Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
116/23.5GAVVC.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO PARCIAL
RENOVAÇÃO
PROVA
DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
IRREGULARIDADE
JUIZ NATURAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ABORTO
ARTIGO 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Entende-se como dupla conforme a situação em que duas decisões judiciais, de diferentes tribunais, concordam sobre a mesma questão; isto é, quando uma decisão judicial de segunda instância confirma a decisão de primeira instância, sem que haja divergências significativas na fundamentação de ambas as decisões.

II. A dupla conforme consiste num pressuposto negativo de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido introduzido pelo legislador, com o propósito de filtrar o acesso a esta instância máxima, nos casos em que, tendo as matérias alvo de crítica sido já decididas por um tribunal de recurso, tendo o mesmo confirmado a decisão da 1ª instância, se ter de entender que ocorreu já uma análise completa e consistente, do caso, por duas instâncias judiciais, não se mostrando necessária uma terceira apreciação, agilizando-se, deste modo, a resolução de casos e evitando-se a sobrecarga do Supremo Tribunal de Justiça.

III. No que concerne ao não cumprimento do prazo de dilação entre o exame preliminar e a prolação do acórdão em conferência:

a. Não existe decisão colectiva, a este respeito, confrontadora de argumentos avançados pelo recorrente, no sentido da efectiva admissibilidade do pedido de renovação de prova que formulou, contrariando a decisão singular que a desatendeu, demonstrando o erro de direito em que a mesma se fundou, que permita a este tribunal ter competência para sobre a mesma decidir.

b. Daqui decorre que o que apenas existe e é sobre tal que o recorrente pretende pronúncia, é uma decisão singular.

c. Como é jurisprudência pacífica deste STJ, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão sumária proferida pelo relator na 2.ª instância, ao abrigo do n.º 6 do art. 417.º do CPP, sendo que a forma de impugnação de tal decisão é a reclamação para a conferência, nos termos do art. 417.º, n.º 8, do C.P.Penal – vide, neste sentido, entre muitos outros, Decisão Sumária do Vice-Presidente do STJ, processo nº28/14.3NJLSB.L1-D.S1, de 20/11/2024 (I. O despacho – e a decisão sumária - do juiz relator, proferidos em recurso, não admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça).

IV. O manifesto incumprimento temporal já acima evidenciado, entre o exame preliminar que desatendeu o pedido de renovação de prova e a realização da conferência, consubstanciando-se numa irregularidade – que é o vício de que padece, atento o disposto nos artºs 118, nºs 1 e 2, 119 e 120 a contrario sensu e artº123, todos do C.P.Penal - não afectou o acto praticado (prolação de decisão final sobre os recursos apresentados).

Decisão Texto Integral:

Tribunal Judicial da Comarca do Évora, Juízo Central Civil e Criminal de Évora, Juiz 2

Acordam em conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I – relatório

1. Por acórdão prolatado pelo tribunal de 1ª instância, foi proferida a seguinte decisão:

a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b), do Código Penal, na pena de 21 (vinte e um) anos, não se verificando as alíneas c) e j) do artigo 132.º, do mesmo diploma legal;

b) Condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de aborto, p. e p. pelos artigos 140.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses;

c) Condenar o arguido na pena única de 23 (vinte e três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

d) Arbitrar a favor de BB, para compensação dos danos por ele sofridos em consequência da conduta criminosa do arguido, o montante de € 10.000 (dez mil euros), a suportar pelo arguido nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal e 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro;

e) Arbitrar a favor de CC, para compensação dos danos por ele sofridos em consequência da conduta criminosa do arguido, o montante de € 10.000 (dez mil euros), a suportar pelo arguido nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal e 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro;

2. Inconformados, interpuseram quer o arguido, quer o MºPº, recurso para o Tribunal da Relação de Évora.

O arguido interpôs 3 recursos, sendo dois interlocutórios e um relativo à decisão final, designadamente:

a. Recurso interlocutório do despacho proferido em 17/01/25 (violação do princípio do juiz natural, decorrente de nulidade insanável prevista no artº118º e 119º-a) (2ª parte) do CPP, face à fixação quanto ao efeito de recurso antes interposto, suscitando o impedimento do JIC nos termos do artº40º-1-a), com violação do artº42º-3 do CPP);

b. Recurso interlocutório relativo à medida de coacção.

c. Recurso da decisão final.

3. Por acórdão de 18 de Julho de 2025, o Tribunal da Relação de Évora prolatou acórdão, com a seguinte decisão:

1) Negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido, os dois interlocutórios e o recurso do acórdão condenatório.

2) Conceder parcial provimento ao recurso do MP e em consequência:

- Considerar preenchida no crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido foi condenado, a al. c) do nº2 do Artº 132 do C. Penal;

- Atribuir a favor de BB e de CC, como compensação pelos danos sofridos em consequência do crime de homicídio cometido pelo arguido, a quantia, para cada um, de € 80.000,00 (oitenta mil euros), assim se revogando, nesta parte, a decisão recorrida.

No mais, manter, na íntegra, o acórdão recorrido.

4. Por acórdão de 6 de Agosto de 2025, o TRE pronunciou-se sobre a reclamação apresentada pelo arguido, em que este arguiu a irregularidade decorrente da não observância do prazo para reclamar do despacho que fixou os efeitos do recurso e se pronunciou sobre o pedido de renovação da prova, bem como a nulidade do acórdão proferido por violação do princípio do juiz natural, decidindo, a final, pela improcedência das irregularidades e nulidades suscitadas e imputadas ao acórdão proferido pelo TRE, em 18 de Julho de 2025.

5. Inconformado, veio o arguido interpor recurso para este STJ.

O recorrente invoca:

a. Irregularidade do Acórdão, proferido no dia 18.07.2025, decorrente da não observância do prazo para reclamação do despacho, proferido no dia 14.07.2025, que fixou os efeitos do recurso e se pronunciou sobre o pedido de renovação da prova;

b. Violação do “princípio do juiz natural”, consignado no n° 9, do art° 32°, da Constituição, por intervenção no acórdão de Agosto de 2025, que decidiu a reclamação, de dois juízes de turno;

c. Nulidade de omissão de pronúncia do acórdão de Julho de 2025, a que aludem os art°s. 374°, n° 2, 379°, n° 1, al. a) e 425°, n° 4, do Cód. Proc. Penal, no que respeita à reapreciação probatória pedida;

d. Todos os vícios referidos no artº 410 nº2 do C.P.Penal;

e. Violação das garantias de Defesa, do princípio do inquisitório e da estrutura acusatória do processo penal, o processo justo e equitativo, pelo tribunal de 1ª instância, atenta a alteração dos factos e da subsunção e qualificação jurídica a que procedeu;

f. Violação do princípio do juiz natural, decorrente de nulidade insanável prevista no artº118º e 119º-a) (2ª parte) do CPP, face à fixação quanto ao efeito de recurso antes interposto, suscitando o impedimento do JIC nos termos do artº40º-1-a), com violação do artº42º-3 do CPP.

6. O MºPº junto do tribunal “a quo” pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

7. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs visto.

II – questões a decidir.

A. Violação do princípio do juiz natural, decorrente de nulidade insanável prevista no artº118º e 119º-a) (2ª parte) do CPP, face à fixação quanto ao efeito de recurso antes interposto, suscitando o impedimento do JIC nos termos do artº40º-1-a), com violação do artº42º-3 do CPP.

B. Violação das garantias de Defesa, do princípio do inquisitório e da estrutura acusatória do processo penal, o processo justo e equitativo, pelo tribunal de 1ª instância, atenta a alteração dos factos e da subsunção e qualificação jurídica a que procedeu.

C. Irregularidade do Acórdão, proferido no dia 18.07.2025, decorrente da não observância do prazo para reclamação do despacho proferido no dia 14.07.2025, que fixou os efeitos do recurso e se pronunciou sobre o pedido de renovação da prova.

D. Violação do “princípio do juiz natural”, consignado no n° 9, do art° 32°, da Constituição, por intervenção no acórdão de Agosto de 2025, que decidiu a reclamação, de dois juízes de turno.

E. Nulidade de omissão de pronúncia do acórdão de Julho de 2025, a que aludem os art°s. 374°, n° 2, 379°, n° 1, al. a) e 425°, n° 4, do Cód. Proc. Penal, no que respeita à reapreciação probatória pedida.

F. Todos os vícios referidos no artº 410 nº2 do C.P.Penal.

iii - fundamentação.

A. Violação do princípio do juiz natural, decorrente de nulidade insanável prevista no artº118º e 119º-a) (2ª parte) do CPP, face à fixação quanto ao efeito de recurso antes interposto, suscitando o impedimento do JIC nos termos do artº40º-1-a), com violação do artº42º-3 do CPP.

B. Violação das garantias de Defesa, do princípio do inquisitório e da estrutura acusatória do processo penal, o processo justo e equitativo, pelo tribunal de 1ª instância, atenta a alteração dos factos e da subsunção e qualificação jurídica a que procedeu;

1. A propósito destas questões, apresenta o recorrente as seguintes conclusões:

13° - Já antes, em sede de julgamento na 1ª instância, foi violado o princípio do juiz natural ou legal, uma vez que a composição do tribunal adveio de distribuição inoportuna e intempestiva ocorrida, quando se encontrava pendente e não transitado em julgado incidente de recusa do JIC, o que se argui nos termos e para efeitos do art°410°-3 do CPP;

14° - Pese muito embora o efeito que a lei estabelece no art°43°-2 do CPP ser o efeito suspensivo para o incidente, veio a ser considerado e mantido o efeito devolutivo contra essa norma expressa e veio o impedimento a ser julgado não verificado, levando a que a composição do tribunal de julgamento ficasse atingida por uma distribuição e, por isso, atribuição da causa a um coletivo daí surgido;

15° - O que gerou a subsequente nulidade na composição do tribunal de julgamento, em violação do juiz natural, por inoportunidade da distribuição feita e remessa dos autos para julgamento logo após a decisão instrutória, com o consecutivo impedimento suscitado e pendente;

16° - Esse impedimento foi indeferido pelo TRE em acórdão de 7/10/2024, baseando-se no art°40°-2 do CPP, que é uma norma inconstitucional, quando entendida que se não estenda aos juízes que mantém as medidas de coação, fazendo um entendimento restritivo só quanto aos juízes que aplicam inicialmente a medida de coação de prisão preventiva, violando as garantias de Defesa e a um processos justo e equitativo, porquanto os motivos que radicam objetivamente no juiz que aplica a medida se mantém em relação aos juízes que a reapreciam e mantém, no sentido de ser posta em causa a sua isenção sem efeitos pré-determinados pelo contacto com o processo, o que se argui nos termos e para efeitos do art°410°-3 do CPP;

17° - O tribunal de julgamento procedeu a alteração dos factos e da subsunção e qualificação jurídica, em violação das garantias de Defesa, do princípio do inquisitório e da estrutura acusatória do processo penal, o processo justo e equitativo;

2. O tribunal da Relação de Évora pronunciou-se, a respeito destas questões, nos seguintes termos:

B.1. Nulidade insanável decorrente do despacho proferido em 17/01/25

Para se compreender a confusa alegação do arguido nesta parte, importa fazer uma resenha do caminho processual que releva para a situação em causa.

Em recurso anterior, o arguido suscitou a seguinte questão (transcrição):

O Mtº JIC cujo impedimento se suscita, ao proferir o despacho judicial cuja referência é 33595794 aplicou a medida de coação prevista no artº202º do CPP, não existindo razão alguma para que tal despacho seja tratado de forma diferenciada em relação ao despacho inicialmente proferido aquando do 1º interrogatório por outro Magistrado judicial, uma vez que a ordem de razões que militam a favor do impedimento aquando do despacho subsequente ao 1º interrogatório são as mesmas, ou pelo menos semelhantes, às razões inerentes ao despacho referido e proferido pelo JIC visado, que, de resto, teve até mais contacto no Inquérito com o curso dos autos do que o JIC que realizou o interrogatório do arguido.

