Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:6976/24.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/11/2025
Relator:ANA CRISTINA LAMEIRA
Descritores:ASILO
RETOMA A CARGO
ITÁLIA
Sumário:I – A Entidade Demandada, considerando que a responsabilidade pela análise do pedido em causa pertence a outro Estado-Membro, não procedeu à sua apreciação, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, tendo, antes, dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, conforme o previsto nos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 36.º e seguintes da mesma lei.
II. Na falta de indícios de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de protecção internacional por parte das autoridades italianas, não cabe às autoridades nacionais apreciar o pedido de protecção internacional formulado pelo requerente, competindo tal responsabilidade, antes, às autoridades do Estado italiano – nos termos do Regulamento n.º 604/2013 -, a quem incumbe, não só a apreciação do eventual risco que implicará o regresso do requerente ao seu país de origem, mas também a aplicação do princípio do non refoulement”.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
(Subsecção Comum)

I. RELATÓRIO

.... , nacional da Tunísia, intentou acção administrativa, tramitada como processo urgente, contra a AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO (AIMA, I.P.), Entidade Demandada, impugnando a decisão proferida pelo Conselho Directivo, em 28.05.2024, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional que apresentou em Portugal e determinou a sua transferência para Itália. Peticiona, em cumulação, a sua substituição por outra que ordene a apreciação do seu pedido pelo Estado Português.
Por sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 13.04.2025, foi a acção julgada improcedente.
Inconformado, o Autor, ora Recorrente veio interpor para este Tribunal o presente recurso, formulando na sua Alegação as (extensas) conclusões que se transcrevem:

“I. Vem o ora Recorrente interpor recurso jurisdicional da sentença proferida nos autos, através da qual, depois de ter decidido que “(…) de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), dispensam-se as declarações de parte requeridas”, veio a julgar “Neste conspecto, considerando que a AIMA, I.P. apresentou um pedido de retoma a cargo ao Estado Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional, o qual foi tacitamente aceite, o pedido de proteção internacional apresentado pelo Autor em Portugal é inadmissível, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, pelo que improcede a presente ação”.
II. Crê-se que, ao decidir assim, a sentença agora posta em crise é nula e procedeu a uma errada aplicação do disposto nos artigos 90.º do CPTA e das seguintes disposições legais: n.º 2 do artigo 3.º, 18.º, 20.º, 23.º, 24.º e 25.º do Regulamento de Dublin III; 1.ª parte do n.º 1 do artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951, 4.º da CDFUE, n.º 8 do artigo 33.º da CRP e 17.º nº 1, 19 1 a) e 2, 36 a 40, da lei 27/2008 de 30 de junho, bem como os artigo 3.º e 5.º do DL 4/2015 de 7 de janeiro (CPA).
III. É entendimento do Recorrente que a sentença em causa não deverá manter-se porquanto se mostra violado o princípio do contraditório previsto no n.º 3 do art. 3.º do Código Processo Civil (doravante, C.P.C.), aplicável supletivamente nos termos do artigo 1.º do CPTA, na dimensão normativa aí estatuída que impede que o tribunal emita pronúncia ou profira decisão nova sem que, previamente, accione o contraditório.
IV. Com efeito, na petição inicial, o Autor indicou, como meio de prova, as suas declarações, dado que há factos alegados que só com a prestação das mesmas podem ser demonstrados, desde logo as circunstâncias que o A. passou e tem em Itália e, bem assim, as declarações que o mesmo prestou junto da AIMA.
V. Em concreto, tal meio de prova visava demonstrar ao Tribunal os factos alegados nos artigos 20.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 35.º, 36.º, 42.º, 43.º, 44.º, 52.º 53.º, entre outros da PI.
VI. Sucede que a decisão que dispensou a produção de tal maio de prova limitou-se a referir que “Porém, tendo em conta o alegado pelo mesmo e os documentos juntos aos autos, considera-se que estes elementos de prova permitem apurar todos os factos relevantes para a decisão da presente causa. Acresce que a factualidade alegada pelo Autor se compagina com a produção de prova documental, pelo que as declarações de parte requeridas se afiguram desnecessárias”.
VII. Ora, tal não corresponde à verdade já que, de facto, esse meio de prova era necessário e imprescindível para a prova de alguns factos relevantes para a decisão.
VIII. Sucede que, ao Apelante, não foi possível sequer elencar esses factos dado que não lhe foi conferida a faculdade de se pronunciar quanto à questão da necessidade de produção ou não desse meio de prova.
IX. Na verdade, o Tribunal decidiu com base em questão não suscitada anteriormente no processo, sobre a qual o Autor, ora Apelante, não teve oportunidade de se pronunciar e com que, razoavelmente, não seria previsível que contasse, o que configura violação frontalmente do princípio do contraditório, previsto no nº 3 do artigo 3º do C.P.C.
X. Constituiu decisão-surpresa violadora do principio do contraditório consagrado no n.º 3 do art. 3.º do C.P.C.
XI. Violação essa que gera nulidade processual nos termos do n.º 1 do art. 195.º do C.P.C., dado que a irregularidade cometida influiu na decisão da causa ao coarctar o direito do Apelante em defender-se e clarificar qual a relevância desse meio de prova e dos factos a provar para a decisão final, pelo que a sentença é nula nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do C.P.C.
XII. Pelo que se requer a revogação da sentença proferida e a substituição da mesma por uma outra que ordene a notificação das partes para, nos termos do n.º 3 do art. 3.º do C.P.C., se pronunciarem quanto à projectada decisão jurídica ou que convide o Autor a indicar os factos sobre os quais as declarações haveriam de recair e fundamentar a necessidade de tais declarações.
XIII. Acresce que a decisão proferida nos autos constituiu uma verdadeira decisão surpresa porquanto o A. tudo tem feito para regularizar a sua situação junto do Estado Português e estava a obter toda a documentação necessária a apresentar nos autos articulado superveniente – cfr. documentos cuja junção se requer nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 651.º do CPC.
XIV. Vê-se, assim, que seria gravemente violador do principio da proporcionalidade e nacionalidade, estando o Autor que entrou em Portugal de autocarro, vindo de França, a tentar regularizar a sua situação.
XV. Caso assim não se entenda, crê o Recorrente que a sentença não deve manter-se porquanto não aplica correctamente o Direito.
XVI. Com efeito, o Autor tem efetivo e fundado receio de regressar ao seu país de origem, motivo pelo qual pediu protecção internacional ao estado português, entendendo que o seu pedido deve ser apreciado e não ser concretizada a sua transferência para o estado italiano.
XVII. E isto porquanto, no período que esteve em Itália, o Recorrente enfrentou as condições inumanas, em espaço sobrelotado, comida insalubre e num ambiente que não lhe permitia sequer dormir – situação esta que também pretendia provar com as suas declarações
XVIII. Fugindo deste tratamento desumano, o Autor deslocou-se para em França e, posteriormente, para Portugal, tendo aqui solicitado asilo.
XIX. Ora, o pedido do Autor foi considerado inadmissível e determinada a sua transferência para a Itália, decisão com a qual não concorda, pelo que recorrer a ação administrativa para que o acto fosse anulado e reconhecida a proteção de seus direitos, liberdades e garantias, acçáo essa agora julgada improcedente.
XX. Com efeito o n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento Dublin III, prevê a “cláusula de salvaguarda”, a qual garante que, “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado- Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o EstadoMembro responsável”.
XXI. Ora, como já referido, são muitas as informações veiculadas pela comunicação social e por organizações não-governamentais sobre a enorme afluência de refugiados na Itália e as péssimas condições de acolhimento e permanência dos requerentes de proteção internacional no mesmo, bem como recomendações em relatórios internacionais de entidades oficiais ou ONG acreditadas para que os Estados Membros não transfiram pessoas para a Itália, sinalizando que, em qualquer outro aso, as autoridades responsáveis devem ainda realizar uma avaliação individual detalhada, solicitando, inclusive às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa, na mesma linha, aliás, da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).
XXII. Como relatado, o Estado italiano não tem capacidade sistémica, organizacional, social e económica para receber tantos requerimentos de apoio internacional, o que levanta a questão do destino dos requerentes, que não poderá ser no sentido voltarem ao país de origem, no caso porquanto tal decisão consubstanciaria uma violação do princípio da não expulsão, previsto no artigo 33.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção de Genebra de 1951.
XXIII. Nos termos do art.º 4º da CDFUE “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas, desumanos ou degradantes”.
XXIV. Assim sendo, faz-se necessário averiguar as concretas condições de acolhimento do recorrido em Itália, indagando, no mínimo, juntos das suas congéneres italianas quais irão ser as concretas condições de acolhimento, em termos de habitação, alimentação, vestuário, saúde, dinheiro de bolso, o que não fez, alheando-se da situação do recorrido e confiando na sorte.
XXV. In casu, face à concreta situação alegada e que sairia provada nos autos, caso se entenda que ainda não está, com as declarações de parte dispensadas, indicam-se claramente as falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado italiano, que implicarão para o A., caso seja transferido, num período indeterminado de internamento noutro campo de refugiados com sérias dúvidas quanto ao seu futuro.
XXVI. Nos termos do disposto no artigo 33.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “[é] garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.”
XXVII. Concretizando o direito de asilo aí consagrado, a Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (Lei do asilo e proteção subsidiária, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio), veio estabelecer as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo as Diretivas n.º 2011/95/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro, n.º 2013/32/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e n.º 2013/33/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e implementar a nível nacional o Regulamento (UE) n.º 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho para efeitos de aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.
XXVIII. Esta Lei prevê um procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, no respetivo capítulo IV, que tem lugar “quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado-membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo” – artigo 37.º, n.º 1.
XXIX. E segundo o respetivo n.º 2, “[a]ceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente.”
XXX. O artigo 3.º deste Regulamento (UE) n.º 604/2013, sob a epígrafe ‘acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional’, prevê o seguinte: “1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável. 2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado. Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do EstadoMembro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável. 3. Os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE.”
XXXI. Veja-se ainda que, de acordo com o artigo 17.º, n.º 1, do Regulamento, “[e]m derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.”
XXXII. Ora, o A. alegou elementos suficientes que indicam a existência de motivos válidos que obstem à sua transferência para o estado italiano face ao elevado risco de ser vítima de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em Itália, implicando o risco de tratamento desumano ou degradante.
XXXIII. O A. alegou tais factos e estava convicto que os mesmos resultariam, a final, provados.
XXXIV. Crê-se, assim, que a decisão impugnada e a sentença recorrida, a qual considerou o pedido inadmissível e confirmou a ordem de transferência do A. para o estado italiano, se mostra, salvo o devido respeito por diverso entendimento, ferida de ilegalidade por violação dos referidos preceitos legais.
XXXV. Assim, deverá a sentença proferida ser anulada e substituída por outra que agende a realização da prova requerida – declarações de parte do A. - ou ordene seja o pedido de protecção internacional apreciado pelo estado português.
XXXVI. Adoptar in casu diferente solução, para além de muito penalizador para o Autor, seria claramente violador dos princípios da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa e do princípio da legalidade, igualdade e proporcionalidade, consagrados nos art. 3.º e 5.º do DL 4/2015, de 07 de Janeiro (Código do Procedimento Administrativo).
XXXVII. Violando ainda os artigos 90.º do CPTA e das seguintes disposições legais: n.º 2 do artigo 3.º, 18.º, 20.º, 23.º, 24.º e 25.º do Regulamento de Dublin III; 1.ª parte do n.º 1 do artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951, 4.º da CDFUE, n.º 8 do artigo 33.º da CRP e 17.º nº 1, 19 1 a) e 2, 36 a 40, da lei 27/2008 de 30 de junho, bem como os artigos 3.º e 5.º do DL 4/2015 de 7 de janeiro (CPA).
XXXVIII. Pelo que deverá ser revogado a sentença proferido e substituída por decisão que defira o requerimento”.

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A Autoridade Demandada, ora Recorrida, regularmente notificada para o efeito não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), emitiu pronúncia no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Notificadas as partes, nada disseram ou requereram.

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Com dispensa de vistos, por se tratar de processo urgente, vem o processo submetido à conferência para decisão.

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I.1 – Do Objecto do recurso


Em conformidade com os artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), é pelas conclusões do recorrente jurisdicional que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, que inexistem, estando apenas adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assenta o Recorrente o presente recurso em questões adjectivas derivadas de o Tribunal a quo não ter admitido a produção de prova por declarações de parte nem ter permitido que se pronunciasse sobre a dispensa de tal prova, o que, além de violar a lei processual, constitui nulidade processual e nulidade da sentença, bem constitui uma decisão surpresa e impediu-o de fazer prova sobre as condições de acolhimento em Itália.
No demais cumpre aferir se o Tribunal errou no julgamento de Direito.

