Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3556/22.3T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
LUGAR DA PRESTAÇÃO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 02/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. O nosso ordenamento jurídico encerra, em paralelo, dois regimes gerais de competência internacional, decorrendo o regime interno dos artºs. 62º e 63º do Código de Processo Civil, e o regime comunitário da ressalva contida no art.º 59º do Código de Processo Civil.

II. A aplicação do regime comunitário prevalece sobre o regime interno, em razão do primado do direito europeu, alcandorado a fonte hierarquicamente superior.

III. Para que a apreciação da causa seja da competência dos tribunais portugueses em atenção às normas jurídicas europeias que decorrem do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, importa que a causa trazida a Juízo esteja compreendida no respetivo âmbito territorial (o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros; a causa tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, a demandada está domiciliada num desses Estados-Membros); no âmbito material (a demanda tem por objeto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento), e no âmbito temporal (o Regulamento aplica-se apenas às ações intentadas após a sua entrada em vigor).

IV. Resulta do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, ter sido adotado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as ações fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço).

V. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros.

VI. Tendo em vista a determinação da competência judiciária, importa qualificar o contrato ajuizado de acordo com o direito comunitário, prevalente sobre o direito interno, enquanto pressuposto necessário para se determinar se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes, considerando que o litígio tem por objeto matéria comercial, emergente de uma relação transnacional.

VII. Tendo a Autora sustentado a sua pretensão jurídica na circunstância de que, no exercício da respetiva atividade, desenvolveu, fabricou e entregou, em Itália, à Ré (sediada em Itália), sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, calçado no valor reclamado nesta demanda e que a Ré ainda não satisfez, encerrará este critério - o da entrega material dos bens - um critério com um elevado grau de certeza jurídica com que as partes podiam contar para a determinação do tribunal internacionalmente competente, no caso os tribunais italianos, sendo, assim, relevante para fundamentar a conexão do ajuizado contrato com um lugar, no caso Itália, que, não só é razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também é suficientemente seguro para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar a deduzida pretensão, decorrente da invocada relação jurídica.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

I. Flaj – Calçados, Lda. com sede na Rua do Empresário, n.º 2, Regilde, 4815 - 621 Felgueiras, intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra, Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C., com sede Via Dante Alighieri, 28, 63811 San Telpidio a Mare, Itália, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €161.774,58, acrescida de juros de mora, contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas até efetivo e integral pagamento.

Articulou, com utilidade, que desenvolveu, fabricou e entregou à Ré, sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, calçado no valor de €170.707,11.

Acrescenta que, apesar de ter recebido a mercadoria e de não ter reclamado de nenhum defeito ou inexatidão da mesma, a Ré apenas procedeu ao pagamento da quantia de €8.932,53, mostrando-se por liquidar a sobredita importância de €161.774,58.

2. Regularmente citada, a Ré não contestou, vindo, contudo, a apresentar requerimento autónomo no qual invoca a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, porquanto, tendo as partes celebrado um contrato de compra e venda, e uma vez que quer o seu domicílio, quer o local de cumprimento relevante (lugar da entrega dos bens) se situam em Itália, serão os tribunais desse país os competentes para a preparação e julgamento da presente ação, à luz do disposto nos artºs. 4º, nºs. 1 e 7º, n.º 1, alínea a) do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.

3. Respondeu a Autora sustentando que o contrato firmado entre as partes assume natureza de contrato de prestação de serviços e não de compra e venda, razão pela qual, de acordo com as regras vertidas no referido instrumento normativo, os tribunais portugueses são dotados de competência internacional para a apreciação da demanda, por se situar no nosso país o local onde foi prestado o serviço de fabrico do calçado.

4. Foi proferida sentença na qual se afirmou a competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento do litígio, condenando-se igualmente a Ré no pedido formulado pela Autora.

5. Inconformada, apelou a Ré, tendo o Tribunal a quo conhecido do recurso, proferindo acórdão, em cujo dispositivo enunciou: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, em consequência do que se absolve a ré da instância.”

6. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação do Porto, que a Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda. se insurge, formulando as seguintes conclusões:

“1) A Autora, ora Recorrente, não se conforma com a decisão que antecede, que julgou os Tribunais Portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer da presente ação e absolveu a Ré da instância, por entender que a mesma viola o disposto nos artigos 1154.º e 1207.º do Código Civil e artigo 7.º, n.º 1, al. b), 2.ª parte do Regulamento (EU) 1215/2012, de 12/12.

2) Com efeito, o Tribunal da Relação incorreu em manifesto erro ao qualificar a relação contratual estabelecida entre as partes como um contrato de compra e venda, porquanto se trata, na verdade, de um contrato de prestação de serviços, mais concretamente, de empreitada.

3) Com efeito, a Autora desenvolveu, fabricou e entregou à Ré, sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, o calçado melhor discriminado nas faturas.

4) De sublinhar que o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 não define contrato de compra e venda nem contrato de empreitada, pelo que deverá aplicar-se a lei dos Estados membros que, no caso português, tais definições constam dos citados artigos 874º e 1207º, respetivamente, do Código Civil português,

5) Sendo certo que o conceito de contrato de prestação de serviços, na modalidade da empreitada, é até coincidente nas legislações de Portugal e de Itália.

6) Assim sendo, deverá ser qualificado o contrato em causa como uma prestação de serviços e aplicado ao caso em apreço o artigo 7.º, n.º 1, al. b), 2.ª parte do Regulamento (EU) 1215/2012, de 12 de dezembro, considerando-se como lugar do cumprimento da obrigação o lugar onde os serviços foram prestados, ou seja, as instalações da Autora, em Felgueiras, Portugal, onde foram produzidos os artigos de calçado encomendados pela Ré.

7) Subsumir os factos provados num contrato de compra e venda, ao arrepio da legislação portuguesa e, por essa via, determinar a incompetência internacional dos Tribunais portugueses é retirar à Autora, sociedade de direito português, o inegável direito constitucional que lhe assiste de recorrer aos Tribunais para reclamar o pagamento dos serviços efetivamente prestados à Ré e por esta auferidos, com manifesta violação do artigo 20º da Constituição da Republica Portuguesa.

8) Face o exposto, os Tribunais Portugueses são, pois, internacionalmente competentes para conhecer da presente ação, pelo que ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 1154.º e 1207.º do Código Civil e artigo 7.º, n.º 1, al. b) do Regulamento (EU) 1215/2012, de 12 de dezembro.

Termos em que deverá o presente recurso ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, tal como é de JUSTIÇA.”

7. A Ré/Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C. apresentou contra-alegações tendo enunciado as seguintes conclusões:

“i. Interpôs a Recorrente o presente recurso do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal a quo nos presentes autos a 11 de Dezembro de 2024 pelo qual o mesmo julgou procedente o recurso de apelação interposto pela ora Recorrida, revogando a decisão proferida em 1.ª instância e absolvendo esta última da instância;

ii. A decisão ora recorrida não merece censura alguma, impondo-se, por não assistir qualquer razão ao Recorrente, a adesão in totum ao aresto ora em crise e, por conseguinte, a negação de provimento ao presente recurso;

iii. Constitui, com efeito, o objecto do presente recurso aferir se os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o litígio sub judice;

iv. A matéria da competência internacional dos Tribunais portugueses é, de harmonia com o disposto no art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa, do art.º 288.º, 2.º inciso, do TFUE e do art.º 59.º, parte inicial, do CPC, regulado primacialmente por regulamento da União Europeia ou por instrumento de Direito Internacional Público do qual o Estado português seja parte contratante;

v. A aplicação das normas de competência internacional vertidas no CPC apenas ocorrerá destarte na ausência de regulamento da União Europeia ou de instrumento de Direito Internacional Público vigente na ordem jurídica portuguesa que regule a matéria da competência internacional do Tribunal;

vi. Rege, portanto, a matéria sub judice, o Regulamento Bruxelas I-bis, cujo art.º 4.º, n.º 1, estabelece como regra geral que serão internacionalmente competentes os Tribunais do Estado-Membro de domicílio da parte demandada, sendo, portanto, internacionalmente competentes, em face de tal regra, os Tribunais italianos;