Assim, deve ser declarado o impedimento respetivo, nos sobreditos termos legais.

Ao dito recurso, foi, a 08/10/24, por esta Relação, negado provimento e, consequentemente, confirmadas as decisões recorridas, decisão que transitou em julgado a 13/11/24.

A 13/10/24, veio o arguido apresentar requerimento junto do Tribunal da Relação de Évora, alegando, para além do mais “pretender usar o disposto no artigo 417.º, n.º 8 (reclamação para a conferência)”, o qual foi indeferido, por despacho prolatado a 11/11/24.

Com a apresentação da contestação veio o arguido alegar (transcrição):

Encontra-se pendente recurso interposto sobre impedimento do JIC; já foi proferido acórdão recentemente pelo TRE e já foi arguida irregularidade que toldará o processado, aguardando-se decisão sobre essa mesma arguição.

Na realidade, o recurso interposto sobre o impedimento referido tem, por lei expressa, efeito suspensivo” e “sucede que foi admitido na instância no efeito devolutivo e no exame preliminar foi dito ter sido tal recurso admitido adequadamente;

Uma vez que o arguido ali recorrente não foi notificado do exame preliminar nos termos e para efeitos do cumprimento do artº417º- 7 e, em especial, 8 do CPP, suscitou-se a referida omissão para que possa ser sanada, naturalmente se tendo a expetativa que seja reconhecida pelo menos a irregularidade em causa e devendo os autos retroagir até esse mesmo momento, a notificação do despacho proferido pelo Exmº Sr. Juiz Desembargador Relator, que, aliás, antes do acórdão proferido pela conferência a negar a procedência recursiva, expressamente, além do que diz a lei de forma direta, ordenou essa mesma notificação nunca acontecida. Posto isto, a remessa dos autos, por parte do JIC para a distribuição foi intempestiva e só justificada pelo facto de contrariamente ao estatuído expressamente no artº42º-3 do CPP ter admitido o dito recurso no efeito devolutivo;

Se acaso se verificar, face à arguição pendente de decisão, que o efeito de tal recurso é suspensivo, como resulta a todas as luzes da clarividência, constata-se que a distribuição ocorreu antes do tempo adequado e determinado na lei.

E nessa lógica condicional, mas que o tempo dissipará, deverão os autos retroagir ao TIC de Évora, até que esteja transitada em julgado a decisão atinente ao recurso cujo efeito é suspensivo, caso assim venha a ser judicialmente admitido e reparado.

O que se não deixa de invocar, desde já, por poder vir a evidenciar-se a nulidade decorrente da incorreta composição do tribunal, em face da distribuição ter sido feita em momento inoportuno, salvo o muito devido respeito, e poder dar-se a circunstância de ter de ocorrer futuramente, nova distribuição, se acaso aquela matéria for deferida, o que arrastará, além do mais, a nulidade referida por inoportuna distribuição dos autos para julgamento;

Matéria que se não trata de qualquer irregularidade ou nulidade sanável porque retratada pelo artº118º e 119º-a) do CPP, ex vi artº 42º-3 do mesmo diploma, contemplando uma nulidade insanável e que pode ser arguida a todo o tempo, insanável.

Apreciando essa matéria, foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

Na Contestação apresentada, a título liminar e incidental (ponto A), o arguido invoca que interpôs recurso sobre impedimento do Mm. Juiz de Instrução Criminal, sobre o qual foi já proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo o arguido posteriormente invocado uma irregularidade que «toldará o processado, aguardando-se decisão sobre essa mesma arguição».

Acrescenta, em síntese, que tal recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo quando deveria tê-lo sido com efeito suspensivo, conforme – a seu ver – resulta da lei. Efeito esse que foi confirmado em sede de exame preliminar no tribunal superior, sendo que o arguido não foi notificado deste último, tendo suscitado tal omissão junto daquela instância (Tribunal da Relação de Évora).

Entende que tal irregularidade virá a ser sanada, passando o recurso a ter efeito suspensivo, o que implicará que os autos retroajam até esse momento da notificação do exame preliminar ao arguido. Assim, entende que a remessa dos autos à distribuição por parte do Mm. Juiz de Instrução Criminal foi intempestiva porque precoce.

Nessa sequência, fruto da eventual alteração do efeito atribuído ao recurso, sustenta o arguido que podem os autos ter de retroagir ao Tribunal de Instrução Criminal de Évora até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida pela veneranda Relação de Évora. Além do mais, refere que, tendo a distribuição ocorrido demasiado cedo, podendo vir a «(...) evidenciar-se a nulidade decorrente da incorre-ta composição do tribunal, em face da distribuição ter sido feita em momento inoportuno, salvo o muito devido respeito, e poder dar-se a circunstância de ter de ocorrer futuramente, nova distribuição, se acaso aquela matéria for deferida, o que arrastará, além do mais, a nulidade referida por inoportuna distribuição dos autos para julgamento». Nulidade que refere ser insanável e invocável a todo o tempo.

Aberta vista ao Ministério Público, a douta promoção (sob a ref.ª 34600253, de 30/10/2024) foi no sentido do normal prosseguimento dos autos, com a marcação de audiência de julgamento. Desde logo porque não cabe ao Juiz de julgamento sindicar as decisões quer do Mm. JIC, quer do Tribunal da Relação – máxime no que se reporta ao efeito atribuído ao recurso interposto – nem pronunciar-se sobre as irregularidades invocadas junto daquela instância de recurso. Mais se refere que a eventual irregularidade da distribuição não produz a nulidade de qualquer acto no processo, não se entendendo que o art. 42.º do CPP (invocado pelo arguido) remeta para o art. 119.º, al. a) do mesmo Código. Além de que o prazo para a invocação de tal irregularidade se encontra esgotado.

Apreciando e decidindo:

Se bem se interpreta o alcance da exposição efectuada pelo arguido – na medida em que o mesmo acaba por não deduzir qualquer pedido referente à mesma – este pretende, somente, que os autos aguardem a decisão sobre a eventual alteração do efeito atribuído ao recurso por si interposto, na medida em que, caso o mesmo venha a ser alterado de devolutivo para suspensivo, os autos terão de «recuar» até à fase anterior à distribuição para julgamento. O que originaria a nulidade da distribuição e, portanto, dos actos processuais subsequentemente praticados. Não tendo, por ora, efectivamente invocado tais nulidades. As mesmas foram apenas referidas para contexto do que poderá vir a ocorrer caso haja alteração do efeito atribuído ao recurso

Ora, não cabe a este Tribunal sindicar as decisões proferidas em sede de Instrução, nem, naturalmente, qualquer das decisões proferidas pelo Tribunal da Relação – neste caso de Évora – ou pronunciar-se de algum modo sobre as irregularidades que lhes hajam sido apontadas pelos recorrentes.

Nesta sequência, não lhe cabe também sustar os autos, fazendo-os depender de uma futura decisão sobre a eventual alteração do efeito atribuído a um recurso. Fazê-lo seria, na verdade, fraudar o efeito devolutivo que foi atribuído ao recurso interposto, já que os autos se encontrariam, para todos os efeitos, suspensos.

Importa, ainda, recordar que nestes autos o arguido se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, o que os torna urgentes. Também por esse prisma, não seria adequado introduzir maior morosidade na tramitação processual, condicionando-se a marcação da audiência de julgamento meramente porque poderá vir a existir uma decisão que altere o efeito anteriormente atribuído a um recurso.

Nestes termos, entende-se que devem os autos prosseguir a sua normal tramitação.

Notifique.

Deste despacho não foi interposto recurso.

Em sede de audiência de julgamento e como questão prévia à mesma, o arguido apresentou, em acta, o seguinte requerimento (transcrição):

O impedimento do Juiz de Instrução Criminal ainda hoje se encontra pendente e não transitada em julgado, não obstante o Juiz de Instrução Criminal e o aresto proferido pelo TRE o efeito devolutivo a esse mesmo incidente que foi suscitado e esta questão já foi colocada da perante v/Excelência, o efeito é inequivocamente suspensivo. Essa questão não está transitada em julgado.

Crê-se que foi antecipatória a distribuição dos autos a este tribunal e em face da intempestividade verifica-se que se iniciará um julgamento por não ter sido até à data reconhecido o efeito claramente resultante do incidente que se encontra pendente – o efeito suspensivo – por isso, hoje consta-se uma nova nulidade – nulidade insanável adstrita à composição do tribunal e advinda da antecipatória e intempestiva distribuição dos autos para julgamento.

Por ser insanável, não se encontra sanável por via da apresentação da contestação e, por isso, o que se suscita a este coletivo é que analise e decida a respeito desta pretensão.

Requerimento que motivou o despacho que gera o recurso agora em aferição, e que reza do seguinte modo (transcrição):

Vem a defesa arguir, uma vez mais, a nulidade do despacho de admissão de recurso sobre o impedimento do Mm. de Instrução Criminal por lhe ter sido atribuído efeito meramente devolutivo quando, no seu entender, deveria ter sido efeito suspensivo, e subsequente nulidade do prosseguimento dos autos para a fase de julgamento com a necessária distribuição dos mesmos.

Sucede que esta questão já foi apreciada em instrução tendo o efeito sido confirmado pelo douto Tribunal da Relação de Évora e novamente apreciado em fase de julgamento aquando da contestação, tendo a nulidade em apreço sido julgada improcedente por despacho proferido a 05-11-2024 (ref.ª CITIUS ......13).

Termos em que, por se ter esgotado o poder jurisdicional quanto a esta questão, nada mais há a determinar senão o prosseguimento dos autos para realização da audiência de discussão e julgamento.

Esta simples trilho pelo iter processual torna evidente a ausência de razão do recorrente.

Por não se ter confirmado com a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso por si interposto sobre um alegado impedimento do Mmº Juiz de Instrução criminal, entendendo que o mesmo deveria ter efeito suspensivo, o arguido alegou a nulidade desse despacho.

A questão levantada pelo ora recorrente foi apreciada em sede de instrução, no sentido do seu indeferimento, o que foi confirmado por esta Relação.

O arguido voltou a insistir em sede de contestação com a mesma argumentação, o que lhe valeu novo indeferimento, com o qual o arguido se conformou, pois do despacho em causa não deduziu recurso.

Mas em sede de audiência, de modo incompreensível, o recorrente voltou a suscitar o mesmo problema, o que deu origem ao despacho recorrido que, como é claro, não merece qualquer censura.

Do que acima se transcreveu, é manifesto que o tribunal cumpriu o seu dever de decidir quanto às questões suscitadas pelo aqui recorrente, afirmando e reafirmando que nenhuma nulidade de acto anterior à distribuição afetava a marcha do processo (logo, a própria distribuição e subsequentes atos processuais), sendo que relativamente ao impedimento do Senhor Juiz de Instrução Criminal, tal matéria já havia sido decidida, de modo definitivo, por instância superior, esgotando-se, nessa medida, o poder jurisdicional.

Não há, assim, qualquer nulidade de pronúncia, pois o tribunal recorrido, em nenhum momento, deixou de se pronunciar sobre os argumentos do ora recorrente, não os tendo acolhido por os mesmos não terem qualquer suporte legal.

Por outro lado, e quanto a uma eventual nulidade por composição do tribunal colectivo, decorre, com evidência, das motivações deste recurso, que a mesma não se funda na falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou na violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respetiva composição (única situação passível de enquadramento no elenco das nulidades insupríveis nos termos do Artº 119 al. a. do CPP), mas, tão somente, numa intempestiva distribuição decorrente de não ter transitado em julgado o despacho que julgou improcedente o impedimento do juiz de instrução criminal. A verdade, é que, mau grado o recorrente com tal asserção não se conformar, esta Relação decidiu, com trânsito em julgado em 13/11/24, sobre o suposto impedimento do Mmº Juiz de Instrução, pelo que nenhuma razão havia para que o processo não seguisse os seus normais trâmites, com a sua remessa à distribuição e consequente julgamento.

