Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02436/07.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/30/2012
Tribunal:TCAN
Relator:Maria do Céu Dias Rosa das Neves
Descritores:PRINCÍPIO DA BOA FÉ
Sumário:I – Existe violação do princípio da boa fé, se, pese embora, as irregularidades cometidas pelo funcionário [que imputava as horas de trabalho em regime de horário flexível no trabalho extraordinário prestado, assim violando os deveres de assiduidade e pontualidade], as mesmas foram sempre justificadas expressamente pelo seu superior hierárquico [chefe de divisão], fazendo crer ao funcionário que o seu comportamento fora aceite e justificado.
II – Neste caso, o acto impugnado, apesar de legal, surgiu na esfera jurídica do recorrido de uma forma imprevisível, violando a confiança jurídica que o mesmo depositava no seu superior hierárquico, que nunca lhe colocou qualquer objecção nas justificações que aquele apresentava.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:07/13/2011
Recorrente:Município do Porto
Recorrido 1:S. ...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, do Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – RELATÓRIO:
O MUNICÍPIO DO PORTO interpôs recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto proferida em 22/03/2011 no âmbito da acção administrativa especial intentada por S. …, no segmento que julgou procedente a violação do princípio da boa fé, por referência ao despacho proferido em 12/07/2007 pelo Vereador do Pelouro dos Recursos Humanos da CMP, que considerou faltas injustificadas as ausências ao serviço do A./ora recorrido, registadas no ano de 2006 – dias 27 e 31 de Março, 27 de Abril, 31 de Maio, 30 de Junho, 28 de Julho, 29 de Setembro, 27 de Outubro, 28 e 31 de Outubro.
*
O recorrente formula para o efeito as seguintes CONCLUSÕES que aqui se reproduzem:
«1. O aqui recorrido, no ano de 2006, estava obrigado a um regime de horário flexível (cf. artigo 19º e seguintes do Regulamento Interno da CMP e artigo 16º do DL nº 259/98, de 18 de Agosto).
2. Foram detectadas várias irregularidades no cumprimento do referido horário.
3. Em 2 de Julho de 2007 foi prestada pela Direcção Municipal de Recursos Humanos, informação sobre as irregularidades ocorridas e consequentemente, das faltas consideradas injustificadas em 2006: dias 27 e 31 de Março, 27 de Abril, 31 de Maio, 30 de Junho, 28 de Julho, 29 de Setembro, 27, 28 e 31 de Outubro.
4. Sobre esta informação recaiu o despacho de “concordo”, datado de 12 de Julho de 2007, por parte do Senhor Vereador do Pelouro dos Recursos Humanos da Câmara Municipal do Porto.
5. Muito bem esteve o tribunal a quo quando defende, nos termos do artigo 16º do DL nº 259/98 de 18/8, ao contrário do recorrido, que: “Resulta da leitura conjugada nos nºs 3 e 5 da norma em apreço não assistir razão ao A. na argumentação aduzida dado o débito de horas, apurado no final de cada período de aferição, dar sempre lugar à marcação de uma falta, qualquer que seja o referido débito de horas – igual ou inferior à duração média de trabalho – não havendo apenas lugar à marcação de falta, ao contrário do sustentado pelo A., quando tal débito corresponder ao número de horas de trabalho médio.” – Sublinhado nosso.
6. Verifica-se que o recorrente pautou a sua conduta pelo estrito cumprimento das normas legais aplicáveis, designadamente, o DL nº 259/98, de 18 de Agosto e o DL nº 100/99, de 31 de Março.
7. Deste modo e conforme decidido pelo Tribunal a quo, o Despacho de 12 de Julho de 2007, exarado pelo Senhor Vereador do Pelouro dos Recursos Humanos, não padece de vício de violação de lei, mormente o disposto no artigo 16º no DL nº 259/98, de 18 de Agosto.
