Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:137/22.5BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:07/03/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:INTERESSE EM AGIR
AUTOTUTELA DECLARATIVA E EXECUTIVA
INDEMNIZAÇÃO INCUMPRIMENTO OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DO LOCADO
Sumário:I - Tem sido jurisprudência constante dos tribunais superiores que, em face dos artigos 25.º e 28.º da Lei n.º 81/2014 de 19 de dezembro, “[a]tenta a circunstância do Recorrente assumir as vestes de instituto público, dotado de poderes de autoridade, bem como, do contrato de arrendamento apoiado assumir, legalmente, a natureza de um contrato administrativo, ao Recorrente, enquanto ente público-senhorio, assiste um princípio de autotutela declarativa e executiva no âmbito do contrato em causa, a partir da qual, se verificados os pressupostos legais, o seu órgão executivo detém um complexo de poderes-deveres funcionais, indeclináveis ou irrenunciáveis, atento o princípio da legalidade.”, pelo que tem “competência legal para decidir administrativamente a resolução contratual, a desocupação e entrega da habitação, voluntária, ou o despejo, se assim não for cumprido pelos arrendatários, assim como, para a emissão da certidão do valor em dívida por rendas não pagas, sem necessidade de, para almejar tais pretensões, ter que recorrer à via judicial, faltando, portanto, o pressuposto processual do interesse em agir” (Ac. deste TCA Sul de 15.5.2025, proferido no processo 322/22.5BESNT);
II - A referência a rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, nos termos do artigo 28.º, n.º 3 da Lei n.º 81/2014, integra todos os valores que o senhorio poderá exigir no contexto do incumprimento do contrato de arrendamento, da respetiva resolução e da mora na entrega do prédio arrendado subsequente à resolução.
III - De tal forma que haverá que considerar que o legislador (também) atribuiu autotutela quanto às quantias devidas nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1045.º do CC, carecendo a Recorrente de interesse em recorrer aos tribunais para que declarem e, sendo o caso, executem, o direito a ser indemnizada no caso de incumprimento pelo locatário da obrigação de restituir o locado.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa, Subsecção Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. Relatório

Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P. (doravante A. ou Recorrente), nos presentes autos em que é R./Recorrido, J…, vem interpor recurso do saneador-sentença, proferido em 24.4.2024 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que, julgando verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir, absolveu o R. da instância no âmbito da ação administrativa por si instaurada, na qual peticionou,
“a) declarar-se resolvido o contrato de arrendamento habitacional celebrado com o Réu;
b) ordenar-se a entrega da fração autónoma individualizada nos autos, imediatamente, livre e devoluta de pessoas e bens, por parte do Réu;
c) Condenar-se o Réu no pagamento das rendas vencidas e não pagas no montante de 4.667,63€ (quatro mil seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), e vincendas até ao trânsito em julgado da sentença, acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral pagamento.
d) Condenar-se o Réu a pagar ao Autor, nos termos do artigo 1045.º do Código Civil, uma indemnização em montante correspondente ao dobro do valor da renda em vigor por cada mês que perdurar a ocupação do imóvel desde o trânsito em julgado da decisão judicial que, conforme supra se requer, resolva o contrato de arrendamento e até à efetiva entrega do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, ao Autor.”
Apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões,
A) O Tribunal "a quo" por douta sentença de 24.04.2024, "julgou procedente a exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolveu o Réu da instância."
B) Entendeu o douto Tribunal que o Autor, ora Recorrente, "dispõe de poderes de autotutela administrativa e executiva, que lhe permitem o recurso à execução de quantias pecuniárias, por força da promoção da emissão de certidão de dívida e da prática de ato administrativo, tal como previsto no artigo 179.° do CPA, sem ter de se socorrer dos tribunais para a respetiva emissão do título executivo e para a respetiva cobrança coerciva. (...)".
C) S.m.o., o Recorrente não pode concordar com douto entendimento.
D) Em causa está um contrato de arrendamento habitacional, de cariz social, ao qual é aplicável o regime jurídico do arrendamento apoiado, regido pela Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, na redação conferida pela Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto, pelos regulamentos nesta previstos e pelo Código Civil (cf. artigos 17.° e 39.° da citada Lei).
E) O Recorrente, IHRU, é um instituto público integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, que se enquadra no âmbito de aplicação do n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, na redação conferida pela Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto.
F) A Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, foi objeto de profundas alterações por parte da Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto, com particular relevância para os artigos 6.°, 17.°, 24.°, 25.°, 26.°, 28.°, 34.° e 37.° e adicionou o artigo 28.°-A.
G) Enquanto que, na sua redação originária da Lei n.° 81/2014, de 19.12, o n.° 1 do artigo 17.° estabelecia que "O contrato de arrendamento apoiado se rege pelo disposto na presente lei e, subsidiariamente, pelo Código Civil e pelo NRAU.", com a alteração da Lei n.° 32/2016, de 24.08 passou a dizer que "O contrato de arrendamento apoiado rege-se pelo disposto na presente lei, pelos regulamentos nela previstos e pelo Código Civil.".
H) Deste modo, o Código Civil rege agora os contratos de arrendamento apoiado em igualdade de circunstâncias com o disposto na própria Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, e com os regulamentos nela previstos.
I) No que se refere ao artigo 25.°, veja-se que a Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto, veio introduzir a referência expressa aos artigos 1083.° e 1084.° do Código Civil no contexto das causas de resolução do contrato de arrendamento, que não existia anteriormente.
J) Com a alteração do n.° 1 do artigo 25.°, deu-se cobertura legal expressa à resolução do contrato pelo senhorio com fundamento no não pagamento de rendas ou pela mora do arrendatário, ao abrigo dos n.°s 3 e 4 do artigo 1083.° do Código Civil, e
K) Revogou-se o n.° 3 do artigo 25.° que estatuía "Na comunicação referida no número anterior, o senhorio deve fixar o prazo, no mínimo de 60 dias, para a desocupação e entrega voluntária da habitação, não caducando o seu direito à resolução do contrato ainda que o arrendatário ponha fim à causa que a fundamentou".
L) Outra das profundas modificações introduzidas pela Lei n.° 32/2016, de 24.08, foi o artigo 28.° sob a epígrafe "Despejos", que o n.° 1 da redação originária da Lei n.° 81/2014, de 19.12, estabelecia que "Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação à entidade detentora da mesma referida no n.° 1 do artigo 2.°, cabe a essa entidade ordenar e mandar executar o despejo, podendo, para o efeito, requisitar as autoridades policiais competentes." e na redação, atual, dispõe que "Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.° 1 do artigo 2.°, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.".
M) Ou seja, no n.° 1 do art.° 28.° da Lei n.° 81/2014, de 19.12, onde anteriormente se dizia que "cabe a essa entidade ordenar e mandar executar o despejo, podendo, para o efeito, requisitar as autoridades policiais competentes", consta agora que "cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei" (sublinhado nosso).
N) Ao retirar a possibilidade de "ordenar e mandar executar o despejo" e remeter para "os procedimentos subsequentes, nos termos da lei", o legislador está a remeter os senhorios para o cumprimento do disposto no Código Civil e nas leis de processo, o que aliás se coaduna na perfeição com as já mencionadas alterações operadas no n.° 1 do artigo 17.°, e n.° 1 do artigo 25.° da citada Lei.
O) Também, no âmbito da alteração ao n.° 1 do artigo 28.°, foi suprimida a possibilidade de os senhorios requisitarem as autoridades policiais competentes para o despejo coercivo dos imóveis.
P) Considerando em conta as implicações e as dificuldades de ordem prática inerentes a qualquer ação de despejo, muitas vezes aqui exponenciadas pelo contexto muito específico do património habitacional em causa, sempre seria impensável para qualquer das entidades enumeradas no n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 81/2014, de 19.12, a realização de qualquer despejo sem o apoio das autoridades policiais.
Q) Só se vislumbra um motivo, racional e objetivo, para o legislador ter suprimido esta possibilidade de requisição das autoridades policiais: o legislador optou por afastar o despejo administrativo, enveredando pelo despejo pela via judicial (onde a possibilidade de recurso às autoridades policiais já está expressamente prevista nos artigos 757.° e 861.° do CPC).
R) Por fim, e relativamente ao artigo 34.°, há que realçar a revogação dos n.°s 7 e 8 por parte da Lei n.° 32/2016 de 24 de agosto.
S) Com a alteração e revogação destes normativos o senhorio deixou de poder obter título bastante para a desocupação de habitação e, consequentemente, proceder ao despejo administrativo, logo, se conclui que as alterações introduzidas pela Lei .° 32/2016, de 24.08 na Lei n° 81/2014, de 19.12, suprimiu o despejo administrativo e, consequentemente, a impossibilidade do Recorrente o realizar.
T) De referir, ainda, que a modificação introduzida pela Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto, no artigo 25.° da sob a epígrafe "Resolução pelo senhorio" veio introduzir a referência expressa aos artigos 1083.° e 1084.° do Código Civil no contexto das causas de resolução do contrato de arrendamento, dando cobertura legal expressa à resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio com fundamento no não pagamento de rendas ou pela mora do arrendatário, ao abrigo do disposto no artigo 1083.°, n.°s 3 e 4, do Código Civil.
U) Em suma, à luz do supra exposto, é entendimento do Recorrente que, relativamente aos factos "sub judice", existiu uma incorreta interpretação e aplicação das normais legais aplicáveis por parte do Tribunal "a quo".
V) O interesse em agir constitui um pressuposto processual autónomo, real, atual e meritório do sistema jurídico.
W) Como salienta Carlos Cadilha, "o interesse em agir, embora não se encontre expressamente consagrado na lei processual, tem sido entendido pela jurisprudência e pela doutrina como um pressuposto autónomo, distinto da legitimidade ativa, e que se traduz na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a ação", (Cadilha, 05/2021) Cadilha, C. F. (2021) Dicionário de Contencioso Administrativo".
X) O Professor Antunes Varela, defendendo nomenclatura diversa "necessidade de tutela judiciária», refere que "relativamente ao Autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjetivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a Acão - mas não mais do que isso."
Y) Deste modo, impõe-se ao Recorrente recorrer ao tribunal para fazer valer as suas pretensões, improcedendo deste modo a exceção da falta de interesse em agir invocada pelo Tribunal "a quo".
Z) Prevê, ainda, o artigo 28.°-A, introduzido Lei n.° 32/2016, de 24.08, sob a epígrafe "Resolução alternativa de conflitos" que "As entidades locadoras podem recorrer à utilização de meios de resolução alternativa de conflitos para resolução de quaisquer litígios relativos à interpretação, execução, incumprimento e invalidade de procedimentos na aplicação da presente lei, sem prejuízo do recurso ao tribunal sempre que não haja acordo entre as partes".
AA) A competência dos tribunais administrativos para tais ações está expressamente consignada no artigo 17.°, n.° 3, da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro e o artigo 1047.° do Cód. Civil.
BB) De todo o modo, sem prescindir quanto ao supra exposto, mesmo que os senhorios dispusessem de meios de autotutela declarativa e executiva para alcançar os fins visados com a ação instaurada, o que, como já vimos, não sucede, nem por isso se deverem considerar impedidos de recorrer aos meios judicias para obter o pretendido despejo.
CC) Sob pena de violação do princípio constitucional do "acesso ao direito e princípio da tutela jurisdicional efetiva" que se encontra consagrado no artigo 20.° da Constituição da República, nos termos do qual "a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos...".
DD) A interpretação do disposto no artigo 28.° da Lei n.° 81/2014, de 19.12, no sentido de que, concedendo autotutela ao senhorio, exclui a possibilidade de recorrer às instâncias jurisdicionais para a defesa dos seus interesses e direitos legítimos, é violadora daquele princípio constitucionalmente consagrado.
EE) Por outro lado, o Recorrente tem, como qualquer outra pessoa coletiva ou singular, a garantia de aceso aos tribunais, consagrado no artigo 2.° do C.P.C., nos termos do qual tem o direito de obter uma decisão judicial que aprecie a sua pretensão e que a faça executar, sendo certo que, nos termos do mesmo preceito, a todo o direito correspondente a ação adequada a obter o reconhecimento do invocado direito.
FF) Ademais, ao arrendamento a que respeitam os presentes autos é aplicável o regime jurídico do arrendamento apoiado, o qual, como acima se referiu, é regido pela Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, pelos regulamentos nesta previstos e pelo Código Civil (art. 17.°, n.° 1 e artigo 39.°).
GG) Acresce que, s.m.o, os Acórdãos invocados na sentença proferida não se mostram aptos, a solucionar a questão aqui em apreço.
HH) Com efeito, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07/12/2023, proferido no Proc. n.° 02836/18.7BEPRT, versa sobra a redação inicial da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, e o Acórdão do TCA do Sul, datado de 18/06/2020, âmbito do Proc. n.° 644/18.4BESNT, que começa precisamente por afirmar que não é possível "extrair uma solução expressa e inequívoca da letra da lei" e que sempre haverá que recorrer à "interpretação conjugada de um conjunto de preceitos da Lei n.° 81/2014, de 19/12, na redação conferida pela Lei n.° 32/2016, de 24/08", não se debruçou e não se pronunciou em momento algum sobre vários pontos que, no entendimento do aqui Recorrente, são absolutamente fulcrais a este respeito, como sejam a alteração do n.° 1 do artigo 17.°, a supressão da possibilidade de recurso às forças policiais que constava do n.° 1 do artigo 28.°, na revogação do n.° 3 do artigo 25.°, do n.° 4 do artigo 28.°, e dos n.°s 7 e 8 do artigo 34.° operadas pela Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto.
II) Como se julga ser jurisprudência hoje pacífica (cf. Ac. TR Lisboa. Proc. 10901/17.1T8 LSB.L1-2, de 11.12.2018, Ac. TR Lisboa, Proc. 3707/18.2T8LSB.L1-7, de 02.07.2019), a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento por comunicação por parte do senhorio não inviabiliza o recurso a ação judicial com o mesmo fim, sendo legítima a opção por qualquer uma das vias.
JJ) Considera-se assim verificado o pressuposto processual autónomo de interesse em agir, o qual consiste, in caso, na utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, e tal como a ação é como configurada pelo Autor (cf. Ac. TR do Porto, Proc. 4094/18.4T8MAI.P1, e Ac. do TR Lisboa, Proc. 1712/17.5T8BRR-B.L1-6).
KK) Bem como, entre tantos outros, o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 438/08.5YXLSB.LS.S1, de 06/05/2010, Ac. TR Coimbra, Proc. 715/08.5TBACN.C1, de 02/11/2010, o Ac. TR Guimarães, Proc. 6856/11.4TBBRG.G1, Ac. TR Lisboa, Proc. 10901/17.1T8LSB.L1-2, de 11/12/2018, Ac. TR Lisboa, Proc. 3707/18.2T8LSB.L1-7, de 02/07/2019, Ac. TR Porto, Proc. 1918/18.0T8PVZ.P1, de 19/05/2020, Ac. TR Lisboa, Proc. 16493/19.0T8SNT.L1-7, de 02/02/2021, Ac. TR Évora, Proc. 1605/20.9T8SLV.E1, de 25/11/2021, todos disponíveis em www.dgsi.pt), onde a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento por comunicação por parte do senhorio não inviabiliza o recurso a ação judicial com o mesmo fim, sendo legítima a opção por qualquer uma das vias por parte do senhorio.
LL) À luz do supra exposto, a verdade é que retirar da Lei n.° 81/2014, de 19.12, que os senhorios padecem de falta de interesse em agir no despejo pela via judicial, não só consubstancia uma errada aplicação da Lei, como coloca os senhorios numa situação de absoluta impossibilidade de despejar os arrendatários incumpridores na medida em que a Lei atualmente não confere de facto outra alternativa.
MM) Ou seja, verifica-se que depois de num primeiro momento ter traçado de forma expressa uma diferença entre a tramitação do despejo por parte das entidades de direito público enumeradas no n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 81/2014, de 19.12, e a tramitação do despejo por parte de entidades de direito privado, o legislador veio abolir essa mesma diferença.
NN) A abolição dessa diferença de tramitação conduz obrigatoriamente a que, quer se tratem de entidades de direito públicas quer se tratem de entidades de direito privado, todas elas passaram a estar sujeitas ao mesmo regime, não se vislumbrando outra alternativa que não seja concluir que a opção legislativa consagra o primado do despejo por via judicial no âmbito do regime do arrendamento apoiado.
Nestes termos,
deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal "a quo” e, consequentemente, ordenar-se o prosseguimento da ação instaurada em ordem à resolução do contrato de arrendamento, à entrega do imóvel ao aqui Recorrente devoluto de pessoas e bens e ao pagamento dos valores em dívida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”.

