligência de um bom pai de família, a podia ter recebido.
A harmonização dos interesses em conflito, o interesse da seriedade do ato de citação e o interesse de proteger a saúde pública em contexto de pandemia, não pode deixar de passar pela adoção de soluções que importem, para cada um deles, a compressão que se mostre necessária à salvaguarda do outro, sem afetação do respetivo conteúdo essencial. Salvaguarda essa que entendemos não ter realizado o tribunal a quo na aplicação que fez das disposições legais aplicáveis ao caso em apreço, pois que, perante a inexistência de assinatura da pessoa que foi identificada no aviso de receção como tendo recebido a carta de citação, avançou, depois de concluir pela inverosimilhança da tese da Recorrente CI, prescindindo dos meios de prova, designadamente, testemunhais, pela mesma oferecidos. Note-se que este procedimento não permite, na verdade, um comprovativo da receção da citação, consubstanciando, de facto, um modo excessivamente simplificado, porventura justificado dado o contexto de pandemia vigente, embora não seja questão sobra a qual se imponha discorrer no âmbito do presente recurso, para efetivação de uma citação. De todo o exposto, conclui-se que a citação da CI Recorrente, tal como resulta ter sido efetuada nos autos – cfr. factos n.º 14 a 16 - exigia que o tribunal a quo, perante a suscitação do incidente de nulidade da mesma, permitisse à CI ter feito a prova que se propôs fazer sobre essa questão – cfr. requerimento de 24.11.2021, transcrito supra -, por forma a poder assim ilidir a presunção, cujo ónus de elisão, aliás, sobre si recaía (3) - cfr. citado art. 188.º do CPC. Mais devendo ter ainda bem presente, o tribunal a quo, que, «Persistindo a dúvida se o réu teve ou não conhecimento da citação deve concluir-se pela nulidade da citação, por força dos artigos 188.º n.º1 e) e 191.º n.º1, do CPC.», cfr. ac. STJ de 06.06.2019, P. 1202/15.0T8BJA-A.E1.S1 (4).
Em face do que se impõe revogar o despacho recorrido, nesta parte, por violação do direito à prova e por consequente violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da CRP, conforme melhor explicitaremos infra. Em face do que, e não obstante os restantes vícios imputados ao despacho recorrido se pudessem considerar prejudicados pelo assim decidido, considera este tribunal de recurso que, ainda assim, o conhecimento do último erro de julgamento que foi imputado a este despacho, permite uma análise mais completa da questão em apreço, razão pela qual do mesmo conhecerá também. iii) Do erro de julgamento em que incorreu o despacho recorrido ao ter considerado que mesmo que a citação da Recorrente CI não tivesse ocorrido, tal facto seria irrelevante pois que não determinaria a anulação de todo o processado, em virtude de não se estar perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo. Vejamos por partes. Da presunção não ilidida de que a citação da Recorrente CI foi efetuada nos presentes autos. Atentemos na fundamentação do despacho recorrido: «(…) ainda que se admitisse que existiu qualquer irregularidade na citação efectuada), à situação em apreço sempre seria de aplicar o disposto no artigo 190.° do CPC, com as necessárias adaptações (considerando que não estamos perante um caso de pluralidade de réus em sentido estrito, mas sim de várias partes processuais do lado passivo — a entidade demandada e as contra-interessadas). Do disposto nas alíneas a) e b) da norma em questão decorre que apenas nos casos de litisconsórcio necessário é que a falta de citação de uma das partes passivas determina a anulação do processado posterior à citação, nada se anulando se estivermos perante litisconsórcio voluntário. Ora, no que concerne à intervenção da Contra-Interessada nos presentes autos, julgamos efectivamente que a mesma se reconduz a uma situação de litisconsórcio voluntário. Não se desconhecendo as divergências jurisprudenciais e doutrinais quanto a esta matéria, este Tribunal segue a posição da mais recente doutrina a este propósito, no sentido da inadmissibilidade da figura do litisconsórcio necessário passivo como figura enquadradora da relação Administração/contra-interessado, por a mesma parecer ser uma transposição acrítica dos quadros existentes no Direito Processual Civil, os quais, porém, não se coadunam com a especificidade das relações jurídicas subjacentes ao contencioso administrativo. (…) cf. Francisco Paes Marques, O estatuto processual dos contra-interessados nas acções impugnatórias e de condenação àprática de acto administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa n.