Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1256/23.6BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:03/27/2025
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:PROCESSO CAUTELAR
ARTIGO 118.º, N.ºS 1, 3 E 5, DO CPTA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO CUMPRIDO PELO REQUERENTE CAUTELAR
ERRO DE JULGAMENTO DO DESPACHO DE RECUSA DE PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL
Sumário:I- O juízo sobre a necessidade de produção de prova em processo cautelar, nomeadamente, se requerida a prova testemunhal, nos termos do artigo 118.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA, deve ter por base os factos concretamente alegados pelas partes, que se mostrem controvertidos e ainda não demonstrados pela prova documental disponível nos autos e/ou no processo administrativo (PA) – e não impugnada.
II- E, dentro desses factos, importam os que se apresentam como relevantes e potencialmente demonstrativos dos critérios de decisão elencados no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.
III- Recusada por despacho (antecedente ou concomitante com a sentença) a produção de prova testemunhal que, face ao caso concreto, se mostrava necessária realizar, tal implica um erro de julgamento sobre a prolação desse mesmo despacho, que deve ser revogado, com a consequente anulação da sentença posterior.
Votação:(C/ VOTO VENCIDO)
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I - Relatório.
J…, doravante Recorrente, que deduziu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria) processo cautelar contra o MUNICÍPIO DE OURÉM, doravante Recorrido, identificando como objecto processual a adopção da providência de suspensão da eficácia do acto do Presidente da Câmara Municipal de Ourém, de 10/05/2023, que deferiu o requerimento de licenciamento de obras de ampliação de um telheiro e construção de um muro de suporte num prédio do Contrainteressado, inconformado que se mostra com a sentença do TAF de Leiria, de 28/03/2024, que decidiu indeferir a providência cautelar requerida por, no essencial, ter julgado inexistir alegação e prova de factos tendentes à comprovação do pressuposto do “periculum in mora”, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
“I. Com assento no processo instrutor foram considerados como indiciariamente provados os factos vertidos sob os n.ºs 1 a 6 e 9 do probatório.
II. Porém, com referência à prova resultante do processo administrativo e por acordo, resultam, ainda provados os factos acima indicados sob os n.ºs 11 a 24, que aqui se dão como integralmente reproduzidos, os quais constituem factos relevantes para a decisão da causa no que à prova do periculum in mora respeita e que não foram levados ao probatório, não obstante terem sido alegados pelo ora recorrente em sede de requerimento cautelar.
III. Com a alegação e prova destes novos factos aditados (acima dados como reproduzidos), o recorrente pretende provar que:
- Os solos onde o contrainteressado pretende intervir, fruto do desaterro ilegal por este efetuado em 2017, se encontram instáveis ocorrendo «sucessivos deslizamento de terras» e não obstante este facto não é apresentado nem exigido estudo geotécnico dos solos – Factos Aditados 12, 13, 18, 19, 23 e 24;
- De acordo com o PDM de Ourém «não haver fundamento nem enquadramento legal para a construção de parte do muro de vedação e suporte de terras, confinante com a via pública, no prolongamento do muro de suporte já existente» - Facto aditado 20 -Da «memória descritiva e justificativa» intitulada «ESTABILIDADE, ESCAVAÇÃO E CONTENÇÃO PERIFÉRICA E CÁLCULOS DE BETÃO ARMADO», se admitir que os trabalhos «possam» «eventualmente» «originar perdas de vidas humanas ou prejuízos materiais avultados» ou que «o terreno não apresente características de acordo com aquelas consideradas em projeto para a profundidade definida» - Factos aditados 22 e 23
IV. Com o aditamento destes novos factos de 11 a 24, que se impõe, o recorrente prova que o seu receio que o desaterro do morro de terras possa causar o desmoronamento e destruição do seu talude (cfr. facto aditado 18) (e não do contrainteressado como se pressupõe na sentença), com a consequente queda e morte do seu carvalho - «Árvore 2» (identificada no relatório técnico junto aos autos), é justificado e fundamentado.
V. Bem como, é justificado e fundamentado o seu receio que o referido carvalho, por via do desaterro, tombe sobre a via pública causando danos para bens e pessoas que por ali circulem.