vii. Consagra ainda o Regulamento Bruxelas I-bis, no seu art.º 7.º, n.º 1, o critério alternativo de competência em matéria contratual, estatuindo que serão ainda internacionalmente competentes os tribunais do Estado-Membro no qual foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

viii. A obrigação relevante para a determinação da competência internacional será, no caso da venda de bens, o lugar da entrega dos bens – art.º 7.º, n.º 1, alínea b), 1.º inciso – e, no caso da prestação de serviços, o lugar da prestação dos serviços – art.º 7.º, n.º 1, alínea b), 2.º inciso;

ix. Releva, portanto, a obrigação característica do contrato que constituir causa petendi, o que constitui uma inovação do art.º 5.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho relativamente ao disposto no art.º 5.º, n.º 1, Convenção de Bruxelas de 1968; inovação essa que foi mantida pelo Regulamento Bruxelas I-bis;

x. O Regulamento Bruxelas I-bis não define os conceitos de “venda de bens” nem tampouco o de “prestação de serviços”, devendo recorrer-se aos elementos da hermenêutica jurídica para se precisar o alcance de tais conceitos;

xi. O ordenamento jurídico da União Europeia encontra-se dotado de autonomia e fontes próprias, não fazendo, pois, sentido a solução preconizada pela Recorrente e pela decisão proferida em 1.ª instância de, para se delimitar os conceitos jurídicos vertidos no Regulamento Bruxelas I-bis, se fizesse apelo ao direito interno, o que levaria inelutavelmente à existência de divergências ou até contradições entre conceitos, contrariando as finalidades que presidiram à sua consagração m execução do disposto no art.º 81.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do TFUE;

xii. O recurso ao direito interno enquanto suporte densificador de conceitos jurídicos de direito da União Europeia comprometeria a aplicação uniforme do mesmo, potenciando, no caso vertente, conflitos de jurisdição e violaria ainda o princípio da igualdade;

xiii. A interpretação de actos normativos da União Europeia não deve, assim, de harmonia com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça da União Europeia a esse respeito, ser feita com recurso ao direito interno dos Estados-Membros como auxiliar interpretativo, mas, em alternativa, devendo procurar-se a interpretação tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa;

xiv. Tratam-se, portanto, os conceitos de “venda de bens” e “prestação de serviços” vertidos no Regulamento Bruxelas I-bis de conceitos autónomos estabelecidos com vista ao reforço dos objectivos de unificação das regras de competência judiciária e de competência jurídica;

xv. Devendo a interpretação do art.º 7.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento Bruxelas I-bis ser feita de harmonia com a génese, os objectivos e a sistemática do regulamento em apreço;

xvi. Decorre da factualidade como provada nos presentes autos que a Recorrida adquiriu calçado à Recorrente, obrigando-se a pagar o correspectivo preço, tendo a entrega de tal calçado ocorrido das instalações da Recorrida (cfr. Documentos n.ºs 1 a 10 juntos à petição inicial);

xvii. Era, portanto, a prestação principal da obrigação característica do contrato celebrado entre as partes no presente litígio que a Recorrente entregaria sapatos à Recorrida, tratando-se, com efeito, de uma prestação de dare que é claramente subsumível à figura da “venda de bens” prevista no art.º 7.º, n.º 1, alínea b), 1.º inciso, do Regulamento Bruxelas I-bis;

xviii. As especificações quanto às características dos itens de calçado a entregar pela Recorrente não contendem, pois, com a natureza jurídica de tal contrato enquanto compra e venda, antes constituindo prestações secundárias que são funcionalmente conexas com a prestação principal e que em nada descaracterizam esta última enquanto prestação de dare, antes auxiliando à sua delimitação;

xix. Não incidia, pois, a prestação principal a cargo da Recorrente na realização de qualquer actuação material, nem lhe sendo sequer exigível a realização de qualquer trabalho ex novo, podendo a Recorrente cumprir a obrigação a seu cargo com a entrega de itens de calçado fabricados antes ou depois da celebração do contrato com a Recorrida, contanto que os mesmos tivessem as características especificadas pela Recorrida;