O Recorrido não contra-alegou.

O D.M.M.P. não emitiu parecer.

Admitido o recurso por despacho do Mm.º Juiz a quo, com subida imediata e efeito suspensivo, subiu o mesmo a este Tribunal Central Administrativo.

Sem vistos prévios, mas com envio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


2. Delimitação do objeto do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, a questão essencial a decidir é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito quanto à decisão de absolvição da instância por verificação da exceção dilatória de falta de interesse em agir.

3. Fundamentação de facto

3.1. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos,

« Com relevância para a decisão da questão em apreço julgam-se provados os seguintes factos e ocorrências processuais:
A) O Autor é o único e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra “..”, correspondente ao R/C, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sita na Rua …, n.° …, Bairro …, em Elvas, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.° 1…, da união das freguesias da Assunção, Ajuda, Salvador e Santo Ildefonso, concelho de Elvas;
(cfr. doc. 1 junto com a p.i.)
B) Este imóvel ingressou na esfera jurídica do Autor por sucessão do Instituto de Gestão do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), organismo que em 1 de junho de 2007 foi extinto e objeto de fusão com o Autor, sendo que por força da referida fusão se transmitiram para este, automaticamente e sem dependência de outras formalidades, os direitos e obrigações de que o IGAPHE era titular, nos quais se incluem os associados ao património imobiliário, designadamente o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 1.° e a posição de senhorio no contrato de arrendamento referido no artigo 4.° desta petição;
(artigo 23.° do Decreto-Lei n.° 175/2012, de 02 de agosto)
C) Tendo em 1987 ingressado na propriedade do então Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), ex vi transferência para si de todo o património mobiliário e imobiliário, bem como de todos os direitos de que era titular o extinto Fundo de Fomento da Habitação, e respetiva Comissão Liquidatária;
(n.° 1 do artigo 30.° do Decreto-Lei n.° 88/87, de 26 de fevereiro)
D) Em 1 de abril de 1986, o Fundo de Fomento da Habitação, através da sua Comissão Liquidatária, deu de arrendamento para habitação a J…, a fração autónoma identificada no parágrafo A, nos termos do contrato que passamos a reproduzir:


«Imagem em texto no original»



«Imagem em texto no original»





«Imagem em texto no original»




3.2. A respeito dos factos não provados consignou-se na sentença recorrida,

“Nada mais se provou com relevância para a decisão da exceção.”

3.3. E em sede de fundamentação de facto, escreveu-se na sentença recorrida que,

“Os factos que foram considerados provados resultaram do exame dos documentos supra identificados, constantes dos autos, e das provisões normativas consultadas, nos termos expressamente referidos no final de cada alínea do probatório.”


