Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:71/25.7BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SUSPENSÃO DE PRESTAÇÃO DE RSI
FALTA DE COMPARÊNCIA A CONVOCATÓRIA
Sumário:I - No âmbito de uma providência cautelar, à luz do disposto no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, são questões a decidir, porque integrantes da causa de pedir, o preenchimento dos pressupostos de adoção das medidas cautelares, correspondentes ao fumus boni iuris, ao periculum in mora e à ponderação de interesses.
II - A circunstância de, em sede de apreciação do preenchimento do fumus boni iuris, o Tribunal a quo não considerar todos os argumentos em que a Recorrente fez assentar a invalidade do ato não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, na medida em que não se confundem argumentos ou razões com as questões sobre as quais impede o dever de apreciação do juiz;
III - O incumprimento dos ónus impugnatórios previstos no n.º 1 do artigo 640.º do CPC conduz à rejeição do recurso quanto à matéria de facto;
IV - O direito à prestação de rendimento social inserção pode ser suspenso quando nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 21.º-C da Lei n.º 13/2003 se verifique a recusa injustificada de celebração do contrato por parte do titular da prestação, a qual se entende que existe quando o titular do direito falte a convocatórias, incluindo para a celebração do contrato de inserção, sem justificação atendível ou causa justificativa [als. a) e b) do n.º 6 do artigo 29.º desse diploma];
V - O concreto (e demonstrado) circunstancialismo fáctico do titular do rendimento social de inserção pode deter aptidão a, ao abrigo dos princípios condutores da atividade administrativa, demandar da Administração a adoção dos procedimentos adequados a possibilitar aos administrados o cumprimento das suas obrigações legais, designadamente como meio de tutelar as pessoas com incapacidades ou deficiência;
VI - Não provando a Recorrente que é detentora de uma deficiência, incapacidade permanente ou temporária, nem tão pouco que as patologias de que sustenta padecer a impedem de sair ou de se ausentar de casa, não recai sobre a Administração qualquer dever de lhe possibilitar a comparência remota à convocatória;
VII - Em conformidade com a al. a) n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003, conjugada com os n.ºs 1 e 4 do artigo 14.º do DL 28/2004, a comprovação da doença justificativa da falta de comparência, demanda um CIT (certificado de incapacidade temporária) ou a autodeclaração por compromisso de honra, através de serviço digital do Serviço Nacional de Saúde ou de serviço digital dos serviços regionais de saúde das regiões autónomas.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:


1. Relatório

S… (doravante A., Requerente ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, providência cautelar contra o ISS, IP. (Entidade Requerida, Requerida ou Recorrida), peticionando a suspensão da eficácia do ato que suspendeu a atribuição do Rendimento Social de Inserção.

Por sentença de 28.4.2025 aquele Tribunal julgou improcedente o processo cautelar.

Inconformada, a Requerente/Recorrente interpôs recurso para este Tribunal Central Administrativo, formulando as seguintes conclusões:

«Os fundamentos que a Recorrente considera essenciais e imprescindíveis para a interposição de recurso jurisdicional.
I. Síntese da decisão judicial e crítica fundamentada
A sentença em causa conclui pela inexistência de fumus boni iuris, fundamentando a decisão na alegada ausência de prova bastante da sua limitação funcional e na não apresentação de um Certificado de Incapacidade Temporária (CIT). No entanto:
A própria sentença reconhece a existência de relatórios clínicos e elementos probatórios que documentam as patologias (cardiovasculares, metabólicas e intestinais), sem os considerar com o devido valor jurídico.
Ignora que o CIT se destina a incapacidades temporárias, quando está amplamente demonstrado que a sua condição é permanente, sendo acompanhada há anos por médicos do SNS.
A decisão omite completamente o princípio da proporcionalidade, bem como o dever de adaptação razoável previsto na Lei n.° 46/2006, na CRP (arts. 13.°, 63.° e 71.°) e na CDPD (art. 19.°).
A sentença invoca jurisprudência relevante, nomeadamente o Ac. STA de 06/06/2024, mas não a aplica — violando o próprio standard normativo que reconhece o dever da Administração de adaptar procedimentos à realidade dos cidadãos com deficiência.
II. Fundamentos legais e materiais para o recurso
1. Violação do dever de adaptação procedimental e do princípio da não discriminação
A sentença ignora que, em 2024, o SAAS aceitou entrevista telefónica e recolha de assinatura em casa, reconhecendo tacitamente a sua limitação funcional permanente. Em 2025, perante a mesma condição, a entidade recuou injustificadamente, sem apresentar qualquer novo dado clínico.
2. Desconsideração injustificada da prova documental
A sentença desvaloriza relatórios médicos emitidos por entidades públicas, substituindo-os por uma exigência formal (CIT) desadequada.
Esta atitude contraria o princípio da suficiência da prova por documento idóneo, em especial tratando-se de condição duradoura.
3. Falta de ponderação dos danos irreparáveis (periculum in mora)
A sentença não analisa os efeitos sociais e clínicos da suspensão do RSI, apesar de estarem amplamente documentados: ausência de rendimentos próprios, apoio parental limitado, risco acrescido de descompensação cardíaca em contexto de temperaturas extremas.
4. Tratamento desigual sem justificação
O PA demonstra que em 2024 houve aceitação de entrevista remota. A alteração unilateral e não fundamentada da atuação do SAAS e da Segurança Social em 2025 representa uma violação clara do princípio da proteção da confiança e da igualdade no tratamento administrativo.
5. Má-fé administrativa e omissão do dever de acompanhamento
O Contrato de Inserção de 2024 estabelece como objetivo principal a “melhoria do estado de saúde”, com avaliação pela Unidade Local de Saúde — avaliação essa nunca realizada, nem substituída por qualquer acompanhamento social ou clínico.
6. Desrespeito pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)
A CDPD, ratificada por Portugal, impõe a adoção de medidas eficazes para garantir que as pessoas com deficiência possam viver de forma autónoma e tenham acesso a apoios sociais sem discriminação. A suspensão do RSI e a recusa de adaptações violam diretamente o art. 19.° da Convenção.
III. Conclusão e pedido de interposição de recurso Face ao exposto, reitera-se:
A existência de fumus boni iuris está plenamente demonstrada;
O periculum in mora é evidente, grave e atual;
A decisão judicial enferma de erro de julgamento e omissão de pronúncia sobre direitos fundamentais;
Os documentos constantes dos autos (relatórios médicos, emails, PA, reclamações, oposição) comprovam violação de princípios constitucionais e administrativos.
Por tudo isto, requer-se:
A revogação da sentença proferida em 28/04/2025;
A reapreciação do fumus boni iuris com base na legislação, jurisprudência e prova documental constante dos autos;
A reposição do RSI ou a determinação de medidas cautelares de efeito equivalente, sob pena de dano irreparável.
Nestes termos e nos demais de direito e com o sempre mui douto suprimento deve a douta Sentença recorrida, ser revogada e substituída por douto Acórdão, que declare a nulidade do despacho de indeferimento do RSI, documento dado aos autos, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão V. Exas.
Exm°s. Senhores Doutores Juízes Desembargadores a costumada, devida e merecida
JUSTIÇA”

A Entidade Requerida/Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso.

Com dispensa de vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


2. Delimitação do objeto do recurso

Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA), as questões que ao Tribunal cabe apreciar reconduzem-se a saber se a sentença recorrida padece de,
a) Nulidade;
b) Erro de julgamento de facto;
c) Erro de julgamento de direito.