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II. Fundamentação
II. 1. De facto:

O Tribunal a quo considerou a seguinte matéria de facto, não impugnada, que se reproduz ipsis verbis:
1. O Autor é cidadão nacional da República da Tunísia, nascido a 11/09/1997 – cfr. documentos de fls. 1 e seguintes do PA apenso aos autos;
2. Em 17/12/2021, as autoridades da Itália introduziram as impressões digitais do Autor no sistema EURODAC e foi-lhes atribuída a referência “IT1AG060IX” – cfr. documento de fls. 3 do PA apenso aos autos;
3. Em 06/05/2024, os serviços da AIMA, I.P. efetuaram um pedido de tomada a cargo do Autor, às autoridades Italianas, invocando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento de Dublin), e a ocorrência registada, na base de dados do Sistema EURODAC, sob a referência “IT1AG060IX” – documento 1 junto com a petição inicial, e de fls. 79 a 92 do PA apenso aos autos;
4. Em 18/05/2024, o Autor apresentou um pedido de proteção internacional na Loja AIMA do Porto, registado sob o número de processo 1398/24, e procedeu ao preenchimento de documento designado por INQUÉRITO PRELIMINAR – cfr. documentos de fls. 24 a 33 do PA apenso aos autos;
5. Em 20/05/2024, o Autor prestou declarações, tendo sido lavrado o instrumento intitulado “PRESTAÇÃO DE DECLARAÇÕES – Dublin”, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se destaca, designadamente, o seguinte: “(…)






(…)

– cfr. documentos de fls. 34 a 38 do PA apenso aos autos;

6. Na mesma data referida no ponto antecedente, foi o Autor notificado do sentido provável da decisão vir a ser de inadmissibilidade do pedido e consequente transferência para Itália, tendo-lhe sido concedido um prazo de três dias úteis para se pronunciar – cfr. documento de fls. 37 do PA apenso aos autos;
7. Em 23/05/2024, o Autor apresentou pronúncia sobre o sentido provável da decisão, que aqui se dá como integralmente reproduzida, na qual pugnou no sentido de que o seu pedido de proteção internacional seja apreciado em Portugal, não devendo ser feita a sua transferência para Itália – cfr. documento de fls. 71 a 76 do PA apenso aos autos;
8. Em 27/05/2024, pelos serviços da AIMA, I.P. foi emitida a Informação/Proposta/n.º 1135/CNARAIMA/2024, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual se extrai, designadamente, o seguinte:
«(…) I. DOS FACTOS E SUA APRECIAÇÃO:

1. O cidadão foi detetado em Território Nacional em situação de permanência irregular, tendo sido instaurado o processo de afastamento coercivo nº 24000075 CJ/AIMA, que corre termos no Departamento Jurídico – Divisão de Serviços de Afastamento, Readmissão e Retorno (DJ-DSARR).
2. Aos 23/04/2024, o DP-DSARR, recolheu as impressões digitais do cidadão e solicitou ao Centro Nacional para o Asilo e Refugiados AIMA (CNAR AIMA), que efetuasse consulta ao sistema EURODAC.
3. Após consulta ao sistema EURODAC foi rececionado um acerto com o “Case ID IT1AG060IX”, inserido por Itália.
4. Aos 30/04/2024, o DJ-DSARR, solicitou ao CNAR AIMA que efetuasse um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas.
5. Aos 06/05/2024, o CNAR AIMA apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas ao abrigo do artigo 18º, nº 1, al. b), do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do PE e do Conselho de 26 de junho (Regulamento de Dublin).
6. O requerente apresentou pedido de proteção internacional a 18/05/2024, na Unidade Habitacional de Santo António, que foi registado sob o número de processo 1398/24.
7. Nos termos previstos no Regulamento (EU) n.º 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho (Regulamento Eurodac), relativo à criação do sistema “Eurodac” foram recolhidas as impressões digitais de todos os dedos.
8. Após o registo e consulta à base de dados Eurodac, foi rececionado um acerto com o “Case ID IT1AG060IX”, inserido pela Itália.
9. Face ao que antecede, foi designado instrutor no procedimento com vista à determinação do Estado membro responsável. Nos termos do artigo 39º, da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua redação atual, a instrução do procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional suspende, até decisão final, a contagem do prazo previsto no n.º 1 do artigo 20.
10. Aos 20/05/2024, foram tomadas as declarações do requerente, mediante realização de entrevista e relatório (anexo aos autos e entregue na mesma data ao requerente), a que se refere o n.º 6, do artigo 5º, do Regulamento de Dublin, Por esta via, foi possível confirmar a situação descrita no número anterior, essencial para a determinação do Estado responsável, bem como apurar outras situações pertinentes para a correta aplicação dos critérios enunciados no Regulamento de Dublin.
11. Nesse mesmo dia, foi a requerente notificado do sentido provável da decisão de inadmissibilidade e consequente transferência para Itália para, no prazo de 3 dias uteis, sobre ela se pronunciar.
12. Aos 23/05/2024, o requerente apresentou alegações que fazem parte integrante dos autos, alegando o seguinte:
(…)
13. Analisados as alegações apresentados, verifica-se que a requerente não apresenta matéria de facto relevante para pôr em causa a aplicação no caso em apreço dos critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, e consequente transferência para Itália. Senão vejamos,
14. O requerente apresenta alegações, iniciando as mesmas fazendo referência aí critério em que se baseia a proposta de decisão, em concreto o artº 18, nº 1, do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho; refere que não tem presente ter solicitado proteção internacional em Itália, mencionando no entanto que caso essa informação conste do sistema, o tenha feito sem consciência, ou que eventualmente tenha sido orientado ou coadjuvado por terceiros; estava fragilizado, num país estrangeiros cuja língua desconhecia, num tal estado de vulnerabilidade que talvez o tenha levado a confundir o pedido eventualmente formulado; mesmo que o mesmo tenha apresentado pedido de proteção internacional em Itália, entende que o seu pedido de asilo ao estado português não deve ser considerado inadmissível e ordenada a sua transferência para Itália; menciona que chegou a Itália por via marítima a 24/11/2021, tendo prosseguido viagem para França, onde residiu até 21/03/2024, data em que entrou em Portugal; entende que dado o lapso de tempo decorrido, Portugal tornou-se o Estado-membro responsável pela apreciação do seu pedido; menciona também que a sua transferência para Itália poderá ser ilícita pelo facto de existirem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento; refere um relatório da Organização Suíça de 2016 para sustentar a sua posição; refere que a Itália é o país mais afetado pela pressão migratória na Europa, sendo patente e notório o ódio racial e comportamento xenófobo do seu povo; a atual situação de Itália terá como consequência a dependência do requerente do apoio público, poendo ficar numa situação de privação material; o requerente faz ainda menção ao relatório AIDA; por fim, refere que o seu pedido de proteção internacional deve ser analisado em Portugal, não devendo ser executada a sua transferência para Itália, sendo que estas alegações não relevam para a decisão em apreço, uma vez que a análise de mérito do pedido de proteção internacional deverá ser concluída na Itália, determinando os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, que este é o Estado Membro responsável pela mesma.
15. Sendo certo que a aplicação da cláusula de salvaguarda prevista no nº 2 do art.º 3º do Regulamento Dublin III exige a verificação de “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro” e que tais falhas “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.
16. Nos termos do art.º 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes”. Ora,
(…)
19. Atendendo a que a Itália se rege pelos mesmos princípios internacionais orientadores e normas europeias que Portugal, e que é à Itália que cabe a análise de mérito do presente caso, devemos considerar a situação em apreço devidamente analisada à luz do princípio do non refoulement.
20. Acresce que, o requerente não referiu em nenhum momento da entrevista ou das alegações aqui apresentadas que o tratamento a que esteve sujeito em Itália foi desumano ou degradante, na aceção do artigo 4º da CDFUE, pelo que a cláusula de salvaguarda prevista no nº 2, do art.º 3º, do Regulamento de Dublin III também não se aplica ao caso em apreço. Aliás,
21. Acresce ainda, que a Itália garante a proteção de pessoas vulneráveis, de acordo com a Diretiva 2013/33/UE do PE e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nos seus artigos 17º, nº 2 e 21º e ss., encontrando-se devidamente transposta para a ordem interna, pelo que o apoio médico necessário se encontra garantido naquele país.
22. Os requerentes de asilo e os beneficiários de proteção internacional devem registar-se no Serviço Nacional de Saúde, gozando de igualdade de tratamento e de plena igualdade de direitos e obrigações relativamente aos cidadãos italianos no que se refere à assistência prestada pelo Serviço Nacional de Saúde em Itália.
23. O requerente quando prestou declarações à entidade instrutora nega ter solicitado proteção em Itália, ou noutro Estado Membro, contudo, existe um registo Eurodac de categoria 1, que comprova a existência de um pedido de proteção internacional em Itália.
24. Nas suas declarações alega ainda, que na eventualidade deste pedido existir no sistema, o ter feito sem consciência ou orientado por terceiros, quer-nos parecer que o requerente pretende ludibriar a entidade instrutora, tentando ocultar o seu pedido anterior, de modo a conseguir que o seu pedido seja analisado por Portugal.
25. O requerente alega ainda, que estava num país estrangeiro, cuja língua não conhecia, e eventualmente num estado de vulnerabilidade que o levou a confundir o pedido formulado. Contudo, o requerente, em Portugal, num país igualmente estrangeiro e que desconhece a língua, não teve qualquer problema ou dúvida, em formular um pedido de proteção internacional.
26. Acresce ainda, que aos 23/04/2024, o requerente nas declarações que prestou para o processo de afastamento coercivo que corria termos no Departamento jurídico da AIMA, mencionou que em Itália tinha uma irmã, .... , que é residente legal neste Estado Membro.
27. O requerente tem uma familiar, a irmã, a residir em Itália, que lhe poderá dar suporte familiar e ajudar na integração neste país, contrariamente, ao que acontece em Portugal, onde não possui qualquer tipo de suporte familiar.
28. O requerente refere que entrou em Itália a 24/11/2021, tendo residido em França até 21/03/2024, face ao tempo decorrido, Portugal é o Estado Membro responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional. Em primeiro lugar, o requerente desde 2021 que permaneceu no território dos Estados Membros, em segundo lugar, o tempo decorrido não é relevante para a cessação de responsabilidade de um Estado Membro. Nos termos do artigo 19º, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, a responsabilidade de Itália não cessou, pelo que, contrariamente ao alegado pelo requerente, Portugal não é responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional.
29. As alegações aduzidas pelo requerente não concretizam qualquer episódio que se refira à sua situação pessoal, limitando-se a mencionar relatórios elaborados por organizações, pelo que não podemos concluir que existam as referidas falhas sistémicas em Itália.
30. De acordo com as declarações do próprio requerente, este só permaneceu em Itália por seis dias, pelo que não teve qualquer possibilidade de aferir corretamente as condições de acolhimento de Itália, aliás, podemos até afirmar que o próprio se colocou num quadro de risco ao abandonar este país.
31. O requerente menciona que devido à pressão migratória constante de Itália, já se denota por parte do povo italiano comportamentos xenófobos e de ódio racial. Mais uma vez o requerente não menciona qualquer situação pessoal que tenha vivenciado, mas remete para um link sobre o assunto.
32. Não podemos, de igual modo, ignorar que os interessados na proteção internacional não beneficiam do direito de ver o seu requerimento apreciado e decidido em cada um dos Estados-Membros da União Europeia, até que, eventualmente, logrem obter uma decisão favorável.
33. De qualquer modo, o requerente não apresentou factos objetivos e precisos que se pudessem configurar como falhas sistémicas nas condições e acolhimento em Itália, que impliquem tratamento desumano ou degradante.
34. É indiscutível que cabia ao requerente alegar esses factos e apresentar as respetivas provas, o que não fez. Nesta medida, não pode concluir-se que o Estado italiano, se insira no âmbito de aplicação do artº 3º, nº 2, segundo parágrafo, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho. Assim, A requerente tem ainda a possibilidade de apresentar na Alemanha um pedido de proteção internacional subsequente, caso tenha novos factos a apresentar. Assim,
35. Verifica-se que os elementos apresentados pelo requerente não obstam à aplicação dos critérios enunciados no Capítulo III c. e consequente transferência para Itália, nem consubstanciam uma probabilidade séria do mesmo, face à sua situação concreta, sofrer um risco de tratamento desumano ou degradante, na aceção do artigo 4º da CDFUE, caso seja transferido atualmente para Itália, nem que ocorram quaisquer circunstâncias pessoais especiais, que o tornem especialmente vulnerável, na aceção que tem vindo a ser concretizada pela jurisprudência do TJUE, a qual tem sido particularmente exigente na aplicação do §2 do nº 2, do artigo 3º, do Regulamento Dublin III.
(…)
37. Aos 06/05/2024, o CNAR AIMA apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas ao abrigo do artigo 18º, nº 1, al. b), do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento de Dublin).
38. Decorrido o prazo de duas semanas estabelecido no art.º 25º, nº 1, do Regulamento, sem que as autoridades italianas se tivessem pronunciado, tal equivale à aceitação tácita do pedido, conforme previsto nos termos do nº 2, do mesmo artigo 25º. 39. Atendendo à situação de admissão tácita deve a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P., proferir uma decisão de inadmissibilidade do pedido.
II. DO DIREITO:
40. A Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua redação atual, que estabelece as condições e procedimentos para a análise dos pedidos de proteção internacional e concessão do estatuto de refugiado ou proteção subsidiária, prevê na alínea a), do n.º 1, do artigo 19º-A que, o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção, previsto no Capítulo IV.
41. Ainda nos termos do n.º 2, do artigo 19-A, nos casos previstos no número anterior deste artigo, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.
42. O procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional encontra-se regulado no Capítulo IV, artigo 36º e seguintes da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua redação atual, aplicando-se apenas os procedimentos aqui previstos.
III. CONCLUSÕES:
43. Tendo ocorrido uma situação de aceitação tácita (cf. Ponto 38), e não tendo o requerente invocado factos concretos que possam conduzir a decisão diferente, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente para a Itália.
IV: DA PROPOSTA:
44. Pelo exposto, e tendo em consideração que os pedidos são analisados por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de junho, designarem como responsável, propõe-se que a Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 18º, nº 1 d), do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho. 45. Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, na sua redação atual, e à sua transferência, nos termos do artigo 38º, do mesmo diploma para Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho. (…)»
– cfr. documento 1 junto com a petição inicial, e de fls. 79 a 92 do PA apenso aos autos;
9. Em 28/05/2024, pelo Conselho Diretivo da AIMA, I.P. foi proferida decisão de concordância, exarada sobre a informação identificada no ponto antecedente – cfr. documento 1 junto com a petição inicial, e de fls. 79 do PA apenso aos autos;
10. Em 07/06/2024, pelos serviços da AIMA, I.P. foi comunicado ao Autor o seguinte: «Aos 07/06/2024, no Centro Nacional para o Asilo e Refugiados AIMA, sito na Rua Passos Manuel, nº 40, 1169-089 Lisboa, é notificado(a) o(a) cidadão(a) .... , nascido(a) aos 11/09/1997, nacional de TUNÍSIA, da decisão de transferência proferida aos 28/05/2024 pelo conselho Diretivo da AIMA, ao abrigo do artigo 37, nº 2, da Lei n.º 27/2008, de 30.06 na sua redação atual, na qual se determina que o(a) ITÁLIA é o Estado responsável pela sua retoma a cargo. (…)» – cfr. documento 2 junto com a petição inicial, e de fls. 98 do PA apenso aos autos.

