Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:939/24.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/30/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL EM POSTO DE FRONTEIRA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - No âmbito do pedido de proteção internacional num posto de fronteira, a audiência prévia realiza-se nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 2 da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho;
II - A falta de fundamentação formal respeita à ausência de enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo;
III - Não tendo a sentença apreciado o invocado erro nos pressupostos (respeitante à fundamentação substancial) a sentença é nula por omissão de pronúncia [artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC], mas a falta de arguição pelo Recorrente da nulidade da sentença, determina a sua sanação, obstando a que o Tribunal ad quem, por não se tratar de questão de conhecimento oficioso a aprecie e, se julgasse verificada, procedesse ao seu suprimento conhecendo em substituição o erro nos pressupostos de facto;
IV - Sanada a nulidade da sentença por ausência de arguição pelo Recorrente, não pode o Tribunal de recurso conhecer um erro de julgamento se, a esse respeito, nada se apreciou ou decidiu na sentença recorrida.
V - Encontra-se fundamentado o ato que conclui pela inadmissibilidade do pedido de proteção internacional do Recorrente enunciando, de forma clara, expressa e congruente, seja ao nível da factualidade, seja do enquadramento jurídico as razões da negação da pretensão do A. de obter a concessão de asilo ou proteção subsidiária.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:


1. Relatório

I… (doravante A., Requerente ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a ação administrativa urgente de ato praticado no âmbito de procedimento de proteção internacional contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo - AIMA (doravante R., Entidade Requerida ou Recorrida), visando a impugnação da decisão do Conselho Diretivo da Entidade Requerida, que considerou como inadmissível o seu pedido de proteção internacional, peticionando a procedência da impugnação “e substituída a decisão impugnanda por uma outra que conceda o pedido de asilo, e, assim não se entendendo, o direito de protecção subsidiária, ou assim não se entendendo, anule a decisão recorrida e ordene o prosseguimento dos autos, com o cumprimento de notificação ao requerente para se pronunciar sobre o sentido provável da decisão”.

Por sentença proferida em 16 de setembro de 2024, o referido Tribunal julgou totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, absolveu a Entidade Requerida do pedido.

Inconformado, o Requerente interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:

“1. O recorrente alegou que se houvera apresentado, no Aeroporto de Lisboa no dia 17 de Dezembro de 2023, requerendo a concessão de asilo, que foi alvo de entrevista no dia 20 de Dezembro de 2023, e que nas suas declarações, especificou as razões pelas quais requer a concessão de asilo e corre sério risco de vida em caso de ser determinado o seu regresso ao seu país de origem, o Paquistão.
2. Mais explicitou que, pese embora tenha entrado em Portugal oriundo dos Emiratos Árabes Unidos, e depois, Marrocos, que não possui visto que possibilite o regresso a esses países, dado nomeadamente que o visto que o habilitava a permanecer em Marrocos caducava a 18.12.2023.
3. O recorrente não foi informado da intenção de indeferir o seu pedido ou julgá-lo inadmissível, nem das razões desse indeferimento ou inadmissibilidade.
4. A decisão da AIMA desconsidera igualmente qual o destino do Autor, se o seu país de origem, e, nessa circunstância, o que lhe poderia suceder em caso de regresso.
5. Ora, determina o artigo 121º do Código de Procedimento Administrativo, que: “os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”
6. Ora, tal determinaria, a nosso ver, que o requerente, aquando da notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 17º da Lei 27/2008, havendo lugar à mesma, ou em notificação avulsa, tivesse sido notificado do sentido provável da decisão a tomar pela requerida, sendo a essa luz que deve ser interpretada a menção do dito artigo a “informações essenciais relativas ao pedido”. No entanto, o requerente não foi notificado do sentido provável da decisão a tomar, e dos pressupostos factuais da mesma, pelo que foi omitida formalidade essencial, nomeadamente o direito de audição prévia, que foi violado pela douta sentença recorrida.
7. Acresce ainda que, na douta decisão da AIMA, não se tomaram em conta, quer para efeitos de asilo, quer para efeito de protecção subsidiaria, os factos invocados pelo requerente, nomeadamente os referentes a receio de perigo para a sua pessoa, em caso de regresso ao país de origem. Por essa razão, levantaram-se questões quanto ao destino do Autor, que nunca poderia ser o de regressar ao respetivo país de origem, no caso o Paquistão, porquanto tal decisão colocaria em perigo o Autor e, consequentemente, consubstanciaria violação do princípio da não repulsão, previsto na 1ª. parte, do nº. 1, do artº. 33º. Da Convenção de Genebra de 1951, norma que igualmente foi violada pela sentença recorrida.
8. Sustentou-se ainda que deveria então ter instruído o processo com informação fidedigna e atualizada quanto ao funcionamento do procedimento de concessão de asilo e às condições de acolhimento no país para onde seria remetido o requerente, considerados seguros recorrendo a fontes credíveis.
9. Não tendo a Ré efectuado tal indagação acabou por postergar os direitos, liberdades e garantias, do Autor que a concretização da retoma a cargo determinará, pelo que se argumentou que era justificada a sua anulação e subsequente condenação do Réu a conceder ao Autor a proteção internacional requerida.
10. Ora, e contrariamente ao que dispõe o artº. 153º., ex-vi artºs. 151º., nºs. 1, al d) e 2, e 152º., nº. 1, al. a), todos do CPA, a decisão da Ré que indeferiu o pedido da Autora limita-se a considerar inadmissível tal pedido, não o apreciando.
11. Nos termos do disposto no artigo 7º. da Lei nº. 27/2008, de 30 de Junho, é concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e apátridas que não sejam refugiados mas que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave, norma que consequentemente foi igualmente violada.
Deverá assim ser procedente o presente recurso, e substituída a sentença por uma outra que determine a substituição da decisão da AIMA por uma outra que conceda o pedido de asilo, e, assim não se entendendo, o direito de proteção subsidiária, ou assim não se entendendo, anule a decisão recorrida e ordene o prosseguimento dos autos, com o cumprimento de notificação ao requerente para se pronunciar sobre o sentido provável da decisão, assim se fazendo Justiça!”