Por outro lado, não sendo identificado qualquer vício ou irregularidade no próprio acto da distribuição, não se vislumbra como é que tendo o processo sido remetido para julgamento se possa falar na existência do vício previsto na citada norma, pensada para situações bem distintas da aqui em análise.

Por fim, a pretensa irregularidade da distribuição nunca lograria contaminar de nulidade os actos dela decorrentes, pela conjugação das normas dos Artsº 42 nº3, 119 al. a) e 123, todos do CPP, discussão aliás estéril, tendo em conta que há muito se mostra ultrapassado o tempo legalmente previsto para a sua invocação. E nesta medida, cai por terra toda a argumentação no sentido de uma violação do princípio do juiz natural.

Pelo que e sem necessidade de considerações complementares, se conclui pela improcedência deste recurso interlocutório deduzido pelo arguido.


*


B.2. Violação dos Artsº 358 e 359, ambos do CPP

Alega o recorrente que o tribunal recorrido comunicou uma alteração não substancial de factos, que depois deu como provada, sem que permitisse que aquele dela se defendesse, violando assim o disposto nos Artsº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa e 60, 340, 358 nº3 e 359, todos do CPP, as garantias de Defesa, o princípio do inquisitório e da acusação, da descoberta da verdade material e de um processo justo e equitativo.

O mesmo sucedeu quando o tribunal recorrido comunicou a alteração da qualificação jurídica, adicionando ao imputado crime de homicídio qualificado o crime de aborto, do qual o recorrente também foi condenado, sem ter sido produzido prova alguma.

Também aqui, não lhe assiste razão.

Em relação à primeira questão, constata-se pela leitura da acta da sessão de audiência de julgamento de 25/02/25, que nela foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

Da prova produzida em audiência de julgamento resulta indiciado o seguinte facto que não consta do libelo acusatório:

1) Junto e nas costas desta, exercendo força muscular, com o instrumento corto-perfurante que empunhava, o arguido, recorrendo à técnica de caça do remate, desferiu um golpe no tórax de DD, que caiu inanimada no chão;

A factualidade que agora se indicia tem relevo para a decisão da causa, e não deriva de factos alegados pela defesa, pelo que se comunica a mesma ao arguido nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para os fins tidos por convenientes. Notifique.

O arguido não contestou esta alteração factual – afirmando que a mesma fosse inadmissível ou que consubstanciasse uma alteração substancial – tendo apresentado requerimento sobre a mesma, onde debateu, exaustivamente, o seu conteúdo e indicou meios de prova, que, em síntese, se traduziam no seguinte:

1. Junção de um vídeo relativo a um programa televisivo emitido pela SIC;

2. Inquirição da tia da vítima;

3. Inquirição de EE identificado na 1.ª página da autópsia;

4. Inquirição de FF enquanto Diretora de Serviço de Clínica e Patologia Forense;

5. Inquirição dos militares da GNR que tomaram conhecimento da ocorrência;

6. Que fosse oficiada a Comissão Nacional de proteção de dados para informar se as imagens recolhidas nos autos se encontram devidamente autorizadas e registadas;

7. Que fosse oficiada a entidade que explora as antenas de localização celular, para informarem aos autos qual o raio ou perímetro de ação das mesmas;

8. Que fosse oficiado o Posto de GNR de ... para informar se foi levantado algum auto de ocorrência relativo a mensagens ameaçadoras à vítima;

9. Inquirição de GG, médico responsável pela autópsia ao feto.

O tribunal a quo apreciando tal requerimento, decidiu nos seguintes termos (transcrição):

No que ao primeiro e segundo pontos concerne, nada há a determinar uma vez que tal questão já foi apreciada por despacho proferido a 18/02/2025 (ref.ª citius ......33), não tendo as suas premissas alterado uma vez que continua a estar em causa suspeitas e não factos.

Por seu turno, relativamente aos pontos três e quatro diz respeito, as pessoas que a defesa pretende que sejam ora inquiridas não tiveram contacto direto com a autópsia realizada – não a executaram –, tendo já sido inquiridas as duas médicas legistas que a efetuaram. Neste sentido, entende-se que a inquirição das mesmas é irrelevante pelo que se indefere.

No que aos pontos cinco a oito diz respeito, entende-se que a prova aí solicitada não tem viabilidade para contrariar ou confirmar o facto comunicado pelo Tribunal. E assim é, pois, o mesmo consistiu na circunstância de se entender que o golpe foi desferido nas costas da vítima através da técnica de caça do remate, e não pela sua frente como constava da pronúncia, e não que o mesmo tenha sido desferido pelo arguido uma vez que tal já constava da pronúncia e já foi produzida a prova atempadamente requerida. Ora, a inquirição dos agentes da GNR que se deslocaram ao local e as informações pretendidas nada têm que ver com tal facto, termos em que se indefere o requerido por os meios de prova serem irrelevantes e inadequados à prova do facto comunicado.

Por fim, entende-se ser igualmente de indeferir o requerido no ponto 9 pelo mesmo motivo suprarreferido. Ademais, mesmo que assim não fosse, as conclusões descritas no relatório pericial em apreço são claras e consistem, em suma, que a morte do feto se deu por asfixia por interrupção fisiológica da circulação úteroplacento-fetal, não tendo sido apreciada – por tal não ser próprio nesta sede, antes no âmbito da autópsia efetuada à vítima DD, em conjugação com a demais prova recolhida – se tal se deu por suicídio ou homicídio da progenitora.

É assim evidente que o recorrente exerceu o seu contraditório em relação à referenciada alteração não substancial de factos, sucedendo que o tribunal recorrido, no livre exercício do seu poder de direcção da audiência e em busca da verdade material, entendeu, fundamentadamente, que os meios de prova indicados por aquele não eram necessários à boa decisão da causa, circunstância, aliás, que o recorrente não contesta no seu recurso.

Nessa medida e ao contrário do afirmado pelo recorrente, não se descortina qualquer violação dos normativos por este invocados, ou a preterição dos seus direitos de defesa e à garantia de um processo justo e equitativo.

O mesmo sucede com o seu segundo argumento nesta sede, agora relacionado com uma eventual ilegalidade na alteração da qualificação jurídica dos factos.

Na mesma sessão da audiência de julgamento de 25/02/25, foi também proferido pelo tribunal sindicado o seguinte despacho (transcrição):

Ademais, é entendimento do Tribunal que em face dos factos pelos quais o arguido veio pronunciado e do correspondente enquadramento jurídico-penal dos mesmos, entende-se que em causa está, a par da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b), c) e j), do Código Penal, a prática de um crime de aborto, p. e p. pelo artigo 140.º, n.º 1, do Código Penal.

Assim, declara-se a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia, nos termos acima expostos e ao abrigo do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, comunica-se ao arguido essa alteração.

Notifique.

Diz o arguido que o efectuado pelo tribunal a quo consubstancia uma alteração substancial de factos e é, por isso, inadmissível, mas também aqui não lhe assiste razão.

In casu, inexiste qualquer alteração de factos, no sentido de que o tribunal recorrido não aditou qualquer facto novo aos constantes da pronúncia, coisa aliás que o recorrente nem sequer invoca, não se percebendo, por isso, com o devido respeito, como pode alegar uma alteração substancial de factos quando nem sequer indica quais os factos novos que foram produzidos pelo colectivo.

O pedaço de vida descrito na pronúncia, a história que esta relata, permaneceu inalterável, traduzindo-se naquele conjunto factual já constante da acusação e que aquela reproduziu, o mesmo é dizer, na descrição de um acervo que era já do amplo conhecimento do arguido e que não representava para si qualquer surpresa, nenhuma novidade, na estruturação da sua defesa.

O acontecimento unitário descrito na pronúncia em nada se alterou, pelo que não faz sequer sentido falar de alteração de factos.

Como consta do sumário do aresto da Relação de Lisboa de 19/12/24, proferido no Proc. 17/17.6GTALQ.L1-5, na esteira de muitos outros no mesmo sentido:

“I. “Alteração” pressupõe uma modificação, mudança ou variação, pelo que se não ocorreu qualquer modificação a nível da factualidade imputada, não faz sentido questionar se a alteração (da qualificação jurídica) comunicada é não substancial (cfr. art.º 358.º do C.P.P.) ou substancial (cfr. art.º 359.º do C.P.P.), qualificativos apenas previstos para a “alteração dos factos”;

II. Constituirá uma alteração da qualificação jurídica dos factos uma outra maneira de encarar juridicamente a factualidade imputada, ainda que daí resulte, na prática, a aplicação de pena mais grave daquela que resultaria do enquadramento jurídico-penal efetuado no despacho de acusação ou de pronúncia;

III. A nulidade da sentença prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do C.P.P. só se verifica caso a condenação ocorra por força de factos diversos dos constantes do despacho de acusação ou de pronúncia e não quando, mantendo-se inalterados tais factos, se verifique naquela apenas uma qualificação jurídica diferente da efectuada em tais despachos;

IV. Nem as garantias de defesa, nem o princípio do contraditório e muito menos a estrutura acusatória do processo exigem que o tribunal do julgamento permaneça vinculado à qualificação jurídica dada ao facto na acusação ou pronúncia, devendo a discussão da causa ter também por objeto todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia (cfr. art.º 339.º, n.º 4, do C.P.P.);

V. Se o arguido foi prevenido previamente da nova qualificação jurídica nos termos do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P., precisamente para lhe dar a oportunidade de defesa, foram observadas as garantias de defesa e do contraditório (cfr. art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da C.R.P.) e respeitada a proibição de decisões-surpresa (cfr. art.º 6.º, n.º 3, al. a), da C.E.D.H.);

Da alteração de qualificação jurídica levada a cabo pelo tribunal recorrido não resultou qualquer efeito surpresa para o arguido em termos dos factos pelos quais o mesmo tinha de se defender, nem a violação do contraditório ou das garantias de defesa, pois o recorrente desenhou a sua defesa em função dos factos em causa que sempre foram do seu conhecimento.

Assim sendo, nos termos do nº3 do Artº 358 do CPP, a mera alteração da qualificação jurídica constante dos factos da acusação, ainda que daí decorra a imputação de mais um crime ao arguido, rege-se pelo nº3 do Artº 358 do CPP, exigindo-se a respectiva comunicação, o que foi cumprido pelo tribunal recorrido.

Desta conclusão, resulta, necessariamente, que a decisão recorrida não padece da nulidade que lhe é imputada pelo recorrente.

Improcede, pois, o recurso do arguido, nesta parte.

3. Apreciando.

Da dupla conforme e da impossibilidade de apreciação das questões mencionadas em A. e B.

As questões acima mencionadas foram objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação de Évora, que sobre as mesmas se pronunciou e decidiu, em sentido contrário ao peticionado pelo recorrente.

Em ambos os casos, foram mantidas as decisões anteriormente tomadas pelo tribunal “a quo” (sendo certo que, quanto à 1ª, em bom rigor, a questão há muito se mostra insusceptível de poder ser apreciada em recurso, dado o trânsito em julgado da decisão proferida em 2024 pelo TRE).

Se assim é, como é, estamos perante uma clara situação de dupla conforme, o que determina a impossibilidade de sobre tais questões vir agora o STJ pronunciar-se.

4. Entende-se como dupla conforme a situação em que duas decisões judiciais, de diferentes tribunais, concordam sobre a mesma questão; isto é, quando uma decisão judicial de segunda instância confirma a decisão de primeira instância, sem que haja divergências significativas na fundamentação de ambas as decisões.

E, nesses casos, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 91/18.8JALRA.E1.S1, de 17-06-2020 (consultável em www.dgsi.pt), tem sido jurisprudência constante deste STJ, que a inadmissibilidade de recurso decorrente da dupla conforme impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas com os respectivos crimes, tais como os vícios da decisão sobre a matéria de facto, a violação dos princípios do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, da qualificação jurídica dos factos, da medida concreta da pena singular aplicada ou a violação do princípio do ne bis in idem ou de quaisquer nulidades, como as do artigo 379.° do CPP.