3. Fundamentação de facto

3.1. Na decisão recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:

“Com base nas posições assumidas pelas partes e nos documentos identificados em cada alínea do probatório, consideram-se indiciariamente provados os seguintes factos:

1) Em 12/11/2021, a Unidade de Saúde Castelo Branco emitiu um documento designado "Informação Clínica - Consulta Externa", relativo à Requerente, do qual consta o seguinte: "(...) doente que foi seguida em consulta de Gastroenterologia durante 5 anos, entre 2016 e 2021 (...) ecografia abdominal (3/09/2020) (...) Tc abdominal (8/8/2018) (...) acresce ainda que durante o tempo de seguimento a doente referiu queixas de diarreia e desconforto abdominal. Todo o estudo analítico, endoscópico e histológico realizado (...) não revelou alterações patológicas pelo que se assumiu tratar-se de patologia funcional tendo sido medicada em conformidade com esse diagnóstico." - fls. 58 e 59;
2) Em 10/03/2022, a Entidade Requerida informou a Requerente que "o requerimento da prestação do Rendimento Social de Inserção foi deferido (...) a prestação tem início em 02/2022, no valor de 189,66 Euros e será paga por um período de 12 meses." - pág. 17 do PA de fls. 107 a 172;
3) Em 16/03/2022, a Requerente celebrou o contrato de inserção - facto que se extai do campo "5. Observações" do documento constante da pág. 19 do PA de fls. 107 a 172;
4) Em 24/02/2023, a Requerente celebrou a renovação do contrato de inserção - facto que se extrai do campo "9. Observações" do documento constante da pág. 21 do PA de fls. 107 a 172;
5) Em 28/06/2023, a Unidade de Saúde UCSP S Miguel emitiu um documento relativo à Requerente do qual, entre o mais, consta o seguinte: “(…)
Tem vindo a apresentar queixas de fezes moles desde há anos, com agravamento progressivo, não associando a perda de peso. Neste momento, o quadro de diarreia crónica torna-se incapacitaste ao ponto de a utente referir que não consegue sair de casa. Faço hoje novo pedido de consulta de gastroenterologia.
Já foi a consulta de gastro (particular, no ano passado), medicada com gut 4, refero e duspatal retard - na altura fez 3 meses de tratamento, no entanto mantém quadro de dejecçoes diarreicas diariamente.
No início, este quadro foi associado a toma de metformina, que entretanto suspendeu.”
- fls. 60 a 62;
6) Em 08/01/2024, o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social enviou uma mensagem à Requerente, via correio eletrónico, com o seguinte teor: "Na sequência do seu email infra e, tendo em conta o relatado, excecionalmente, iremos proceder a uma entrevista remota, para o mesmo dia, 24/1/2024, pelas 17h." - pág. 3 de fls. 43 a 47;
7) Em 21/02/2024, a Requerente assinou contrato de inserção - facto que se extai do campo "9. Observações" do documento constante da pág. 25 do PA de fls. 107 a 172;
8) Em 12/03/2024, a Unidade de Saúde Castelo Branco emitiu um documento designado "Problemas do Utente", relativo à Requerente, do qual consta o seguinte:

- fls. 57;
9) Em 28/01/2025, a Requerente enviou uma mensagem ao Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social e ao Coordenador SAAS, via correio eletrónico, da qual se extrai o seguinte: "infelizmente à semelhança do ano passado continuo impossibilitada de sair de casa, de perto da casa de banho enfrentando uma possível incontinência fecal e ainda sem acesso aos devidos cuidados de saúde (...) pelo que agradeço que a entrevista seja online/videochamada via Zoom, Google meet ou outra plataforma da vossa preferência. E que me enviem os documentos que eu tiver de assinar por esta via (e-mail), pois possuo Chave Móvel Digital e facilmente assino qualquer documentação como o Contrato de Inserção na App do GOV com a mesma validade legal de uma assinatura à mão."
- pág. 39 do PA de fls. 107 a 172; 
10) Em 10/02/2025, o Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social da Câmara Municipal de Castelo Branco envia uma mensagem à Requerente, com o seguinte teor: "Em resposta à sua comunicação, que mereceu a nossa melhor atenção, cumpre-nos informar que, no âmbito da Lei n.° 13/2003, de 21 de maio - Rendimento Social de Inserção, Artigo 29. ° - A, Ponto 7- Constituem causas justificativas da falta de comparência à convocatória, realizada por carta registada (aviso simples) remetida a 27/12/2024, para comparência a entrevista no âmbito do Contrato Inserção, a 05/02/2025, as seguintes situações devidamente comprovadas: a) Doença do próprio ou do membro do agregado familiar a quem preste assistência, certificada nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, sem prejuízo de confirmação oficiosa, a todo o tempo, pelo sistema de verificação de incapacidades; b) Exercício de atividade laboral ou realização de diligências tendentes à sua obtenção; c) Cumprimento de obrigação legal ou decorrente do processo de negociação do contrato de inserção; d) Falecimento de cônjuge, parentes e afins, em linha reta e em linha colateral, até ao 2.° grau, ou até ao 3.° grau caso vivam em economia comum. Pelo exposto, de forma a justificar a sua falta terá de cumprir o exposto na Lei n.° 13/2003, de 21 de maio - Rendimento Social de Inserção, Artigo 29.° - A, Ponto 7, alínea a), nomeadamente, em caso de doença, com a entrega de documento que certifique "nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, sem prejuízo de confirmação oficiosa, a todo o tempo, pelo sistema de verificação de incapacidades", ou seja um Certificado de Incapacidade, emitido por clínico habilitado e/ou relatório clínico atualizado que ateste, inequivocamente, a impossibilidade de sair do domicílio."- págs. 1 e 2 do doc. junto ao RI, de fls. 26 a 34;
11) Em 17/02/2025, a Entidade Requerida produziu o documento "Rendimento Social de Inserção Informação Alterações", do qual se extrai o seguinte:
"(...) Informo que a beneficiária se encontrava convocada para entrevista de acompanhamento de CI , tendo em vista a sua possível renovação, agendada para dia 05/02/2025, contudo dias antes, a 28/01/2025 remete para o SAAS e-mail alegando que não se poderia deslocar a fim de comparecer à convocatória alegando padecer de "possível incontinência fecal" tendo sido informado de que caso não pudesse comparecer à entrevista deveria remeter relatório médico que atestasse a incapacidade e/ou CIT - Certificado rede Incapacidade Temporária, o que não fez em tempo útil. No âmbito desta situação, o assunto foi levado a reunião de NLI de 07/02/2025, tendo sido unânime o entendimento de que a Senhora deveria apresentar documento válido que ateste a sua situação, conforme Lei n° 13/2003, de 21 de maio - RSI, pelo que foi reiterada a necessidade de apresentação da documentação supra, para que se possa avaliar o procedimento a adoptar, tendo para o efeito sido concedido alguns dias. Pelo exposto informa-se que a beneficiária não compareceu à convocatória nem entregou até à data justificação ou documentação que fundamente a sua ausência e/ou justificou procedimento excepcional por parte do SAAS no âmbito da celebração de CI." - pág. 31 do PA de fls. 107 a 172;
12) Em 18/02/2025, a Entidade Requerida produziu o documento "Informação para despacho de suspensão", com menção ao Rendimento Social de Inserção e à Requerente, do qual se extrai o seguinte: "Propõe-se a suspensão, com base nos fundamentos a seguir assinalados: A técnica comunicou a falta à convocatória para assinatura do Contrato de Inserção. A suspensão mantém-se por um período máximo de 90 dias, enquanto não for suprida a causa de suspensão. Alínea a) do n° 1 do artigo 21°-C e alínea b) do artigo 22° da Lei n° 13/2003, de 21 de maio. Terminado aquele período cessa a prestação de Rendimento Social de Inserção. (...)" - pág. 33 do PA de fls. 107 a 172;
13) Em 19/02/2025, foi exarado despacho "Concordo" pelo Chefe de Equipa de Desemprego/Solidariedade/Pensões na informação identificada no n° anterior - pág. 33 do PA de fls. 107 a 172;
14) Em 19/02/2025, a Entidade Requerida enviou à Requerente o ofício n° 05535 com o seguinte teor: "Informamos que a prestação do Rendimento Social de Inserção será suspensa em 2025/03, pelo(s) seguinte(s) motivo(s): Falta à convocatória para assinatura do Contrato de Inserção. A suspensão mantém-se por um período máximo de 90 dias, enquanto não for suprida a causa de suspensão. Alínea a) do n° 1 do artigo 21°-Ce alínea b) do artigo 22° da Lei n° 13/2003, de 21 de maio. Terminado aquele período cessa a prestação de Rendimento Social de Inserção. Prazo para responder se não concordar com a decisão, no prazo de 10 dias úteis a contar da data em que recebeu esta notificação poderá responder, por escrito, juntando os documentos de prova que considere importantes. (...)" - pág. 34 do PA de fls. 107 a 172;
15) Em 24/02/2025, a Requerente apresentou na Segurança Social Direta uma mensagem com o seguinte teor: "Pretendo reclamar do SAAS - Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social do Município de Castelo Branco que sabendo da minha impossibilidade de sair de casa e de junto de uma casa de banho com relatórios médicos e sabendo que não tenho tido acesso aos devidos cuidados de saúde ignoraram dois e-mails meus a solicitar: pelo que agradeço que a entrevista seja online/videochamada via Zoom, Google meet ou outra plataforma da vossa preferência. E que me enviem os documentos que eu tiver de assinar por esta via (e-mail), pois possuo Chave Móvel Digital e facilmente assino qualquer documentação como o Contrato de Inserção na App do GOV com a mesma validade legal de uma assinatura à mão." - pág. 35 do PA de fls. 107 a 172;
16) Em 25/02/2025, a Entidade Requerida produziu o documento "Informação", na qual identifica a Requerente, do qual se extrai o seguinte: "a requerente supramencionada tem a prestação de RSI no estado suspenso, com início em 03/2025, por faltar à convocatória para a assinatura do contrato de inserção. O núcleo local de inserção comunicou através de informação social que a titular não justificou nem entregou documentação que fundamentasse a ausência. Face ao exposto, parece ser de manter a suspensão, conforme comunicado num ofício 5535, de 19/02/2025." - pág. 40 do PA de fls. 107 a 172;
17) Na mesma data e na mesma informação referida no n° anterior, a Diretora do Núcleo de Prestações exarou o despacho seguinte: "a beneficiária foi convocada pelo SAAS da CMCB para comparecer naquele serviço no dia 05/02/2025 para entrevista de acompanhamento e celebração do contrato de inserção. No dia 28/01/2025 a requerente contactou o SAAS alegando motivos de saúde para não comparecer na entrevista agendada, tendo sido advertida de que deveria apresentar a devida justificação. Faltou e não apresentou qualquer documento justificativo, motivo pelo qual foi a prestação suspensa mediante despacho datado de 19/02/2025 pelo motivo de falta a convocatória para celebração do contrato de inserção [alínea a) do n° 1 do artigo 21°-C da Lei n° 13/2003, na sua redação atual). Analisada a contestação submetida via e-click na SSD no dia 24/02/2025, verificamos que permanecem por suprir os fundamentos que originaram a suspensão da prestação, não tendo sido apresentado nenhum justificativo para a faltar convocatória conforme previsto na alínea a) do n° 7 do artigo 29° da Lei 13/2003, nomeadamente certificado de incapacidade temporária. Perante o exposto, mantenha-se a suspensão da prestação com os mesmos fundamentos comunicados mediante o nosso ofício n° 5535, datado de 19/02/2025." - pág. 41 do PA de fls. 107 a 172;
18) Em 26/02/2025, o utilizador M… respondeu à Requerente, via Segurança Social Direta, que "na sequência da sua contestação relativamente à suspensão da prestação do rendimento social de inserção, informamos que a suspensão se mantém, pelos motivos que foram comunicados através do ofício n° 5535, de 19/02/2025. Mais informamos que a suspensão com início em 03/2025 é proveniente da falta à convocatória para a assinatura do contrato de inserção e respetiva justificação ou documentação que fundamente a ausência. Informamos ainda que tem obrigação de ir às reuniões convocadas pelo Núcleo Local de Inserção, nas quais é definido, assinado e revisto o contrato de inserção, pelo que relativamente a este assunto deve contactar com esta entidade." - págs. 36 e seguintes do PA de fls. 107 a 172;
19) Em 03/03/3025, a Requerente apresentou recurso da decisão de suspensão do RSI, dirigido ao Diretor da Segurança Social do Centro Distrital de Castelo Branco, n° LAE-R-2896200, com os seguintes fundamentos:
"(...) A suspensão foi comunicada através do ofício n.° 5535, de 19/02/2025, alegando "falta à convocatória para assinatura do Contrato de Inserção". Reclamei da decisão através do Pedido 2025-02/268394, mas a Segurança Social manteve a suspensão, ignorando os fundamentos e as provas apresentadas. O SAAS recusou injustificadamente marcar a entrevista por videoconferência, apesar de ter adotado um procedimento alternativo em 2024, sem qualquer alteração na minha condição de saúde e acesso aos devidos cuidados de saúde. O que mudou entre 2024 e 2025? Nada. A única diferença é que agora os serviços decidiram ignorar os meus direitos e criar barreiras burocráticas ilegais. (...) O SAAS aceitou a entrevista remota em 2024, tendo realizado a entrevista por telefone e recolhido assinaturas presencialmente no meu domicílio. Em 2025, recusou-se a aplicar o mesmo procedimento, sem qualquer justificação válida, criando um obstáculo administrativo que me impediu de cumprir as minhas obrigações. A exigência de um Certificado de Incapacidade Temporária (CIT) é ilegal e um abuso administrativo, pois a minha incapacidade é permanente, conforme relatórios médicos de 2 médicos de família diferentes já entregues à Segurança Social e SAAS. Os custos anuais com a minha medicação em 2024 ascendem a 3.446,40€, um valor incomportável sem o RSI, colocando-me em risco de descompensação da minha condição cardíaca e diabética e em risco de vida. O SAAS e a Segurança Social estão a criar uma situação de extrema vulnerabilidade, quando deveriam estar a mitigá-la. (...)" - págs. 46 a 53 do PA de fls. 107 a 172;
20) Em 14/03/2025, na sequência do requerimento identificado no n° anterior, a Diretora do Núcleo de Prestações da Entidade Requerida produz o seguinte texto:
“Analisada a reclamação, cumpre informar o seguinte:
No âmbito da prestação de RSI, foi a beneficiária S… foi convocada para entrevista de acompanhamento e celebração do contrato de inserção pelo dia 05-02-2025.
No dia 28-01-2025 a requerente contactou o SAAS do Município de Castelo Branco alegando motivos de saúde para não comparecer na entrevista agendada, tendo sido nesta mesma data advertida de que deveria apresentar a devida justificação.
A beneficiária faltou e não apresentou qualquer documento que pudesse justificar a falta, motivo pelo qual foi a prestação suspensa pelo motivo de falta a convocatória para celebração do contrato de inserção, tal como comunicado mediante nosso ofício n.º 5535 datado de 19-02-2025.
Mais informamos que consultado o Sistema de Informação da Segurança Social no âmbito do Serviço de Verificação de Incapacidades, apurámos que o último Certificado de Incapacidade Temporária em nome da beneficiária foi emitido em outubro/2008, e não existe qualquer registo de pedido de verificação de Incapacidade Permanente.
Perante o exposto, e em virtude de não se encontrarem reunidas as condições de atribuição da prestação de RSI previstas no art.º 6º da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, na sua redação atual, nomeadamente o disposto na alínea f) "assumir o compromisso, formal e expresso, de celebrar e cumprir o contrato de inserção legalmente previsto, designadamente através da disponibilidade ativa para o trabalho, para formação ou para outras formas de inserção que se revelem adequadas...”, bem como pelo facto de não ter sido apresentado nenhum comprovativo da dispensa das condições de atribuição previstas no art.º 6º -A do mesmo diploma, nomeadamente comprovativo de Certificado de Incapacidade Temporária para o trabalho (alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º - A) efetuadas através de certificação médica nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial (n.º 5 do art.º 6.º A), manter-se-á a suspensão da prestação pelo motivo de falta injustificada a convocatória para celebração do contrato de inserção comunicada mediante nosso ofício n.º 5535 datado de 19-02-2025 por um período máximo de 90 dias, enquanto não for suprida a causa da suspensão.
- pág. 54 do PA de fls. 107 a 172;
21) Em 03/03/3025, o utilizador M… respondeu à Requerente, via Segurança Social Direta, que "informamos que a suspensão se mantém, pelos motivos que foram comunicados através do ofício n° 5535, de 19/02/2025. Mais informamos que deve entregar na autarquia o documento pedido pela sua técnica."- pág. 44 do PA de fls. 107 a 172;
22) Em 20/03/2025, a Requerente apresentou “reclamação formal sobre a resolução da reclamação LAE- R-2896200", com o n° LAE-R-3014000, que aqui se considera integralmente reproduzida - págs. 57 a 62 do PA de fls. 107 a 172;
23) Em 26/03/2025, a Entidade Requerida propôs o reinício do pagamento do RSI, na sequência do decretamento provisório deferido nos presentes autos - pág. 66 do PA de fls. 107 a 172;
24) No ano de 2024, a Requerente teve despesas registadas no sector “saúde" no valor total de € 3.614,36 - facto que se retira do documento de fls. 65 e 66;
25) Em 31/12/2024, foi emitida uma factura pela farmácia em nome da Requerente no valor de € 200 (fls. 41 e 42);
26) Em 02/01/2025, foram emitidas duas facturas pela farmácia em nome da Requerente no valor de € 32 e de € 88 (fls. 40).»