A Entidade Requerida, notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Notificadas do aludido parecer, as partes nada disseram.

Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


2. Delimitação do objeto do recurso

Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, cumpre a este Tribunal apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.

3. Fundamentação de facto

3.1. Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

A) O Requerente é natural de Baluchistão, Paquistão (por acordo);
B) Em 17-12-2023, o Requerente foi intercetado no Posto de Fronteira do Aeroporto Humberto Delgado em Lisboa, quando provinha de Casablanca, Marrocos, no voo TP1439 (cf. fls. 46-56 do SITAF);
C) Em 17-12-2023, o Requerente apresentou um pedido de proteção internacional (cf. fls. 67 do SITAF);
D) Em 20-12-2023, no âmbito do pedido de proteção internacional mencionado na alínea C) supra, o Requerente prestou declarações, mediante realização de entrevista, podendo ler-se no “Auto de Declarações”, o seguinte:







(cf. fls. 73-82 do SITAF)
E) Em 21-12-2023, pela Inspetora da AIMA, foi prestada a Informação n.º 123/CNAR-AIMA/2023, onde consta o seguinte:


(…)

(cf. fls. 92-106 do SITAF)
F) Em 22-12-2023, sobre a informação referida na alínea antecedente, proferido despacho pelo Conselho Diretivo da AIMA (cf. fls. 92 do SITAF);
G) Em 22-12-2023, o Autor tomou conhecimento da decisão referida na anterior e da informação mencionada na alínea D) supra (cf. fls. 107 do SITAF).

3.2. Consignou-se na sentença a respeito dos factos não provados,

“Não existem outros factos alegados relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito, que importe referir como provados ou não provados.”


3.3. E em sede de motivação de facto consta da sentença,

“A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos que constam dos autos de processo, no processo administrativo, referenciados em cada uma das alíneas do probatório, não tendo os mesmos sido impugnados nem existindo indícios que ponham em causa a sua genuinidade, bem como na posição assumida pelas partes nos respetivos articulados e nos demais elementos que compõem os autos.”

4. Fundamentação de direito

4.1. Da preterição do direito de audiência prévia

O Recorrente imputa à sentença erro de julgamento sustentando, em suma, que, opostamente ao decidido, foi preterido o seu direito de audição prévia à decisão de rejeição do seu pedido de asilo e proteção subsidiária.
Entendeu-se na sentença recorrida não se verificar a preterição do direito de audiência prévia do Recorrente porquanto tendo este apresentado o seu pedido de proteção internacional no posto de fronteira, não se mostra aplicável o disposto no artigo 17.º n.º 2 da Lei do Asilo (Lei n.º 27/2008, de 30 junho), mas sim o procedimento especial de tramitação acelerada, nos termos do qual, se entende que a audiência prévia se basta com a tomada de declarações nos termos do n.º 2 do artigo 24.º daquele diploma.
A respeito desta questão foi já subscrito pela aqui também relatora, o Acórdão deste TCA Sul de 14.11.2024, proferido no processo 1734/24.0BELSB (disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/c4d4b2e21a49260a80258bd60050469f?OpenDocument) , sem que existam razões para divergir do aí decidido. Escreveu-se, então,
«A audiência prévia assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação, surgindo em observância e transposição do comando constitucional inserto no art.º 267.º, n.ºs. 1 e 5 da CRP.
Mostra-se prescrito nomeadamente nos arts.ºs 121.º e seguintes do CPA, mas também noutros diplomas, enquanto manifestação, em sede do ordenamento procedimental administrativo, do princípio do contraditório, mediante a consagração da possibilidade não só do confronto dos critérios da Administração com os dos administrados de modo a poderem ser obtidas plataformas de entendimento, mas, também, da possibilidade de estes apontarem razões e fundamentos, quer de facto quer de direito, que invalidem o caminho que a Administração intenta percorrer e levem a que outro seja o sentido decisório.
Como resulta do art.º 2.º, n.º 5 do CPA, as disposições deste diploma, incluindo as garantias nele reconhecidas aos particulares, são de aplicação subsidiária aos procedimentos administrativos especiais.
Daí que, como se escreveu no Ac. deste TCA Sul de 31.10.2024, proferido no processo 4479/23.4BELSB, “o regime geral da audiência prévia só será de aplicar aos procedimentos administrativos especiais se os mesmos não estiverem especificamente regulados nessa matéria”, pelo que, estando em causa um procedimento de concessão de proteção internacional, regulado pela Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária, “[e]ste diploma prevê e regula os termos do cumprimento da audiência prévia nos procedimentos de protecção internacional, o que afasta a aplicação das normas gerais sobre audiência prévia dos interessados previstas no CPA, nos termos do referido artigo 2.º, n.º 5, do CPA, sendo, antes, aplicável o regime especial previsto naquela lei.
Nos termos da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, a audiência prévia assume contornos diferentes em função do tipo de procedimento e da fase procedimental em causa, prevendo-se um regime regra no seu artigo 17.º e regimes especiais nos artigos 24.º (para os pedidos apresentados nos postos de fronteira), 33.º-A (para os pedidos apresentados na sequência de uma decisão de afastamento do território nacional) e 41.º (para os procedimentos de perda do direito de protecção internacional).”
Ora, nos presentes autos, estamos perante um pedido de proteção internacional apresentado em posto de fronteira regulado pelos artigos 23.º e ss. da Lei do Asilo, que não preveem qualquer notificação do interessado prévia à da decisão final.
Na realidade, o artigo 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo dispõe, especificamente, que “[o] requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado” (sublinhado nosso).
Refira-se que o artigo 16.º da Lei do Asilo, para que remete o n.º 3 do artigo 24.º, dispõe quanto às declarações que,
“1 - Antes de proferida qualquer decisão sobre o pedido de proteção internacional, é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente, em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão.
2 - A prestação de declarações assume carácter individual, exceto se a presença dos membros da família for considerada necessária para uma apreciação adequada da situação.
3 - Para os efeitos dos números anteriores, logo que receba o pedido de proteção internacional, a AIMA, I. P., notifica de imediato o requerente para prestar declarações no prazo de dois a cinco dias.
4 - (Revogado.)
5 - A prestação de declarações só pode ser dispensada:
a) Se já existirem condições para decidir favoravelmente sobre o estatuto de refugiado com base nos elementos de prova disponíveis;
b) Se o requerente for considerado inapto ou incapaz para o efeito devido a circunstâncias duradouras, alheias à sua vontade;
c) (Revogada.)
6 - Quando não houver lugar à prestação de declarações nos termos do número anterior, a AIMA, I. P., providencia para que o requerente ou a pessoa a cargo comuniquem, por qualquer meio, outras informações.”