8. Sucede que, nos primeiros meses do ano de 2007, a Direcção Municipal de Recursos Humanos procedeu à elaboração do balanço anual de 2006.
9. Momento em que, detectou um conjunto de irregularidades quanto ao registo de presenças efectuados pelos funcionários, agentes e contratados ao serviço do recorrente, entre os quais se incluía o aqui recorrido.
10. Deste modo, só em 2007 é que chegou ao efectivo conhecimento do recorrente, através do relatório anual, o incumprimento dos deveres de assiduidade e pontualidade do recorrido, concluindo-se que havia ausências que subsistiam por justificar.
11. Daí que, detectadas as referidas irregularidades, era obrigatório que o recorrente actuasse face às mesmas, pois perante uma infracção legal não podia existir uma atitude de inércia por parte deste.
12. Não podia fazer “tábua rasa” de infracções cometidas pelo trabalhador, aqui recorrido, sob pena de violar o princípio da legalidade, igualdade e imparcialidade!
13. O recorrente não podia beneficiar o recorrido, relevando as irregularidades cometidas e a obrigatoriedade de repor as quantias indevidamente recebidas.
14. O recorrente, quando tomou conhecimento, agiu para repor a legalidade, pautando a sua conduta pelo igual tratamento entre os trabalhadores.
15. Agindo assim, em conformidade com o disposto na lei e na prossecução dos princípios jurídicos que subjazem à sua actividade.
16. Acresce que, o recorrido tinha conhecimento das normas internas sobre horários da CMP e das consequências inerentes à violação das mesmas.
17. E não podia desconhecer a lei.
18. Ainda assim, prevaricou e tendo verificado que não foi sancionado por tal, reiterou deliberada e conscientemente no erro.
19. O recorrido sempre soube o que fazia e, confrontado com o processamento das remunerações mensais por inteiro em 2006, também nada reportou.
20. Escondendo assim o erro e não dando conhecimento ao recorrente do mesmo.
21. Face ao exposto, o recorrente agiu nos termos legais aplicáveis e no cumprimento dos princípios legais.
22. Tendo actuado com toda a transparência, não podendo ser assacado qualquer comportamento desleal ou incorrecto, até porque o recorrido sabia as consequências inerentes às irregularidades cometidas.
23. Muito pelo contrário!
24. A sua conduta foi legal, isenta, correcta, honesta e leal.
25. Motivos pelos quais, não existiu violação do principio da boa fé!
26. E não é pelo decurso de tempo que ocorreu entre a prática das infracções e a actuação do recorrente que, consequentemente, existe violação do princípio da boa-fé, como quer fazer parecer o douto tribunal a quo.
27. Até porque, conforme já foi referido, o recorrente não podia ter actuado antes, pois não tinha conhecimento das infracções cometidas.
28. Pelo contrário, o acto do recorrente era o legalmente admissível, pois confrontado com uma situação ilegal, actuou de forma a repor a legalidade.
29. As irregularidades foram detectadas posteriormente e não colhe aqui o argumento, de sobre estas ter recaído uma justificação por parte do superior hierárquico, ficando assim as mesmas sanadas.
30. Isto porque, estas justificações não cumpriram os limites impostos e por isso, a final, verificou-se que existiam faltas injustificadas por parte do recorrido.
31. Facto assente neste processo!
32. O pagamento do vencimento mensal por inteiro em 2006 acaba por ser também, a prova cabal de que o recorrente não tinha conhecimento dos factos.
33. Sendo ainda certo que, o recorrente, muito naturalmente, não tinha nenhum interesse em não proceder ao imediato desconto nas remunerações em cada um dos meses em que as faltas ocorreram.
34. Mas, só no balanço anual elaborado em 2007 é que se constatou que o recorrido cometeu infracções e consequentemente, deveria restituir montantes indevidamente recebidos.
35. Montantes esses, que reportam ao salário respeitante ao tempo durante o qual não trabalhou como estava obrigado, mas cujo vencimento auferiu por não estarem, ainda, apuradas as faltas.