4. Fundamentação de direito

A Recorrente suporta o erro de julgamento que imputa à decisão recorrida aduzindo, em suma, que, com alteração da Lei n.º 32/2016, aos artigos 17.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1da Lei n.º 81/2014 o legislador remeteu os senhorios para o cumprimento do disposto no Código Civil e nas leis de processo, daí resultando a necessidade de recorrer ao Tribunal para fazer valer as suas pretensões. Assim, ao suprimir no n.º 1 do artigo 28.º a possibilidade de solicitação das autoridades policiais optou por afastar o despejo administrativo, enveredando pelo despejo pela via judicial (onde a possibilidade de recurso às autoridades policiais já está expressamente prevista nos artigos 757.º e 861.º do CC). Também da revogação dos n.ºs 7 e 8 do artigo 34.º resulta que o senhorio deixou de poder obter título bastante para a desocupação de habitação e, consequentemente, de proceder ao despejo administrativo, e da modificação ao n.º 1 do artigo 25.º, que introduziu a referência expressa aos artigos 1083.º e 1084.º do CC, deu-se expressa cobertura legal à resolução do contrato com fundamento no não pagamento de rendas ou mora do arrendatário.
Considera que ainda que dispusesse de meios de autotutela declarativa e executiva nem daí se poderá considerar impedido de recorrer aos meios judiciais para obter o despejo sob pena de violação da tutela jurisdicional efetiva e a garantia de acesso aos tribunais.
Aduz que a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento por comunicação por parte do senhorio não inviabiliza o recurso a ação judicial com o mesmo fim, sendo legítima a opção por qual quer uma das vias.
A sentença recorrida absolveu o R. da instância, julgando verificada a exceção de falta de interesse em agir, por considerar que dispondo o autor de meios de autotutela, declarativa e executiva, não tem necessidade de intentar uma ação nos Tribunais administrativos, em busca de tutela jurisdicional efetiva. Para tanto, considerou que
“o Demandante não tem necessidade de intentar uma ação nos Tribunais administrativos, em busca de tutela jurisdicional efetiva, por dispor de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179.° do CPA, por lhe ser permitido declarar o seu direito a receber rendas, e na falta de cumprimento voluntário, o direito de proceder à sua cobrança coerciva.
Com a entrada em vigor da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, foi aprovado o novo regime do arrendamento apoiado para habitação social, e revogado o regime transitório previsto na Lei n.° 21/2009, de 20 de maio [cfr. o seu artigo 38.°, n.° 1, alínea a)], tendo passado a prever-se que o mesmo se aplica aos contratos a celebrar após a data da sua entrada em vigor [cfr. artigo 39.° n.° 1], mas também aos contratos celebrados ao abrigo de regimes de arrendamento de fim social, nomeadamente de renda apoiada e de renda social existentes à data da sua entrada em vigor [cfr. artigo 39.° n.° 2 alínea a)], e bem assim, à ocupação de fogos a título precário efetuada ao abrigo do Decreto n.° 35 106, de 6 de novembro de 1945 sujeitos ao regime transitório da Lei n.° 21/2009, de 20 de maio, que subsistam na data da entrada em vigor da nova lei [cfr. artigo 39.° n.° 2 alínea b)].
Assim, na situação a que se reportam os autos, estando em apreço uma relação jurídica de arrendamento social, sujeita ao regime do arrendamento apoiado para habitação, constante da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro [que revogou o Decreto-Lei n.° 166/93, de 07 de maio], e prevendo-se no seu artigo 28.°, n.°s 1 e 3 daquele diploma legal, na redação afeiçoada pela Lei n.° 32/2016, de 24 de agosto, que quando não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação, cabe à entidade que atribuiu a habitação nesse regime levar a cabo os procedimentos subsequentes, e bem assim que quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo, manifesto se torna que, por mor do princípio da juridicidade, o A. está vinculado por um especial dever de prosseguir na estrita observância da legalidade procedimental disposta pelo legislador, em ordem ao cabal exercício das suas competências.
Ou seja, é-lhe conferida competência para determinar, não apenas o despejo, mas a sua execução, e neste conspecto, o poder de decidir o despejo e de o executar, sob autotutela declarativa e executiva, dispensando-se o mesmo de recorrer à via judicial para fazer valer a sua pretensão de despejo e de pagamento de rendas, encargos ou despesas.
Estribando-nos nesta linha de pensamento, podendo (e devendo) o A. promover a efetivação dos seus poderes por via extrajudicial, e dependendo o acionamento a justiça administrativa da existência de uma situação de carência efetiva de tutela judicial [cfr. o art. 2.° do CPTA], cremos que o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça a que se reportam os artigos 20.° e 268.°, n.° 4 da CRP não recobre a pretensão submetida a juízo pelo Autor.”
Quanto às pretensões de resolução do contrato de arrendamento habitacional celebrado com o Réu, entrega da fração autónoma, livre e devoluta de pessoas e bens e pagamento das rendas vencidas e não pagas no montante de 4.667,63€ (quatro mil seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), e vincendas, acrescida dos respetivos juros de mora calculados à taxa supletiva legal desde a citação e até integral pagamento, o assim decidido encontra-se em linha com a jurisprudência do TCA Norte (entre outros, o Acórdão de 17.11.2023, proferido no processo 0214/23.5BEPRT), deste TCA Sul (entre outros, os Acs. deste TCA Sul de 15.5.2025, proferidos nos processos 302/22.5BESNT, https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/17bf357425e119d280258c9000571362?OpenDocument, 128/23.9BESNT, https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/5c2228ec537caefd80258c9000571b6a?OpenDocument, e 879/23.8BESNT, https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/3f8a440b0d11f11f80258c90005729ae?OpenDocument) e, de resto, com o entendimento do STA, já considerando a Lei n.º 81/2014, na redação dada pela Lei n.º 32/2016, e que, no entender da Recorrente, conduziria a decisão distinta (além do mais do Ac. de 19.10.2023, proferido no proc. n.º 02143/21.8BEPRT e nos Acs. de não admissão de revista, tais como os Acs. do STA de 14.3.2023, proferidos nos processos 0214/23.5BEPRT e 0216/23.1BEPRT disponíveis em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d4ecbe0a0342802e80258ae50048738f?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1 e https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1f9fdd1142b0979380258af200345607?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1).
Vejamos.
O interesse em agir é o pressuposto processual pelo qual a parte, legítima, justifica a carência da tutela judiciária, relacionando-se com um interesse adjetivo, que decorre da situação, objetivamente existente, de necessidade de proteção judicial daquele interesse substantivo, visando-se evitar, por um lado, que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo para organizarem a defesa dos seus interesses, numa altura em que a situação da parte contrária o não justifica, e por outro, sobrecarregar os tribunais com ações desnecessárias [cf. vejam-se, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 79 a 86; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, 1982, pp. 251 a 255; Antunes Varela, iManual de Processo Civil, 1985, pp. 179 a 189; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 8ª ed., pp. 306 a 310; Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., pp. 59 a 61].
Pressuposto processual inominado este, cuja falta, sendo manifesta e insuprível, leva, na fase liminar, ao indeferimento liminar da petição inicial ou, após essa fase, à absolvição da instância, nos termos do n.º 1 do artigo 590.º do CPC e, bem assim, da alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º do CPC e do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA.