Ora, a respeito deste regime já se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STA de 23.5.2019, proferido no processo 01434/18.0BELSB e os Acs. deste TCA Sul de 6.6.2020, proferido no processo 371/19.5BELSB, e de 10.9.2020, proferido no processo 1539/19.0BELSB.
Citando o Acórdão deste TCA Sul de 10.9.2020, que acompanha a posição da citada jurisprudência, e com aplicação à situação destes autos,

“[…] tendo o Recorrente apresentado o seu pedido de proteção internacional num posto de fronteira, concretamente, no aeroporto de Lisboa, […], é-lhe aplicável o regime especial descrito nos art.ºs 23.º, 24.º, 25.º e 26.º da Lei do Asilo.
Ora, sendo este regime especial, o recurso aos normativos atinentes ao procedimento comum- como é o caso do previsto no art.º 17.º- apenas é realizado na medida em que não haja disposição específica sobre a matéria no aludido regime especial vertido nos art.ºs 23.º, 24.º, 25.º e 26.º da Lei do Asilo.
Sucede, precisamente, que o art.º 24.º, n.º 2 determina que “o requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado”.
Sendo assim, tem plena aplicação ao caso versado o princípio jurídico segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral, uma vez que, quer o art.º 17.º, n.ºs 1 e 2, quer o art.º 24.º, n.º 2, in fine, visam regular a mesma matéria, isto é, o exercício do direito de audiência prévia no domínio do procedimento administrativo com vista à obtenção do estatuto de proteção internacional.
Acrescente-se que, estando expressamente previsto que as declarações prestadas pelo requerente de asilo valem como audiência prévia, não resta qualquer dúvida que o legislador consagrou tal direito mesmo no domínio do procedimento especial de proteção internacional em que o pedido é efetuado num posto de fronteira.
[…] o legislador constitucional não prescreve um “modelo” de tramitação do exercício do direito de audiência prévia, antes conferindo ao legislador ordinário o poder de determinar o modo como tal direito poderá ser efetivamente exercido. Assim, respeitado o núcleo essencial desta garantia- e que é a concessão da oportunidade ao interessado de apresentar as suas razões fácticas e/ou jurídicas-, deve entender-se que aquele ditame constitucional encontra-se, igualmente, observado.
Por conseguinte, e tomando em consideração a brevíssima alegação realizada pelo Recorrente neste contexto, não se descortina a existência de qualquer inconstitucionalidade no art.º 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo.
Acrescente-se que, a questão colocada pelo Recorrente, respeitante à aplicabilidade do art.º 17.º, n.ºs 1 e 2 ao procedimento especial para os pedidos de proteção internacional apresentados nos postos de fronteira, encontra-se já solucionada de modo estável na Doutrina e na Jurisprudência.
Nesta senda, é de convocar para o caso concreto a visão de CATARINA JARMELA (Audiência prévia nos procedimentos de proteção internacional, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2019, 1.º semestre, Número 1, Centro de Estudos Judiciários, pp. 291 a 315), que, relativamente ao exercício da audiência prévia nos procedimentos atinentes aos pedidos de proteção internacional apresentados nos postos de fronteira, explica:
“(…)
O pedido de protecção internacional apresentado em posto de fronteira por estrangeiro que não preencha os requisitos legais necessários para a entrada em território nacional está sujeito, na fase de admissibilidade, a uma tramitação especialmente célere, pois no prazo máximo de sete dias tem de ser proferida decisão fundamentada sobre esse pedido (cfr. art. 24.º n.º 4, da Lei 27/2008), atendendo à circunstância de que o requerente, normalmente, permanece detido na zona internacional do porto ou do aeroporto (cfr. arts. 26.º n.º 1 e 35.º-A n.º 3, al. a), ambos da Lei 27/2008).
Antes de ser proferida decisão sobre o pedido de protecção internacional é assegurada ao requerente, de acordo com o estatuído no art. 24.º n.ºs 2 e 3, da Lei 27/2008, a prestação de declarações, as quais são reguladas pelo disposto no art. 16.º, dessa Lei 27/2008, remetendo-se, quanto ao modo como tais declarações se devem processar, para o supra referido a este propósito no ponto 2 deste artigo.
É referido de forma expressa no art. 24.º n.º 2, parte final, da Lei 27/2008, que tais declarações "valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado”, ou seja, que a audiência prévia se concentra integralmente no acto da prestação de declarações, De acordo com o prescrito no art. 23.º n,º 1, da Lei 27/2008, aos pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira é aplicável o estatuídos nos arts. 10.º a 22.º, dessa Lei, com as modificações que constam dos arts. 24,º a 26.º, dessa mesma Lei.
Ora, o regime previsto no art. 17.º, da Lei 27/2008 - ao prever a notificação ao requerente do relatório elaborado após a prestação de declarações e que contém os elementos substantivos das declarações prestadas, a fim de o mesmo poder, no prazo de cinco dias, fazer observações, prestar esclarecimentos e/ou confirmar o seu conteúdo -, integra ainda a audiência prévia do interessado, mas é incompatível com a regra consagrada no art. 24.º n.º 2, parte final, desta Lei 27/2008, de que a audiência prévia se concentra integralmente no acto da prestação de declarações, o que implica o afastamento do regime previsto nesse art. 17.º relativamente aos pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira.
Tal conclusão também é corroborada pelo elemento sistemático, pois o prazo de cinco dias concedido pelo n.º 2 desse art. 17.º para o requerente se pronunciar sobre o relatório é incompatível ou, pelo menos, de difícil compaginação com a exigência, prevista no art. 24,º n.º 4, da Lei 27/2008, de prolação de decisão fundamentada sobre os pedidos de protecção internacional apresentados nos postos de fronteira no prazo máximo de sete dias.
De todo o modo, haverá que respeitar as exigências previstas no art. 17.º n.ºs 1 e 3, da Directiva n.º 2013/32/UE, pelo que, no final da prestação de declarações, deve ser elaborado o respectivo relatório ou a transcrição de tais declarações e, nessa mesma ocasião, deve ser dada a oportunidade ao requerente de fazer observações e/ou prestar esclarecimentos relativamente a eventuais erros de tradução ou compreensão constantes do relatório ou da transcrição, bem como deve-lhe ser solicitado que confirme que o conteúdo do relatório ou da transcrição reflectem correctamente a entrevista.
(…).”
Quer isto dizer que, efetivamente, não cabe a aplicação do art.º 17.º da Lei do Asilo aos procedimentos de proteção internacional espoletados nos postos de fronteira. O que não quer dizer, de todo, que não se verifica o dever de ouvir o requerente de asilo. Pelo contrário.