36. Trata-se, portanto, de evitar o enriquecimento sem causa do recorrido, em virtude da violação dos deveres de assiduidade e pontualidade.
37. Por todo o exposto, verifica-se que a actuação por parte do recorrente não merece qualquer reparo!
38. Conforme muito bem decidiu o Tribunal a quo, não existe vício de violação de lei, tendo o recorrente cumprido devidamente todas as normas legais aplicáveis, nomeadamente o DL nº 259/98, de 18 de Agosto e, o DL nº 100/99, de 31 de Março.
39. Acresce que, não existiu violação do princípio da boa fé, pois o recorrente actuou quanto tomou conhecimento da existência das infracções cometidas e tal, não consubstancia um comportamento desleal ou incorrecto.
40. Muito pelo contrário, actuou de acordo com o princípio da legalidade, igualdade e imparcialidade.
41. Assim, o acto praticado pelo Sr. Vereador do Pelouro dos Recursos Humanos de 12/07/2007 é perfeitamente tempestivo e não violou o princípio da boa fé.
42. Pelo exposto, deverá o acórdão recorrido ser revogado e o despacho colocado em crise validado judicialmente por V. Exªs».
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O recorrido não apresentou contra alegações.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal notificada nos termos do disposto no nº 1, do artº 146º do CPTA não se pronunciou.
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Os autos foram submetidos à Conferência para julgamento, depois de colhidos os respectivos vistos legais.
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2.FUNDAMENTOS
2.1.MATÉRIA DE FACTO
Da decisão recorrida resultam assentes os seguintes factos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos:
«O A., no ano de 2006, estava sujeito ao regime do horário flexível – facto admitido por acordo.
O O A. foi notificado para se pronunciar sobre as irregularidades detectadas nas marcações de relógio de ponto, no ano de 2006 – cfr. doc. 1 junto com a p.i..
O A. pronunciou-se nos termos de requerimento junto aos autos como doc. 3 que se dá por reproduzido.
No dia 2 de Julho de 2007 foi elaborada informação na qual se concluía que, relativamente ao ano de 2006, deveriam ser consideradas faltas não justificadas as irregularidades detectadas nos dias 27 e 31 de Março, 27 de Abril, 31 de Maio, 30 de Junho, 28 de Julho, 29 de Setembro, 27 de Outubro, 28 e 31 de Outubro.
Sobre a referida informação foi exarado em 12 de Julho de 2007 pelo Vereador da Câmara Municipal do Porto, responsável pelo Pelouro dos Recursos Humanos, despacho com o seguinte teor:
“concordo” – acto impugnado – cfr. fls. 17 dos autos.
As justificações apresentadas pelo A. para as irregularidades que determinaram a marcação das referidas faltas justificadas, foram justificadas pelo Chefe de Divisão de Colecções e Desenvolvimento – cfr. doc. 1 junto aos autos pelo R. em 8 de Novembro de 2008.
O referido Chefe de Divisão é superior hierárquico do A. – facto admitido por acordo.
Nos vencimentos do A., no ano de 2006, não foram descontadas as quantias relativas às faltas injustificadas – facto admitido por acordo.
O direito a férias do A., que foi reconhecido relativamente ao ano de 2006 teve em conta o despacho impugnado – cfr. doc. 2 junto com a p.i..
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2.2 - O DIREITO:
O recurso jurisdicional interposto pelo recorrente será apreciado à luz dos parâmetros estabelecidos nos artºs 660º, nº 2, 664º, 684º, nº 3 e 4, e 690º todos do CPC aplicáveis, ex vi, do artº 140º do CPTA e, ainda, artº 149º do mesmo diploma legal, uma vez que, o Tribunal de recurso, em sede de apelação, não se limita a analisar a decisão judicial recorrida, dado que, ainda que a declare nula, decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito” - cfr. o comentário a este propósito efectuado in “Justiça Administrativa”, Lições, pág. 459 e segs”, do Prof. Vieira de Andrade.