xx. Acresce, ainda, que a Recorrida apenas inspeccionou os bens comprados após a sua entrega, não tendo exercido o controlo de qualidade na pendência do fabrico que é característica das prestações de serviços;

xxi. Importa ainda reter que, mesmo que tivesse a Recorrente que fabricar os itens a entregar à Recorrida, a venda de bens para fabricar ou produzir é tida, nos direitos internacional e da União Europeia, como um contrato de compra e venda;

xxii. Consideram-se contratos de compra e venda, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adoptada em Viena, em 11 de Abril de 1980, “os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir”;

xxiii. Sendo tal definição uma réplica da definição vertida no art.º 6.º, n.º 2, da Convenção das Nações Unidas sobre a prescrição em matéria de venda internacional de mercadorias, adoptada em Nova Iorque, a 14 de Junho de 1974;

xxiv. E, no quadro do direito da União Europeia, qualifica o art.º 3.º, n.º 2, da Directiva (UE) n.º 2019/771 como sendo contratos de compra e venda aqueles celebrados “para o fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir”;

xxv. E, tendo a Comissão Europeia, em momento contemporâneo ao da feitura do Regulamento Bruxelas I-bis, proposto um regulamento relativo ao direito europeu comum da compra e venda (proposta COM (2011) 635 final), considerou, no art.º 2.º, alínea k), de tal iniciativa legislativa, como contrato de compra e venda “os contratos de fornecimento de bens a fabricar ou a produzir”;

xxvi. O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu, em acórdão proferido a 25 de Fevereiro de 2010 no processo n.º C-381/08, cujo objecto era análogo ao dos presentes autos, que se considerava, para os efeitos do art.º 5.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001 – equivalente ao actual art.º 7.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento Bruxelas I-bis – como “venda de bens” os “contratos cujo objecto é entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato”;

xxvii. Tal entendimento foi replicado, entre nós, pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2017, proferido no processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1, e de 10 de Dezembro de 2020, proferido no processo n.º 1608/19.6T8GMR.G1.S1;

xxviii. É, portanto, de se considerar como venda de bens, para os efeitos previstos no art.º 7.º, n.º 1, alínea b), 1.º inciso, do Regulamento Bruxelas I-bis, a compra de bens a fabricar ou a produzir;

xxix. Inexistindo, em todo o caso, nos presentes autos, qualquer indício de que as matérias-primas para o fabrico do calçado tivessem sido fornecidas pela Recorrida, tendo tal facto sido alegado pela Recorrente em resposta às alegações escritas (requerimento de 5 de Março de 2023 autuado no processo electrónico com a referência 8758264), quando a Autora aqui Recorrente se viu perante a alegação de incompetência avançada pela Ré aqui Recorrida, pretendendo, assim, conformar a competência do Tribunal com alegações falsas;

xxx. Não observou, pois, a Recorrente o ónus de alegação dos factos principais a seu cargo, em conformidade com o disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o mesmo, não sendo objectiva ou subjectivamente superveniente à propositura da presente acção, deveria ter sido alegado em sede de petição inicial, nos termos dos art.ºs 552., n.º 1, alínea d), e 588.º, n.º 1, a contrario sensu, ambos do CPC;

xxxi. Alegado tal facto fora da oportunidade processual legalmente prevista, deve o mesmo ser desconsiderado, não gerando o mesmo qualquer ónus de impugnar nem podendo muito menos ser tido em consideração na decisão quanto à matéria de facto, em face do princípio da preclusão e do disposto no art.º 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC;

xxxii. É, pois, indubitável que o contrato sub judice deve ser qualificado como um contrato de compra e venda para os fins previstos no Regulamento Bruxelas I-bis;

xxxiii. E, tendo a Ré/Recorrida sede em Itália, e devendo ser na sua sede – conforme sucedeu – que os bens seriam entregues, não há, pois, qualquer elemento de conexão atendível que ligue o litígio sub judice à ordem jurisdicional portuguesa;

xxxiv. Falece, assim, a competência internacional dos Tribunais portugueses, procedendo, portanto, a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, devendo, por conseguinte, a Recorrida ser absolvida da instância, nos termos dos art.ºs 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), todos do CPC;

xxxv. Andou, pois, bem o Venerando Tribunal a quo no douto acórdão recorrido, devendo, em face do supra-exposto, ser negado provimento ao presente recurso.