VI. Por outro lado, tratando-se de um desaterro de um morro de terras instáveis, com cerca de 5 metros de altura, sem precedência de estudo do comportamento das terras a desaterrar (estudo geotécnico), o requerente, com os factos aditados, prova que o receio pela segurança dos seus bens e pela sua segurança e integridade fisica, também, justificados.
VII. Consequentemente, com o aditamento destes novos factos ao probatório, a decisão dos presentes autos só poderá ser outra, isto é, de que o requisito do periculum in mora se encontra preenchido.
VIII. A sentença recorrida ao omitir a inserção da factualidade vertida nos novos factos 11 a 24 no probatório, incorreu em erro de julgamento por incorreta apreciação da prova junta aos autos e deficiente seleção de matéria de facto para efeitos de prova, violando, assim, o n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
IX. O recorrente, no seu requerimento cautelar requereu a produção da prova testemunhal com referência a factos concretos e «com relevância para a decisão da causa», integradores do periculum in mora resultante do não decretamento da suspensão de eficácia do ato suspendendo, designadamente, os factos alegados no requerimento cautelar sob artigos 5.º, 10.º, 14.º a 17.º, 93.º a 117.º, 121.º a 125.º, 129.º, 130.º, 132.º, 144.º, 145.º, 148.º, 245.º a 261.º, 268.º, 270.º, 273.º a 286.º, 288.º, 289.º, 297.º, 298.º e 299.º e que aqui se dão como integralmente reproduzidos;
X. Atendendo aos factos alegados pelo recorrente, duvidas não pode haver que este cumpriu o ónus de alegação dos factos integradores dos elementos constitutivos do direito à obtenção da tutela cautelar, isto é, alegou os factos essenciais necessários à obtenção da tutela cautelar, conforme n.º 1 do artigo 5.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, razão pela qual o Tribunal nunca poderia ter recusado a produção da prova testemunhal.
XI. A factualidade vertida nos artigos do requerimento cautelar acima indicados constitui matéria controvertida, uma vez que toda ela foi impugnada pelo Município de Ourém e pelo contrainteressado.
XII. Acresce que, da produção da prova testemunhal, resultaria não só a prova dos factos essenciais, mas também a prova dos «factos instrumentais» que resultassem «da instrução da causa», bem como «os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar». (n.º 1 do artigo 5.º do CPC novo, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA).
XIII. Só depois de inquiridas as testemunhas à matéria vertida nos artigos do requerimento inicial acima indicados e alguns deles infra reproduzidos, o Tribunal poderia ter dado como provado, ou não provado, o periculum in mora. A prova testemunhal arrolada é útil e necessária à apreciação do requisito do periculum in mora, razão pela qual não poderia ter sido indeferida
XIV. A sentença é, assim, é contraditória nos seus termos: refere que tem se fazer prova dos factos mas nega ao recorrente o direito à produção dessa prova.
XV. «Julgada não provada matéria de facto, quando não foi concedida a possibilidade de produção de prova – que no caso cabia – há erro de julgamento determinante da revogação da sentença.» (TCAN, p. 00278/17.0..., de 02.03.2018).
XVI. «Ora, se cabe ao interessado o ónus da prova dos factos que alega, não lhe pode ser recusada a possibilidade de os provar com vista à demonstração do pressuposto do periculum in mora de que depende para a concessão da providência.» - Acórdão do TCAN, proferido no processo n.º 00014/19.7..., de 12.07.2019.
XVII. O direito à produção de prova decorre do direito a um processo equitativo consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da CRP e no n.º 1 do artigo 2.º do CPTA.
XVIII. A sentença recorrida é, assim, nula por omissão de ato processual com influência na decisão da causa – produção de prova testemunhal -, ou quando assim se não entenda, forçoso será concluir que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, e em erro de direito por violação do preceituado no n.º 1 do artigo 2.º, n.º 3 do artigo 90.º dos n.ºs 1 e 5 do artigo 118.º e do n.º 1 do artigo 120.º, todos do CPTA, bem como, no artigo 5.º do CPC.
XIX. Acresce que, o Tribunal ao negar ao recorrente o direito à prova em sede cautelar, negou-lhe o direito à tutela jurisdicional efetiva consagrada nos n.ºs 4 e 5 do artigo 20.º da CRP, razão pela qual o despacho e a sentença recorridos violam estes normativos, pelo que sofrem de inconstitucionalidade.