É que, como é consabido, o direito de audiência prévia constitui, no direito europeu, um pilar basilar da atividade administrativa, incluindo, a desenvolvida pelos Estados-Membros no domínio do procedimento de proteção internacional. A propósito do exercício do direito de audiência no âmbito dos procedimentos atinentes ao asilo esclareceu o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão prolatado em 05/11/2014, processo C-166/13, que:
“(…) Em contrapartida, esse direito [o direito de audiência prévia] é parte integrante do respeito dos direitos de defesa, princípio geral do direito da União.
O direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista, de maneira útil e efetiva, no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses (v., nomeadamente, acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 87 e jurisprudência referida).
Nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a regra segundo a qual deve ser dada ao destinatário de uma decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de apresentar as suas observações antes de a mesma ser tomada destina-se a permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. A fim de assegurar uma proteção efetiva da pessoa em causa, essa regra tem, designadamente, por objetivo permitir que esta pessoa possa corrigir um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo (v., neste sentido, acórdão Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 49).
O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada (v. acórdãos Technische Universität München, C-269/90, EU:C:1991:438, n.° 14, e Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 50), constituindo, assim, o dever de fundamentar uma decisão de forma suficientemente específica e concreta para permitir que o interessado possa compreender as razões da recusa oposta ao seu pedido o corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa (acórdão M., EU:C:2012:744, n.° 88).
Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito do referido direito impõe-se mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade (v. acórdãos Sopropé, EU:C:2008:746, n.° 38; M., EU:C:2012:744, n.° 86; e G. e R., EU:C:2013:533, n.° 32).
A obrigação de respeitar os direitos de defesa dos destinatários de decisões que afetam sensivelmente os seus interesses incumbe, assim, em princípio, às Administrações dos Estados-Membros, sempre que estas tomem medidas abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União (acórdão G. e R., EU:C:2013:533, n.° 35).”
Não resta dúvida, pois, quanto à fundamentalidade do direito de audiência prévia. Simplesmente, o exercício do direito de audiência prévia pode ser mais ou menos procedimentalizado, consoante as matérias que estejam em causa, a urgência do procedimento e os elementos substanciais relevantes.
Quer tanto dizer que, como explicita a mais Alta Instância Europeia, está cumprido o dever de audiência, se foi dada ao requerente de proteção internacional a possibilidade de apresentar as suas observações antes de a mesma ser tomada, bem como que permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes. Assim, visa-se permitir que o requerente de proteção internacional possa corrigir um erro ou invoque determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de a decisão ser tomada, não ser tomada ou ter determinado conteúdo. O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada.
Do que vem de expor-se resulta, pois, que o art.º 24.º, n.º 2, in fine, da Lei do Asilo, não afasta, nem dispensa, o direito de audiência prévia. Somente considera que, nestes procedimentos especiais, porque mais simplificados, é no momento da entrevista, em que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão. Neste contexto, o requerente deve ser confrontado na entrevista com as dúvidas que a Administração tenha quanto à viabilidade do seu pedido, bem como com as contradições e incoerências detetadas, mormente, entre o declarado e as informações fidedignas sobre o país de origem, a fim de que o requerente de asilo possa pronunciar-se sobre estes aspetos. Neste sentido milita também SOFIA PINTO OLIVEIRA (Lei do Asilo, Anotada e Comentada, A. Sofia Pinto Oliveira e Anabela Russo, Petrony Editora, dezembro de 2018, pp. 203 a 208; Direito de Asilo, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume VII, coord. Paulo Otero e Pedro Gonçalves, Almedina, abril de 2017, pp. 96 a 101).
Em concomitância, releva salientar que a questão que agora se deslinda nestes autos foi já objeto de apreciação e decisão por este Tribunal de Apelação em mais do que uma ocasião, nomeadamente, no Acórdão proferido em 06/06/2020, no processo n.º 371/19.5BELSB, e do qual, para maior clareza, se transcreve a parte pertinente:
“(…)
Uma vez que o autor apresentou pedido de proteção internacional no Posto de Fronteira do Aeroporto de Lisboa, é-lhe aplicável o procedimento especial da secção II da Lei do Asilo, relativo aos pedidos apresentados nos postos de fronteira.
E no âmbito das regras que regem este procedimento, prevê o artigo 24.º, n.º 2, que “[o] requerente é informado por escrito, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado.”
Como tal, tratando-se de procedimento especial, de tramitação acelerada, não lhe é aplicável o disposto no artigo 17.º, n.º 2, que exige a notificação e defesa do projeto de decisão, bastando-se a audiência prévia do interessado com a sua tomada de declarações.
Vejam-se, decidindo neste sentido quanto a situações semelhantes, os acórdãos deste TCAS de 19/08/2016, tirado no processo n.º 13549/16, e de 05/07/2017, tirado no proc. n.º 13550/16, já citado na decisão recorrida (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/).
E muito recentemente veio o STA confirmar esta orientação em acórdão de 23/05/2019, tirado no processo n.º 01434/18.0BELSB (igualmente disponível em http://www.dgsi.pt/), onde se decidiu que:
“I. O artigo 24.º, n.º 2, da Lei do Asilo, Lei n.º 27/08 de 30.06, não prevê a participação do interessado mediante a exigência de notificação e defesa quanto a projeto de decisão.
II. O que não viola a Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013 nem os artigos 267º nº5 da CRP e 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.”
(…)”
Por seu turno, o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 23/05/2019, no processo n.º 1434/18.0BELSB, tinha já firmado a interpretação do art.º 24.º, n.º 2, in fine, da Lei do Asilo, segundo a qual o art.º 17.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma não era aplicável aos pedidos de proteção internacional formulados nos postos de fronteira, e o exercício da audiência prévia do requerente de proteção internacional deveria ser realizado em sede de prestação das declarações. Realmente, esta Instância Suprema consignou naquele Aresto que:
“(…)
Desde logo bem andou a decisão recorrida ao julgar inaplicável o art. 17º da Lei do Asilo (questão que a 1ª instância julgara prejudicada) e ao manter o enquadramento jurídico dos autos no artigo 24º da mesma Lei, embora depois se distancie da mesma ao entender que o mesmo foi cumprido.