FACTOS NÃO PROVADOS: Não existem outros factos alegados relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito, que importe registar como não provados.
*

II.2 - De Direito


Cumpre apreciar conforme delimitado em I.1.
Mas antes há que aferir,

Ø Da junção de documentos na fase do recurso

Veio o Recorrente juntar com as alegações de recurso, vários documentos (11).
Sobre a admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso, chamamos aqui à colação a doutrina que dimana do acórdão do STJ, de 30.04.2019, P. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, no qual se sumariou o seguinte:
«I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.
III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.
IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.»
O Recorrente não justifica a necessidade de junção dos 11 documentos. Embora aluda aos mesmos ao longo do discurso alegatório, o certo é que não é feita qualquer menção nas conclusões, nem é requerida, a final, a sua junção.

Ora, a junção de documentos em sede de recurso jurisdicional está sujeita às condições previstas no art. 651º do CPC, sem que se mostre justificada a sua junção, atentos os pressupostos do citado artigo 651º, nem se vislumbra a sua relevância.
Pelo que não se admite a sua junção, o que determinará o seu desentranhamento.

Ø Das ilegalidades processuais

Antecipamos, desde já, que as questões adjectivas invocadas pelo Recorrente não podem proceder.
O Tribunal a quo proferiu despacho prévio à sentença recorrida segundo o qual:
“… O Autor, na sua petição inicial, requereu a prestação de declarações de parte. Porém, tendo em conta o alegado pelo mesmo e os documentos juntos aos autos, considera-se que estes elementos de prova permitem apurar todos os factos relevantes para a decisão da presente causa. Acresce que a factualidade alegada pelo Autor se compagina com a produção de prova documental, pelo que as declarações de parte requeridas se afiguram desnecessárias. Assim, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), dispensam-se as declarações de parte requeridas, passando a proferir-se, de imediato, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 111.º do mesmo Código”.