Ou, como se afirma no acórdão do STJ de 11.04.2024 (consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1a9ea527bcf4aca280258afd0029eef8?OpenDocument&Highlight=0,inadmissivel,dupla,conforme), a irrecorribilidade para o STJ de acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação abrange todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, respetivas nulidades (artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP) e aspetos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas parcelares ou única, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.

5. A dupla conforme consiste num pressuposto negativo de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido introduzido pelo legislador, com o propósito de filtrar o acesso a esta instância máxima, nos casos em que tendo as matérias alvo de crítica sido já decididas por um tribunal de recurso, tendo o mesmo confirmado a decisão da 1ª instância, se ter de entender que ocorreu já uma análise completa e consistente do caso, por duas instâncias judiciais, não se mostrando necessária uma terceira apreciação, agilizando-se, deste modo, a resolução de casos e evitando-se a sobrecarga do Supremo Tribunal de Justiça.

Note-se, aliás, que esta é jurisprudência pacífica e consolidada deste STJ, como aliás nos dá conta o acórdão proferido por este STJ, datado de 15.02.2023, no processo nº 7528/13.0TDLSB.L3.S1, consultável em www.dgsi.pt :

I. A Lei n.º 94/2021 procedeu a alterações ao CPP em matéria de recursos, passando o art. 434.11 do CPP a estatuir que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432”, segmento final aditado.

II. Esta norma continuou a estipular a regra geral de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, passando, no entanto, a exceptuar duas (únicas) situações, que são as que resultam das als. a) e c) do n.11 1 do artigo 432.11 do CPP.

III. O art. 432.11, n.11 1, al. a) do CPP, estabelece agora a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.11s 2 e 3 do artigo 410.º”, segmento final aditado, e a al. c), “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.11s 2 e 3 do artigo 410.11, segmento final aditado também.

IV. Nestes dois casos, de excepção, trata-se de recurso de primeiro grau para o Supremo, o que justifica a diferente solução legislativa.

V. Já nos casos em que não esteja em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância, mas sim recurso interposto de um acórdão da Relação que decidiu já recurso anterior, nada foi alterado (pela Lei n.11 94/2021) no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.11s 2 e 3 do artigo 410.11.

VI. Se a admissibilidade do recurso do acórdão da relação que reverte a decisão absolutória de 1.ª instância em condenação é agora evidente, no que respeita ao âmbito do recurso e aos poderes de cognição do Supremo, o recurso segue a regra geral, pois encontra-se fora da previsão das (únicas) alíneas que prevêem a excepção ao regime-regra. Ou seja, o recurso de acórdão da Relação que decide em recurso, continua a poder visar apenas o reexame em matéria (exclusivamente) de direito. E os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se circunscritos a esse conhecimento.

VII. A alteração legislativa surge, aliás, na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tendo ido no entanto além dela: circunscreveu o direito ao recurso a matéria exclusivamente de direito, e este pode ter como fundamento qualquer questão exclusivamente de direito, que não apenas a da determinação da sanção, como seja a tipicidade, a ilicitude, a culpa, a escolha e a medida da pena, a indemnização.

VIII. No seguimento daquela que é jurisprudência consolidada, o Supremo conhece oficiosamente dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, bem como das nulidades de sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto, independentemente da possibilidade de arguição em recurso, e o Supremo está obrigado a declarar tais vícios quando, em concreto, os detecte no (texto do) acórdão recorrido.

IX. Trata-se, no entanto, de uma decisão de fundamentação positiva, pois é a detecção (afirmativa) do vício que tem de ser fundamentada e declarada, não a ausência dela. Nesta derradeira hipótese, no âmbito da fiscalização oficiosa dos vícios da decisão bastará a constatação e a consignação dessa ausência

6. No caso presente temos pois que, no que toca às questões supra enunciadas em A. e B., não podem as mesmas ser conhecidas por este Tribunal, pelo que não serão objecto de apreciação neste acórdão, sendo o recurso, nessa parte rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.Penal

Acresce que, em bom rigor e no que se reporta à questão mencionada em A., a mesma foi apreciada pelo acórdão de Julho do TRE, juntamente com o recurso interposto da decisão final, mas trata-se de matéria constante de recurso interlocutório.

A mera circunstância de ter sido apreciada, em conjunto, com os recursos interpostos da decisão final, em nada altera essa sua qualidade, já que a questão no mesmo debatida não se reporta ao conhecimento do objecto do processo, antes se referindo a uma decisão interlocutória, isto é, uma decisão proferida durante o processo, que ao mesmo não põe fim.

Tal tipo de decisão, em si mesma, é insusceptível de recurso para o STJ, como se refere no acórdão nº13/02.0JAPTM.E1.S1, de 14/11/2024, 5.ª Secção (Criminal) (I. Conhecer do objecto do processo, para os efeitos previstos no art. 400º, nº 1, c) do C. Processo Penal, é conhecer da viabilidade da acusação e/ou da pronúncia, em ordem ao seu desfecho, seja de condenação, seja de absolvição, consoante o caso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1251). II. A circunstância de a decisão proferida no recurso intercalar integrar o acórdão da relação que conheceu do recurso interposto da decisão final – como acontece com os recursos interlocutórios, admitidos para subiram a final e nos próprios autos, com o recurso interposto da decisão que viesse a por termo à causa, nos termos do nº 3 do art. 407º do C. Processo Penal – não a faz perder, nessa parte, a qualidade de decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, pelo que, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça) ou no Acórdão do STJ, processo nº 127/16.7GCPTM.E3.S1, 5ª Secção, de 12-12-2024 (I. Não é admissível recurso para o STJ de decisão da Relação sobre recurso de decisão interlocutória. O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido previamente objeto de decisão pelas Relações, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) e decorre do disposto no artº 400 nº1 al. f) (a contrario sensu) e artº432 nº1 al. b) e alc) a contrario sensu, todos do C.P.Penal.


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C. Irregularidade do Acórdão, proferido no dia 18.07.2025, decorrente da não observância do prazo para reclamação do despacho, proferido no dia 14.07.2025, que fixou os efeitos do recurso e se pronunciou sobre o pedido de renovação da prova.

D. Violação do “princípio do juiz natural”, consignado no n° 9, do art° 32°, da Constituição, por intervenção no acórdão de Agosto de 2025, que decidiu a reclamação, de dois juízes de turno.

1. De modo a se tornar compreensível o enquadramento das questões suscitadas pelo recorrente, façamos uma breve resenha da tramitação processual relevante, a este respeito, designadamente:

a. No dia 14.07.2025, o Mmº Desembargador Relator, deu o seguinte despacho:

Não se admite a renovação da prova requerida pelo arguido, por não se mostrarem verificados os pressupostos previstos no nº1 do Artº 430 do CPP.

x

O arguido interpôs recurso do despacho que manteve a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada nos autos, recurso este que, correctamente, foi admitido por legal e tempestivo e com subida imediata, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, como se impunha pela conjugação dos normativos dos Artsº 399, 400 nº1 à contrariu sensu, 401 nº1 al. a), 411 nº1 al. b), 407 nº2, 406 nº1, 407 nº2 al. c) e 408, também à contrariu sensu, todos do CPP.

Nessa medida, nada há a alterar sobre esta matéria.

x

Os recursos são os próprios, foram tempestivamente interpostos, por quem tem legitimidade e mostram-se regularmente admitidos, com efeito e momentos de subida adequados.

Nada obsta ao seu conhecimento ou justifica a sua rejeição.

Aos vistos e à conferência, inscrevendo-se em tabela para o dia 18/07.

b. No dia 16.07.2025, foi o arguido notificado do teor desse despacho.

c. No dia 18.07.2025, foi prolatado o acórdão do TRE, que se pronunciou sobre os recursos interpostos pelo arguido, interlocutórios e da decisão final, tendo negado provimento a todos.

d. No dia 21.07.2025, o arguido apresentou um requerimento, arguindo vícios (nulidades e/ou irregularidades), cujo teor se mostra transcrito na decisão que sobre o mesmo se pronunciou, transcrita imediatamente infra.

e. No dia 6.08.2025, após notificação aos restantes intervenientes processuais para pronúncia, foi proferido acórdão em conferência, que se pronunciou sobre o requerimento referido em d., tendo o mesmo o seguinte teor:

O condenado AA, veio invocar irregularidade do acórdão proferido nos autos por violação da tramitação dos presentes autos, concretamente do prazo de que o mesmo dispunha para reclamar para a Conferência do despacho do Relator, e bem assim invocar nulidade decorrente da violação do juiz natural.

Na verdade, alega o arguido:

1 – Irregularidade decorrente da não observância do prazo para reclamar do despacho que fixou os efeitos do recurso e ser pronunciou sobre o pedido de renovação da prova;

2 – Nulidade do acórdão proferido por violação do princípio do juiz natural.

Como se pode ler no requerimento que apresentou via citius no p.p. dia 21 de julho:

A consequência daqui resultante é que o arguido recorrente não teve oportunidade de apresentar a reclamação inerente e com isso ter a expetativa de que a conferência alterasse a determinação no sentido e por si deduzida, de que o recurso sobre a medida de coação (conforme foi decidido pelo Ac. STJ mencionado), deve subir em separado, por via do nº2 do artº406º do CPP e não nos próprios autos e por via do nº1 do artº406º do CPP, como foi decidido no exame meramente preliminar e sujeito à dita cuja reclamação, que inexistiu previamente ao acórdão, como se impunha, com essa mesma questão analisada e decidida de forma colegial e não meramente pelo Sr. Juiz Desembargador Relator.

Mas não só por via desse segmento.

Também a rejeição da renovação da prova admite, como se disse, reclamação.

Onde o arguido recorrente tem o direito, através da reclamação, em deduzir argumentos adicionais para que haja decisão colegial sobre a matéria e infirmando a decisão singular, o que não aconteceu por via do curso dos autos, e da prolaçãodo acórdão, que intempestivamente foi remetido à conferência e inscrito em tabela na pendência do decurso de um prazo que não é menosprezável.

(…)

E porque de irregularidade se trata, em face do prazo de arguição previsto no artº123º doCPP desde já a mesma é convocada e articulada, para que haja decisão subsequente, pois é a partir da notificaçãodo despacho de exame preliminar, da ultima frase do último parágrafo, que a mesma se deteta, ainda que se desconhecesse se seria ou não entretanto reparada, como devia ter sido em qualquer dos atos processuais subsequentes.

B / A composição do Tribunal de recurso:

Como já se verificou foi singularmente decidido da forma excludente quanto à renovação da prova, sem que o recorrente pudesse ter exercido a sua posição e viesse o tribunal, que é colegial, a decidir a situação, matéria já acima deduzida.

(…)

E o mesmo acórdão é assinado pelos Exmºs Senhores Juízes Desembargadores Dr. Renato Barroso como relator, Dr. Manuel Henrique Ramos Soares, como 1º adjunto e Dr. José Manuel da Costa Galo Tomé de Carvalho, como 2º adjunto.

Isto significa que foi violado o princípio do juiz natural, ou seja, a causa foi decidida por juízes diversos, quanto aos adjuntos, em relação ao traçado processual antes decidido.

E sem se perceber de motivo ou razão alguma, a realidade em ter o recurso sido julgado em parte maioritária, por um coletivo dos juízes Desembargadores em relação aos quais nenhuma referência existiu anteriormente no segmento dos recursos interpostos, desde que os autos deram entrada na Relação de Évora.

Que não serão, sequer, da mesma secção, a 2ª subsecção criminal, o que ditou a correção de distribuição feita porque se tratava apenas de determinar o Desembargador Relator.

Sobre a preterição no decurso de um prazo para o exercício de um direito que assiste ao arguido por força do nº8 do artº417º do CPP e 32º-1 da CRP e da norma inconstitucional do artº418º-1 do CPP que reflete que o processo seja remetido à conferência na primeira sessão que tiver lugar sem respeitar o decurso daquele prazo, e sobre a composição do tribunal que foi diversa da fornecida pela distribuição, violando-se o princípio do juiz natural ou legal previsto no artº32º-9 da CRP, tudo nos sobreditos termos.