Termos em que V. Exas. negarão o provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”

8. Foram cumpridos os vistos.

9. Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda., consiste em saber se:

(1) Há fundamento para alterar o acórdão recorrido que julgou procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão das regras de competência internacional, importando que se declare os tribunais portugueses competentes para conhecer da demanda em causa?

II. 2. Da Matéria de Facto

A materialidade adquirida processualmente para efeito de apreciação do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório, sendo que em resultado da ausência de contestação da Ré/Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C., e em razão do disposto no art.º 567º n.º 1 do Código de Processo Civil, considera-se demonstrada a facticidade que adiante se consigna:

“1º A Autora dedica-se ao fabrico de calçado de couro e pele.

2º No exercício da sua atividade, a Autora desenvolveu, fabricou e entregou à Ré, sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, o calçado melhor discriminado nas seguintes faturas:

- Fatura n.º ...81 de 15/10/2021 no valor de 11.632,53 €;

- Fatura n.º ...29 de 26/11/2021 no valor de 26.556,29 €;

- Fatura n.º ...33 de 06/12/2021 no valor de 27.126,54 €;

- Fatura n.º ...44 de 13/12/2021 no valor de 42.177,89 €;

- Fatura n.º ...53 de 22/12/2021 no valor de 6.161,27 €;

- Fatura n.º ...58 de 22/02/2022 no valor de 19.002,06 €;

- Fatura n.º ...89 de 31/03/201 no valor de 19.797,85 €;

- Fatura n.º ...01 de 04/04/2022 no valor de 9.746,68 €;

- Fatura n.º ...20 de 28/06/2022 no valor de 4.822,50 €; e

- Fatura nº ...21 de 28/06/2021 no valor de 3.683,50 €.

3º O preço global do calçado confecionado e entregue pela Autora à Ré, e por esta recebido, ascendeu ao montante global de 170.707,11 €.

4º Todo o calçado foi fabricado pela Autora de acordo com as especificações fornecidas pela Ré e conforme as amostras confecionadas pela Autora e aprovadas pela Ré.

5º sendo certo que foram inspecionados e aceites pela Ré, quer quanto à quantidade, quer quanto à qualidade e nenhum defeito ou inexatidão foi por aquela reclamado à Autora.

6º A Ré recebeu o referido calçado, que comercializou e de onde retirou proventos.

7º sendo certo que a Ré apenas pagou à Autora o montante de 8.932,53 €, por conta da fatura nº ...81, de 15 de outubro de 2021.

8º A Ré, apesar de reconhecer o valor em dívida à Autora, não se dignou efetuar o seu pagamento, apesar de instada por variadíssimas vezes.”

II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. Há fundamento para alterar o acórdão recorrido que julgou procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão das regras de competência internacional, importando que se declare os tribunais portugueses competentes para conhecer da demanda em causa? (1)

I. Considerando a similitude fáctico-normativa desta demanda trazida a Juízo com àqueloutra por nós conhecida e relatada em acórdão proferido em 10 de dezembro de 2020, no âmbito do Processo n.º 1608/19.6T8GMR.G1.S1, seguiremos de perto a orientação jurídica então perfilhada.

II. Cotejada a presente demanda, distinguimos que a ação foi proposta por uma sociedade sediada em Portugal contra uma outra, sediada num outro país da União Europeia, Itália, importando que os factos jurídicos donde emerge a pretensão arrogada revelam, aliás, pacificamente aceite, estarmos perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional.

Na verdade, a ação trazida a Juízo tem como causa de pedir uma relação contratual celebrada entre aquelas sociedades, no âmbito da qual a Autora (sediada em Portugal), no exercício da sua atividade, desenvolveu, fabricou e entregou, em Itália, à Ré (sediada em Itália), sob encomenda, especificações e instruções desta, e que recebeu daquela, calçado no valor de €170.707,11, cujo valor reclama nesta demanda, deduzido do montante de €8.932,53, que a Ré ainda não satisfez.