XX. O Tribunal nunca notificou o recorrente para exercer o contraditório relativamente ao teor do email do ICNF dirigido ao contrainteressado violando, cujo teor se reproduz e se dá como assente no facto 10 do probatório, resultando, assim, violado o princípio do contraditório previsto n.º 3 do artigo 3.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.
XXI. Não era previsível que o teor deste documento – não contraditado pelo recorrente - viesse a incluir o probatório e muito menos que viesse a influenciar o conteúdo da sentença recorrida, razão pela qual, neste conspecto, a sentença recorrida constitui para o recorrente, uma decisão surpresa.
XXII. Consequentemente, a inclusão do teor do email do ICNF no probatório, bem como a sua consideração para a decisão ora impugnada, constitui uma decisão surpresa para o ora recorrente, razão pela qual a sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615. do CPC.
Assim, e de harmonia com todo o exposto, impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido, bem como a anulação da sentença recorrida, ordenando-se, assim, a baixa dos autos ao Tribunal da 1.ª instância, para que aí sejam levadas a cabo as diligências de prova omitidas, com vista a possibilitar ao ora recorrente a prova dos factos que alegou com vista à demonstração do requisito do periculum in mora.”
O Recorrido apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de contra-alegações inclusa no SITAF):
“1. A alega o Recorrente que é necessário ampliar a matéria de facto para que se possa provar os factos que alegou e constam do PA, e que por si só implicavam a decisão de verificação do pressuposto de periculum in mora.
2. Para além de nem todos os factos para que requer o aditamento tenham sido efetivamente alegados, como por exemplo o do requerido facto a aditar 13 (como o próprio Recorrente implicitamente reconhece no proémio do mesmo), a única questão que a nosso ver verdadeiramente interessará à boa decisão do recurso é de saber se aqueles factos (a aditar, como requerido) e pela sentença considerados irrelevantes para a decisão, importariam efetivamente uma decisão distinta quanto à verificação de uma situação de facto consumado ou quanto a prejuízos de difícil reparação.
3. Basta ter presente os fundamentos da aliás douta sentença recorrida (a pp. 12-19) para compreender que não seria obviamente aqueles factos que provariam a existência de uma situação de facto consumado ou quanto a prejuízos de difícil reparação, e portanto nunca por si mesmo conduziriam necessariamente a uma decisão judicial de verificação do pressuposto de periculum in mora.
4. Eis porque a irrelevância dos factos que agora se pretendem aditar e a decisão que se pretende revogar foi uma decisão acertada inteiramente dentro dos poderes de cognição e de imediação do juiz de primeira instância com a situação concreta sub judice. Pelo que deve ser desestimado o pedido de ampliação da matéria probatória, por inútil e violador dos princípios da economia e celeridade processual.
5. O despacho judicial de indeferimento da prova testemunhal foi indeferido com o fundamento de a mesma incidir sobre factos sobre os quais já existia prova documental.
6. Por exemplo, e como ainda agora nas suas Alegações de recurso relembra a Recorrente a sua primeira testemunha (o Prof. CC) é o autor de um parecer junto para prova de tais factos.
7. Na verdade, o Recorrente não coordena a explicação da decisão judicial de não dar relevância a tais factos por não considerar qualquer deles aptos a provar uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil reparação em abstrato (como fundamentado nas pp. 12 a 19 da sentença), pelo que tal alegação padece de fundamento e não deve ser acolhida;
8. A questão não é tanto, como alega o Recorrente, a de não poder exercer a prova dos factos alegados: é que teria de ter alegado outros factos – o que não pode fazer por não existir qualquer situação material que o permitisse…
9. Portanto, tal decisão judicial compreende-se inteiramente no âmbito do poder de gestão processual, e dos princípios da economia e da celeridade processual, sem em nada ofender nem a tutela judicial efetiva nem o direito à prova, mesmo considerando a natureza urgente do processo cautelar;
10. Não tem razão a alegação do Recorrente de afirmar que a decisão de invocar nos obter dicta da sentença um email do ICN, documento junto ao processo administrativo e invocado na mesma, violaria o princípio do contraditório, porquanto o mesmo foi apresentado com a Contestação do Município e decorre do direito processual que tinha qualquer parte 10 dias para se pronunciar sobre o mesmo, nomeadamente arguido a falta de genuinidade, falsidade, etc, ou se pronunciar sobre ele.