3.2. Mais se consignou na sentença recorrida quanto a factos não provados:

“Não resultaram indiciariamente provados outros factos com relevância para a decisão.

3.3. E quanto à motivação da matéria de facto escreveu-se:

“A convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida nos autos, designadamente nas informações oficiais e documentos constantes dos autos, não impugnados, bem como na posição assumida pelas partes, conforme indicado em cada número do probatório.”

4. Fundamentação de direito

4.1. Da nulidade da sentença


Entende a Recorrente que a sentença padece de nulidade resultante de omissão de pronúncia sobre direitos fundamentais e, bem assim, que a decisão omite o princípio da proporcionalidade e dever de adaptação e não pondera os danos irreparáveis (periculum in mora), analisando os efeitos da suspensão do RSI.
As nulidades da sentença são vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e encontram-se previstas no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, no qual se prescreve que é nula a sentença se, além do mais, o juiz conhecer questões que não devia ou deixe de conhecer questões que tinha de conhecer [al. d)].
A nulidade da sentença a que se refere a al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se quando ocorre o incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito nos artigos 95.º, n.º 1 e 3 do CPTA e 608, n.º 2 do CPC, e que se traduz em decidir todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras. No âmbito dos processos impugnatórios esse dever comporta a pronúncia sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato (art. 95.º, n.º 3 do CPTA).
Como é jurisprudência pacífica, a causa de pedir, ou melhor, as questões a decidir, não se confundem com as razões ou argumentos de que a parte se serve para sustentar a mesma causa de pedir. Pelo que apenas integra a nulidade prevista no citado normativo, a omissão de conhecimento das “questões”, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Ora, no âmbito de uma providência cautelar, à luz do disposto no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, são questões a decidir, porque integrantes da causa de pedir, o preenchimento dos pressupostos de adoção das medidas cautelares, correspondentes ao fumus boni iuris, ao periculum in mora e à ponderação de interesses.
Para o efeito de demonstrar encontrar-se verificado o requisito do fumus boni iuris, isto é, a probabilidade de procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, a Requerente alegou no requerimento inicial que o ato suspendendo – que determinou a suspensão a prestação de Rendimento Social de Inserção – padece de falta de fundamentação e erro nos pressupostos de facto (quanto à falta de comparência à convocatória sem justificação atendível).
A propósito do erro nos pressupostos de facto, a Requerente sustentou, (i) por um lado, com vista a afastar o entendimento de que ocorreu a falta de comparência a convocatória, que requereu a realização remota da convocatória, direito que aduz assistir-lhe por força de um dever de adaptação e acessibilidade da Administração (invocando o disposto nos artigos 1.º, 3.º, 6.º-A e 18.º da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, a Lei n.º 26/2006, de 28 de agosto, o Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, os artigos 9.º, 19.º e 28.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o artigo 30.º da Carta Social Europeia) e ao abrigo do princípio da proteção da confiança e boa fé, na medida em que a Administração teria injustificadamente e de má fé invertido a conduta adotada no ano anterior, em que aceitou a realização de entrevista telefónica e recolha de assinaturas presencial no seu domicílio, e, (ii) por outro lado, visando infirmar a conclusão quanto à não justificação da falta, não ser exigível a apresentação de Certificado de Incapacidade Temporária, por o seu quadro clinico evidenciar uma incapacidade permanente.
Do exposto resulta que não foi alegada pela Recorrente enquanto fundamento da sua causa de pedir, para o efeito do preenchimento do fumus boni iuris, como exigido pelo artigo 114.º, n.º 2 al. g) do CPTA, a violação de qualquer direito fundamental – que, refira-se, a Recorrente nesta sede recursiva nem sequer concretiza que direito(s) fundamental(ais) é(são) esse(s) sobre o qual(ais) o Tribunal tinha que se pronunciar -, nem tão pouco do princípio da proporcionalidade. Não tendo sido alegado, e não sendo de conhecimento oficioso, não era questão a decidir a verificação do preenchimento do fumus boni iuris assente na invalidade do ato suspendendo por violação de direitos fundamentais ou do princípio da proporcionalidade.
Na realidade, em face do que efetivamente foi alegado, verifica-se que o Tribunal a quo, com vista a verificar se se encontrava preenchido o requisito do fumus boni iuris, analisou perfunctoriamente se o ato padecia de vício de falta de fundamentação e de “vicio de violação de lei”. E no que a este último respeita, na sentença recorrida aprecia-se o vício de violação de lei (por erro nos pressupostos de facto) assente na falta de comparência à convocatória sem causa justificativa, considerando-se que a Recorrente faltou e que não justificou a falta de comparência por meio de documento certificativo de doença.
Ou seja, o Tribunal apreciou o preenchimento do requisito do fumus boni iuris por referência aos dois vícios que a Requerente apontou ao ato suspendendo. Relativamente ao vício de violação de lei deteta-se, é certo, que o Tribunal não se debruça especificamente quanto a saber se assistia à Requerente o direito à realização da entrevista e assinatura do contrato remotamente, assente num alegado dever de adaptação e acessibilidade e, bem assim, na tutela da confiança e boa-fé. Contudo, estamos perante meros argumentos ou razões que a Requerente aduziu para afirmar o erro nos pressupostos que apontou ao ato suspendendo com vista ao preenchimento do fumus boni iuris.
Ora, a pronúncia cuja omissão determina a nulidade da sentença “deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas” (Ac. do STJ de 15.12.2011, proferido no processo 17/09.0TELSB.L1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/716b1b216836db4c802579980057452c?OpenDocument).
Pelo que, não obstante o Tribunal a quo não ter considerado todos os argumentos em que a Recorrente fez assentar a invalidade do ato por ilegalidade da recusa de realização da entrevista por videoconferência, daí não resulta a omissão de pronúncia.
Já quanto ao periculum in mora verifica-se que o Tribunal emitiu pronúncia sobre o mesmo. O que sucede é que o fez considerando prejudicada a sua apreciação nos termos do artigo 608.º, n.º 2 do CPC, por, sendo os requisitos de adoção de medidas cautelares de preenchimento cumulativo, a não verificação de um deles – in casu, o fumus boni iuris – obstar à procedência da ação cautelar, tornando desnecessário conhecer os demais requisitos.
Isto é, concluindo não se verificar o requisito do fumus boni iuris, o Tribunal entendeu ter ficado “prejudicada a apreciação do preenchimento do requisito do periculum in mora e a ponderação de interesses, nos termos e para os efeitos do artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA” (fls. 15 da sentença).
Não ocorre, portanto, qualquer omissão de pronúncia, pois que só existe dever de pronúncia se a decisão de uma questão não tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra. O que poderá ocorrer é erro de julgamento se, na realidade, a decisão quanto ao periculum in mora não tiver ficado prejudicada por, na realidade, se mostrar preenchido o requisito do fumus boni iuris.
Conclui-se, portanto, que a sentença não padece da nulidade que lhe é imputada.