A questão que nos ocupa é, pois, a de saber se as declarações prestadas no procedimento administrativo consubstanciam ou não uma verdadeira audiência prévia para efeitos do citado artigo 24º, e se, por isso, deve ou não proceder-se a uma nova tomada de declarações tendo em conta o projeto de decisão que resultou daquelas declarações.
(…)
O artigo 24º pressupõe que é no momento da entrevista em que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão.
Mas será que tal significa que o requerente tem de ser confrontado na entrevista com as dúvidas que a Administração tenha quanto à viabilidade do seu pedido, isto é, a Administração tem de informar no momento da prestação de declarações qual a intenção que para ela resulta das mesmas?
Uma coisa será, a nosso ver, revelar as contradições e incongruências que detete nas declarações prestadas no momento das mesmas, outra será depois de uma análise ouvir o interessado sobre o projeto de decisão.
É que, não podemos fazer resultar do preceito o que o mesmo não contempla. Isto é, que após a prestação de declarações é dada uma nova fase ao requerente da pronúncia, nem que a fase de prestação de declarações comporta uma audição sobre um projeto de decisão.
Não podemos fazer resultar da lei uma interpretação que a mesma não comporta de acordo com a regras gerais de interpretação da lei previstas no art. 9º do C.C.
(…)
Quanto à inaplicabilidade do art. 17º à situação dos autos há que ter presente que do cotejo dos artigos 23º e 24° da Lei do Asilo com o regime decorrente dos artigos 13° e 16° do mesmo diploma, resulta evidente que o legislador instituiu um regime especial para os pedidos de proteção internacional apresentados em postos de fronteira, com uma tramitação simplificada e célere, com vista a obter uma mais rápida definição da situação jurídica do interessado, estabelecendo que a prestação de declarações pelo interessado, a colher nos termos do artigo 16°, vale como audiência prévia.
O que exclui desde logo a aplicação geral das regras do CPA, nomeadamente os artigos 121º e seguintes que com ele contendam.
Por outro lado, quer da legislação nacional em matéria de asilo e proteção subsidiária, quer das respetivas fontes de direito comunitário, referentes a essa matéria, não consta, expressa ou tacitamente, que após as declarações efetuadas pelo requerente de proteção internacional no posto de fronteira, o SEF deva notificá-lo do sentido provável da decisão que vier a tomar.
Por um lado os parágrafos 1 e 3 do art.° 17° da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, dispõem que : (1)- “Os Estados-Membros devem assegurar a elaboração de um relatório exaustivo e factual do qual constem todos os elementos substantivos de cada entrevista pessoal ou a transcrição de cada entrevista pessoal”; (3)- “Os Estados-Membros devem assegurar que, antes de o órgão de decisão tomar uma decisão, o requerente tenha a entrevista pessoal ou dentro do prazo fixado. Para esse efeito, os Estados-Membros devem assegurar que o requerente seja plenamente informado do conteúdo do relatório ou dos elementos substantivos da transcrição, se necessário com a assistência de um intérprete. Os Estados-Membros solicitam ao requerente que confirme que o conteúdo do relatório ou a transcrição refletem corretamente a entrevista.”
E, não obsta ao referido entendimento o considerando 25.º da mesma Diretiva n.º 2013/32/UE [quanto aos procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional] refere que «para que seja possível identificar corretamente as pessoas que necessitam de proteção enquanto refugiados na aceção do artigo 1.º da Convenção de Genebra ou enquanto pessoas elegíveis para proteção subsidiária, os requerentes deverão ter acesso efetivo aos procedimentos, a possibilidade de cooperarem e comunicarem devidamente com as autoridades competentes de forma a exporem os factos relevantes da sua situação e garantias processuais suficientes para defenderem o seu pedido em todas as fases do procedimento», a que «[a]cresce que o procedimento de apreciação de um pedido de proteção internacional deverá normalmente proporcionar ao requerente, pelo menos, o direito de permanecer no território na pendência da decisão do órgão de decisão, o acesso aos serviços de um intérprete para apresentação do caso se for convocado para uma entrevista pelas autoridades, a oportunidade de contactar um representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e organizações que prestem aconselhamento aos requerentes de proteção internacional, o direito a uma notificação adequada da decisão, a fundamentação dessa decisão em matéria de facto e de direito, a oportunidade de recorrer aos serviços de um advogado ou outro consultor e o direito de ser informado da sua situação jurídica nos momentos decisivos do procedimento, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, bem como, no caso de uma decisão de indeferimento, o direito a um recurso efetivo perante um órgão jurisdicional».
Não podemos dizer que os referidos artigos 16º e 24º da Lei do Asilo não estejam em sintonia com estes preceitos da Diretiva.
Não resulta, pois, das Diretivas comunitárias um dever para os Estados de antes de proferir a decisão sobre os pedidos de proteção internacional em postos de fronteira dar a conhecer ao requerente o sentido provável da decisão.
Nem tal resulta, a nosso ver, da jurisprudência do TJUE nesta matéria.
Pelo que, foram cumpridos na situação dos autos, os referidos preceitos da Lei do Asilo, arts 16º e 24º, na interpretação supra referida, já que a requerente expôs todos os factos que considerou pertinentes expor para fundamentar o seu pedido de proteção, competindo à entidade administrativa ouvir, transcrever e dar a conhecer à requerente de proteção internacional apenas e estritamente o que foi por si declarado/relatado, e caso haja alguma observação ou correção a fazer é lhe dada essa possibilidade, o que efetivamente aconteceu.
(…)
Ora, é inequívoco que o regime legal aplicável é claro ao estabelecer que no âmbito da apreciação do pedido e decisão o requerente da proteção internacional, dentro do prazo de 48 horas, é informado dos seus direitos e obrigações e presta declarações que valem, para todos os efeitos, como audiência prévia do interessado (art. 24.º, n.º 2).
Aliás, dificilmente se poderia conciliar a necessidade de realização de audiência prévia em momento procedimental posterior com o prazo de sete dias exigido pelo art. 24.º para que o Diretor Nacional do SEF profira decisão.
(…)
A falta de previsão no art. 24º nº2 da Lei do Asilo da participação do interessado mediante a exigência de notificação e defesa quanto a projeto de decisão não viola, pois, os referidos preceitos. (…)”