11. Com efeito, foi o Recorrente, enquanto requerente cautelar notificado da junção aos autos do processo administrativo, nos termos do n.º 3 do art. 82.º CPTA, pelo que bem sabia ou podia saber e contar que daquele constava aquele documento (a contrario do art. 427.º CPC, aplicável ex vi art. 1.º CPTA), porquanto deve ser indeferido a sua alegação de violação do princípio do contraditório.”
O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, e em primeiro lugar, a seguinte questão:
- Se, nos termos clamados pelo Recorrente nas suas conclusões recursivas, ocorre erro de julgamento quanto ao despacho de 14/12/2023, que, cronologicamente antecedendo à sentença recorrida, decidiu recusar a produção de prova testemunhal quanto a factos que, tendo sido alegados em sede do requerimento inicial, tenderiam a, potencialmente, comprovar o pressuposto do “periculum in mora”.
***
III - Matéria de facto.
Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação de facto:
“1. O CI apresentou nos serviços da Entidade Requerida pedido de “licenciamento para legalização de construção de um telheiro, acabamentos e ampliação para arrecadações.” (cfr. fls 83 do pa).
2. No processo de licenciamento identificado em 1, consta de informação interna da Entidade Requerida que como antecedentes existe “auto de notícia nº. ……. – por “ter levado a efeito há cerca de 4 anos, na referida morada, uma operação urbanística, que consiste num desaterro e construção de um telheiro com cerca de 52 m2 (8x6.50), sem possuir alvará de licença para tal.” (cfr. fls 94 do pa).
3. No processo de licenciamento identificado em 1, consta “auto de vistoria nº. …” realizada a 6 de outubro de 2022, onde consta que “o telheiro e o muro de suporte de terras a legalizar encontram-se concluídos.” (cfr. fls 94 do pa).
4. No processo de licenciamento identificado em 1, consta “auto de vistoria nº. ……” realizada a 6 de outubro de 2022, como “obras de correção”:
[cf. imagem no original]
(cfr. fls 94 do pa).
5. No processo de licenciamento identificado em 1, consta em informação interna:
[cf. imagem no original]
(cfr. fls 113 e 114 do pa).
6. No processo de licenciamento identificado em 1, extrai-se existir na sequência das obras de correção propostas e identificadas em 5 que ter sido elaborado pelo CI uma “adenda à memória descritiva” de onde se extrai que:
[cf. imagem no original]
(cfr. fls 146 e 147 do pa).
7. Em 01.08.2022, a Entidade Requerida dirigiu ofício ao Requerente de onde constava ato administrativo referente a “posse administrativa” referente a carvalho, sito na ... 4, lugar de F…, freguesia de .... (cfr. documento nº. 1 junto com o r.i).
8. O ato administrativo identificado em 7, foi suspenso através da providência cautelar com o processo nº. 760/22.8... (cfr. documento nº. 2 junto com o r.i).
9. O pedido apresentado pelo CI à Entidade Requerida foi deferido respeitante ao processo de licenciamento identificado em 1. (cfr. fls 349 do pa).
10. Em 08 de março de 2022, relativamente aos carvalhos do Requerente emitiu informação em e-mail o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, IP, de onde se extrai o seguinte:
[cf. imagem no original]
(cfr. fls 238 do Sitaf).
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Indiciariamente inexistem factos dados como não provados relevantes para a boa decisão da causa.
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Motivação:
Os factos que supra se consideraram indiciariamente provados resultaram da vontade concordante das partes conjugada com os documentos que respetivamente foram identificados.”
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IV - Fundamentação de Direito.
É tempo de perscrutar se, nos termos clamados pelo Recorrente nas suas conclusões recursivas, ocorre erro de julgamento quanto ao despacho que, cronologicamente antecedendo à sentença recorrida, decidiu recusar a produção de prova testemunhal quanto a factos que, tendo sido alegados em sede do requerimento inicial, tenderiam a comprovar o pressuposto do “periculum in mora”.