*


O MP teve vista dos autos tendo-se pronunciado como se segue:

A 14/7/2025 foi proferido o seguinte despacho em exame preliminar:

“Não se admite a renovação da prova requerida pelo arguido, por não se mostrarem verificados os pressupostos previstos no nº1 do Artº 430 do CPP.

x

O arguido interpôs recurso do despacho que manteve a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada nos autos, recurso este que, correctamente, foi admitido por legal e tempestivo e com subida imediata, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, como se impunha pela conjugação dos normativos dos Artsº 399, 400 nº1 à contrariu sensu, 401 nº1 al. a), 411 nº1 al. b), 407 nº2, 406 nº1, 407 nº2 al. c) e 408, também à contrariu sensu, todos do CPP.

Nessa medida, nada há a alterar sobre esta matéria.

Os recursos são os próprios, foram tempestivamente interpostos, por quem tem legitimidade e mostram-se regularmente admitidos, com efeito e momentos de subida adequados.

Nada obsta ao seu conhecimento ou justifica a sua rejeição”.

Ora, nos termos do art.º 417.º, n.º8, do CPP, cabe reclamação para a conferência dos despachos proferidos pelo relator. Porém, a 18/7/2025 foi proferido acórdão, isto é, quando ainda não tinha decorrido o prazo para o arguido reclamar.

Deste modo, afigura-se-nos que tem razão o reclamante nesta parte - de que “o recorrente não teve a oportunidade preceituada na lei em reclamar nesse sentido”.

Quanto ao mais invocado pelo arguido: VISTO.


*


Analisando e decidindo

Da preterição do direito à reclamação para a conferência

Começamos por avançar a evidência da falta de fundamento desta conclusão.

Senão vejamos.

Não há dúvida da consagração legal da suscetibilidade de reclamação do despacho proferido por este tribunal de recurso que se pronunciou sobre o modo de subida e efeito do recurso e bem assim sobre a requerida renovação da prova. Esta possibilidade, que se traduz numa faculdade ou direito, no caso do arguido, foi fixada por lei, o art.º 417.º, n.º 8 do CPP, tendo por isso razão o arguido no que respeita a esta afirmação.

Mas já não tem razão quando afirma que este tribunal lhe coartou ou preteriu este direito, ainda que se admita que o acórdão proferido o foi antes de decorrido o prazo legal, prazo durante o qual podia o arguido ter exercido tal direito processual.

Com efeito, esse direito ou faculdade, deixemos de lado a exata qualificação jurídica que não releva para a resolução do que de resto importa agora, não é suscetível de ser afetado pelo tribunal nem tão pouco pela prolação do acórdão, ainda que proferido anteriormente ao decurso do prazo de reclamação, pois que se inicia com a notificação do despacho que conheceu as questões referidas e cessa após o seus decurso acrescido do comumente conhecido prazo dos 3 dias ou prazo de multa (artigos 105º, n.º 1 e 107º-A CPP), como aliás o arguido bem indica na sua peça processual:

A notificação desse despacho judicial considera-se, além do mais, efetuada no dia 21/7/2025 (conforme referência .....14 e certificação de expedição em 16/7/2025) (pode ser ilidida pelo interessado).

Consecutivamente, o exercício dessa reclamação tem prazo até dia 31/7/2025, isto para além dos demais 3 dias úteis em que pode ser praticado o ato nos termos conjugados dos artºs 105º-1 e 107º-A ambos do CPP, portanto até dia 5/8/2025.

E repita-se o acórdão proferido nos autos não tem a virtualidade de afetar, coartar, restringir, suspender ou eliminar o direito à reclamação.

Tratando-se de uma mera irregularidade, como o arguido também acertadamente qualifica, em casos urgentes, como o presente, atenta a situação do arguido de privação de liberdade e as delongas sofridas nos autos, relatadas pelo arguido e incidentes sobre a distribuição do processo, profere-se acórdão pois este tipo de reclamação é na prática praticamente inexistente.

E nem tão pouco esta pretensão do arguido afastou esta “estatística” já que no fim de contas o próprio arguido não obstante tudo o que alega, acaba por não reclamar verdadeiramente para a conferência do despacho que conheceu do modo de subida e efeito do recurso, na parte relativa à prisão preventiva, e do pedido de renovação da prova.

Do alegado pelo arguido parece resultar que o mesmo defende que o tribunal coartou o seu direito de reclamar por haver proferido acórdão dentro do prazo de reclamação, como se qualquer acto do juiz pudesse suprimir direitos e prazos fixados na lei.

Mas não. A prolação do acórdão não tem essa virtualidade, não suprime, não retira direitos nem suspende prazos, pelo que o prazo continuou a correr verificando-se afinal que o arguido decidiu não exercer o direito…

Ora, não tendo apresentado reclamação pergunta-se qual a utilidade no conhecimento desta invocada irregularidade? Nenhuma.

O direito à reclamação do mesmo modo que o direito ao recurso, são direitos disponíveis suscetíveis de não exercício e até renúncia por banda do seu titular.

Mais, cabe ainda perguntar, se o arguido queria efetivamente invocar a irregularidade de desrespeito por prazo prévio à prolação do acórdão, porque invoca ainda a nulidade que defende o afeta qual seja a da preterição do princípio do juiz natural?

É que das duas uma, ou o arguido reclama para a conferência dentro do prazo legal, nos termos do artigo 417.º, n.º 8 do CPP ou invoca a irregularidade da prolação do acórdão com base no disposto no art.º 123.º do CPP, o qua parece ter optado, atenta a apresentação do seu requerimento logo no dia 21 de julho. De todo o modo, sempre se dirá que, quer exercendo um ou outro dentro de um ou outro dos prazos de que dispunha para o efeito, o arguido tinha sempre que ter praticado o acto – apresentação da reclamação para a conferência – dentro do prazo legal que ele próprio aponta corretamente, início e fim, e não o fez.

Assim, nada mais cumpre dizer ou conhecer por total inutilidade atenta a não apresentação de reclamação nos termos do art.º 417.º, n.º 8 do CPP.

Não obstante a inutilidade declarada sempre se dirá que ainda esta (inutilidade) se não verificasse nunca seria procedente qualquer reclamação para a conferência incidente sobre o modo e efeito de recurso incidente sobre a decisão de apreciação das medidas de coação, proferida no Acórdão final, em obediência à lei (art.º 375.º, n.º 4 do CPP) e sobre a renovação da prova.

Na verdade, como bem decidiu este tribunal na sequência aliás do bem fundamentado pelo tribunal de primeira instância que se reproduz e a que se adere na totalidade: Decorre do artigo 406.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “sobem nos próprios autos os recursos interpostos de decisões que ponham termo à causa e os que com aqueles deverem subir.” Assim, tendo sido proferido acórdão final, dúvidas não há que o mesmo colocou termo à causa e, por isso, o recurso do despacho de revisão de medida de coação ínsito naquele deve subir nos próprios autos.

No que à renovação da prova concerne, dependendo esta (i) da verificação dos vícios de julgamento previstos no art.º 410.º, n.º 2 do CPP, como de forma expressa e indubitável de consagrou na previsão legal do art.º 430.º, n.º 1 ( 1 - Quando deva conhecer de facto e de direito, a relação admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo), e (ii) a renovação da prova for suscetível de evitar o reenvio do processo.

Como de forma simples de verifica da análise do texto da decisão de primeira instância e do decidido por este TRE não se verifica preenchido qualquer dos pressupostos de que depende tal acto processo, como de resto já se havia assegurado por decisão do Sr. Juiz Desembargador Relator.

Assim, não tem qualquer razão o arguido.


*


2 - Da nulidade do Acórdão Proferido por preterição do princípio do juiz natural:

No entender o arguido o acórdão proferido é nulo porquanto foi o resultado de decisão de coletivo de juízes que não foi composto pelos determinados no acto de distribuição.

É certo que os juízes que formaram o coletivo que apreciou o recurso e o decidiu não são os resultantes da distribuição de processo.

Mas tal deve-se apenas à circunstância de a deliberação ter tido lugar e o acórdão proferido em período de férias judiciais. Neste período, como é do conhecimento do Sr. Advogado subscritor da reclamação sub judice, ficam suspensos todos os prazos processuais apenas correndo em férias os relativos a processos urgentes e por isso mesmo são organizados turnos e respetivas escalas para assegurar o serviço urgente. Estes turnos e respetivas escalas ou mapas são organizados e levados a cabo por imperativo legal, como resulta claro do que dispõem os artigos 36.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, 53.º e 54.º do Regime aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que regulamenta a Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovado Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março.

Os coletivos de juízes resultantes destes mapas/escalas têm competência para, independentemente do sorteio de juízes resultante do acto de distribuição, assegurar todo o serviço de turno que seja de decidir em férias judiciais, como é o caso dos autos em que está em causa condenação em pena de prisão efetiva de pessoa que se encontra sujeita a medida de coação prisão privativa da liberdade.

Assim, tendo em conta a simplicidade da questão suscitada e a evidente falta de fundamento da mesma nada mais carece de ser dito.

Termos em que improcede a nulidade invocada.


*


Decisão:

Face a todo o exposto julgam-se improcedentes as irregularidades e nulidades suscitadas e imputadas ao Acórdão preferido nos autos por este TRE.

f. Em 17.08.2025, o arguido interpôs o presente recurso.

2. Apreciando.

a. No que se refere à irregularidade do acórdão, proferido no dia 18.07.2025, decorrente da não observância do prazo para reclamação do despacho, proferido no dia 14.07.2025, que fixou os efeitos do recurso e se pronunciou sobre o pedido de renovação da prova:

i. Caberá começar por dizer que, no que se refere à questão dos efeitos do recurso da medida de coacção, que o recorrente pretende novamente questionar, a mesma se mostra definitivamente resolvida (o recurso interlocutório sobre tal medida até já foi apreciado pelo acórdão de Julho de 2025 do TRE), sendo certo que não cabe, da manutenção da atribuição do efeito de um recurso, por parte do juiz relator, qualquer reclamação para a conferência, por a lei a não permitir.

De facto, não concordando o recorrente com o efeito anteriormente fixado, caber-lhe-ia ter reclamado, atempadamente, nos termos do artº 405 do CPPenal, assim que o juiz “a quo” tivesse fixado tais efeitos.

O que já não pode, de todo, é pretender fazê-lo para a conferência, na sequência de despacho proferido nos termos do artº 417, em sede de exame preliminar, por a lei o não permitir.

Para além do mais, faz-se notar que da decisão singular nem sequer resultou quer a rejeição, quer a retenção do sobredito recurso….

Esta questão mostra-se assim definitivamente encerrada e resolvida.

ii. No que toca à irregularidade que o recorrente invoca, relativa ao não cumprimento do prazo de dilação entre o exame preliminar e a prolação do acórdão em conferência, não pode, em bom rigor, ser a mesma apreciada por este tribunal, por uma singela razão – tal questão não foi alvo de reclamação dirigida à conferência, nem formulado pedido, nos termos consignados e previstos no artº 417 nº8 do C.P.Penal, dirigido ao colectivo de juízes, para pronúncia expressa sobre a decisão de indeferimento do pedido de renovação de prova, determinado por decisão singular.

iii. É verdade que, nos termos do nº10 de tal dispositivo legal, a reclamação da decisão singular deveria primariamente ter sido formulada e decidida no acórdão prolatado em conferência, em Julho de 2025.

Sucede, todavia, como o recorrente refere, que não houve hiato temporal para que tal faculdade pudesse ser exercida, nesse momento, uma vez que entre a decisão singular e o acórdão, decorreram apenas 2 dias.

Todavia, dessa circunstância anómala não decorre a impossibilidade de o arguido vir a apresentar reclamação para a conferência, após a decisão de Julho, com fundamento no disposto nos artºs 379 ou 380, ambos do C.P.Penal.

iv. Sucede, todavia, que o não fez, limitando-se a arguir irregularidades prévias à prolação do acórdão de Julho de 2025, que vieram a ser desatendidas.