Ora, no que respeita à resolução do contrato de arrendamento habitacional, entrega da fração e pagamento das rendas vencidas e vincendas, acrescidas de juros de mora, acompanhamos, aqui, o Ac. deste TCA Sul de 15.5.2025, proferido no processo 302/22.5BESNT, no qual se escreveu que,
«[…] o Recorrente, com a presente acção, pretende a intervenção de um tribunal administrativo para lhe garantir, judicialmente, a cessação do contrato de arrendamento em regime de renda apoiada, por resolução, com fundamento na falta de uso do locado pelos ora Recorridos por mais de um ano, com entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, e ainda a condenação dos mesmos Recorridos no pagamento das rendas vencidas e vincendas, acrescidas dos respectivos juros de mora.
Acontece que o Recorrente, para tais desideratos, como adiante melhor veremos, não necessita de lançar mão ao presente meio processual, pois decorre do artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, que todas as entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º do citado diploma legal, em cujo leque se inclui o ora Recorrente, têm o poder-dever funcional de, uma vez constatada a existência de causas determinantes da resolução do contrato de arrendamento apoiado, designadamente, por incumprimento da obrigação do uso do locado por um determinado período (cf. artigo 24.º, alínea b), da Lei n.º 81/2014, de 19/12) ou por falta de pagamento de rendas (obrigação decorrente de cláusula contratual), por si próprias, considerar cessado o contrato, nomeadamente, emitindo uma decisão administrativa de resolução contratual, e, nessa senda, de igualmente poderem ordenar a desocupação e entrega da habitação, que, se não cumprida voluntariamente pelos arrendatários, ainda se lhe pode seguir a ordem administrativa de despejo.
Mas não só. Dimana também do n.º 3 do mesmo preceito legal que, “Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo”.
No caso dos autos, aliás, vemos a presença, inclusive, de […] causas potencialmente geradoras da cessação do contrato de arrendamento apoiado: […] ii) e a falta de pagamento de rendas.
Portanto, […] pretendendo a cessação do contrato e a entrega da habitação livre e devoluta de pessoas e bens, que outra coisa não é senão o cumprimento pelos Recorridos da obrigação de desocupação e entrega da habitação, atenta a terminologia preconizada pelo artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, ou seja, no fim de contas, o despejo, o Recorrente, para tanto, não necessita de recorrer à via judicial para tais finalidades, pois tais comandos legais encerram um princípio de autotutela declarativa e executiva, a partir da qual o órgão executivo do ora Recorrente tem o poder-dever funcional, indeclinável ou irrenunciável, de decidir em ordem a alcançar tais objectivos, resolvendo administrativamente o contrato, e, depois, em simultâneo (ou não), pode ainda ordenar o despejo e despoletar a correspondente execução da dívida por rendas.
Aliás, no que concerne especificamente ao pedido de condenação dos Recorridos no pagamento das rendas vencidas e vincendas, acrescidas dos respectivos juros de mora, há que ter presente o disposto no artigo 179.º do CPA, que nos seus n.ºs 1 e 2, preceituam o seguinte:
“1 - Quando, por força de um ato administrativo, devam ser pagas prestações pecuniárias a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta, segue-se, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o órgão competente emite, nos termos legais, uma certidão com valor de título executivo, que remete ao competente serviço da Administração tributária, juntamente com o processo administrativo.”
Ora, conjugando o artigo 28.º, n.º 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, com o artigo 179.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, na falta do pagamento voluntário das rendas, tendo em vista o despoletar do processo de execução fiscal por tal dívida, ao Recorrente bastava a emissão da certidão do valor em dívida, como título executivo, remetendo-a, depois, à Autoridade Tributária.
Assim se vê que o Recorrente tem ao seu dispor meios legais de autotutela para garantir quer a desocupação da habitação quer a cobrança/execução da dívida por rendas em atraso e obtenção do correspectivo pagamento, o que, no caso vertente, evidencia não existir necessidade de tutela judicial, ou seja, de se dirigir com a presente acção a um Tribunal Administrativo para tais desideratos, carecendo, por isso, de interesse em agir.
Só assim não será, isto é, admitir-se-á a necessidade de recurso à via judicial no caso em que o arrendatário se oponha à decisão administrativa de resolução do contrato e de desocupação/despejo da habitação, o que não é, de todo, o caso concreto.
Neste sentido, vai o acórdão deste mesmo TCAS, de 18/06/2020, proferido no processo sob o n.º 644/18.4BESNT, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se o seguinte excerto:
“(…) Acresce ainda em auxílio da interpretação expendida que, segundo o artigo 28.º-A do diploma em análise, o inquilino pode recorrer à utilização de meios de resolução alternativa de conflitos para resolução de quaisquer litígios relativos à interpretação, execução, incumprimento e invalidade de procedimentos na aplicação da lei, sem prejuízo do recurso ao tribunal, sempre que não haja acordo entre as partes.
Tal disposição traduz que apenas quando o inquilino se oponha à decisão administrativa de resolução do contrato e do despejo ou da sua execução e a pretenda contestar, pode recorrer à via judicial ou recorrer aos meios de resolução alternativa de conflitos.
Deste modo, apenas quando não haja o acordo entre as partes existirá um litígio carente de resolução, a qual, por isso, não se atribui a sua resolução ao próprio órgão administrativo.
Neste caso, apenas sendo contestada a decisão administrativa de resolução do contrato de arrendamento e do despejo administrativo pelo inquilino, se atribui a uma entidade terceira imparcial e independente a resolução do litígio, isto é, os tribunais administrativos, mediante a instauração de uma ação administrativa ou as vias de resolução alternativa de conflitos.
Não sendo impugnada a decisão administrativa, não existe litígio que careça de ser judicialmente dirimido.
No presente caso, o Réu nada disse, nem contestou a decisão de resolução do contrato e que determinou o despejo, assim como as medidas tendentes à sua execução, pelo que, não existe qualquer conflito ou litígio que urja resolver judicialmente.” – (destaques nossos).
Na mesma orientação, temos ainda, entre outros, o acórdão do TCAN, de 10/03/2023, prolatado no processo sob o n.º 00886/22.8BEBRG, e o acórdão do mesmo TCAN, de 17/11/2023, tirado no processo sob o n.º 00216/23.1BEPRT, também disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Acresce dizer que, no tocante ao particular aspecto dos pedidos que versam sobre a pretendida desocupação da habitação (leia-se, o despejo) e de condenação dos ora Recorridos no pagamento das rendas vencidas e vincendas, acrescidas dos respectivos juros de mora, não é por demais convocar e aderir ao entendimento já sufragado nesta mesma problemática pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), por diversas vezes, destacando-se, entre outros, o acórdão de 16/11/2023, proferido no processo sob o n.º 02953/17.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt, enfatizando-se, em abono da nossa posição, o seu sumário, como segue:
“I - A A., ora Recorrente, é, nos termos do artigo 1.º dos seus Estatutos, uma empresa local, «constituída sob a forma de pessoa coletiva de direito privado, de natureza municipal, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial» (n.º 1);