O Recorrente, em conclusões de recurso, assevera que importava produzir tal meio de prova a propósito do alegado nos artigos 5.º, 10.º, 14.º a 17.º, 93.º a 117.º, 121.º a 125.º, 129.º, 130.º, 132.º, 144.º, 145.º, 148.º, 245.º a 261.º, 268.º, 270.º, 273.º a 286.º, 288.º, 289.º, 297.º, 298.º e 299.º do requerimento inicial.
Importa, pois, sindicar se de tal panóplia argumentativa é possível extrair, ou não, factos relevantes que, sendo submetidos à requerida prova testemunhal, cuja produção foi recusada pelo Tribunal a quo, terão aptidão/potencialidade para fundamentar o pressuposto do “periculum in mora”, tendo presente, ainda, que as contrapartes deduziram oposição e impugnaram os factos alegados pelo Recorrente.
Como se constata pela discriminação supra, é inegável que o Recorrente lança nas conclusões recursivas um vasto conjunto de artigos (limitando-se, ali, à sua indicação numérica) que, no seu entender, se apresentam com potencialidade probatória.
Acontece que, apesar da vastidão do n.º de artigos indicados genericamente na respectiva conclusão recursiva, não podemos deixar de correlacionar tal circunstância com a intenção mais precisa e esclarecida que o próprio Recorrente acaba por deixar transparecer no cerne da motivação do recurso, sobretudo, nas páginas 09 a 11 da peça recursiva, pois, referindo-se aos “factos vertidos [nos] artigos do requerimento cautelar integradores do periculum in mora e sobre os quais o requerente pretendia produzir prova testemunhal”, chegou mesmo a destacá-los de modo mais cirúrgico numa tabela, nesta indicando os artigos 245.º a 253.º, 255.º (que até aqui correspondem ao capítulo específico do “periculum in mora” alegado em sede do requerimento inicial), 273.º, 274.º, 277.º, 278.º e 285.º do requerimento inicial.
Pois bem, é então sobre os artigos elencados no parágrafo precedente que importa averiguar se encerram matéria de facto susceptível de ser sujeita a prova testemunhal em ordem à eventual consideração do pressuposto do “periculum in mora” (seja na perspectiva do fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado, seja pelo prisma da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses do ora Recorrente) e, de entre os artigos assinalados, se todos ou só alguns ou parte deles.
a) No que toca ao artigo 245.º do requerimento inicial, julgamos que, no tocante à existência do morro, desaterro de terras, respectiva altura e sua localização genérica, são elementos factuais extraíveis do teor dos pontos 1.º, 4.º e 5.º do probatório da sentença recorrida, não se vendo necessidade de sobre os mesmos ser produzida prova testemunhal;
Diferente é já o excerto do artigo 245.º que diz respeito às confrontações mais específicas desse morro e aos elementos físicos na sua envolvência, nomeadamente, no que importa saber: se o morro, a poente, dá para a via pública designada ...…, em F…, a qual dá acesso ao centro da povoação, a diversas habitações, a diversos prédios rústicos, por onde circulam viaturas ligeiras e pesadas, tratores agrícolas e pessoas a pé e, a norte, com o logradouro da casa do Recorrente, onde se encontram os dois carvalhos, pois, de tal factualidade, advém relevância para a ponderação dos riscos que o Recorrente alude em consequência de eventual fragilidade e queda dos carvalhos.
Impõe-se, por conseguinte, a produção da prova testemunhal requerida sobre tal factualidade.
b) No que concerne aos artigos 246.º a 253.º, 255.º, 273.º, 274.º, 277.º, 278.º e 285.º do requerimento inicial, vamos analisá-los em conjunto, pois dizem respeito à questão dos trabalhos aprovados pelo acto suspendendo e os alegados efeitos ou correlação sobre o denominado “...” e propalados problemas geotécnicos, que, no entender do Recorrente, justificam os seus receios, que é como quem diz o pressuposto do “periculum in mora”.
O Recorrente, em parte, sustenta tal factualidade num alegado relatório técnico que diz ter junto ao processo como doc. n.º 5, que, todavia, não se vislumbra como apresentado no SITAF conjuntamente com a p.i. (nem se verifica que tivesse sido ordenada a sua junção posterior), mas que, de todo o modo, a factualidade alegada em função do mesmo acabou por ser abrangida pela impugnação factual das contrapartes, que só aceitaram o que resulta do PA, acrescendo ainda dizer que os factos que se possam extrair dos citados artigos não foram de modo algum contemplados pela sentença recorrida, seja nos factos provados, seja nos factos não provados.