Mas não suscitou o recorrente efectiva reclamação, do acórdão em si mesmo, designadamente nada alegou no sentido de contrapor as suas razões quanto à negação da renovação da prova, nos termos e para os efeitos previstos nos artºs 379 e 380, ambos do C.P.Penal.

Assim, em bom rigor, ao não apresentar reclamação em que invoque as suas razões para divergir da decisão proferida em sede singular, o recorrente não viabilizou a possibilidade de o colectivo ponderar os seus argumentos e decidir se, efectivamente, e ao inverso do que consta no despacho do Mmº Sr. Juiz-Desembargador relator, deveria tal renovação ser permitida.

v. Em breve síntese:

Não existe decisão colectiva, a este respeito, confrontadora de argumentos avançados pelo recorrente, no sentido da efectiva admissibilidade do pedido de renovação de prova que formulou, contrariando a decisão singular que a desatendeu, demonstrando o erro de direito em que a mesma se fundou, que permita a este tribunal ter competência para sobre a mesma decidir.

Daqui decorre que o que apenas existe e é sobre tal que o recorrente pretende pronúncia, é uma decisão singular.

Como é jurisprudência pacífica deste STJ, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão sumária proferida pelo relator na 2.ª instância, ao abrigo do n.º 6 do art. 417.º do CPP, sendo que a forma de impugnação de tal decisão é a reclamação para a conferência, nos termos do art. 417.º, n.º 8, do C.P.Penal – vide, neste sentido, entre muitos outros, Decisão Sumária do Vice-Presidente do STJ, processo nº28/14.3NJLSB.L1-D.S1, de 20/11/2024 (I. O despacho – e a decisão sumária - do juiz relator, proferidos em recurso, não admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça).

vi. Assim, em bom rigor, nenhuma destas questões pode por este tribunal ser apreciada, porque se reconduzem ao dissídio do recorrente no que toca a algo que foi apenas objecto de uma decisão singular – indeferimento de renovação de prova, manutenção dos efeitos de um recurso e marcação de dia para conferência.

Daí que, nesta parte, deve o recurso apresentado ser rejeitado.

vii. Não obstante, ainda se aditará o seguinte, para paz e sossego das consciências:

Pese embora a manifesta irregularidade de incumprimento temporal já acima evidenciado, entre o exame preliminar e a realização da conferência, a verdade é que essa irregularidade – que é o vício de que padece, atento o disposto nos artºs 118, nºs 1 e 2, 119 e 120 a contrario sensu e artº123, todos do C.P.Penal - não afectou o acto praticado (prolação de decisão final sobre os recursos apresentados), por duas razões:

- Por um lado, porque o recorrente poderia ter da decisão singular reclamado para a conferência, apresentando os seus argumentos e pedindo a alteração do indeferimento, com base em erro de apreciação do relator; não o fez, mas daí não decorre que o não pudesse legalmente fazer, porque podia;

- Por outro lado, porque, caso os Mmºs Juízes-Desembargadores Adjuntos que tiveram intervenção na conferência tivessem entendido que o pedido de renovação de prova não só cumpria os requisitos legais, mas se mostrava necessária à boa decisão da causa, não teriam concordado com o projecto apresentado pelo Mmº Juiz-Desembargador relator e teriam alterado tal decisão – para a qual a conferência mantém plena competência, mesmo a título oficioso. A circunstância de o não terem feito vale, em boa medida, como confirmação da aceitação implícita da decisão singularmente tomada, daqui que por tal modo se tivesse de igualmente entender que a irregularidade não teria afectado o acto – no caso, o acórdão prolatado em Julho de 2025.

b. No que se refere à violação do “princípio do juiz natural”, consignado no n° 9, do art° 32°, da Constituição, por intervenção no acórdão de Agosto de 2025, que decidiu a reclamação, de dois juízes de turno:

i. Permita-se-nos um breve desabafo, pois o recorrente revela uma certa fixação/obsessão pela figura do juiz natural, já que esta é a 3ª ou a 4ª vez que a invoca, ao longo do processado, sendo certo que, aparentemente, esta figura jurídica ainda não estará completamente apreendida nos seus precisos e devidos contornos; isto é, mais uma vez, não assiste razão ao recorrente na violação que invoca.

Vejamos então.

ii. Em breve síntese dir-se-á que é um facto que o acórdão proferido pelo TRE, em Julho de 2025, reuniu um colectivo de juízes diverso daquele que teve intervenção no acórdão prolatado em Agosto do mesmo ano.

Tal, todavia, não configura a violação do princípio do juiz natural, por várias singelas razões:

No primeiro acórdão tiveram intervenção os Mmºs Juízes-Desembargadores que, por virtude da distribuição, foram designados como relator e adjuntos destes autos;

No segundo acórdão, tiveram intervenção os Mmºs Juízes-Desembargadores que, por virtude de se encontrarem em funções de turno, durante o período de férias judiciais, se mostravam em exercício de funções.

Finalmente, o presente processo tem natureza urgente, já que o recorrente se encontra preso, por força da medida coactiva de prisão preventiva que lhe foi imposta.

iii. Como consta no acórdão n.º 614/2003, processo n.º 684/03, 2ª Secção, de 12 de Dezembro de 2003, do T. Constitucional (consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030614.html):

Dispõe o artigo 32º, n.º 9, da Constituição da República:

9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

(…)”

Consagra este norma, oriunda logo de 1976, a regra que era referida entre nós como “proibição de desaforamento” de causa criminal, de “tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”, integrando o princípio do “juiz natural” ou do “juiz legal” (também por vezes referido como juiz “pré-determinado” ou “pré-constituído” por lei), que é ainda uma projecção do princípio da legalidade, sobre a determinação do julgador em matéria penal.

(…)

Voltando ao tema posteriormente à Constituição de 1976 (Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz natural”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111º, págs. 83 e segs.), Figueiredo Dias salientou que o sentido material do princípio é a proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal. Se bem seja certo que, deste modo, cabe no princípio uma qualquer ideia de anterioridade na fixação da competência relativamente ao facto que vai ser apreciado, não se trata nele tanto (diferentemente do que sucede com o princípio do «nullum crimen, nulla poena sine lege») de erigir uma proibição geral e absoluta de «retroactividade», quanto sobretudo de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar pela raison d’État – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado-de-direito.”

Assim, pese embora o teor literal do preceito – que, como resulta do elemento histórico, afirma ir mais longe do que a sua razão de ser –, defende que ele não pretende proscrever “toda e qualquer atribuição de competência feita por lei que não seja anterior à prática do facto que constitui objecto do processo” – mas apenas “quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é: de excepção), ou da definição individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial”. O princípio do juiz natural não poderia, assim, opor-se à modificação legal, com efeitos imediatos, da organização judiciária (o que seria patente, designadamente, quando tal modificação representasse um aperfeiçoamento ou avanço na forma de garantir os direitos dos cidadãos).

Já Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3a ed., Coimbra, 1993, pág. 207) parecem, porém, dar um alcance mais vasto ao princípio, escrevendo:

O princípio do juiz legal (…) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime.

Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.

A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação da competência, observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona‑se com o princípio da administração judicial).”

Por sua vez, Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, 4ª ed., Lisboa 2000, pág. 54) salienta que o princípio do juiz natural ou legal “tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um caso determinado. As normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há‑de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos; não é, pois, admissível que a norma autorize a determinação discricionária do tribunal ou tribunais que hão-de intervir no processo.”

(…)

É, pois, ao conjunto das regras, gerais e abstractas mas suficientemente precisas (embora possivelmente com emprego de conceitos indeterminados), que permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo (embora não necessariamente a do relator, a não ser que, como acontece entre nós, da sua determinação possa depender a composição da formação judiciária em causa), que se refere a garantia do “juiz natural”, pois é esse o alcance que é requerido pela sua razão de ser, de evitar a arbitrariedade ou discricionariedade na atribuição de um concreto processo a determinado juiz ou a determinados juízes.

Para além desta dimensão positiva, incluindo o aspecto de organização interna dos tribunais, o princípio tem, igualmente, uma vertente negativa, consistente na proibição de afastamento das regras referidas, num caso individual – o que configuraria uma determinação ad hoc do tribunal. Afirma-se, assim, a ideia de perpetuatio jurisdictionis, com “proibição do desaforamento” depois da atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex post facto, especiais ou excepcionais – a qual deve, aliás, ser relacionada também com a proibição, constante do artigo 209º, n.º 4, da Constituição, de “existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”, salvo os tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (artigo 213º da Constituição).

(…)

A composição dos turnos de férias estava pré-definida, com anterioridade, desde Junho, antes da apresentação de qualquer peça processual em férias, e não se verificou qualquer alteração na composição previamente estabelecida das formações judiciárias que, em cada período, iriam apreciar os processos que fossem distribuídos.

(…)

É, pois, claro que os recorrentes não invocam a verificação de qualquer desconformidade com o princípio do “juiz natural” devido a uma directa determinação, de forma arbitrária ou discricionária, do tribunal (rectius, dos juízes que integrariam a conferência) ao qual competiria apreciar o incidente de recusa. Não está em causa, por exemplo, a atribuição directa do processo a um determinado conjunto de juízes, sem sorteio, ou a alteração dos turnos de férias fixados desde Junho de 2003, igualmente por uma regra interna.

(…)

Durante as férias judiciais, com a prévia fixação dos turnos de serviço, em termos gerais e abstractos – isto é, independentemente dos concretos processos que derem entrada para ser distribuídos –, que impõe (artigo 32º, n.º 1, da LOFTJ, aplicável por força 53º, n.º 1 desta Lei), e confia na marcação das datas das sessões em férias, para efeito de distribuição, pelo Presidente, consoante o serviço existente.

iv. Temos, pois, que o princípio do juiz natural, em termos muito sintéticos, tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um caso determinado.

Para tanto, necessário se mostra que as normas legais a propósito da determinação do juiz que irá ter a seu cargo um processo, tenham de conter regras sujeitas a critérios objectivos, antecipadamente conhecidas de todos os intervenientes processuais.

O que o princípio constitucional pretende evitar é, precisamente, a possibilidade de um determinado processo ser alocado a um certo e definido juiz, de modo discricionário ou arbitrário. Ao inverso, exige-se a aleatoriedade.

v. No caso que ora nos ocupa, temos que estamos perante um processo de natureza urgente.

Esse processo continua a correr seus trâmites, por expressa imperatividade legal, durante o período de férias judiciais, isto é, o facto de quer os prazos, quer as decisões terem de continuar a ser tomadas, independentemente de os tribunais se encontrarem ou não em período de férias judiciais, é algo que não se encontra na disponibilidade dos juízes, como decorre do disposto no artº 103 nº1 e nº2 al. a) do C.P.Penal e artºs 36 e 38 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)

vi. O que decorre do que se deixa dito, é simples, óbvio e claro – o colectivo de juízes que, durante o período de férias judiciais, teve, por imperativo legal, de proferir a decisão de Agosto de 2025, já se encontrava pré-definido, por virtude dos mapas de turnos de férias cuja aprovação é sempre anterior ao início das mesmas, muito antes de ser possível sequer adivinhar-se que o recorrente iria suscitar nulidades, sobre as quais tais magistrados judiciais se teriam de pronunciar.

vii. É pois claro que, também aqui, como se refere no Acórdão do T.Constitucional acima mencionado, o recorrente não invoca a verificação de qualquer desconformidade com o princípio do “juiz natural” devido a uma directa determinação, de forma arbitrária ou discricionária, do tribunal (rectius, dos juízes que integrariam a conferência) ao qual competiria apreciar as nulidades pelo recorrente suscitadas. Não está em causa, por exemplo, a atribuição directa do processo a um determinado conjunto de juízes, sem sorteio, ou a alteração dos turnos de férias já fixados em momento prévio ao início das mesmas.

Conclui-se, pois, não assistir qualquer razão ao recorrente, neste seu segmento recursivo.