4.2. Do erro de julgamento de facto


Aduz a Recorrente que a sentença desconsidera injustificadamente a prova documental, concretamente desvalorizando os relatórios médicos emitidos por entidades públicas, substituindo-os por uma exigência formal (CIT) desadequada, o que entende contrariar o princípio da suficiência da prova por documento idóneo.
A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do recorrente, vertido no art.º 640º, n.ºs 1 e 2, do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA, cujo incumprimento, sendo de conhecimento oficioso do tribunal ad quem, impede que a 2.ª Instância possa conhecer da impugnação do julgamento da matéria de facto operada, determinando a imediata rejeição do recurso quanto a essa impugnação.
Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. c), do CPC], entendendo-se que o recorrente deve expressar “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.” (cf. Ac. do TCAN de 17.11.2023, proc. n.º 00464/10.4BECBR).
Em face do exposto, verifica-se que a Recorrente não cumpre com qualquer dos ónus impugnatórios da matéria que facto que sobre si recaíam. Referindo apenas uma alegada desconsideração de prova documental e a violação do princípio da suficiência da prova por documento idóneo sem, contudo, indicar que factos, alegados, foram incorretamente julgados (seja porque não deveriam ter sido dados como provados, seja porque não foram considerados provado quando o deveriam ter sido), qual o meio probatório – designadamente documental – em que se sustenta sua prova e, bem assim, a decisão que sobre os mesmos deveria ser proferida.
Donde, em face do disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC, cumpre rejeitar a impugnação da matéria de facto.