Impõe-se, portanto, destacar o que, do ponto de vista estritamente factual, abstraído dos juízos conclusivos/opinativos e dos juízos/factos jurídicos, de tais artigos do requerimento inicial é ainda possível ser considerado como factualidade potencialmente tendente ao preenchimento do pressuposto do “periculum in mora”.
Nesta senda, face ao alegado nos supra citados artigos do requerimento inicial (incorporados na tabela elaborada pelo próprio Recorrente no âmbito da motivação recursiva), consideramos susceptíveis da requerida prova testemunhal a seguinte factualidade (ainda controversa):
1.º - As obras implicam trabalhos de desaterramento no terreno adjacente ao “...”;
2.º - O “...” encontra-se implantado no talude existente no terreno do ora Recorrente e junto à ...…, entre o limite desse terreno e o morro de terras a desaterrar;
3.º - A distância do “...” ao talude sobre o caminho público (lado Norte) é de 2,0m e a distância do “...” ao terreno adjacente (sujeito a desaterramento) é de 1,4m, contado a partir do tronco da árvore;
4.º - As terras serão movimentadas na proximidade do “...”;
5.º - A remoção de terras do morro do Contrainteressado elimina, pelo menos, 40% do volume radicular do “...”;
6.º - Com a perda de 40% de volume radicular, o “...” perde sustentação;
7.º - O desaterramento corta as raízes do “...” na proximidade do seu tronco;
8.º - O desaterro do morro de terras implica a supressão do talude do terreno;
9.º - Os muros de suporte de terras autorizados a construir incorporam (ou não) sistemas de drenagem/recolha de águas no tardoz desses muros.
Perante o conjunto factual supra elencado, a prova documental existente nos autos ainda não possibilita, nem sequer de modo perfunctório, cotejar com rigor e certeza todos os aspectos da factualidade atrás enumerada, mostrando-se, com efeito, necessário que o Tribunal a quo realize as diligências de prova que considere necessárias ao apuramento daquele mesmo complexo factual (cf. artigo 118.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA), mormente, através da requerida produção de prova testemunhal.
Aliás, a talhe de foice, ainda que nos encontremos na estrita sindicância do despacho recorrido, não é despiciendo evidenciar que a necessidade de produção de prova testemunhal ainda se agudiza mais em função do próprio discurso fundamentador da sentença recorrida, que, no que ao “periculum in mora” diz respeito, afirmou o seguinte:
“A acrescer, não pode o Requerente ter a pretensão de que a sua árvore se alimente e respire (o que de todo o modo nem indiciariamente nem provou) em terreno vizinho.
Pelo que, julga-se não verificado este pressuposto em relação à árvore nº. 1.
No que diz respeito à árvore nº. 2, defende o Requerente que este se encontra no morro de terras que está previsto desaterrar o que colocará a capacidade de sustentação da árvore em perigo.
Para além do risco de queda, a retirada do talude – mais uma vez se diga – no pressuposto de ser da propriedade do CI, irá nas palavras do Requerente implicar a “remoção importante do sistema radicular, com cálculo estimado em pelo menos 40% do volume radicular da árvore.”
Aquilo que alega, portanto, o Requerente é que 40% do sistema radicular daquela árvore e que se encontra no subsolo se encontra no talude do CI, assim, e sendo o sistema radicular o coletor da solução nutritiva do solo, ou seja, a forma como a árvore através da raízes mais novas absorve a água e os nutrientes do solo para que cresça ou se mantenha viva depende em parte do solo da propriedade de terceiro.
Todavia, não prova indiciariamente que assim seja.” – (sublinhados nossos).
Isto é, por um lado, o Tribunal a quo, com o despacho de recusa de produção de prova testemunhal, retira ao ora Recorrente a possibilidade de demonstrar determinados factos e, por outro lado, aquando da prolação da sentença, fundamenta a falta de integração do pressuposto do “periculum in mora” com a ausência de prova indiciária desses mesmos factos, que, potencialmente, se instruídos e comprovados, até poderiam contribuir para o convencimento do julgador de que tal pressuposto, afinal, até se verificaria (segundo a perspectiva facto-jurídica do Recorrente, claro está), juízo esse que, todavia, o citado despacho de recusa acabou por comprometer.