Colocada a questão do conhecimento do litígio apresentado, as Instâncias divergiram, pois, enquanto a 1ª Instância entendeu que os tribunais portugueses são competentes para conhecer do dissídio apresentado em Juízo, já o Tribunal da Relação, ao invés, considerou os tribunais portugueses incompetentes.

3. A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, sublinhando-se que, tal como sucede com os outros poderes e funções do Estado, a jurisdição dos tribunais portugueses tem limites e é demarcada por confronto com a jurisdição dos tribunais de outros países.

4. Para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, “é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio”, neste sentido, Castro Mendes, in, Apontamentos das suas Lições de Direito Processual Civil, redigidos por Armindo Ribeiro Mendes, Volume I, pág. 263, sendo que os fatores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram o conteúdo de regras ou princípios que definem quando é que “o Estado português se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”, neste sentido, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, página 92, e Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, página 198.

5. O nosso ordenamento jurídico - art.º 59º do Código de Processo Civil - encerra, em paralelo, dois regimes gerais de competência internacional, aclarando os critérios em função dos quais reconhece, aos tribunais portugueses, competência internacional, e enunciando a exigibilidade dos elementos de conexão prevenidos nos artºs. 62º e 63º do Código de Processo Civil, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art.º 94º do Código de Processo Civil, entendido como regime interno, e aqueloutro regime decorrente da ressalva contida no mencionado art.º 59º do Código de Processo Civil ao determinar o respeito pelo estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, reconhecido como regime comunitário.

Ou seja, por um lado, e sem curar dos pactos privativo e atributivo de jurisdição decorrente do art.º 94º do Código de Processo Civil, os tribunais portugueses detêm competência exclusiva nos termos do art.º 63º do Código de Processo Civil, enunciando, por seu turno, o art.º 62º do Código de Processo Civil, os fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, isto é, os critérios ou princípios da coincidência, condizente à alínea a); da causalidade, decorrente da alínea b); e da necessidade, conforme se colhe da alínea c), indicando-se para mais desenvolvimentos a respeito destes critérios ou princípios, Alberto dos Reis, obra citada, páginas 198 a 200, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª edição, páginas 131 a 134, realçando que os enunciados critérios devem ser entendidos enquanto fatores autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses, como sustentam, Manuel de Andrade, obra citada, págs. 92 e 93, Castro Mendes, obra citada, página 264, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, obra citada, página 131.

Por outro lado, atendendo ao art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia “o regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros”, a par da nossa Lei Fundamental - art.º 8º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa - distinguimos que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.

6. Reconhecendo-se, como acabamos de afirmar, que no nosso ordenamento jurídico vigoram, em simultâneo, dois regimes gerais de competência internacional, o regime interno e o regime comunitário, impõe-se também sublinhar que a aplicação do regime comunitário prevalece sobre o regime interno, em razão do princípio do primado do direito europeu, alcandorado a fonte hierarquicamente superior, conforme, aliás, já foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, verbi gratia, Acórdão de 8 de Setembro de 2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim), in, Colectânea de Jurisprudência 2010-I-08015, onde se consignou a propósito da prevalência da aplicação do regime comunitário sobre o regime interno: “(…) resulta de jurisprudência assente [que], por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados-Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.º 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n.º 18). 54. Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União directamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.ºs 14 e 15, e Factortame e o n.º 18). 55. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado - Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.º CE, de aplicar integralmente o direito da União directamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.ºs 16 e 21, e Factortame e o., n.º 19).”

7. Revertendo ao caso sub iudice, importa atentar (estamos perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional, em que as partes estão sediadas em Estados-Membros da União Europeia) na ressalva contida no mencionado art.º 59º do Código de Processo Civil ao determinar o respeito pelo estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, no caso, as normas jurídicas europeias relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial que decorre do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, sem deixarmos de acentuar que é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, com aplicação prevalente sobre o denominado regime interno decorrente do regime geral de competência internacional.