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*



E. Nulidade de omissão de pronúncia do acórdão de Julho de 2025, a que aludem os art°s. 374°, n° 2, 379°, n° 1, al. a) e 425°, n° 4, do Cód. Proc. Penal, no que respeita à reapreciação probatória pedida;

1. O recorrente apresentou, a este respeito, as seguintes conclusões:

12° - O TRE deixou de analisar e se pronunciar sobre a impugnação plena ou ampla ocorrida nos termos do art°412°-3 e 4, muito menos utilizando a norma do n°6 do preceito em causa, o que determina a nulidade do acórdão por via do art°379°-1-c) do CPP;

2. Mostram-se provados os seguintes factos, pelo tribunal de 1ª instância:

1) No final de 2019 o arguido iniciou um relacionamento amoroso com DD;

2) Fruto desse relacionamento, no dia D/M/2020, tiveram BB, filho comum, tendo a mesma, fruto de outra relação, tido a D/M/2016 CC;

3) Em novembro ou dezembro de 2022, DD engravidou do arguido;

4) Tendo em 2023 começado a viver com este em comunhão de leito, mesa e habitação na Rua 1;

5) Na semana anterior à dos factos o arguido dirigiu-se com DD, que se encontra grávida de sete meses, ao ..., em Borba, a fim de apanharem orégãos para, posteriormente, venderem pelo menos duas vezes;

6) No dia 22/06/2023, entre as 10h00 e as 10h33, fazendo-se transportar no veículo ligeiro de passageiros de marca “OPEL”, de matrícula V1, encarnado, DD dirigiu-se ao ..., em Borba, a fim de apanhar orégãos, o que tinha comunicado ao arguido;

7) Então, na concretização do plano que traçou para lhe retirar a vida, através do telemóvel com o número ... ... .55, com os IMEI ... ... ... ... .01/ ... ... ... ... .04, de que é utilizador, o arguido efetuou diversas chamadas e videochamadas e trocou diversas mensagens escritas com aquela, que utilizava o telemóvel com o número ... ... .90, afirmando encontrar-se preocupado por a mesma estar a apanhar orégãos, encontrando-se grávida e fazendo-se sentir calor;

8) Após, fazendo-se transportar no veículo ligeiro de mercadorias de marca “NISSAN”, de matrícula V2, a hora não apurada, mas entre as 11h00 e as 11h07, dirigiu-se ao ..., em Borba, a fim de, nesse local, na concretização do plano que gizou, retirar a vida a DD;

9) Lá chegado, saiu do mencionado veículo levando consigo um instrumento corto-perfurante e caminhou na direção daquela;

10) Junto e nas costas desta, exercendo força muscular, com o instrumento corto-perfurante que empunhava, o arguido, recorrendo à técnica de caça do remate, desferiu um golpe no tórax de DD, que caiu inanimada no chão;

11) Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu de feridas corto perfurantes cento torácicas anterior e do hemotórax esquerdo, supramamárias, sem perda de substância, com bordos de pele livre linear e coaptáveis formando um desenho de cruz na região médio esternal, uma oblíqua de cima para baixo e de dentro para fora, com 3,2 centímetros (2 centímetros para cima e 1,2 centímetros para baixo do segundo corte que a cruza), outra, transversal à primeira, que cruza aos 1,5 centímetros e se estende de dentro para fora e de baixo para cima e para a esquerda ao longo do segundo espaço intercostal esquerdo, com 10 centímetros e corte em cauda de rato terminal para a esquerda, que atingiram o esterno a nível do terço superior, bordo esquerdo e espaço intercostal, os segundo e terceiro arcos costais, com corte de inserção, e o segundo espaço intercostal, e perfuraram o mediastino, os pulmões de ambos os lados, mas mais à esquerda (pulmão direito com hematoma intersisural, congestão e edema do lobo inferior e pulmão esquerdo corto-perfurado no lobo superior e atletasiado) – com laceração da artéria pulmonar, perfuração dos brônquios, hemotórax das pleuras e cavidades pleurais direita e esquerda – o pericárdio anterior proximal, a aorta ascendente e crossa da aorta;

12) Tais lesões foram causa direta e necessária da sua morte e, consequente, causa de morte do feto – que não tinha lesões traumáticas nem deformações aparentes – por interrupção feto placentar circulatória;

13) Após, pôs sangue de DD numa navalha com o cabo preto, curvo e com 8,3 centímetros de comprimento e uma lâmina com 6,2 centímetros de comprimento, e colocou-a na mão direita da mesma;

14) Tendo de seguida abandonado o local, deslocando-se a local não apurado onde, pelo menos, mudou de calças;

15) Ao agir da forma descrita, com consciência de que DD vivia em comunhão de leito, mesa e habitação consigo, de que tinham um filho em comum, de que se encontrava grávida dele e que a sua morte provocava a morte do feto, surpreendendo-a, sabendo que ela não iria fugir nem se iria defender e/ou debater devido à confiança que depositava nele e à relação que os unia, fazendo força muscular e utilizando um instrumento corto-perfurante, o arguido agiu com o propósito concretizado de lhe retirar a vida;

16) Tendo agido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

Mais se provou que o arguido:

17) Nasceu no seio de uma família de três filhos, sendo o mais velho;

18) Foi criado num meio de características rurais, sendo o ambiente familiar tido como estruturado e gratificante ao nível dos afetos, da transmissão de valores e da imposição de regras, com figuras parentais preocupadas com a subsistência da sua prole que asseguravam de forma com o trabalho agrícola por conta de outrem e por conta própria;

19) Estudou até ao 5.º ano, tendo iniciado então atividade laboral inicialmente como tratador de cavalos e no setor agrícola, profissão que ainda mantém;

20) Juntou-se aos 18 anos com a primeira companheira, com quem esteve casado cerca de 24 anos e de quem tem duas filhas de 25 e 21 anos;

21) Há cerca de 4 anos constituiu nova união que manteve durante cerca de 18 meses com a vítima e de quem tem um filho;

22) Atualmente voltou-se a relacionar com a primeira companheira, que o visita no estabelecimento prisional e o auxilia em termos económicos;

23) No estabelecimento prisional tem adotado uma postura correta;

24) Manifesta desconforto e revela alguma tensão ao falar da situação dos autos, todavia evidencia alguma distância, sendo pouco empático na forma como fala da vítima, referindo que se encontravam, à data, em processo de rotura;

Quanto aos antecedentes criminais do arguido provou-se que:

25) Por sentença datada de 19/04/2021, transitada em julgado a 19/05/2021, proferida no âmbito do proc. n.º 12/19.0IDPTG, foi condenado, em concurso efetivo, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança à segurança social, na pena única de 120 dias de multa à taxa diária de € 5, tendo a mesma sido declarada extinta por cumprimento a 17/11/2021;

26) Por sentença datada de 04/05/2021, transitada em julgado a 26/05/2021, proferida no âmbito do proc. n.º 628/20.2T9PTG, foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de € 4, tendo a mesma sido declarada extinta por cumprimento a 18/10/2021;

3. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no que concerne à questão da reapreciação probatória pedida pelo recorrente, manteve a matéria de facto dada como assente pelo tribunal “a quo”, pronunciando-se nos seguintes termos:

B.3. Impugnação factual e vícios do Artº 410 do CPP

Impugna factualmente o recorrente a apreciação probatória realizada pelo tribunal recorrido, alegando erro de julgamento em relação aos factos que determinaram a sua condenação (factos 7 a 16 da matéria provada), imputando ainda à decisão sindicada os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, e erro notório na apreciação da prova, nos termos do Artº 410 nº2 als. a), b) e c) do CPP.

Atente-se, antes de mais, na motivação factual da decisão recorrida (transcrição):

“3. Motivação da matéria de facto

A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, inclusive do teor dos documentos constantes dos autos, prova esta concatenada entre si e apreciada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

Tendo em conta que a motivação dos factos do acórdão deverá passar pela indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, a par da enunciação dos meios de prova explicitar-se-á o processo de formação de convicção do julgador.


*


Uma vez que o arguido prestou declarações em sede de primeiro interrogatório e instrução – tendo exercido em audiência de julgamento o direito ao silêncio –, pôde o Tribunal contar com o seu contributo para o apuramento da verdade material, fundando a sua convicção nas mesmas, nas declarações prestadas pelo assistente, nos esclarecimentos das peritas, nas testemunhas inquiridas, nos exames periciais e nos documentos juntos aos autos.

Ademais, após o termo da produção de prova e antes de serem proferidas as alegações finais, o arguido declarou pretender prestar declarações o que lhe foi concedido.

Desconsiderou-se os depoimentos de HH, inspetora da judiciária cuja intervenção na investigação se restringiu à realização de buscas domiciliárias, não se recordando de nada de relevo; II, técnica da DGSRP que elaborou o relatório com vista à apreciação da vigilância eletrónica, que nada mais disse do que mantinha tudo o aí vertido; e JJ, vizinho do casal que nada disse de importante para a descoberta da verdade material pois apenas trouxe a informação ao processo de que o arguido saiu de casa no dia dos factos às 17h com um saco/uma mochila.


*


Nas suas declarações o arguido admitiu ter mantido com a vítima uma relação amorosa desde 2019, sendo que iniciaram a comunhão de leito, mesa e habitação cerca de um ano depois do nascimento do filho comum, tendo a mesma cessado cerca de dois ou três meses depois e retomado no final do ano de 2022, altura em que passaram a viver como se de marido e mulher se tratasse na residência referida nos factos provados.

O referido, em conjunto com as declarações de KK que, sendo senhoria e vizinha de ambos, disse ver o arguido diariamente a sair da residência comum de manhã e a sua carrinha vermelha estacionada à porta daquela, permitiu dar como assentes os factos provados n.º 1 e 4.

No que à existência de um filho comum, seu nome e data de nascimento concerne (facto provado n.º 2), teve-se em consideração o teor da certidão de nascimento do qual consta o nome, data de nascimento e filiação. Ademais, teve-se em consideração a existência de um filho de relação anterior tendo em conta as declarações do arguido que o confirmou – nome, filiação e idade –, o que foi corroborado pela sua certidão de assento de nascimento.

O facto de a vítima estar grávida de sete meses do arguido (facto provado n.º 3, in fine) foi dado como tal por força do relatório pericial ao ADN do feto do qual resulta que o arguido apresenta uma probabilidade de paternidade de 99,999999% (fls. 542 a 544, em especial fls. 543) e dos relatórios de autópsia médico-legal a DD e ao feto dos quais consta que a vítima se encontrava grávida de 28 a 32 semanas (fls. 460 a 462, em especial fls. 461 verso, e 672 a 679, em especial fls. 678).

A factualidade provada em 5) foi dada como tal tendo em conta as declarações do próprio arguido que o admitiu, quer quando ouvido em sede de 1.º interrogatório – referiu que tinha ido ao local pelo menos duas vezes na semana anterior –, quer em instrução – explicou que se deslocou ao local em apreço cerca de 3 dias antes dos factos. Pese embora tal consubstancie uma alteração em face da data elencada no ponto 4. da decisão instrutória, uma vez que a mesma deriva das próprias declarações do arguido podem ser tidas em conta sem qualquer necessidade de comunicação em virtude do disposto no artigo 358.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Relativamente à atuação da vítima no dia dos factos e às mensagens de preocupação trocadas (factos provados n.º 6 e 7), deram-se as mesmas como provadas com base nas declarações do arguido, no teor de imagens de videovigilância, no conteúdo das mensagens trocadas entre ambos e consulta do traceback do telemóvel utilizado pela vítima.

Assim é, pois, é o próprio arguido que admite que a sua companheira saiu de casa no referido dia no automóvel que detinha – um Opel vermelho – para ir apanhar orégãos para o ..., em Borba, o que é igualmente comprovado pelas mensagens trocadas das quais resulta uma fotografia remetida por aquela de um molhe de orégãos que já tinha apanhado às 11h09 (fls. 95 e 96) e a quantidade necessária para vender (fls. 96 e 102).