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QUESTÕES A DECIDIR:
Através da presente acção administrativa especial o A/ora recorrido peticionava a anulação do despacho proferido em 12/07/2007 pelo Vereador do Pelouro das Actividades Económicas e Protecção Civil da CMP, que considerou faltas injustificadas as ausências ao serviço do A./ora recorrido, registadas no ano de 2006, alegando violação do disposto no artº 16º no DL nº 259/98, de 18 de Agosto, e violação do princípio da boa fé.
A decisão recorrida julgou improcedente o vício de violação de lei, mas já julgou verificada a violação do princípio da boa fé, sendo que, o objecto do recurso, se encontra limitado à parte em que o R/recorrente ficou vencido, ou seja, à apreciação da verificação ou não da violação deste princípio legal e constitucional – artº 6º-A do CPC e artº 266º, nº 2 da CRP [pese embora, as alegações/conclusões do recorrente reafirmarem a não verificação das ilegalidades apontadas pelo A. da acção].
Vejamos:
Dispõe o artº 6º-A do CPA, sob a epígrafe “Princípio da boa fé”:
“1 – No exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé.
2 - No cumprimento do disposto nos números anteriores, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) A confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) O objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.
Nesta parte, depois das considerações doutrinais feitas a propósito deste princípio, entendeu-se na decisão recorrida que: “(…) Não obstante o princípio da boa-fé ser dotado de diversas potencialidades é possível subsumi-las a dois factores essenciais: um de sentido negativo, através do qual se visa impedir a ocorrência de comportamentos desleais e incorrectos, e um outro de sentido positivo através do qual se pretende promover a cooperação entre os sujeitos, no caso entre a Administração e os particulares.
No caso em apreço, as irregularidades detectadas, relativas ao ano de 2006, e que deram origem ao acto impugnado ocorreram entre os meses de Março a Outubro de 2006, tendo o acto impugnado sido praticado em 12 de Julho de 2007, salientando-se ainda que todas as irregularidades que estiveram na base da marcação das referidas faltas foram justificadas pelo Chefe de Divisão Colecções e Desenvolvimento, superior hierárquico do A – cfr. alíneas F) e G) da matéria de facto apurada, não tendo os vencimentos do A., relativos ao ano de 2006, sido objecto de qualquer desconto, como consequência das mesmas – cfr. alínea H) dos factos assentes.
Assim, tendo decorrido entre a data da última das irregularidades detectadas e o despacho impugnado, cerca de 9 meses – Outubro de 2006 a Julho de 2007 – e tendo decorrido entre a primeira das referidas irregularidades – datada de 27 de Março - e o despacho em apreço cerca de 16 meses – assiste razão ao A. na invocada violação do princípio em apreço, conclusão que é reforçada pela circunstância de tais irregularidades terem sido justificadas pelo superior hierárquico do A. e de as faltas injustificadas não terem sido descontadas nos subsequentes vencimentos do A. relativos ao ano de 2006, factos que criaram no A. a legítima expectativa da inexistência de quaisquer irregularidades, no referido ano, que devessem ser sancionadas com faltas injustificadas.
Ao entendimento supra exposto não deve obstar a posição segundo a qual, dado se estar perante exercício de poder vinculado – a marcação de faltas injustificadas – o princípio em apreço não operaria, dado que, se assim fosse entendido, poderia o R. marcar faltas injustificadas mesmo que os factos que as fundamentasse fossem reportados a 5, 10 ou mais anos, o que redundaria em colocar o A. numa situação de indefesa perante tal situação, dadas as evidentes dificuldades em justificar irregularidades ocorridas nos referidos lapsos temporais, pelo que, padecendo o acto impugnado do vício que lhe é assacado, procede não só o pedido impugnatório formulado como também, face à relação de estrita dependência existente, as demais pretensões deduzidas”.