° 124, 2017, pág. 33. De resto, no mesmo sentido aponta a posição mais recente de Mário Aroso de Almeida relativamente a esta questão (cf. Manual de Processo Administrativo, 5.a edição, 2021, págs. 271-272), (…) de acordo com o qual “(…) o objecto destes processos não se define por referência às situações subjectivas dos contra- interessados, titulares de interesses contrapostos aos do autor, mas à posição em que a Administração se encontra colocada, no quadro do exercício dos seus poderes de autoridade. Com efeito, a discussão em juízo centra-se na questão de saber se a Administração agiu ou não de modo ilegal e, por isso, se se anula ou não o acto administrativo, ou se se condena ou não a Administração a praticar o acto recusado ou omitido. Esta circunstância torna questionável o enquadramento que à situação dos contra-interessados tem sido dado no instituto do litisconsórcio necessário, que, por isso, parece dever ser objecto de revisão crítica (…)”. Não se contesta a ideia de que os contra-interessados são parte dos processos administrativos impugnatórios, como é o caso dos presentes autos, podendo neles intervir. Todavia, não julgamos que tal intervenção tenha subjacente um litisconsórcio necessário, regime que aqui se afasta. Assim sendo, ainda que se verificasse alguma irregularidade que gerasse uma situação de falta de citação (o que como se viu, em todo o caso, não ocorreu), a verdade é que tal nunca teria a virtualidade de implicar a anulação do processado posterior à citação como pretende a N…, por tanto ser afastado pelo disposto no artigo 190.°, alínea b) do CPC — e sendo certo que a Entidade Demandada foi citada, contestou e a sua posição, no sentido da legalidade da adjudicação efectuada à Contra-Interessada N…, foi devidamente ponderada em sede da sentença proferida em 19.10.2021. (…)». (sublinhados nossos). Valendo aqui todo o exposto sobre o erro do tribunal a quo ao ter prescindido dos meios de prova requeridos pela Recorrente CI, muito particularmente por violação do princípio da proibição de indefesa que decorre do art. 20.º da CRP, erra também o tribunal a quo ao ter consignado a irrelevância do facto de não ter sido citada a CI, em virtude de ter considerado que não se verifica uma situação de litisconsórcio necessário passivo e que, como tal, a referida nulidade da citação, a verificar-se, não determinaria a anulação de todo o processado – cfr. art.s 187.º, 188.º e 191.º, todos do CPC, ex vi art. 23.º do CPTA. Vejamos. O litisconsórcio é necessário, segundo dispõem os nºs 1 e 2 do art. 33.º, do CPC, quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Este efeito útil normal da decisão a proferir, afere-se pela insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão. De onde decorre que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas. Neste pressuposto, é para nós certo que o contencioso administrativo é muitíssimo mais permeável às especificidades das relações jurídicas administrativas que lhes estão subjacentes, tendo de atender à sua natureza multipolar ou poligonal, muito mais que a lei processual civil onde, na maior parte dos casos submetidos a litígio, apenas uma dualidade de partes se apresenta com interesses em juízo. Desta permeabilidade decorrem muitas das especificidades do contencioso administrativo, designadamente, a figura do contrainteressado. Sem prejuízo da ponderação e conhecimento da doutrina citada no despacho recorrido sobre a necessidade de que a aplicabilidade do instituto do litisconsórcio necessário aos contrainteressados «parece dever ser objecto de revisão crítica» (5), temos para nós que, no caso em apreço não consubstancia o melhor exemplo para que tal revisão critica se efetue. E isto porque a não citação do contrainteressado adjudicatário, numa ação de contencioso pré-contratual que visa a anulação, entre outros, do ato de adjudicação, como sucede no caso em apreço, não pode deixar de significar a preterição do litisconsórcio necessário passivo, dando lugar à absolvição da instância – cfr. disposições conjugadas dos art.ºs 78.º, n.º 2, al. f), 87.º, n.º 1, al. a), 88.º, n.º 2 e 89.º, n.º 1, al. f), e art. 102.º, do CPTA – e do princípio da proibição de indefesa, por decorrência do art. 20.º da CRP, nos termos supra expostos – pois que o resultado a que o despacho recorrido chega – da irrelevância da não citação do adjudicatário, numa ação de anulação do ato de adjudicação e do contratos, que foi entretanto, celebrado - é, para este tribunal de recurso, um resultado inadmissível, pelas seguintes ordens de razões: A Recorrente CI, enquanto adjudicatária, tem um prejuízo direto que decorre da procedência da ação de anulação do ato de adjudicação. Seguindo a delimitação da figura dos contrainteressados, levada a acabo por Francisco Paes Marques (6), o adjudicatário estará incluindo no 1.