Ou seja, o Tribunal a quo decidiu que dispunha de toda a prova relevante para a decisão não sendo necessária a instrução e produção de outra prova.
Sucede que tal despacho prévio à prolação da sentença não foi efectivamente impugnado no presente recurso, como resulta das conclusões recursivas, sendo os vícios imputados apenas à sentença recorrida.
Em todo o caso, a decisão que dispensou a produção de outra prova não determina a verificação de qualquer nulidade processual, designadamente nos termos do art. 195º do CPC, uma vez que essa dispensa está na esfera decisória do julgador, que pondera e decide em conformidade, pelo que não pode ser entendido como um acto que tem de ser realizado obrigatoriamente - ver AC TCAS de 24.03.2022, processo nº481/15.8BECTB, publicado em www.dgsi.pt.
Não podemos olvidar, que, de acordo com o artigo 607.º, n.º 5, do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; e esta livre apreciação apenas não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Logo, a sentença recorrida também não padece da nulidade prevista no artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC, uma vez que se limitou a decidir em conformidade com as questões que importavam conhecer.
O que pode acontecer é que o juiz tenha errado ao considerar que os autos continham já todos os elementos necessários para que pudesse ser proferida a competente decisão de mérito. Nesse caso, estaremos perante um erro sobre o julgamento da matéria de facto, com repercussão na decisão sobre o mérito.
Por outro lado, segundo o Recorrente, a prestação de declarações de parte destina-se a demonstrar os factos alegados. Todavia, neste ponto, alude de forma vaga e genérica, porquanto a remissão para os artigos “20.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 35.º, 36.º, 42.º, 43.º, 44.º, 52.º 53.º, entre outros da PI” (conclusão V), em que tais factos alegadamente estariam indicados, é inapta para os fins pretendidos.
Desde logo, face ao dever imposto no artigo 640º, nº 1 do CPC, deveria o Recorrente indicar os factos em concreto que visa provar. O que não fez.
Depois, basta uma breve análise dessa amálgama de artigos para se perceber que sobretudo remetem para o que terá sido dito em sede de prestação de declarações – vide artigos 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º ,52.º 53º, da p.i., que já consta do probatório, no ponto 5-, ou são meras considerações ou conclusões sobre o acolhimento de refugiados em Itália (vide artigos 35.º, 36.º, 42.º, 43.º, 44.º da p.i.). Sobre a alegada incompletude do auto de declarações (art. 20º da p.i.), o Recorrente assinou que estava em conformidade com o que declarou e em sede de audiência prévia (ponto 7 do probatório) nada referiu a esse propósito. Sendo que o facto a que se quereria referir consta do art. 19º da p.i - Posteriormente, por via terrestre, em autocarro, a 22/02/2024, deslocou-se em direcção a Lisboa, onde foi detectado e detido- mas que para a presente acção é irrelevante.
Incumprindo, pois, o ónus que sobre si impendia, pois, além de não impugnar o julgamento de facto realizado pelo Tribunal a quo, designadamente de que “nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa”, também não enuncia os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ou omitidos (vide art. 640º do CPC). Omitindo, assim, qualquer concretização factual de modo a que o Tribunal ad quem pudesse aferir da pertinência e da necessidade de realização de prova sobre a factualidade relevante (vide conclusões VII e VIII).
No que concerne à decisão surpresa quanto à não produção de outra prova, importa destacar que, por via do disposto no art. 37º, nº 5, da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, alterada pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio (Lei do Asilo), a tramitação a seguir é a prevista para as intimações, direitos, liberdades e garantias (artigos 109º e segs. do CPTA), apenas sendo de adoptar a da acção administrativa quando a complexidade da matéria o justifique, o que não ocorre. Porquanto o Tribunal a quo não tinha o dever de notificar o Recorrente para se pronunciar antes do sobredito despacho de dispensa de prova (vide art. 90º, nº 3 do CPTA), mas apenas justificar as razões de tal dispensa. O que foi feito.
Além de que, conforme se verificará, nem se revela que tal decisão tenha sido errónea.
Pelo que, nesta parte, improcede.

Ø Das questões substantivas
Atentas as conclusões recursivas cumpre aferir se o Tribunal a quo errou ao manter a decisão impugnada que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo Recorrente/Autor, em virtude de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008.
Defende o Recorrente que a decisão recorrida viola as seguintes disposições legais: n.º 2 do artigo 3.º, 18.º, 20.º, 23.º, 24.º e 25.º do Regulamento de Dublin III; 1.ª parte do n.º 1 do artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951, 4.º da CDFUE, n.º 8 do artigo 33.º da CRP e 17.º nº 1, 19º, 1 a) e 2, 36 a 40, da lei 27/2008 de 30 de Junho, bem como os artigos 3.º e 5.º do DL 4/2015 de 7 de Janeiro (CPA) (vide conclusões II e XXXVII).
Desta miríade de disposições legais, alegadamente violadas pela sentença recorrida a maior parte delas sem a devida justificação, o enfoque é dado sobre o suposto de dever que recai sobre a Entidade Recorrida de aferir das condições de acolhimento dos refugiados em Itália e sobre os “receios” do Recorrente de regressar ao seu país de origem, a Tunísia, que terão sido indevidamente apreciados pelo Tribunal a quo.
Atentemos no discurso fundamentador da sentença recorrida, do qual se destaca:
“ (…) a questão a apreciar e a decidir nos presentes autos consiste em saber se ao Autor assiste o direito a exigir, em virtude da condenação da Entidade Demandada, que esta instrua o procedimento de proteção internacional, já iniciado, com informação sobre o funcionamento do sistema de asilo em Itália e sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado. Com efeito, conforme se extrai do probatório, está em causa uma decisão proferida no procedimento administrativo especial para determinação do Estado Membro responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional apresentado, no âmbito do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, fase preliminar do procedimento administrativo de concessão de proteção internacional. Da alegação do Autor extrai-se que, no seu entendimento, se verificou um défice instrutório associado à não aferição se, face ao alegado na sua entrevista, existe um risco considerável ou grave de, regressando a Itália, ocorrerem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante. Vejamos então. Nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 33.º da Constituição, «[é] garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana». Concretizando o direito de asilo aí consagrado, a Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na sua redação atual [resultante da Lei n.º 53/2023, de 31 de agosto], veio estabelecer as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, e implementar, a nível nacional o Regulamento (UE) n.º 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho [relativo à criação do sistema EURODAC de comparação de impressões digitais], para efeitos de aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (doravante designado por Regulamento de Dublin).
O n.º 1 do artigo 13.º do citado diploma determina que «[o] estrangeiro ou apátrida que entre em território nacional a fim de obter proteção internacional deve apresentar sem demora o seu pedido à AIMA, I.P., ou a qualquer outra autoridade policial, podendo fazê-lo por escrito ou oralmente, sendo neste caso lavrado auto». Por sua vez, preceituam as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 15.º da mesma lei que o requerente deve apresentar todos os elementos necessários para justificar o pedido de proteção internacional, designadamente, a indicação da sua nacionalidade, país ou países e local ou locais de residência anteriores, assim como a indicação de pedidos de proteção internacional anteriores.
Por outro lado, a alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A do referido diploma legal, estabelece que o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que «[e]stá sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV». Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, nas situações em que o pedido é considerado inadmissível, «prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional». Ora, no âmbito do referido procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, regulado nos artigos 36.º a 40.º, compreendidos no Capítulo IV da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, estabelece-se que «[q]uando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial» (artigo 36.º). Em conformidade, dispõe o n.º 1 do artigo 37.º do mencionado diploma, que «[q]uando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, a AIMA, I.P. solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo». Acresce que, de acordo com o preceituado no n.º 2 do artigo citado, «[a]ceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o conselho diretivo da AIMA, I.P. profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente». Resulta, assim, do enquadramento legal mencionado que, uma vez considerado o pedido inadmissível, por ser outro o Estado-Membro responsável para a sua apreciação, e aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, compete à AIMA, I.P. assegurar a execução da transferência do requerente de proteção internacional, nos termos do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.
Do Regulamento (UE) n.º 604/2013 – Regulamento de Dublin –, constam os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, apresentado num dos Estados-Membros, por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Designadamente, no artigo 3.º do citado Regulamento, sob a epígrafe acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional, dispõe-se o seguinte:
«1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.
2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado. Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável. (…)»
No artigo 18.º do Regulamento estabelecem-se as seguintes obrigações do Estado-Membro responsável:
«1. O Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a: a) Tomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 21.º, 22.ºe 29.º, o requerente que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro; b) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o requerente cujo pedido esteja a ser analisado e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado Membro sem possuir um título de residência; c) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o nacional de um país terceiro ou o apátrida que tenha retirado o seu pedido durante o processo de análise e que tenha formulado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência; d) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o nacional de um paí país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência. 2. Nos casos abrangidos pelo n.º 1, alíneas a) e b), o Estado-Membro responsável deve analisar ou finalizar a análise do pedido de proteção internacional apresentado pelo requerente. Nos casos abrangidos pelo n.º 1, alínea c), se o Estado-Membro responsável tiver interrompido a análise de um pedido na sequência da sua retirada pelo requerente antes de ter sido adotada em primeira instância uma decisão quanto ao mérito, esse Estado-Membro assegura que o requerente tenha direito a pedir que a análise do seu pedido seja finalizada ou a introduzir novo pedido de proteção internacional, que não deverá ser tratado como um pedido subsequente tal com previsto na Diretiva 2013/32/UE. Em tais casos, os Estados-Membros asseguram que a análise do pedido seja finalizada. Nos casos abrangidos pelo n.º 1, alínea d), se o pedido tiver sido indeferido apenas na primeira instância, o Estado-Membro responsável assegura que a pessoa em causa tenha, ou tenha tido, a oportunidade de se valer de recurso efetivo nos termos do artigo 46.º da Diretiva 2013/32/UE.»
Quanto ao início do processo de determinação do Estado responsável, e que poderá acarretar a tomada ou retoma a cargo, o mesmo ocorre a partir do momento em que um pedido de proteção internacional é apresentado pela primeira vez num Estado-Membro, atento o disposto no n.º 1 do artigo 20.º do Regulamento.
No que concerne ao procedimento de retomada a cargo, estabelece o n.º 1 do artigo 23.º do Regulamento de Dublin que «[s]e o Estado-Membro ao qual foi apresentado um novo pedido de proteção internacional pela pessoa referida no artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), considerar que o responsável é outro Estado-Membro, nos termos do artigo 20.º, n.º 5, e do artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), pode solicitar a esse outro Estado-Membro que retome essa pessoa a seu cargo.».
No que se refere à resposta ao pedido de retomada a cargo, determina o artigo 25.º do Regulamento de Dublin, o seguinte:
«1. O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias e toma uma decisão sobre o pedido de retomar a pessoa em causa a cargo o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, dentro do prazo de um mês a contar da data em que o pedido foi recebido. Quando o pedido se baseie em dados obtidos através do sistema Eurodac, o prazo é reduzido para duas semanas. 2. A falta de uma decisão no prazo de um mês ou no prazo de duas semanas referidos no n.º 1 equivale à aceitação do pedido, e tem como consequência a obrigação de retomar a pessoa em causa a cargo, incluindo a obrigação de tomar as providências adequadas para a sua chegada.»