Alega porém o recorrente que sempre agiu no estrito cumprimento da legalidade e que desencadeou logo que chegaram ao seu conhecimento as irregularidades cometidas pelo A./recorrido, respeitantes ao registo de presenças [conhecimento este que só ocorreu através do relatório/balanço anual] os mecanismos legais com vista à reposição da legalidade, onde se insere o despacho impugnado.
Por outro lado, alega ainda que o próprio A/recorrido sempre soube o que fazia e confrontado com o processamento das remunerações mensais por inteiro no ano de 2006 nada fez, não colhendo também o argumento de ter havido justificação das irregularidades por parte do superior hierárquico do funcionário, dada a ilegalidade das mesmas.
Acerca da noção, natureza e, limites do princípio da boa fé, permitimo-nos aqui citar o Ac. do STA de 06/07/2011, in rec. nº 0589/11:
«(…) A este princípio da boa-fé se refere, ainda, o art. 6º-A do CPA, cujo nº 2 «esclarece factores a atender na apreciação do cumprimento das regras da boa-fé, prescrevendo que devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa e o objectivo a alcançar com a actuação empreendida. Esta exigência tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que actuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento (…), abstendo-se de actuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições.» (ob. cit., pag. 278).
(…)
E embora a jurisprudência do STA acentuasse a impossibilidade de o princípio da boa fé ser aplicável em caso de actos praticados no exercício de poderes vinculados (pois que, nessa circunstância, o princípio da legalidade se sobrepõe a quaisquer outros princípios, que, por isso, só poderão gerar vício autónomo de violação de lei no domínio do exercício de poderes discricionários – cfr. por exemplo, o ac. de 26/10/94, rec. nº 17626, in Ap. DR de 20/1/97, pp. 2395 e ss), a relevância deste princípio não se esgota nos actos praticados no exercício de poderes discricionários, tendo vindo a ser colocada a da possibilidade da sua aplicação em caso de actos praticados também no exercício de poderes vinculados.
(…)
E na verdade, dado que «… o texto do art. 266º da CRP não deixa antever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa (…) em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade» (Diogo Leite de Campos e outros, loc. cit,. pag. 250) sendo que também Jorge Miranda e Rui Medeiros «referem que o princípio permite afastar soluções legais expressas que conduzam, em concreto, a uma violação da boa-fé». (Constituição da República Anotada, tomo III, pag. 575, citado pelo MP).
Trata-se da aplicação dos chamados princípios da juridicidade substancial, que estão explicitados na lei e na Constituição (cfr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., Almedina, 2006, pag. 469).
(…)
Com efeito, na densificação do referido princípio da actividade administrativa relevam sobretudo dois subprincípios concretizadores da boa-fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança.
Ora, a respeito destes subprincípios Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 1ª ed. pp. 214/216), referem o seguinte:
«O princípio da boa-fé está consagrado no art. 266º, 2 CRP e no art. 6º-A CPA, que alargou o seu âmbito subjectivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem. Tendo em conta a origem da sua positivação, não admira que a densificação deste princípio no CPA tenha sido muito influenciada pela construção dogmática empreendida no direito civil por A. Menezes Cordeiro (Da boa fé no direito civil), que identifica dois subprincípios concretizadores da boa fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança. (…).
O princípio da primazia da materialidade subjacente exprime a ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efectivos, não se satisfazendo com comportamentos que, embora formalmente correspondam a tais objectivos, falhem em atingi-los substancialmente. Este princípio proíbe, por exemplo, o exercício de posições jurídicas de modo desequilibrado ou o aproveitamento de uma ilegalidade cometida, pelo próprio prevaricador, de modo a prejudicar outrem. E a isto que o art. 6º-A, 2, b) CPA se quer referir quando afirma que se deve ponderar «o objectivo visado com a actuação empreendida».
Já o princípio da tutela da confiança «visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
É a isto que o art. 6°-A, 2, a) CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa».