º grau de interesse em reagir dos diversos sujeitos, na medida em que sofrerá um «prejuízo certo e imediato: sujeitos que encontram no acto administrativo a fonte dos seus direitos ou a consagração de um ónus, obrigação ou encargo que vai ser eliminado ou agravado, consoante os casos, por via da sentença de anulação (licença, acto de concessão), ou sujeitos cuja situação jurídica vai ser eliminada ou agravada por força do acto administrativo praticado na sequência da sentença de condenação (demolição de uma construção, ordem de inibição);». Por conseguinte, a Recorrente CI deveria ter sido demandada na ação, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário passivo. A exigência da citação dos contrainteressados justifica-se pela necessidade de assegurar a realização do direito ao contraditório (7), exigência essa que decorre das normas da lei de processo nos tribunais administrativos supra citadas mas também do regime do recurso de revisão de sentença. De onde decorre que tenham de ser chamados à ação, em situação de litisconsórcio necessário passivo, não só a entidade que praticou o ato, como R. ou entidade demandada, mas também todos aqueles que são prejudicados pelo provimento do processo impugnatório, quer esse prejuízo resulte diretamente da anulação do ato – como sucede no caso concreto -, quer o mesmo advenha da afetação do interesse legítimo em que o mesmo seja mantido na ordem jurídica, os contrainteressados. Chamamento que é obrigatório, em virtude de só assim se assegurar que todos aqueles que têm interesse legítimo em contradizer a pretensão apresentada em juízo o possam fazer (8). Neste sentido tem sido também o entendimento dos tribunais superiores, designadamente, e entre muitos, os acórdãos do Supremos Tribunal Administrativo P. 0267/14, de 19/10/2017; P. 0872/16, de 09/02/2017; P. 01018/15, de 12/11/2015; P. 01438A/03, de 20/12/2007; P. 0756/05, de 17/07/2007; P. 0756/05, de 29/03/2006; P. 682/03, de 29/05/2003. Bem como do Tribunal Central Administrativo Sul, P. 323/17.0BEBJA, de 28/02/2018 e P. 488/07.9BELLE-B, de 14.05.2020, sendo que neste, a questão se colocou, precisamente, em sede de recurso de revisão de sentença, e cuja doutrina seguimos de perto, pois que no mesmo tivemos inclusive intervenção. Acresce que, também por força dos princípios da tutela judicial efetiva, do contraditório e da igualdade das partes, é que nas ações impugnatórias se exige a identificação e posterior demanda de todos os contrainteressados que possam identificar-se a partir da causa de pedir e por via dos elementos documentais trazidos ao processo, aqui se incluindo os elementos inclusos no processo administrativo instrutor, sob pena de a sentença que aí se produza poder vir a ser declarada nula – designadamente no âmbito de um recurso de revisão - por se ter preterido aquela obrigação e, assim, reconhecendo a irrefutabilidade de tais princípios, o legislador consagrou o recurso de revisão como um remédio, embora excecional, que permite destruição dos efeitos do caso julgado nas situações taxativamente elencadas. No caso em apreço, a Recorrente CI, transitada que estivesse a sentença proferida nos autos, poderia, ao abrigo do disposto no art. 696.º, alínea e), subalíneas i) ou ii), do CPC, interpor recurso de revisão, razão pela qual, imperioso se torna concluir, numa interpretação coerente de todos os preceitos legais citados, que entre a o R. Entidade Adjudicante e a CI adjudicatária, em ação de anulação do ato de adjudicação interposta por terceiro, se verifica um caso de litisconsórcio necessário, razão pela qual errou também o tribunal a quo ao ter concluído pela irrelevância de uma eventual ou efetiva nulidade de citação da CI. Ao invés, verificada que seja a nulidade invocada, da mesma decorre a anulação de todo o processado após a apresentação das contestações dos demais citados nos autos, e ordenada repetição da citação da CI N…, ora Recorrente, seguindo-se depois os demais termos até final – cfr. citados art.s 187.º, 188.º e 191.º, do CPC, ex vi art. 23.º do CPTA.
Prejudicado fica, assim, o conhecimento dos erros de julgamento imputados à sentença recorrida. III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul, em: a) Conceder provimento ao recurso interposto pela contrainteressada contra o despacho de 20.12.2021; b) revogar o despacho recorrido na parte em que prescindiu dos meios de prova, designadamente testemunhal, invocados pela contrainteressada, ora Recorrente, em sede de incidente de nulidade da citação, ordenando, em consequência, a baixa dos autos ao tribunal a quo para que proceda em conformidade; c) não conhecer do recurso interposto pelo Recorrente Município e pela Recorrente contrainteressada contra a sentença proferida nos autos, em virtude de o seu conhecimento ter ficado prejudicado pela decisão anterior, mais devendo os autos seguir os demais termos até final, nos termos que melhor constam da fundamentação que antecede.
Custas pela Recorrida na presente instância de recurso.
Lisboa, 17.03.2022 Dora Lucas Neto (Relatora) Pedro Nuno Figueiredo Ana Cristina Lameira _________________________ (1) Neste sentido v. ac. do TRL de 27.10.2020, P. 2459/19.3YRLSB-7, disponível em www.dgsi.pt |