Em face do exposto, acompanhando-se a citada jurisprudência haverá que considerar que, por estarmos no âmbito do procedimento especial de pedido de proteção internacional num posto de fronteira, ao qual é aplicável o regime consagrado nos artigos 23.º e ss. da Lei do Asilo, daí decorre que é no momento da entrevista que o requerente é chamado a prestar declarações, que este tem a oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos relevantes para a decisão.»

Analisado o probatório constata-se que também nestes autos estamos perante um pedido de proteção internacional apresentado num posto de fronteira [factos B) e C)], em que o Recorrente prestou declarações em 20.12.2023 [facto D)] nas quais teve oportunidade de relatar as circunstâncias que subjacentes à sua vinda para território nacional e ao pedido de proteção internacional, tendo-lhe sido solicitadas todas as informações que fossem relevantes para a apreciação do seu pedido. Adiante-se que as referidas declarações foram objeto de transcrição, tendo o Recorrente assinado a referida transcrição, tomando conhecimento da mesma.
Face ao exposto, considerando os termos em que no âmbito deste procedimento especial se exerce o direito de audiência prévia, entendemos que o mesmo foi garantido em consonância com o regime que deriva do art.º 24.º, n.º 2 da Lei do Asilo, havendo, pois, que a este respeito confirmar a sentença recorrida.