II - A A., ora Recorrente, foi criada e é totalmente participada pelo Município de Vila Nova de Gaia, entidade que, por esse motivo, sobre aquela tem controle ou domínio com uma influência dominante – cfr. artigo 19.º. n.º 1, da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto (Regime Jurídico do Setor Empresarial Local e das Participações Locais);
III - As vestes privadas da A., ora Recorrente, adquirem, neste contexto, um relevo exclusivamente formal, que não impede nem colide com o exercício das competências jurídico-públicas que lhe foram atribuídas, enquanto entidade administrativa privada.
IV - E nem colide, face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, no CPA, com a aplicação, das disposições do CPA respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa, às condutas dotadas por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, «no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo».
V - A decisão de exigir o pagamento de rendas em atraso, no âmbito de um contrato de arrendamento apoiado, ao qual é aplicável a Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro (Novo Regime do Arrendamento Apoiado para a Habitação (NRAAH) é, sem dúvida, uma conduta regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, praticada que foi no âmbito dos poderes que lhe foram transferidos pelo Município de Vila Nova de Gaia e ao abrigo do NRAAH.
VI - Os contratos de arrendamento apoiado regem-se pelo disposto no NRAAH, pelos regulamentos nele previstos e pelo Código Civil – cf. n.º 1 do artigo 17.º do NRAAH – sem prejuízo de se tratar de um contrato administrativo por força de lei - cf. n.º 2 do artigo 17.º do NRAAH.
VII - No âmbito dos poderes que lhe são conferidos no artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH, as entidades referidas no seu artigo 2.º e nas quais se inclui a A., ora Recorrente, estão habilitadas a, por força de lei, praticar um ato administrativo que determine o despejo, este, com poderes de autotutela declarativa e executiva e um outro, que determine a promoção da execução por rendas em atraso, este, apenas com autotutela declarativa, pois que, nos termos dos artigo 179.º, do CPA, a execução para pagamento de quantia certa a corre termos nos tribunais tributários - cf. artigo 28.º, n.º 1, do NRAAH e regime previsto no Código Civil, ex vi artigo 17.º n.º 1.
VIII - O artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH pressupõe essa autotutela declarativa referente ao pagamento de rendas em atraso, impondo apenas, nos casos em que seja este o fundamento do despejo, que as duas decisões sejam proferidas em simultâneo.
IX - A decisão de promoção da execução por rendas em atraso, enquadrada como está no NRAAH, de entre os demais poderes de autotutela declarativa, consubstancia, assim, um título executivo complexo, à semelhança do que hoje sucede no regime do contrato de arrendamento civil, ex vi artigos 25.º, n.º 1 e 17.º n.º 1, do NRAAH.
X - O que é exemplo e se mostra coerente, aliás, em ambos os regimes, com a ambiência de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento.
XI - A A., ora Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de ato administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA.
XII - Sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.
XIII - Pois que, também à luz do princípio da irrenunciabilidade da competência, não pode a A. deixar de exercer os seus poderes de autotutela declarativa, sempre que os respetivos pressupostos estejam definidos na lei, tal como se demonstra estarem no caso em apreço – cf. artigo 36.º, n.º 1, do CPA.”
Não é despiciendo, também, relativamente ao mesmo acórdão do STA, a transcrição do seguinte excerto:
“(…) 14 – Em recente acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, tirado no processo n.º2143/21.8BEPRT, datado de 19.10.2023 e já transitado, foi decido, que a A. Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de ato administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA, sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.
(…)
42 – E não havendo dúvidas que a Autora, ora Recorrente, pode promover a execução para pagamento das rendas em atraso, quando estas são a causa da decisão de despejo e resolução do contrato, ao abrigo das disposições conjugadas, supra citadas e transcritas, também é certo que não deixa de o poder fazer quando o não são.
43 – Pois que, o artigo 28.º, n.º 3, pressupõe essa autotutela declarativa referente ao pagamento de rendas em atraso, impondo apenas, nos casos em que seja este o fundamento do despejo, que as duas decisões sejam proferidas em simultâneo.
(…)
46 – O que é exemplo e se mostra coerente, aliás, em ambos os regimes, com a ambiência de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento.
47 – E justifica que o sentido da expressão usada no n.º 3 do artigo 28.º, de «decisão de promoção da correspondente execução», seja atributivo de uma autotutela declarativa, por maioria de razão, quando esta decisão seja desacompanhada de uma decisão de despejo.»
16 – Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, considera-se que a A. Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de ato administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como este se encontra previsto no artigo 179.º do CPA.
17 – Sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.
18 – Pois que, também à luz do princípio da irrenunciabilidade da competência, não pode a A. Recorrente deixar de exercer os seus poderes de autotutela declarativa, sempre que os respetivos pressupostos estejam definidos na lei, tal como se demonstra estarem no caso em apreço – cf. artigo 36.º, n.º 1, do CPA.” – (destaques nossos).
Aliás, em casos semelhantes ao ora em apreço já o STA, em recursos de revista, acabou por não os admitir, fundado na convergência das decisões das instâncias com a posição uniforme e reiterada que, entretanto, já se firmou na mais alta instância da jurisdição administrativa e fiscal, de que são exemplos os acórdãos do mesmo STA, de 14/03/2024 e de 21/03/2024, prolatados, respectivamente, nos processos sob os n.ºs 0216/23.1BEPRT e 01200/22.8BEPRT, consultáveis em www.dgsi.pt, dos quais, em reforço justificativo deste acórdão, salientamos o seguinte trecho:
“O A. justifica a admissão da revista com a especial relevância jurídica e social da questão a apreciar, por a sua resolução poder servir de paradigma para a decisão de casos futuros e com a necessidade de se proceder a uma melhor aplicação do direito, dado que do entendimento perfilhado pelo tribunal pode resultar a absoluta impossibilidade de os senhorios, no âmbito do regime do arrendamento apoiado, despejarem os arrendatários incumpridores, alegando também não dispor de meios de autotutela para proceder ao despejo e que o legislador, com as alterações que introduziu na Lei n.º 81/2014, optou por enveredar pelo despejo judicial, motivo por que o acórdão recorrido fez uma errada aplicação do pressuposto processual do interesse em agir, violando ainda os princípios da igualdade, do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artºs. 13.º, 20.º e 268.º, n.º 4, todos da CRP.
A situação que está em causa nos autos já foi objecto de apreciação por esta formação que, nos Acs. de 3/11/2022 – Proc. n.º 0654/18.1BEBRG, de 25/5/2023 – Proc. n.º 1222/22.9BEPRT e de 1/6/2023 – Proc. n.º 886/22.8BEBRG, concluiu pela não admissão das revistas, por a decisão dos respectivos acórdãos recorridos se mostrar aparentemente acertada.
Acresce que a solução adoptada pelo acórdão recorrido converge com aquela que se veio a firmar entretanto na 1.ª Secção deste STA (cf., além do já citado Ac. de 19/10/2023, os de 16/11/2023 – Proc. n.º 02953/17.0BEPRT, de 7/12/2023 – Proc. n.º 02836/18.7BEPRT e de 20/12/2023 – Proc. n.º 02181/21.0BEPRT).” (destaques nossos).
Por conseguinte, do até aqui analisado, é de concluir no mesmo sentido em que julgou a sentença recorrida, isto é, confirmando o juízo de verificação da excepção da falta de interesse em agir do ora Recorrente.