Assim, a dilucidação da única questão jurídica colocada a este Tribunal ad quem que consiste em determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar a pretensão formulada nos autos, terá em atenção as normas jurídicas europeias que decorrem do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, uma vez que a causa trazida a Juízo está compreendida no âmbito territorial (o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros, nomeadamente, à Itália e Portugal; a causa tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, Portugal e Itália, sendo que a Ré está domiciliada num desses Estados-Membros); no âmbito material (a demanda tem por objeto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento), e no âmbito temporal (o Regulamento é aplicável apenas às ações judiciais intentadas depois da sua entrada em vigor, ou seja, 10 de Janeiro de 2015, sendo que a presente demanda foi intentada posteriormente) do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.

8. Sendo pacífico que a causa trazida a Juízo tem como causa de pedir uma relação contratual, celebrada entre as partes, e atendendo ao enquadramento jurídico que vimos de discretear, tomar-se-á como assente que lhe é aplicável o n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, ou seja, tendo a Ré/Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C. domicílio num Estado-Membro, a ação tanto poderia ter sido proposta nesse Estado (Itália), como no “tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”.

Os critérios para determinar o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão resultam das alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012:

“b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.

9. Importa, pois, saber se, para determinar qual é o “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, releva o local da entrega dos bens (Itália) ou do respetivo fabrico (Portugal).

10. Como resulta do cotejo do enunciado art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, foi claramente adotado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as ações fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço), relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, não só seja razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também suficientemente segura para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão decorrente da relação jurídica, e, neste sentido, convém relembrar o considerando 16 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele.”

11. A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros.

Como exemplo inicial desta orientação, cujas raízes remontam ao Direito Comunitário, descortinamos o Acórdão do TJCE de 14 de Outubro de 1976, no caso LTU Lufttransportunternehmen GmbH Co./Eurocontrol, o qual prescindiu da referência ao Direito de qualquer dos Estados intervenientes na causa do litígio, partindo antes dos objetivos e do sistema do respetivo instrumento, conjugado com os princípios gerais resultantes do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais.

Outrossim, a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sufraga o enunciado posicionamento, aportando Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que cita, conforme respigamos do Acórdão do Supremo de Justiça proferido em 14 de dezembro de 2017 (Processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1), desta 7ª Secção, in, www.dgsi.pt, também citado pelo Tribunal a quo, “A interpretação autónoma da al. b) do nº 1 do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2002, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do artigo 5º, nº 1, b), do Regulamento nº 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve então fazer-se “à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do regulamento” (acórdão Falco Privatstiftung e jurisprudência nele citada, ponto 20).

Na verdade, como sabemos, e foi mais uma vez recordado, por exemplo, no acórdão de 16 de Junho de 2016 do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo, C‑511/14, Pebros Servizi srl contra Aston Martin Lagonda Ltd, “decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C‑508/12, EU:C:2013:790, n.º 23 e jurisprudência referida) (…).

Ambos os regulamentos (…) ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual” (ponto 54 do acórdão do TJ de 23 de Abril de 2009, proc. C-533/07, caso Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch contra Gisela Weller-Lindhorst).”

12. Impõe-se, assim, qualificar o contrato ajuizado de acordo com o direito comunitário, prevalente sobre o direito interno, com vista à determinação da competência judiciária sem perder de vista o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, enquanto pressuposto necessário para se reconhecer se os tribunais portugueses são, ou não, internacionalmente competentes, considerando que o litígio tem por objeto matéria comercial emergente de uma relação transnacional, cuidando de relembrar que a competência internacional tem de ser aferida em razão dos termos em que o demandante configura a ação, a qual se define através do pedido, da causa de pedir e da natureza das partes, importando, necessariamente, ponderar sobre os elementos objetivos da demanda, ou seja, a natureza da providência solicitada, a natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, o facto ou ato donde resulta o invocado direito, outrossim, dos elementos subjetivos da ação.

13. Confrontada a facticidade decorrente dos autos, e enunciada no acórdão recorrido, divisamos que a pretensão jurídica deduzida está sustentada num contrato outorgado entre as partes, no âmbito do qual a Autora/Flaj – Calçados, Lda. (sediada em Portugal), no exercício da sua atividade, desenvolveu, fabricou e entregou, em Itália, à Ré/Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C. (sediada em Itália), sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, calçado no valor de €170.707,11, cujo valor reclama nesta demanda, deduzido do montante de €8.932,53, que a Ré ainda não satisfez.