Regressando ao caso dos autos, resulta do probatório que, no âmbito do procedimento instaurado, em virtude do pedido de proteção internacional apresentado em 18/05/2024, pelo Autor, os serviços da AIMA, I.P. apuraram que aquele já havia solicitado proteção internacional noutro Estado-Membro, no caso a Itália (cfr. pontos 2 a 6 dos factos provados).
Por esse motivo, a AIMA, I.P., verificando que a competência para a análise do pedido de proteção internacional apresentado pelo Autor não pertencia ao Estado Português, em face dos critérios previstos no Regulamento de Dublin, deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido, no âmbito do qual formulou, designadamente, um pedido de retoma a cargo do ora Autor às autoridades italianas, por ter apurado ser esse o Estado responsável pela análise do pedido, segundo o mencionado Regulamento. Sendo que, uma vez decorrido o período de duas semanas sem obter resposta, tal equivale à aceitação tácita do pedido, conforme previsto no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Regulamento (cfr. pontos 3 e 8 dos factos provados).
Nesta sequência, a Entidade Demandada, considerando que a responsabilidade pela análise do pedido em causa pertence a outro Estado-Membro, não procedeu à sua apreciação, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, tendo, antes, dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, conforme o previsto nos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 36.º e seguintes da mesma lei (cfr. ponto 8 dos factos provados).
Na verdade, tendo as autoridades portuguesas solicitado a retoma a cargo da ora Autor e uma vez aceite tacitamente tal pedido por parte das autoridades italianas, deve a AIMA, I.P. emitir a decisão de transferência, como fez.
O Estado ao qual compete executar a transferência do requerente de proteção apenas deve abster-se de o fazer, prosseguindo com a análise do pedido, quando disponha de elementos sérios para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de acordo com o estabelecido no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Dublin.
Quanto à questão das invocadas falhas sistémicas, deve notar-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia se tem orientado consensualmente no sentido do sistema de asilo comum assentar no princípio da confiança mútua, presumindo-se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada Estado-Membro está em conformidade com as exigências da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. acórdão de 19/03/2019, processo C-163/17, Abubacarr Jawo contra Bundesrepublik Deutschland, disponível em https://curia.europa.eu)
E, no tocante a esta questão, também existe jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de as autoridades portuguesas não se encontrarem obrigadas a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando, no caso concreto, não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas (cfr. os acórdãos de 16/01/2020, processo n.º 02240/18.7BELSB; de 23/04/2020, processo n.º 0916/19.0BELSB; de 21/05/2020, processo n.º 1300/19; de 04/06/2020, processo n.º 01322/19.2BELSB; de 02/07/2020, processo n.º 01786/19.4BELSB; de 02/07/2020, processo n.º 01088/19.6BELSB; de 09/07/2020, processo n.º 01419/19.9BELSB; de 10/09/2020, processo n.º 01108/19.4BELSB; de 10/09/2020, processo n.º 01932/19.8BELSB; de 10/09/2020, processo n.º 01705/19.8BELSB; de 10/09/2020, processo n.º 02194/19.2BELSB; de 05/11/2020, processo n.º 01108/19.4BELSB; de 05/11/2020, processo n.º 01932/19.8BELSB; de 05/11/2020, processo n.º 02364/18.0BELSB; de 19/11/2020, processo n.º 01301/19.0BELSB; e de 27/05/2021, processo n.º 01357/19.5BELSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt). No caso dos autos, afigura-se igualmente ser de concluir no sentido de não recair sobre a Entidade Demandada a obrigação de averiguar acerca das condições no procedimento de asilo e no acolhimento em Itália, uma vez que o Autor não invocou quaisquer elementos ou factos que minimamente indiciassem a existência de motivos válidos que levassem a Entidade Demandada a crer que aquele tenha sido vítima de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento naquele Estado-Membro, suscetíveis de implicar risco de tratamento desumano ou degradante. Por outro lado, inexistindo os referidos indícios quanto à falta de capacidade sistémica do sistema de acolhimento italiano, a aplicação do princípio do non refoulement, na apreciação do risco que comportará o eventual regresso do requerente ao país de origem, a Tunísia, terá de competir, em exclusivo, àquele Estado Membro, por ser este, à luz do Regulamento de Dublin, o responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, sob pena de se afrontar o Sistema Europeu Comum de Asilo (vejam-se, no mesmo sentido, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 09/09/2021, proferido no processo n.º 814/21.8BELSB; de 06/10/2022, proferido no processo n.º 879/22.5BELSB; e de 26/01/2023, proferido no processo n.º 1133/22.8BELSB, disponíveis em www.dgsi.pt). Deste modo, será à Itália que, no caso, e no âmbito da apreciação do mérito do pedido de proteção internacional do requerente, caberá apreciar, à luz daquele princípio, a questão do risco de o mesmo vir a ser vítima de tratamento desumano ou degradante na Tunísia, não cabendo às autoridades portuguesas averiguar, no âmbito do procedimento em que foi praticado o ato impugnado, se, em concreto, as autoridades italianas decidiram, ou poderão vir a decidir, corretamente sobre o mérito do pedido de proteção internacional do requerente. Efetivamente, no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, não há lugar à análise das condições a preencher pelo requerente para beneficiar do estatuto de proteção internacional [cfr. artigo 19.º-A, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho. Neste conspecto, a decisão impugnada não padece de invalidade decorrente da alegada falta de averiguação”.