[…]
Ainda assim, sempre se adianta que não se podem equiparar os casos puramente civilistas (ex., de contratos de arrendamento urbano entre sujeitos ou entidades de direito privado) com a presente situação, porquanto, importa não olvidar que o Recorrente assume a natureza de entidade pública promotora da política nacional de habitação, com a natureza de instituto público de regime especial e gestão participada integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio (cf. artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 175/2012, de 02/08), munido, por isso, de poderes especiais de autoridade, cuja competência legal (poderes funcionais) não pode sequer declinar ou deixar de exercer, atento o princípio da legalidade.
Por outro lado, a diferença advém também da circunstância do contrato de arrendamento apoiado, pela sua génese e finalidade social, encontrar-se sujeito a um regime jurídico distinto do contrato de arrendamento exclusivamente civilista (este, o de natureza civil, submetido que está ao Novo Regime do Arrendamento Urbano [NRAU], aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02), a começar pela sua directa submissão à específica Lei n.º 81/2014, de 19/12, e à sua “natureza de contrato administrativo”, conforme bem expressamente dita o n.º 2 do artigo 17.º da aludida Lei.
É por isto que, em rigor, no caso em apreço pode admitir-se uma solução desigual face às situações em que o litígio emerge apenas de um contrato de arrendamento outorgado entre dois sujeitos privados e sujeito ao NRAU, já que, atentos os poderes legais de autoridade que ao Recorrente cabe exercer no âmbito de um contrato de natureza administrativa, nomeadamente, na vertente da autotutela declarativa e executiva, nenhuma ofensa se vislumbra quanto ao artigo 13.º da CRP ao considerarmos que, em face de tais prerrogativas especiais, ao Recorrente falte nestes casos particulares um interesse em agir judicialmente.
Em segundo lugar, o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, preconizados no artigo 20.º da CRP, não sendo valores absolutos em si mesmos, não impedem que o legislador opte em determinado momento pela desjudicialização de determinados litígios, retirando a sua resolução aos Tribunais do Estado, seja por atribuição a diferentes entidades de resolução alternativa de conflitos, seja por se considerar, como aqui acontece, que o cabal exercício dos poderes legais de autoridade de um instituto público já permitem alcançar os objectivos aqui clamados pelo Recorrente, sem uma necessidade imperiosa de recurso à via judicial.
Portanto, diferentemente do que entende o Recorrente, o citado preceito constitucional não impede que, no plano infraconstitucional, a resolução do contrato de arrendamento apoiado, a desocupação/despejo e a constituição do título executivo relativo a rendas em dívida se efectivem por intermédio da exclusiva actuação administrativa, aqui se compreendendo nos poderes de autotutela declarativa e executiva do respectivo ente público-senhorio, sem que para tais finalidades seja necessária a intervenção dos Tribunais.
Dito de outro modo, não está em crise o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, pois o Recorrente, enquanto instituto público tem ao seu alcance, dentro das competências que legalmente lhe estão cometidas (cf. artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12), instrumentos próprios (não judiciais) para garantir a defesa dos direitos que ora pretende pugnar, desnecessariamente, por via da presente acção.
E no que toca em especial ao pagamento das rendas alegadamente em dívida, como atrás já afirmámos, o legislador infraconstitucional até consagrou a competência legal dos senhorios dos contratos de arrendamento apoiado para extrair o título de dívida, poder funcional esse que ficou a cargo das entidades como o ora Recorrente e, por tal via, poderem despoletar o processo de execução fiscal para promover o pagamento coercivo da dívida (cf. artigo 28.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, e artigo 179.º do CPA), segundo a lei de processo tributário, no que evidencia tratar-se de uma forma de tutela jurisdicional efectiva em prol do ora Recorrente e, como tal, em consonância com o clamado artigo 20.º da CRP.”
Daqui resulta, portanto, que, opostamente ao alegado pelo Recorrente, do artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 81/2014, de 19/12 emerge que, estando o IHRU abrangido pelo n.º 1 do artigo 2.º deste diploma, assiste-lhe o poder-dever de, uma vez constatada a existência de causas determinantes da resolução do contrato de arrendamento apoiado, designadamente, por falta de pagamento de rendas, emitir uma decisão administrativa de resolução contratual e, consequentemente, ordenar a desocupação e entrega da habitação, a que, se não cumprida voluntariamente pelo arrendatário, ainda se pode seguir a prolação da ordem administrativa de despejo.
Dimanando, ainda, da conjugação entre o artigo 28.º, n.º 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, com o artigo 179.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, que, na falta de pagamento voluntário das rendas, tendo em vista despoletar o processo de execução fiscal por tal dívida, ao ente público-senhorio basta a emissão da certidão do valor em dívida, como título executivo, remetendo-a, depois, à Autoridade Tributária.
O que significa, portanto, que estando o Recorrente dotado de poderes de autoridade, bem como do facto de o contrato de arrendamento apoiado consubstanciar num contrato com objeto passível de ato administrativo, ou seja, um contrato administrativo cujos efeitos também seriam suscetíveis de geração por ato administrativo, ao Recorrente, enquanto ente público-senhorio, assiste um princípio de autotutela declarativa e executiva no âmbito do contrato em causa.
E, como tal, “o Recorrente tem, pois, competência legal para decidir administrativamente a resolução contratual, a desocupação e entrega da habitação, voluntária, ou o despejo, se assim não for cumprido pelos arrendatários, assim como, para a emissão da certidão do valor em dívida por rendas não pagas, sem necessidade de, para almejar tais pretensões, ter que recorrer à via judicial, faltando, portanto, o pressuposto processual do interesse em agir” (Ac. do TCA Sul de 15.5.2025, proferido no processo 302/22.5BESNT).
Mas se assim é quanto às pretensões de cessação do contrato, desocupação e entrega do locado e cobrança de rendas, importa aferir se essa autotutela abarca a pretensão indemnizatória formulada no ponto d) do petitório.
Com efeito, é sabido que a autotutela só existe na medida em que a lei a prevê e regula, isto é, a autotutela só se exerce mediante lei expressa. E, como demos nota, para a cessação dos contratos de arrendamento e, consequente, despejo e cobrança coerciva de rendas, encargos e despesas, tais poderes de autotutela declarativa e executiva são inegavelmente conferidos à Recorrente pelos artigos 25.º e 28.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12.
Mas também assim ocorre quanto à exigência e cobrança da indemnização pelo atraso na restituição do locado a que se reporta o artigo 1045.º do CC, na medida em que o conceito de “rendas, encargos e despesas”, conforme previsto no artigo 28.º, n.º 3 da Lei n.º 81/2014, a abarca.
Com efeito, dispõe-se no artigo 1045.º do CC, que
“1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.” (sublinhados nossos).