14. A propósito da qualificação dos contratos, o Supremo Tribunal de Justiça já se tem debruçado sobre a questão, reiterando que o Tribunal de Justiça da União Europeia já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente, para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2005 (Processo n.º 05B316); de 10 de Maio de 2007 (Processo n.º 07B072); de 9 de Junho de 2011 (Processo n.º C-87/10); de 5 de Abril de 2016 (Processo n.º 27630/13.8YIPRT-A.G1.S1); de 22 de Setembro de 2016 (Processo n.º 2561/14.8T8BRG.G1.S1) de 14 de dezembro de 2017 (Processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1), e de 10 de dezembro de 2020 (Processo nº 1608/19.6T8GMR.G1.S1).

15. A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça fazendo apelo à Jurisprudência do Tribunal Justiça da União Europeia (TJUE), anteriormente designado da Comunidade Europeia (TJCE), nomeadamente ao Acórdão do Car Trim, de 25 de Fevereiro de 2010, anotado em, O Direito, ano 142.º, 2010, II, por Maria João Matias Fernandes, página 371/384 - reconhece que “1) O artigo 5.°, n.º1, alínea b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objeto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências relativas à obtenção, à transformação e à entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por este fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e conformidade com o contrato da mercadoria, devem ser qualificados de “venda de bens” na aceção do artigo 5.°, n.º1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento. 2) O artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, em caso de venda à distância, o lugar onde as mercadorias foram ou devam ser entregues por força do contrato deve ser determinado com fundamento nas disposições desse contrato. Se for impossível determinar o lugar de entrega com esse fundamento, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, esse lugar é o da entrega material dos bens pela qual o comprador adquiriu ou devia ter adquirido o poder de dispor efetivamente desses bens no destino final da operação de venda.” (anota-se a referência ao nº 1 do art.º 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, mas inteiramente transponível para a interpretação do n.º 1 do art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).

16. Ponderados os termos do contrato ajuizado, donde emerge o direito que a Autora/Flaj – Calçados, Lda. se arroga, e tendo em devida atenção os princípios que norteiam a fixação do critério autónomo que consta da alínea b) do art.º 7 do regime constante do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, conforme vimos de discretear, e tendo a Autora/Flaj – Calçados, Lda. sustentado a sua pretensão jurídica na circunstância de que, no exercício da respetiva atividade, desenvolveu, fabricou e entregou, em Itália, à Ré/Officina 7 Sas Bernabé Loredana & C. (sediada em Itália), sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, calçado no valor de €170.707,11, cujo valor reclama nesta demanda, deduzido do montante de €8.932,53, que a Ré ainda não satisfez, encerrará este critério - o da entrega material dos bens encomendados, um critério com um elevado grau de certeza jurídica com que as partes podiam contar para a determinação do tribunal internacionalmente competente, no caso os tribunais italianos, sendo, assim, relevante para fundamentar a conexão do ajuizado contrato com um lugar, no caso Itália, que, não só é razoavelmente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado, mas também é suficientemente seguro para permitir determinar o Estado cujos tribunais são competentes para julgar a deduzida pretensão, decorrente da invocada relação jurídica.

17. Reconhecido o enquadramento jurídico adotado acerca dos princípios que orientam a fixação do critério autónomo que consta da alínea b) do art.º 7 do regime constante do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, e configurada a demanda nos termos enunciados, resta aprovar o acórdão recorrido.

18. Na improcedência da argumentação esgrimida e trazida à discussão pela Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda. nas suas doutas alegações de recurso, e na decorrência do consignado enquadramento jurídico normativo, a invocada exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses terá, necessariamente, de ser julgada procedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pela Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda., negando-se a revista.

Custas pela Recorrente/Autora/Flaj – Calçados, Lda.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 27 de fevereiro de 2025

Oliveira Abreu (relator)

Arlindo Oliveira

António Barateiro Martins