4.3. Do erro de julgamento de direito


A Recorrente imputa à sentença erro de julgamento de direito sustentando, em suma, que se concluiu pela inexistência do requisito do fumus boni iuris com fundamento na não apresentação de um Certificado de Incapacidade Temporária, que respeita a incapacidades temporárias, sem considerar que, como resulta dos elementos probatórios correspondentes aos relatórios médicos, as patologias da Recorrente revelam que a sua condição é permanente.
Mais aduz que a sentença desconsidera que em 2024 foi aceite a entrevista telefónica e recolha de assinatura em casa, reconhecendo-se tacitamente a limitação funcional permanente da Recorrente, tendo, perante a mesma condição e sem novos dados clínicos, sido recusada injustificadamente a realização da entrevista remota, em violação do “dever de adaptação procedimental e do princípio da não discriminação”, do art. 19.° da Convenção e do “princípio da proteção da confiança e da igualdade no tratamento administrativo”.
Considera, ainda, ocorrer má-fé administrativa e omissão do dever de acompanhamento porquanto o Contrato de Inserção previa ações de avaliação da saúde e apoio à inserção profissional, contudo nunca foi realizada avaliação pela Unidade Local de Saúde, nem esta foi substituída por qualquer acompanhamento social ou clínico.
Isto posto, constata-se que apenas em sede de recurso veio a Recorrente sustentar a violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e o alegado incumprimento do contrato de inserção no que respeita à realização de avaliações de saúde e acompanhamento. Contudo, não se tratando de matérias de conhecimento oficioso, mas sim de questões novas que, não tendo sido alegadas no requerimento inicial, não foram conhecidas na sentença recorrida, não serão estas objeto de apreciação por este Tribunal, pois o recurso destina-se a impugnar as decisões da sentença (Ac. do STA de 12.11.2019, proferido no processo 17085/15.8T8 LSB.L1.S2, disponível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f04eac5f3e44f320802584be003dfefe?OpenDocument).
Assim, o que cumpre apreciar é se o Tribunal a quo errou ao considerar não verificado o requisito do fumus boni iuris no que respeita ao imputado erro nos pressupostos, por entender que, tendo a Requerente faltado à convocatória,não apresentou documento que certifique a sua doença nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, ou seja, não apresentou um certificado de incapacidade temporária, nem a autodeclaração sob compromisso de honra, nos termos e para os efeitos do artigo 29°, n° 7, alínea a) da Lei n° 13/2003, conjugada com o artigo 14°, n°s 1e 4 do Decreto-Lei n° 28/2004, de 4 de fevereiro”, pelo que “ao não justificar a sua falta de comparência à convocatória nos termos legalmente previstos, tal equivale à recusa de celebração do contrato de inserção pela Requerente, o que, por sua vez, determina a suspensão do direito ao RSI, tudo nos termos do artigo 21°-C, n° 1, alínea a), artigo 29°, n° 6, alíneas a) e b), e n° 7.”.
Como resulta do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 21.º-C da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, que regula o rendimento social de inserção, o direito à prestação do rendimento social de inserção suspende-se quando se verifique a recusa injustificada de celebração do contrato por parte do titular da prestação. Prevendo-se no n.º 6 do artigo 29.º desse diploma que se considera que existe recusa da celebração do contrato de inserção quando o titular ou os membros do seu agregado familiar, faltem à convocatória para a celebração do contrato de inserção, sem justificação atendível [al. a)] e que não compareçam a qualquer convocatória através de notificação pessoal, carta registada, ou qualquer outro meio legalmente admissível, nomeadamente notificação eletrónica, sem que se verifique causa justificativa, apresentada no prazo de 5 dias após a data do ato para que foi convocado [al. b)].
Mais se prevê no n.º 7 desse artigo 29.º que, para os efeitos das als. a) e b) do n.º 6, constituem causas justificativas da falta de comparência à convocatória, além do mais, a “doença do próprio ou do membro do agregado familiar a quem preste assistência, certificada nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, sem prejuízo de confirmação oficiosa, a todo o tempo, pelo sistema de verificação de incapacidades” [al. a)].
Refira-se que a Recorrente não questiona que tenha sido convocada para assinatura do contrato de inserção agendada para dia 5.2.2025 [cf. facto 11)] e que não tenha comparecido presencialmente à mesma. O que aduz é que, em face do requerimento de 28.1.2025 [facto 9)], lhe assistia o direito à realização da entrevista e recolha de assinaturas por via remota, seja à luz de um dever de adaptação e acessibilidade, seja por força da tutela da confiança e proteção da boa-fé. O que conduzirá a que, opostamente ao entendimento do Tribunal a quo, não ocorra a falta de comparência a convocatória.
Se bem se compreende a referência da Recorrente a um dever de adaptação e acessibilidade decorreria da circunstância de, enfrentando patologias do foro gastroenterológico que alegadamente a impedem de sair ou de se ausentar de casa e que nesse sentido consubstanciam uma incapacidade permanente ou deficiência, incumbir à Administração, por força de tal dever, admitir e proporcionar-lhe a realização dos atos – acompanhamento e celebração/renovação do contrato de inserção social - para que foi convocada por via remota.
O que sucede é que não só não emerge da lei, concretamente dos normativos citados pela Recorrente, a imposição à Administração de um dever de adaptação e acessibilidade nos termos alegados e com o conteúdo que aquela lhe pretende atribuir - no sentido de um dever da Administração aceitar, por mero efeito da alegação (não demonstrada) de uma deficiência ou incapacidade, a comparência remota às convocatórias para efeito de celebração/renovação do contrato de inserção ou seu acompanhamento e fiscalização -, como, verdadeiramente, a Recorrente nunca demonstrou que as patologias que enfrente lhe determinam uma incapacidade permanente ou deficiência ou, sequer, que a impedem, e impediram na data para que foi convocada, de sair de casa e desta ausentar-se para o efeito de comparecer à convocatória.
Atente-se que a Recorrente assenta tal dever de adaptação e acessibilidade nos artigos 1.º, 3.º, 6.º-A e 18.º da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, na Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto, no Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, na Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, nos artigos 9.º, 19.º e 28.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no artigo 30.º da Carta Social Europeia.
Os artigos 1.º, 3.º, 6.º-A e 18.º da Lei n.º 13/2003 respeitam ao objeto e conteúdo do contrato de inserção e às condições do reconhecimento do direito ao rendimento social de inserção.
Por sua vez, a Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto “tem por objecto prevenir e proibir a discriminação, directa ou indirecta, em razão da deficiência, sob todas as suas formas, e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, culturais ou outros, por quaisquer pessoas, em razão de uma qualquer deficiência” (artigo 1.º).
O Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, “tem por objecto a definição das condições de acessibilidade a satisfazer no projecto e na construção de espaços públicos, equipamentos colectivos e edifícios públicos e habitacionais” (artigo 1.º, n.º 1).
Regendo a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, as bases gerais da segurança social.
A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência tem, por sua vez, como objeto “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (artigo 1.º).
Respeitando o seu artigo 9.º, epigrafado “Acessibilidade”, à imposição aos Estados Parte de “medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em condições de igualdade com os demais, ao ambiente físico, ao transporte, à informação e comunicações, incluindo as tecnologias e sistemas de informação e comunicação e a outras instalações e serviços abertos ou prestados ao público, tanto nas áreas urbanas como rurais”, visando a identificação e eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade (n.º 1).
Prescrevendo o artigo 19.º - “Direito a viver de forma independente e a ser incluído na comunidade” – o reconhecimento do “igual direito de direitos de todas as pessoas com deficiência a viverem na comunidade, com escolhas iguais às demais e tomam medidas eficazes e apropriadas para facilitar o pleno gozo, por parte das pessoas com deficiência, do seu direito e a sua total inclusão e participação na comunidade” e o artigo 28.º - “Nível de vida e protecção social adequados” – o reconhecimento do direito das pessoas com deficiência a um nível de vida adequado para si próprias e para as suas famílias e à protecção social e ao gozo desse direito sem discriminação com base na deficiência, determinando que os Estados adotem medidas que salvaguardem tais direitos.
Por sua vez, o artigo 30.º da Carta Social Europeia – “Direito à protecção contra a pobreza e a exclusão social” – estabelece que “[c]om vista a assegurar o exercício efectivo do direito à protecção contra a pobreza e a exclusão social, as Partes comprometem-se: a) A tomar medidas, no quadro de uma abordagem global e coordenada, para promover o acesso efectivo, designadamente, ao emprego, à habitação, à formação, ao ensino, à cultura, à assistência social e médica das pessoas que se encontrem ou corram o risco de se encontrar em situação de exclusão social ou de pobreza, e da sua família; b) A reexaminar essas medidas com vista à sua adaptação, se necessário.”