4.2. Da falta de fundamentação

No presente recurso o Recorrente sustenta, em suma, que nas suas declarações, especificou as razões pelas quais requerer a concessão de asilo e corre sério risco de vida em caso de ser determinado o seu regresso ao seu país de origem, o Paquistão, mas que na decisão da AIMA não se tomaram em conta, quer para efeitos de asilo, quer para efeito de proteção subsidiária, os factos invocados pelo requerente, desconsiderando-se o destino do Autor e o que lhe poderia suceder em caso de regresso ao país de origem. Entende que tal decisão colocaria em perigo o Autor e, consequentemente, consubstancia a violação do princípio da não repulsão, previsto na 1ª. Parte do n.º 1 do artigo 33.º.
Aduz que a R. deveria ter instruído o processo com informação fidedigna e atualizada quanto ao funcionamento do procedimento de concessão de asilo e às condições de acolhimento no país para onde seria remetido o requerente, considerados seguros recorrendo a fontes credíveis, o que não tendo sido feito corresponde à violação dos direitos, liberdades e garantias que a concretização da retoma a cargo determinará.
Considera que a sentença “julgou improcedente a ação, aderindo, em suma, à fundamentação da decisão da AIMA”, mas que tal não poderia ser porquanto, contrariamente ao disposto no artigo 153.º ex vi artigos 151.º, n.ºs 1, al. d) e 2, e 152.º, n.º 1, al. a) do CPA, a decisão da Ré que indeferiu o pedido da Autora limita-se a considerar inadmissível tal pedido, não o apreciando.
Sustenta que a ação deveria ter sido julgada procedente porquanto “[n]os termos do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, é concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e apátridas que não sejam refugiados mas que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave”.
O exposto revela, tal como sucedia em sede de p.i., uma errónea miscigenação entre a fundamentação formal e a fundamentação substancial, convocando o Requerente/Recorrente os normativos que regulam a primeira e aduzindo que a decisão limita-se a considerar inadmissível o pedido sem o apreciar, mas (também) consubstanciando a circunstância de preencher os pressupostos para a concessão da proteção internacional que requer e que não chegaram a ser analisados pela Recorrido (o erro nos pressupostos).
Contudo, verifica-se que na sentença apenas foram apreciados os vícios de preterição de audiência prévia e de falta de fundamentação. Isto é, a sentença não apreciou a questão de saber se, efetivamente, se verificavam (ou não, como alega o Recorrente) os pressupostos previstos na al. d) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008 para considerar o pedido inadmissível e, consequentemente, se assistia ao Recorrente o direito de asilo ou a proteção subsidiária.
Estamos perante a falta de apreciação (da questão) do erro nos pressupostos, que determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia [artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC]. Sucede que “as nulidades da sentença não são de conhecimento oficioso, carecendo de ser arguidas pelo interessado sob pena de na falta dessa arguição se terem por sanadas” (Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.6.2013, proferido no proc. 7954/10.7TBALM.L1-2), pelo que, porque esta nulidade da sentença não foi suscitada pelo Recorrente, este Tribunal ad quem não pode, oficiosamente, apreciá-la e, se julgasse verificada, proceder ao seu suprimento conhecendo em substituição o erro nos pressupostos de facto.
E, consequentemente, sanada a nulidade por ausência de arguição pelo Recorrente, não pode este Tribunal conhecer um erro de julgamento se, a esse respeito, nada se apreciou ou decidiu na sentença recorrida.
Assim, cumpre a este Tribunal ad quem apreciar agora (apenas) o vício de falta de fundamentação formal, a respeito do qual o tribunal a quo, após discorrer quanto ao dever de fundamentação que “de forma clara e expressa da informação n.º 123/CNARAIMA/2023 [cf. alínea E) dos factos provados], as motivações de facto e de direito que levaram a Entidade Demandada concluir pela inadmissibilidade do pedido de proteção internacional do Autor, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei do Asilo”. Para o efeito, considerou que,
«Desde logo, verifica-se que na respetiva decisão foi ponderada a situação pessoal e concreta do Autor, designadamente toda a factualidade relativa ao seu histórico de vida prévio à sua chegada a Portugal tendo por base o auto de declarações do mesmo [cf. alínea D) e E) dos factos provados].
Nesse âmbito, foi igualmente ponderada e valorada a circunstância de o Autor previamente à sua chegada a Portugal ter residido no Reino Unido (2011), nos Emirados Árabes Unidos (entre 2014-2023) e imediatamente antes da sua chegada a Portugal em Marrocos (durante um período de três meses), tendo os serviços da Entidade Demandada concluído pela existência de uma efetiva ligação do Autor àqueles países.