Não se pode admitir que assim seja, isto é, que prevaleça tal incongruência e erro quanto à abordagem da 1.ª instância sobre as possibilidades de instrução e de utilização de meios de produção de prova em processo cautelar, tendo presente o disposto no artigo 118.º, n.ºs 1, 3 e 5, do CPTA.
Em consequência, conclui-se que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao recusar a produção de prova testemunhal requerida pelo Recorrente, pois, como dissemos, os autos ainda não continham toda a prova, ainda que sumária, necessária à cabal decisão do requerimento cautelar, sobretudo, no que tange à aquisição completa de factos alegados em sede desse requerimento e potencialmente integradores do pressuposto do “periculum in mora”, violando o despacho de recusa de tal meio probatório o disposto no artigo 118.º, n.ºs 1, 3 e 5, do CPTA.
Neste sentido, entre outros, veja-se o acórdão do TCAN, de 12/07/2019, proferido no processo sob o n.º 00014/19.7..., consultável em www.dgsi.pt, do qual se destaca o seu sumário, como segue:
“I - O juízo da necessidade da realização de diligências de prova, incluindo a produção da prova testemunhal requerida pelas partes, que compete ao juiz no âmbito cautelar, nos termos do disposto no artigo 118º nº 1 do CPTA, haverá de ser tomado tendo por base os factos concretos que se mostrem controvertidos, designadamente por terem sido alvo de impugnação na oposição, e dentro desses os que importem para a decisão da causa em conformidade com os critérios decisórios insertos no artigo 120º do CPTA.
II – Se cabe ao interessado o ónus da prova dos factos que alega, não lhe pode ser recusada a possibilidade de os provar com vista à demonstração do pressuposto do periculum in mora de que depende para a concessão da providência cautelar.”
No mesmo sentido, ainda, atente-se no acórdão deste TCAS, de 13/02/2025, tirado no processo sob o n.º 441/23.5..., disponível em www.dgsi.pt, de que o ora Relator no mesmo interveio como Adjunto, enfatizando-se o ponto I do seu sumário, nos seguintes termos:
“I - A omissão de diligências de prova que possa afetar o julgamento da matéria de facto, acarreta a anulação da sentença por défice instrutório”.
E, a propósito, também o acórdão deste mesmo TCAS, de 04/03/2021, prolatado no processo sob o n.º 248/20.1..., consultável em www.dgsi.pt, do qual resulta o seguinte sumário:
“I – O julgamento de determinada factualidade como não provada após o indeferimento do pedido de produção de prova sobre a mesma não constitui fundamento de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas sim erro de julgamento.
II – Essa recusa de produção de prova viola o direito à prova.
III - O juízo que se possa efetuar sobre a probabilidade do Requerente vir a lograr provar a factualidade que lhe compete provar, com recurso a prova testemunhal, por declarações de parte ou por confissão, não constitui fundamento para a sua rejeição.
IV – A celeridade e a sumariedade que caraterizam o processo cautelar não justificam que se exija à parte sobre a qual recai o ónus de prova dos factos que integram os pressupostos da tutela cautelar, a sua prova através do meio de prova documental por ser mais expedito.”
Tendo presente a procedência do aludido erro de julgamento, deve ser revogado o despacho de 14/12/2023 que indeferiu a produção da prova testemunhal requerida e, por consequência, anulada a sentença proferida, devendo os autos retornar à 1.ª instância para a realização, nomeadamente, da diligência instrutória nos termos referidos no presente acórdão, com posterior prolação de sentença cautelar, se a tanto nada mais, entretanto, obstar.
Anulada que fica a sentença recorrida, com o retorno dos autos à 1.ª instância e, necessariamente, com o que isso implica na prolação de nova decisão, mostra-se prejudicado o conhecimento de nulidades e de erros de julgamento assacados contra tal sentença.
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Custas em ambas as instâncias a cargo do Recorrido – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O juízo sobre a necessidade de produção de prova em processo cautelar, nomeadamente, se requerida a prova testemunhal, nos termos do artigo 118.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA, deve ter por base os factos concretamente alegados pelas partes, que se mostrem controvertidos e ainda não demonstrados pela prova documental disponível nos autos e/ou no processo administrativo (PA) – e não impugnada.