Perante a argumentação exarada de forma sustentada e consistente na sentença recorrida, que supra se transcreveu, o Recorrente limita-se a reafirmar as alegadas falhas sistémicas em Itália em matéria de acolhimento e do seu receio de regressar à Tunísia.
Acontece que o Recorrente esteve apenas 6 dias em Itália, como se depreende das suas declarações, pelo que dificilmente se terá apercebido da realidade.
Por outro lado, quanto às circunstâncias vividas em Itália pelos refugiados, citamos o recente Acórdão deste TCA Sul, de 03.07.2025, proferido no Proc. nº 4872/24.5BELSB, acessível in www.dgsi.pt , cujo sumário se transcreve:
“I - Nada tendo o autor alegado para caracterizar uma situação de previsível tratamento desumano ou degradante pelas autoridades de Itália, inexistem indícios falhas graves, pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/13, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013.
II - Consequentemente, é desnecessária uma específica actividade instrutória, antes da determinação da transferência, para verificação de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de protecção internacional, também não se impondo à entidade demandada a averiguação oficiosa acerca da existência de razões indicativas do risco de refoulement.
III - Na falta de indícios de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de protecção internacional por parte das autoridades italianas, não cabe às autoridades nacionais apreciar o pedido de protecção internacional formulado pelo requerente, competindo tal responsabilidade, antes, às autoridades do Estado italiano – nos termos do citado Regulamento n.º 604/2013 -, a quem incumbe, não só a apreciação do eventual risco que implicará o regresso do requerente ao seu país de origem, mas também a aplicação do princípio do non refoulement”.

A posição acolhida na sentença e que se confirma tem sido reiteradamente assumida pela jurisprudência dos tribunais superiores, tal como nos dá conta o Ac. de 18.11.2021, do Colendo STA, de não admissão de recurso de revista, no Proc. nº 137/21.2BELSB, em caso análogo ao sub iudicio, justificando que o juízo deste TCA Sul, no Ac. de 31.08.2021, “se mostra assente em fundamentação jurídica consonante também com a jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre as quaestiones juris e o quadro normativo objeto de discussão [cfr., nomeadamente, entre outros os Acs. de 16.01.2020 - Proc. n.º 02240/18.7BELSB, de 04.06.2020 - Proc. n.º 01322/19.2BELSB, de 02.07.2020 - Procs. n.ºs 01786/19.4BELSB e 01088/19.6BELSB, de 09.07.2020 - Proc. n.º 01419/19.9BELSB, de 10.09.2020 - Procs. n.ºs 01705/19.8BELSB e 03421/19.1BEPRT, de 05.11.2020 - Procs. n.ºs 01108/19.4BELSB, 01932/19.8BELSB e 02364/18.0BELSB, de 19.11.2020 - Proc. n.º 01301/19.0BELSB, de 04.02.2021 - Proc. n.º 0115/20.9BELSB, de 11.03.2021 - Procs. n.ºs 093/20.4BELSB, 01658/19.2BELSB, 02295/19.7BELSB e 01282/20.7BELSB, de 08.04.2021 - Proc. n.º 02253/19.1BELSB, de 22.04.2021 - Proc. n.º 01039/19.8BELSB, de 27.05.2021 - Proc. n.º 01357/19.5BELSB], o que vale por dizer que a admissão do recurso não é necessária para uma melhor aplicação do direito, na certeza de que presentes os termos da discussão não se vislumbra igualmente uma especial relevância social e jurídica ante tal jurisprudência uniforme”.

No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, quer pelas declarações do próprio em sede procedimento, como da extensa e pormenorizada informação da AIMA que precedeu a decisão de inadmissibilidade do pedido de asilo (vide ponto 8 do probatório), ou ainda na sentença recorrida, é inquestionável que competirá às autoridades italianas, na medida em que são as responsáveis pela análise do pedido, avaliar, por um lado, os fundamentos do pedido, e aferir, por outro lado, do risco de expulsão para o país de origem, pois caberá à Itália a análise e aplicação do princípio de não repulsão, à luz das concretas circunstâncias invocadas pelo requerente de protecção, e não a Portugal.
Nada mais se impunha à Recorrida/AIMA ou ao Tribunal a quo.

Terá, assim, que negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a sentença recorrida.


*
III. DECISÃO
Em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul em:
i) determinar o desentranhamento dos documentos juntos com as alegações;
ii) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas (cf. art.º 84.º da Lei do Asilo).
Registe e notifique.
Lisboa, 11 de Setembro de 2025
Ana Cristina Lameira, relatora
Ricardo Ferreira Leite (em substituição da 1ª Adjunta)
Marta Cação Rodrigues Cavaleira