Ou seja, o que está em causa nos números 1 e 2 do artigo 1045.º do CC é uma indemnização, mas cujo critério legal o legislador expressamente definiu, e assim equiparou, às rendas, no seu valor em singelo (n.º 1) ou em dobro (n.º 2), o que sucede por, no primeiro caso, se entender “que, extinta a relação contratual, se o locatário não restituir a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que lhe impõe o dever de continuar a pagar a renda ou aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor”.(Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos”, 2ª ed., Almedina, p. 202-203) e, no segundo caso, havendo mora do locatário, “a sua responsabilidade aumenta, fixando a lei como indemnização o dobro da que resultaria no caso previsto no número anterior”, ou seja, “o dobro da retribuição” (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1986, p. 406).
Acrescente-se que, à semelhança do artigo 14.º-A do NRAU - que prevê que “o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário” -, também no artigo 28.º n.º 3 da Lei n.º 81/2014, o legislador utiliza a expressão “rendas, encargos ou despesas”.
Ora, a respeito do artigo 14.º-A do NRAU, a jurisprudência dos tribunais comuns tem debatido a questão de saber se, referindo-se tal normativo às rendas, encargos e despesas, o título executivo abrange a indemnização devida nos termos do artigo 1045.º do CC. E vem-se a firmar uma corrente maioritária (vg. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.2.2019, processo 3855/17.6T8OER-A.L1-2 e os acórdãos aí citados, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4.6.2019, proferido no processo 7285/18.4T8CBR-B.C1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.3.2024, proferido no processo 1397/22.7T8SNT-A.L1-8) que considera “que o legislador não recusa, aos montantes devidos pelo uso indevido do locado (art.º 1045º do CC), a equiparação às rendas em sentido estrito” e que “o sentido prevalente a dar à “indemnização” ex vi do art.º 1045º, n.º s 1 e 2 do CC corresponde ou integra a categoria das “rendas” a que alude o art.º 14º-A do NRAU (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.1.2022, proferido no processo 998/20.2T8SRE-A.C1 (in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/90a1fd44b5f5e50c802587dc00554b20?OpenDocument).
Como se dá conta no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 8.4.2024, proferido no processo 3001/22.4T8MAI-A.P1, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/660435362d30a67f80258b1f0039b734?OpenDocument#:~:text=M.%20Que%20refere%20que%20o%20artigo%2014%C2%BA%2DA,data%20da%20extin%C3%A7%C3%A3o%20do%20contrato%20de%20arrendamento), apelando-se aos elementos de ordem sistemática da interpretação jurídica, “o desiderato que presidiu à atribuição de força executiva ao documento que comunica o valor em dívida decorrente do contrato de arrendamento vale precisamente nas mesmas circunstâncias para as rendas enquanto contrapartida da cedência do espaço e para as indemnizações devidas pela omissão de pagamento dessas contrapartidas. Trata-se, em ambos os casos, de favorecer a posição jurídica do senhorio no sentido de tornar mais célere a cobrança das dívidas. Em sentido amplo, procura-se favorecer o mercado de arrendamento, tornando este mais apetecível.
Conferindo força executiva à comunicação referente às rendas, e omitindo essa consagração no caso do quantitativo equivalente à renda a título de indemnização e do quantitativo elevado ao dobro em caso de mora, assistiríamos a uma indesejável duplicação de ações: de um lado uma ação executiva para cobrança das rendas e encargos; de outro, uma ação declarativa de condenação para ver reconhecido o direito a indemnização. Tal corresponderia a um desperdício de recursos sem fundamento, inclusivamente propiciador de contradição de julgados.”
Idênticos fundamentos de natureza interpretativa impõem que a respeito do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014 se conclua que a referência a rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário integra todos os valores que o senhorio poderá exigir no contexto do incumprimento do contrato de arrendamento, da respetiva resolução e da mora na entrega do prédio arrendado subsequente à resolução. De tal forma que haverá que considerar que o legislador (também) atribuiu à Administração autotutela declarativa e executiva quanto às quantias devidas nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1045.º do CC.
Recorda-se, a respeito da interpretação da lei, em que rege o artigo 9.º do Código Civil, que são elementos a que intérprete recorre na tarefa de encontrar o sentido normativo, a letra (elemento literal) e os elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
Assim, “[a] letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
(…)
Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
IV - Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas".” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2015 de 24.3.2025).
Acrescente-se, ainda, que “[n]esta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm ainda elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica. (…)
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.” (Ac. do STJ de 4.5.2011, proferido no processo 4319/07.1TTLSB.L1.S1).
Em moldes idênticos ao que sucede no artigo 14.º-A do NRAU o legislador utiliza no artigo 28.º da Lei n.º 81/2014 os conceitos de “rendas, despesas e encargos”, evidenciando-se que não afasta a equiparação das quantias devidas nos termos do art.º 1045.º do CC a rendas. O que significa que, textual e sistematicamente, se acolhe o sentido de que o artigo 28.º, n.º 3 da Lei n.º 81/2014 também abarca os montantes reclamados nos termos daquele 1045.º do CC.
Acrescente-se que, em termos racionais, a lógica que preside ao regime instituído na Lei n.º 81/2014, prevendo a atribuição de autotutela declarativa e executiva à Administração no âmbito do regime do arrendamento apoiado, não deixa de ser (também) a de evitar o recurso a ações declarativas e, estando em causa dívidas de natureza pública, abarcar a sua cobrança coerciva no regime da execução fiscal. O que, no caso do arrendamento apoiado, é sobremaneira relevante face aos interesses públicos que subjazem ao regime de acesso e atribuição de habitações a indivíduos e agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional e, em que, portanto, se mostra essencial favorecer a posição jurídica da entidade pública seja na cobrança das dívidas, seja na desocupação dos locados por forma a beneficiar quem, efetivamente, delas carece.
Pelo que se afiguraria destituído de racionalidade, e contrário à sistemática normativa, que, opostamente ao que sucede relativamente a todos os demais montantes que são devidos no contexto do incumprimento do contrato de arrendamento e da respetiva resolução, quanto aos valores devidos pela mora na entrega do prédio arrendado subsequente à resolução o legislador tivesse pretendido obrigar o “senhorio a instaurar ação declarativa como passo necessário - possivelmente instrumental de segunda execução - para cobrar aquelas indemnizações, as quais não passam de sucedâneo - legal e económico - de verdadeiras rendas” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 8.4.2024, proferido no processo 3001/22.4T8MAI-A.P1, supra citado).
Donde, também quanto à indemnização prevista no artigo 1045.º do CC se impõe considerar que a Administração dispõe de autotutela, carecendo, pois, a Recorrente de interesse em recorrer aos tribunais para que declarem e, sendo o caso, executem, o direito a ser indemnizado no caso de incumprimento pelo locatário da obrigação de restituir o locado.
Concluindo-se que não incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento quanto a julgar verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir, absolvendo a Recorrente da instância relativamente a todos os pedidos.

Da condenação em custas

Vencida, é a Recorrente condenada nas custas (cf. art.ºs 527.º n.ºs 1 e 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

5. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal em,
(i) Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
(ii) Condenar o Recorrente nas custas.
Mara de Magalhães Silveira
Alda Nunes
Ana Cristina Lameira