II - E, dentro desses factos, importam os que se apresentam como relevantes e potencialmente demonstrativos dos critérios de decisão elencados no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.
III - Recusada por despacho (antecedente ou concomitante com a sentença) a produção de prova testemunhal que, face ao caso concreto, se mostrava necessária realizar, tal implica um erro de julgamento sobre a prolação desse mesmo despacho, que deve ser revogado, com a consequente anulação da sentença posterior.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se o despacho de 14/12/2023 e anulando-se a sentença recorrida, mais se determinando a baixa dos autos à 1.ª instância para que aí sejam realizadas as diligências de prova requeridas nos termos fixados no presente acórdão, seguindo-se, depois, a prolação de nova decisão.
Custas nas instâncias a cargo do Recorrido.
Registe e notifique.
Lisboa, 27 de Março de 2025.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Lina Costa – (1.ª Adjunta)
Joana Costa e Nora – (2.ª Adjunta)


Declaração de voto
Vencida.
Não acompanho a decisão que fez vencimento, não só porque não foram alegados factos constitutivos de uma situação de periculum in mora, mas também por, no caso, não ter cabimento a produção de prova testemunhal.
Quanto ao periculum in mora, o requerente apenas alega a morte das árvores existentes na sua propriedade, caracterizando-a como um dano de difícil reparação, que faz decorrer do risco de queda das mesmas, provocado pela remoção do morro de terras e pela construção do muro de betão armado. Todavia, como a própria sentença recorrida reconhece, ainda que se demonstrasse o risco de queda das árvores, face à alegação do requerente, não estaríamos perante um prejuízo de difícil reparação, dado que as mesmas têm um valor patrimonial, sendo susceptíveis de avaliação pecuniária para efeitos de ressarcimento através de indemnização. E, assim sendo, negaria provimento ao recurso por falta do pressuposto do periculum in mora, atendendo a que os pressupostos para o decretamento de providência cautelar são de verificação cumulativa.
Quanto à produção de prova testemunhal que o Acórdão entende dever ter lugar, para além de a mesma se mostrar desnecessária, atenta a falta de verificação do pressuposto do periculum in mora, a sua desnecessidade decorre ainda da natureza da factualidade em causa. Com efeito, saber "se o morro, a poente, dá para a via pública designada ..., em ..., a qual dá acesso ao centro da povoação, a diversas habitações, a diversos prédios rústicos, por onde circulam viaturas ligeiras e pesadas, tratores agrícolas e pessoas a pé e, a norte, com o logradouro da casa do Recorrente, onde se encontram os dois carvalhos" não é relevante nesta sede cautelar porquanto apenas importa aqui aferir da existência de prejuízos de difícil reparação para o requerente, e não para terceiros. Acresce que a factualidade a que se refere o Acórdão (1.º - As obras implicam trabalhos de desaterramento no terreno adjacente ao “...”; 2.º - O “...” encontra-se implantado no talude existente no terreno do ora Recorrente e junto à ..., entre o limite desse terreno e o morro de terras a desaterrar; 3.º - A distância do “...” ao talude sobre o caminho público (lado Norte) é de 2,0m e a distância do “...” ao terreno adjacente (sujeito a desaterramento) é de 1,4m, contado a partir do tronco da árvore; 4.º - As terras serão movimentadas na proximidade do “...”; 5.º - A remoção de terras do morro do Contrainteressado elimina, pelo menos, 40% do volume radicular do “...”; 6.º - Com a perda de 40% de volume radicular, o “...” perde sustentação; 7.º - O desaterramento corta as raízes do “...” na proximidade do seu tronco; 8.º - O desaterro do morro de terras implica a supressão do talude do terreno; 9.º - Os muros de suporte de terras autorizados a construir incorporam (ou não) sistemas de drenagem/recolha de águas no tardoz desses muros) respeita a matéria de natureza técnica, objecto de prova pericial (cfr. artigo 388.º do Código Civil), sendo certo que não é admissível a prova pericial em sede cautelar (cfr. artigo 118.º, n.º 3, do CPTA).
Joana Costa e Nora