Ora, não está em causa nos autos saber se a Recorrente preenche, ou não, os pressupostos para beneficiar do RSI – entendido este como uma prestação pecuniária de carácter transitório e variável que tem como principal objetivo a inserção social, laboral e comunitária de concretas situações que revelem grave carência económica (artigo 1.º da Lei n.º 13/2003) - para o efeito desta convocar os normativos que regem o seu objeto e atribuição.
Na realidade, do que se trata é de aferir se a Recorrente cumpriu com as obrigações legais a que se encontrava adstrita com vista a manter (por via da celebração/renovação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 13/2003) as correspondentes prestações, concretamente no que respeita às obrigações de celebração do contrato [n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 13/2003] e de comparência a convocatórias [artigo 29.º, n.º 6 al. b) in limine] e, consequentemente, à verificação (ou não) de causa determinante da suspensão do seu direito nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 21.º-C.
É que o direito à prestação de rendimento social inserção pode ser suspenso quando nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 21.º-C se verifique a recusa injustificada de celebração do contrato por parte do titular da prestação, a qual, como vimos, se entende que existe quando o titular do direito falte a convocatórias, incluindo para a celebração do contrato de inserção, sem justificação atendível ou causa justificativa [als. a) e b) do n.º 6 do artigo 29.º desse diploma].
O que poderá suceder é que o concreto (e demonstrado) circunstancialismo fáctico do titular do rendimento social de inserção detenha aptidão a, ao abrigo dos princípios condutores da atividade administrativa como o da razoabilidade e colaboração com os particulares (artigos 8.º e 11.º do CPA), demandar da Administração a adoção dos procedimentos adequados a possibilitar aos administrados o cumprimento das suas obrigações legais, designadamente como meio de tutelar as pessoas com incapacidades ou deficiência.
Mas o que, in casu, afasta a posição da Recorrente é a falta de demonstração da sua incapacidade ou deficiência, para o efeito de poder demandar da Administração a aceitação da sua comparência remota à convocatória.
É certo que as informações clínicas revelam que a Recorrente padecerá de patologias do foro gastroenterológico, em face das quais refere não conseguir sair de casa. Só que tais documentos não demonstram, sequer perfunctoriamente, que é detentora, como alega, de uma deficiência, de uma incapacidade permanente e definitiva, ou sequer de uma incapacidade temporária, nem tão pouco que tais patologias a impedem de sair ou de se ausentar de casa.
Com efeito, estamos perante meras informações clínicas emitidas pela Unidade de Saúde UCSP S Miguel em 28.6.2023 e pela Unidade de Saúde de Castelo Branco datadas de 12.11.2021 e 12.3.2024 nas quais, no essencial, são relatadas e elencadas as patologias clínicas de que padece e referenciadas as queixas da Recorrente quanto às dificuldades em sair de casa.
Ou seja, a Recorrente não prova o pressuposto de que dependeria o dever da Administração garantir-lhe a possibilidade de comparência remota à convocatória, qual seja a deficiência ou incapacidade que, alegadamente, a impossibilitam de sair e se ausentar de casa, incluindo no dia da convocatória.
Aliás, refira-se que as incapacidades das pessoas com deficiência e as incapacidades permanente e temporária são objeto de reconhecimento no âmbito dos subsistemas da segurança social, pelo que sempre poderia a Recorrente demonstrar os seus condicionalismos de saúde por via de atestado médico de incapacidade multiuso (AMIM) ou de certificado de incapacidade (permanente ou temporária) ou, no caso de incapacidade temporária, também por via de autodeclaração.
De facto, no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, que estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei (artigo 1.º), prevê-se um procedimento de avaliação de incapacidade, findo o qual é emitido o AMIM, no qual se indica expressamente qual a percentagem de incapacidade do avaliado (artigo 4.º, n.º 2).
Por sua vez, no Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, que define e regulamenta o regime jurídico de proteção nas eventualidades invalidez e velhice do regime geral de segurança social (artigo 1.º), estabelece-se que se considera em situação de invalidez absoluta o beneficiário que se encontre numa situação de incapacidade permanente e definitiva para toda e qualquer profissão ou trabalho (artigo 15.º), a qual se encontra dependente de certificação pelo sistema de verificação de incapacidades em função da incapacidade permanente para o trabalho apresentada pelo beneficiário (artigo 17.º).
Resultando do Decreto-Lei n.º 260/97, de 17 de dezembro, diploma que define o sistema de verificação de incapacidades, a verificação das situações de incapacidade permanente pode ter lugar a requerimento dos interessados ou oficiosamente e, nas situações de incapacidade temporária que atinjam 365 dias ou antes, sob proposta das comissões de verificação de incapacidade temporária ou do assessor técnico de coordenação (artigo 42.º, n.ºs 1 e 2). Sendo que, na sequência dos trâmites procedimentais previstos nos artigos 43.º e ss. deste diploma, que incluem a análise dos documentos clínicos ou exame direto pelas comissões de verificação e a emissão de parecer por parte destas, o serviço de segurança social competente toma a decisão de atribuição da prestação.
E quanto à incapacidade temporária, o Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, que define o “Regime jurídico de proteção social na eventualidade doença, no âmbito do subsistema previdencial de segurança social”, estabelece no seu artigo 14.º, epigrafado “Certificação da incapacidade temporária para o trabalho”, que “a certificação da incapacidade temporária para o trabalho é efetuada pelos serviços competentes, através de documento emitido pelos respetivos médicos” (n.º 1) e que “a incapacidade temporária para o trabalho pode igualmente ser autodeclarada por compromisso de honra, através de serviço digital do Serviço Nacional de Saúde ou de serviço digital dos serviços regionais de saúde das regiões autónomas” (n.º 4).
Só que a Recorrente não junta qualquer destes documentos e, como dissemos supra, os que apresenta não são suficientes para prova de um quadro clínico revelador da impossibilidade de sair e se ausentar de casa ou de qualquer deficiência ou incapacidade.
Acrescente-se que a circunstância de no ano anterior a Administração lhe ter possibilitado a comparência à convocatória por via remota não só não consubstancia qualquer reconhecimento tácito da limitação funcional permanente da Recorrente, como também não é idónea à tutela, por via da confiança e boa-fé, de um direito a que tal sucedesse/suceda daí em diante.
A respeito dos princípios da boa-fé e proteção da confiança citamos o Acórdão do TCA Norte de 30.3.2012, proferido no processo 02436/07.7BEPRT (disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/74A6923B2E61F70C802579D700308556), onde se deu conta que,
«Acerca da noção, natureza e, limites do princípio da boa fé, permitimo-nos aqui citar o Ac. do STA de 06/07/2011, in rec. nº 0589/11:
«(…) A este princípio da boa-fé se refere, ainda, o art. 6º-A do CPA, cujo nº 2 «esclarece factores a atender na apreciação do cumprimento das regras da boa-fé, prescrevendo que devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa e o objectivo a alcançar com a actuação empreendida. Esta exigência tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que actuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento (…), abstendo-se de actuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições.» (ob. cit., pag. 278).
(…)
E embora a jurisprudência do STA acentuasse a impossibilidade de o princípio da boa fé ser aplicável em caso de actos praticados no exercício de poderes vinculados (pois que, nessa circunstância, o princípio da legalidade se sobrepõe a quaisquer outros princípios, que, por isso, só poderão gerar vício autónomo de violação de lei no domínio do exercício de poderes discricionários – cfr. por exemplo, o ac. de 26/10/94, rec. nº 17626, in Ap. DR de 20/1/97, pp. 2395 e ss), a relevância deste princípio não se esgota nos actos praticados no exercício de poderes discricionários, tendo vindo a ser colocada a da possibilidade da sua aplicação em caso de actos praticados também no exercício de poderes vinculados.
(…)
E na verdade, dado que «… o texto do art. 266º da CRP não deixa antever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa (…) em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade» (Diogo Leite de Campos e outros, loc. cit,. pag. 250) sendo que também Jorge Miranda e Rui Medeiros «referem que o princípio permite afastar soluções legais expressas que conduzam, em concreto, a uma violação da boa-fé». (Constituição da República Anotada, tomo III, pag. 575, citado pelo MP).
Trata-se da aplicação dos chamados princípios da juridicidade substancial, que estão explicitados na lei e na Constituição (cfr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., Almedina, 2006, pag. 469).
(…)
Com efeito, na densificação do referido princípio da actividade administrativa relevam sobretudo dois subprincípios concretizadores da boa-fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança.
Ora, a respeito destes subprincípios Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 1ª ed. pp. 214/216), referem o seguinte:
«O princípio da boa-fé está consagrado no art. 266º, 2 CRP e no art. 6º-A CPA, que alargou o seu âmbito subjectivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem. Tendo em conta a origem da sua positivação, não admira que a densificação deste princípio no CPA tenha sido muito influenciada pela construção dogmática empreendida no direito civil por A. Menezes Cordeiro (Da boa fé no direito civil), que identifica dois subprincípios concretizadores da boa fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança. (…).