Mais se diga que na mesma informação foram, igualmente, consideradas informações genéricas da Agência da ONU para Refugiados (“ACNUR”) sobre a específica situação dos aludidos países terceiros, nomeadamente no tocante ao tratamentos dos pedidos de proteção internacional formulados naqueles países, tendo a Ré concluído que os mesmos qualificam como «País terceiro seguro», isto é, o país onde o requerente de asilo tenha permanecido ou transitado antes de chegar a Portugal e onde, comprovadamente, não seja objeto de ameaças à sua vida e liberdade, onde sejam respeitados o princípio de não repulsão e o direito de não ser objeto de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, e onde possa requerer o estatuto de refugiado e, sendo-lhe concedido, receber proteção, nos termos da Convenção de Genebra.
Ademais, verifica-se que por referência aos países terceiros e conforme resulta da informação e decisão dos serviços da Entidade Demandada, não invocou o Autor de forma substanciada quaisquer factos ou circunstâncias concretas que permitam concluir pela existência de ameaças à sua segurança ou liberdade nos aludidos países e, dessa forma, pôr em causa a sua qualificação como “país terceiro seguro”.»
O que se constata é que no presente recurso o Recorrente verdadeiramente não aponta qualquer razão da sua discordância ao assim decidido, antes se limitando a reiterar o que em sede de petição inicial alegara.
Sem prejuízo, dir-se-á que de nenhum erro padece o referido juízo decisório. Com efeito, reiterando-se as asserções feitas pelo Tribunal a quo a respeito do dever de fundamentação dos atos administrativos, conforme exigido pelo artigo 268.º, n.º 3 da CRP e regulado pelo artigo 153.º, do CPA, entende-se que a fundamentação da decisão administrativa consiste na enunciação de forma expressa das premissas fácticas e jurídicas em que a mesma assenta, visando impor à Administração que pondere antes de decidir e, consequentemente, contribuir para uma mais esclarecida formação de vontade por parte de quem tem essa responsabilidade para além de permitir ao administrado seguir o processo intelectual que a ela conduziu. Para tanto basta uma fundamentação sucinta, mas a mesma importa que seja clara, concreta, congruente e contextual.
Assumindo-se como um conceito relativo que se encontra dependente do tipo concreto de cada ato e das circunstâncias concretas em que é praticado, cabendo ao tribunal, em face de cada caso, ajuizar da sua suficiência, entende-se que um ato estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões, de facto e de direito, que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, e optar conscientemente entre a aceitação do ato ou o acionamento dos meios legais de impugnação.
Ora, considerando que o despacho de 22.12.2023 foi proferido sobre a Informação n.º 123/CNAR-AIMA/2023 é nesta que se encontram, por remissão, os fundamentos do ato que considerou inadmissível o pedido do Recorrente.
Assim, constata-se que, após enunciar o circunstancialismo fáctico subjacente ao pedido e as declarações por este prestadas, são estas apreciadas (ponto 13), entendendo-se que, não obstante ter alegado a falta de segurança no Dubai, na verdade o requerente manteve-se ali por 9 anos sem referir ter sofrido qualquer ameaça, tendo tido oportunidade de solicitar proteção internacional quer no Reino Unido, quer em Marrocos, relativamente aos quais também não relatou qualquer ameaça. Dando-se conta das informações da Agência da ONU para Refugiados (“ACNUR”) sobre a situação dos Emirados Árabes Unidos e Marrocos, conclui-se que a pretensão é inadmissível nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008 de 30 de junho “uma vez que o requerente permaneceu em países terceiros seguros, nomeadamente, o Reino Unido, os Emirados Árabes Unidos e Marrocos, não vivendo no seu país de origem há cerca de 9 anos”.
Ou seja, como conclui o Tribunal a quo o ato encontra-se suficientemente fundamentado, de forma clara, expressa e congruente, seja ao nível da factualidade que a Entidade Demandada entende constituir causa da inadmissibilidade do pedido de proteção internacional, seja do enquadramento jurídico da negação da pretensão do A. de obter a concessão de asilo ou proteção subsidiária.
E, consequentemente, não padece a sentença do erro de julgamento que lhe é imputado.

4.3. Da condenação em custas

Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.

5. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
b. Sem custas.



Mara de Magalhães Silveira
Marcelo da Silva Mendonça
Ricardo Ferreira Leite