A tutela da confiança pressupõe a verificação de diversas circunstâncias: primeira, uma actuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem, ou seja, uma convicção, por parte do destinatário da actuação em causa, na determinação do sujeito jurídico que a adoptou quanto à sua actuação subsequente, bem como a presença de elementos susceptíveis de legitimar essa convicção, não só em abstracto mas em concreto; terceiro, a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto, o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado, e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; quinto, a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou. Estes pressupostos devem ser encarados de modo global: a não verificação de um deles será em princípio relevante, mas pode ser superada pela maior intensidade de outro ou por outras circunstâncias pertinentes (por exemplo, em certos casos, o decurso de grandes lapsos temporais).»
No caso vertente este princípio da tutela da confiança assume especial relevância, dado que visa, precisamente e como se disse, salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
E, por outro lado, actualmente, deve entender-se que princípios como o da justiça - e da boa-fé - são aplicáveis mesmo no exercício de poderes vinculados, sobrepondo-se a outros deveres legais (cfr. por todos, o ac. do STA, de 25/6/2008, rec. nº 0291/08)».
Ora, no caso sub judice, o mais relevante para afirmarmos que existiu violação do princípio da boa fé por parte do recorrente, traduz-se, não tanto na questão temporal referida na decisão recorrida, mas, essencialmente, no facto de, pese embora, as irregularidades cometidas pelo funcionário [que imputava as horas de trabalho em regime de horário flexível no trabalho extraordinário prestado, assim violando os deveres de assiduidade e pontualidade], as mesmas terem sido sempre justificadas expressamente pelo seu superior hierárquico [chefe de divisão], justificação esta que se prolongou ao longo do ano de 2006, fazendo crer ao A/recorrido que o seu comportamento podia não constituir irregularidade uma vez que era aceite e justificado, por quem tinha competência para o efeito e, até porque, além do mais, nunca lhe foi descontada qualquer quantia nos vencimentos que auferiu durante os vários meses do ano de 2006.
Desta forma, o acto impugnado, pese embora legal, surgiu na esfera jurídica do recorrido de uma forma imprevisível, violando a confiança jurídica que depositava no seu superior hierárquico, que nunca lhe colocou qualquer objecção nas justificações que o mesmo apresentava.
Aliás, se assim se não entendesse, então impunha-se sem margem para dúvida, a responsabilização efectiva do superior hierárquico que justificou as irregularidades cometidas pelo seu funcionário ao longo do ano de 2006.
Acresce ainda referir que, havendo registo expresso do horário praticado pelo recorrido, sempre o mesmo poderia e deveria ter sido de imediato apreciado em termos de legalidade. Se, logo no mês de Março de 2006 [data da 1ª irregularidade] o recorrido tivesse sido alertado para a irregularidade da sua actuação – imputação excessiva de horas de trabalho, em regime de horário flexível, no trabalho extraordinário prestado e não remunerado - certamente não reiteraria esse procedimento e, assim, não se prolongariam essas irregularidades ao longo de todo o ano de 2006.
Ou seja, se as irregularidades em causa, além de justificadas pelo Chefe de Divisão, tivessem sido, desde logo detectadas e sancionadas – e deveriam tê-lo sido – não teria o recorrido reiterado a sua irregular actuação e, assim, não se teriam acumulado tantas faltas injustificadas.
Atento o exposto, impõe-se concluir como na decisão recorrida pela violação do princípio da boa fé por parte do recorrido, por violação do princípio da tutela da confiança, improcedendo o recurso jurisdicional interposto.
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3 - DECISÃO:
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente.
Notifique.
DN.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pela relatora (cfr. artº 138º, nº 5 do CPC “ex vi” artº 1º, do CPTA).
Porto, 30 de Março de 2012
Ass. Maria do Céu Neves
Ass. Ana Paula Portela
Ass. José Augusto Araújo Veloso