O princípio da primazia da materialidade subjacente exprime a ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efectivos, não se satisfazendo com comportamentos que, embora formalmente correspondam a tais objectivos, falhem em atingi-los substancialmente. Este princípio proíbe, por exemplo, o exercício de posições jurídicas de modo desequilibrado ou o aproveitamento de uma ilegalidade cometida, pelo próprio prevaricador, de modo a prejudicar outrem. E a isto que o art. 6º-A, 2, b) CPA se quer referir quando afirma que se deve ponderar «o objectivo visado com a actuação empreendida».
Já o princípio da tutela da confiança «visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
É a isto que o art. 6°-A, 2, a) CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa».
A tutela da confiança pressupõe a verificação de diversas circunstâncias: primeira, uma actuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem, ou seja, uma convicção, por parte do destinatário da actuação em causa, na determinação do sujeito jurídico que a adoptou quanto à sua actuação subsequente, bem como a presença de elementos susceptíveis de legitimar essa convicção, não só em abstracto mas em concreto; terceiro, a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto, o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado, e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; quinto, a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou. Estes pressupostos devem ser encarados de modo global: a não verificação de um deles será em princípio relevante, mas pode ser superada pela maior intensidade de outro ou por outras circunstâncias pertinentes (por exemplo, em certos casos, o decurso de grandes lapsos temporais).»
No caso vertente este princípio da tutela da confiança assume especial relevância, dado que visa, precisamente e como se disse, salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
E, por outro lado, actualmente, deve entender-se que princípios como o da justiça - e da boa-fé - são aplicáveis mesmo no exercício de poderes vinculados, sobrepondo-se a outros deveres legais (cfr. por todos, o ac. do STA, de 25/6/2008, rec. nº 0291/08)».
Assim, como se sumariou no Ac. do STA de 21.9.9.2011 proferido no processo 0753/11 (disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0465c3a1f7aba45c8025791a002ec02b?OpenDocument),
“I - O princípio da boa fé, na sua vertente de tutela da confiança, visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
II - No âmbito da actividade administrativa são pressupostos da tutela de confiança um comportamento gerador de confiança, a existência de uma situação de confiança, a efectivação de um investimento de confiança e a frustração da confiança por parte de quem a gerou.”
No caso não se revela uma conduta da Requerida de aceitação, tácita, da sua (alegada) impossibilidade de deslocação, nem tão pouco uma situação de boa-fé ou de confiança legítima da Recorrente que tivesse sido criada pelo comportamento da Administração na qual pudesse ancorar a tutela que reclama,
De facto, é que como resulta do facto 6), logo em 2024 a possibilidade que lhe foi conferida de realização de uma entrevista deu-se a título excecional e disso teve a Recorrente conhecimento.
Ou seja, a circunstância de lhe ter garantido a comparência remota no ano anterior, tendo-o sido excecionalmente, por um lado, não detém idoneidade a configurar um reconhecimento (tácito) das alegadas repercussões das patologias e, por outro, não é suscetível de criar na Recorrente a confiança de que também noutras convocatórias lhe seria admitida a comparência remota à convocatória, de tal forma, que ao não fazê-lo e ao considerar ter ocorrido a falta de comparência, a Administração não age de má-fé, atuando de forma a frustrar a confiança que nela a Recorrente depositou.
Neste sentido, não se mostrando provado que a Recorrente compareceu à convocatória para acompanhamento e celebração/renovação do contrato de inserção, impõe-se apreciar se, como alega, existe “justificação atendível” ou “causa justificativa” nos termos das als. a) e b) do n.º 6 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003.
Como demos nota supra, resulta do n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003, que, para os efeitos das als. a) e b) do n.º 6, constituem causas justificativas da falta de comparência à convocatória, além do mais, a “doença do próprio ou do membro do agregado familiar a quem preste assistência, certificada nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, sem prejuízo de confirmação oficiosa, a todo o tempo, pelo sistema de verificação de incapacidades” [al. a)].
Em consonância com o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, “a certificação da incapacidade temporária para o trabalho é efetuada pelos serviços competentes, através de documento emitido pelos respetivos médicos” (n.º 1) e “a incapacidade temporária para o trabalho pode igualmente ser autodeclarada por compromisso de honra, através de serviço digital do Serviço Nacional de Saúde ou de serviço digital dos serviços regionais de saúde das regiões autónomas” (n.º 4).
Como resulta do probatório, e verdadeiramente a Recorrente não o nega, constata-se que não apresentou, seja em sede de procedimento administrativo, seja nos presentes autos, documento que, nos termos legalmente previstos na al. a) n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003, detivesse aptidão a comprovar a situação de doença justificativa da falta à celebração do contrato de RSI.
Reiterando o que ficou supra exposto, as informações clínicas emitidas pela Unidade de Saúde UCSP S Miguel em 28.6.2023 e pela Unidade de Saúde de Castelo Branco datadas de 12.11.2021 e 12.3.2024 apenas relatam as patologias clínicas de que padece.
Todavia, a comprovação da doença justificativa da falta de comparência à convocatória não se basta, ou não se faz, por informações clínicas, exigindo-se na al. a) n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003 que esta seja “certificada nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial”. O que, como demos nota, demanda um CIT (certificado de incapacidade temporária) ou a autodeclaração nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 14.º do DL 28/2004.
A Recorrente alega que, todavia, não poderia apresentar documento certificativo de incapacidade temporária por, na realidade, a sua incapacidade ser permanente. Só que o que o sucede é que, também, não o comprova.
É que também a incapacidade permanente (artigo 17.º do DL 187/2007) encontra-se dependente de certificação pelo sistema de verificação de incapacidades em função da incapacidade permanente para o trabalho apresentada pelo beneficiário.
A Recorrente persiste é em defender que os documentos clínicos por si entregues bastariam para demonstrar a situação de doença justificativa da falta, desconsiderando o que, de forma expressa, resulta da lei, concretamente da al. a) do n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003, que demanda que a doença – enquanto causa justificativa da falta de comparência – se mostre “certificada nos termos previstos no regime jurídico de proteção na doença no âmbito do sistema previdencial, sem prejuízo de confirmação oficiosa, a todo o tempo, pelo sistema de verificação de incapacidades” ou “autodeclarada por compromisso de honra, através de serviço digital do Serviço Nacional de Saúde ou de serviço digital dos serviços regionais de saúde das regiões autónomas”.
E note-se que, bastando-lhe a autodeclaração de doença - documento que comprovaria a situação de doença, declarada por si mesma, sob compromisso de honra –, que poderia ter sido requerida no portal, na app ou na linha do SNS24, no prazo máximo de 5 dias, contados a partir do primeiro dia de ausência por doença, e pelo período máximo de 3 dias consecutivos, não o fez.
E os factos consignados no probatório – e a que este Tribunal se atém -, considerando as informações clínicas por si juntas aos autos e ao procedimento administrativo, não comprovam, sequer perfunctoriamente, a limitação funcional da Recorrente impeditiva de comparência à convocatória.
De facto, analisado o probatório [factos 1), 5) e 8)] o que se deteta é que, efetivamente, a Recorrente apresentava, pelo menos até março de 2024, queixas de ordem gastroenterológica, para as quais terá sido medicada. Só que não se mostra atestado, em tais documentos, que as referidas patologias a impossibilitam de sair de casa como alega, e que tal tenha sucedido também na data para que foi convocada. Na realidade, apenas no documento de 2023 [facto 5)] se dá nota que a Recorrente refere não conseguir sair de casa, mas tal é insuficiente para se considerar perfunctoriamente provado que assim o é (para o que não bastam declarações da própria Recorrente) e que tal sucedeu na data em causa.
Daí que, tal como se concluiu na sentença recorrida, na medida em que a Recorrente faltem a convocatória, que se destinava a acompanhamento e celebração do contrato de inserção, sem justificação atendível/causa justificativa, nos termos conjugados das al.s a) e b) do n.º 6 e a) do n.º 7 do artigo 29.º da Lei n.º 13/2003, à luz da al. a) do n.º 1 do artigo 21.º-C desse diploma, há lugar a suspensão do direito à prestação do rendimento social de inserção por recusa injustificada de celebração do contrato por parte do titular da prestação.
E, consequentemente, a sentença não padece do erro de julgamento que lhe é imputado.

4.4. Da condenação em custas


Sem custas, atento o apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo de que beneficia a Recorrente.


5. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Rejeitar o recurso quanto à matéria de facto;
b. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.


Mara de Magalhães Silveira
Marta Cavaleira
Carlos Araújo