Ademais, nas imagens de videovigilância da moradia sita no ..., Estrada Nacional 4, em Borba, é possível visualizar o veículo automóvel da vítima a passar na estrada nacional 4 no sentido Elvas-Borba pelas 10h27 (fls. 359), estrada que, seguida, -iria dar ao local onde foi posteriormente encontrada, tendo sido igualmente captada a passagem do referido veículo numa rotunda cuja saída tomada levaria ao local dos factos pelas 10h33 (cfr. imagens de videovigilância do Posto de Abastecimento de Combustível João A. L. Anjos & Filhos, Lda., de fls. 310, 315 e 316, sendo que à hora que consta do sistema acresce cinco minutos porquanto o mesmo comporta um atraso a tal correspondente).

Por fim, da consulta do traceback do telemóvel utilizado pela vítima resulta que a mesma ativou, durante a manhã do dia dos factos, a antena Borba LA 2, a que serve as comunicações efetuadas no local dos factos (fls. 419 e 420).

No que concerne à concreta atuação do arguido no dia do falecimento da vítima (factos provados n.º 8 a 14), uma vez que inexiste prova direta e imediata da mesma porquanto ninguém, à exceção de ambos, se encontrava no local, o Tribunal teve em atenção prova indireta e circunstancial que, no seu conjunto, permitiu reconstituir aquela.

Vejamos.

Pese embora o arguido tenha negado ter-se deslocado ao local dos factos no dia dos mesmos, certo é que existe prova clara e inequívoca de que tal não corresponde à verdade.

Em primeiro lugar, é visível das imagens de videovigilância do Posto de Abastecimento de Combustível João A. L. Anjos & Filhos, Lda. – fls. 310, 317 e 318 –, que o mesmo se deslocou pelas 11h08 – uma vez que à hora que consta do sistema se tem de acrescentar cinco minutos porquanto o mesmo comporta um atraso a tal correspondente – num veículo ligeiro de mercadorias de marca Nissan com matrícula 15-08-EN para o referido local uma vez que a mesma só tem três saídas (cfr. teor do auto de análise de fls. 194 a 196): uma em sentido proibido; outra no sentido Rua 2 a qual não é tomada pelo arguido porquanto é percetível naquelas que o seu veículo não lá passou pelo menos até as 13h – e tal seria possível ver se o tivesse feito uma vez que tal caminho foi efetuado pelos inspetores da polícia judiciária e o seu veículo é avistado nas imagens – cfr. fls. 259 –, sendo que às 12h46 é visível a sua presença no Posto de Abastecimento de Combustível Q8 sito em Monforte através da consulta das imagens de videovigilância de fls. 296; e a no sentido para o “...” que, pese embora não seja visível nas filmagens, não há duvidas que foi o sentido seguido pelo arguido porquanto não é crível que tenha ido pelo sentido proibido e sabe-se que não seguiu a outra via possível.

Em segundo lugar, para efetuar comunicações para o telemóvel da vítima entre as 11h17 e as 11h31, o telemóvel do arguido (fls. 88) ativou a mesma célula que o telemóvel daquela utilizou para as receber – Borba LA 2 (às 11h25 e 11h31) – ou distinta mas no mesmo azimute – Borba LD 2 (às 11h17) –, colocando-o pelo menos nas imediações do local dos factos (fls. 416, 419 e 420).

Assim, dúvidas não há que o arguido, ao contrário do que fez crer ao Tribunal ao descrever o seu dia omitindo o referido, deslocou-se para o local dos factos entre as 11h e as 11h07 – hora que passou no referido Posto de Abastecimento de Combustível.

Por outro lado, dúvidas igualmente não há que a vítima sofreu as lesões com as consequências descritas uma vez que as mesmas são visíveis nas fotografias tiradas ao corpo no local do crime (fls. 40 a 43) e aquando da autópsia (email de remetido ao Tribunal a pedido deste no dia 11/02/2025 com ref.ª citius ......11) e encontram-se elencadas nos relatórios de autópsia efetuados a DD (fls. 460 a 465) e ao feto (fls. 672 a 679), tendo sido confirmadas pelas Sras. peritas que o redigiram e assinaram que inclusive confirmaram que a morte foi praticamente imediata, tendo ocorrido cerca de dois minutos após o desferimento das lesões. As mesmas foram causadas por um só golpe na zona do tórax desferido com um instrumento corto-perfurante. Assim se entende, pois, resulta do referido relatório de autopsia que as lesões traumáticas descritas resultaram de traumatismo violento de natureza cortoperfurante por objeto cortante, tendo a Sra. perita LL explicado que, pese embora exista mais do que uma lesão – in casu, dois ferimentos –, só foi desferido um único golpe, tendo depois sido efetuados movimentos em cruz – lado direito, para cima e para baixo.

Entende-se que o mesmo foi desferido pelas costas da vítima por três motivos: (i) a técnica utilizada para o efeito, conhecida no mundo da caça como técnica do remate, é assim efetuada (o que se diz tendo em conta a descrição da mesma efetuada pela testemunha MM, técnico superior no Instituto de Preservação e Florestas na área da caça); (ii) as marcas de sangue existentes nas vestes da vítima são compatíveis com a mesma estar debruçada aquando do golpe atenta a inexistência de sangue no zona abdominal (cfr. fls. 156), estando o mesmo mais concentrado na zona nas pernas, tornando mais improvável que a atuação de terceiro tenha sido de frente para si pois dificultaria a conduta, o que foi confirmado pela Sra. perita LL quando confrontada com a questão; e (iii) a inexistência de marcas de defesa na vítima que, embora também sejam compatíveis com a relação de confiança existente entre ambos, também aponta no sentido de o ataque ter sido por trás e não se ter apercebido que o mesmo iria ocorrer.

E entende-se que foram perpetradas pelo arguido pelo seguinte:

i. Como referido, o mesmo encontrava-se no local à data e hora aproximada em que a morte da vítima se deu. Ora, a localização em apreço não é um lugar de passagem, sim um lugar de destino; vale dizer: sendo um local ermo e não cultivado, paralelo a uma estrada de melhor qualidade, não é utilizado sem que efetivamente se pretenda ir para o local (para melhor perceção da localização vide relatório n.º ........80-EEVLC da polícia judiciária de fls. 144 a 167, especialmente fls. 146 a 152). Assim, dificilmente alguém que não soubesse onde a vítima se encontrava iria ter ao local dos factos, sendo certo que, pelo menos dos familiares próximos, apenas o arguido tinha conhecimento do mesmo como é o próprio que admite e resulta dos depoimentos de NN que apenas se dirigiu ao local por indicação do arguido e do assistente que também negou ter conhecimento da localização da sua filha;

ii. A justificação que deu para ter ido a Borba não é credível. Veja-se. Referiu que lá se deslocou para adquirir farinha uma vez que era mais barato – cerca de € 12 – do que em Estremoz, local onde estava – cerca de € 17/18. Sucede que, questionado sobre quanto dinheiro tinha consigo, referiu ter cerca de € 17/18 pelo que notoriamente não conseguiria comprar tal produto, o que sabia, pois explicou que precisava ainda de colocar gasolina. Ora, se não podia pagar a farinha«, porque motivo se deslocou a Borba para o efeito, gastando combustível e, por isso, mais dinheiro, quando já sabia que seria em vão? Questão a que não souber responder e à qual, de facto, não se encontra resposta plausível tendo em conta as regras da experiência comum;

iii. Por outro lado, na lâmina do canivete descoberto na mão da vítima foi encontrado um pelo/cabelo (auto de apreensão de fls. 17 e relatório n.º ........80-EEVLC da polícia judiciária de fls. 144 a 167, especialmente fls. 158 e 159) que, após exame pericial, veio a comprovar-se ser do arguido (fls. 542 a 544), indiciando que o mesmo esteve em contacto com aquele após os factos. Isto pois (i) é o próprio que em sede de primeiro interrogatório nega ter tido contacto com o mesmo em qualquer momento, referindo não saber de onde o mesmo apareceu pois nunca o tinha visto, tendo mantido a mesma versão em instrução uma vez que disse que tal canivete era utilizado exclusivamente pela vítima na apanha de orégãos; (ii) a vítima encontrava-se a usá-lo para apanhar orégãos – uma vez que foram encontrados molhos colhidos e mais nenhuma arma no local que o permitisse – não sendo plausível que o cabelo tenha lá sido colocado em momento anterior e lá permanecido após a referida atividade. Assim, tendo negado ter-se aproximado do corpo após a sua descoberta – o que aliás foi corroborado por todas as testemunhas que com ele estiveram no local (NN, OO, PP e QQ), tal pelo/cabelo não poderá ter caído para o canivete noutro momento que não após o golpe, no momento em que o arguido o sujou de sangue da vítima;

iv. Ademais, tendo em conta (i) o tipo de golpe – com a profundidade necessária para atingir a aorta –; (ii) o local atingido – a zona tórax pelo lado direito – (iii) a forma como foi desferido – com entrada pelo lado direito do corpo, atravessando o lado esquerdo –; (iv) os órgãos atingidos – ambos os pulmões, brônquios, coração e aorta; (v) a inexistência de lesões de ensaio; e (vi) a ausência de indícios de depressão e o resultado toxicológico negativo, entende-se que a conduta não foi autoinfligida como pretende fazer crer a defesa, fundando-se numa possibilidade descrita no relatório de autópsia – mas negado pelo próprio arguido quando questionado sobre tal possibilidade.

E assim é, pois, a zona escolhida para o ferimento não é a tipicamente utilizada para o suicídio, tendo a médica perita LL sustentado que, em vinte anos de carreira, nunca ter visto suicídios em que a zona atingida fosse o peito, tendo o mais próximo sido golpes no pescoço “a descer para o peito”.

Mais.

O facto de o golpe de entrada ter sido no lado direito do corpo implica uma atuação não natural da vítima que, sendo destra (veja-se que a arma foi encontrada na sua mão direita), teria tendência a acertar no lado esquerdo do corpo, arrastando para o lado direito e não o contrário.

Por outro lado, tendo em conta a intensidade dos ferimentos – especialmente tendo sido atingida a aorta – e a consequente morte quase imediata, considera-se que seria difícil a vítima retirar a arma utilizada do corpo.

Por fim, o arguido quis fazer crer ao Tribunal, num momento embrionário do processo, que a vítima tinha problemas psiquiátricos e tinha inclusive tido acompanhamento psiquiátrico em .... Todavia, inexiste qualquer prova do referido, não havendo registos médicos de tal acompanhamento que, a ter existido, haveria (vide apenso – documentação clínica, do qual resulta o seu historial clínico), tendo ambas as médicas peritas referido que a ausência de indícios de depressão e de consumo de substâncias psicotrópicas devem ser interpretadas como fatores que apontam para o homicídio, especialmente pela violência do próprio golpe que só seria explicável em contexto psicótico;

v. No mesmo sentido aponta a circunstância de ter sido encontrada na mão da vítima um canivete com apenas 6,2 cm de lâmina (cfr. auto de apreensão a fls. 17 e relatório n.º ........80-EEVLC da polícia judiciária de fls. 144 a 167, especialmente fls. 157), que não pode ter sido a arma do crime.

Vejamos.

Se por um lado a Sra. perita RR refere que a mesma não poderá ter menos de 10 cm de lâmina, a Sra. perita LL não se quis comprometer, dizendo que tal afirmação depende da força aplicada. Sucede que, nesta questão e exclusivamente nesta, não se atribuiu credibilidade ao seu depoimento mormente porque (i) o mesmo implicaria a conclusão de que não poderia ter sido suicídio, conclusão a que repetidamente referiu não se querer vincular; (ii) referiu inclusive que uma lâmina de 2 cm permitiria causar as lesões descritas o que é manifestamente impossível tendo em conta os órgãos atingidos e as lesões causadas e visíveis a fls. 43. Assim, pese embora não se possa dizer que é necessária uma lâmina de 10 cm para praticar os factos dos autos, dúvidas não há que o concreto canivete encontrado nas mãos da vítima não pode ter sido a arma do crime uma vez que não permitia cortar a roupa que a vítima trajava – vide relatório de exame pericial n.º ........18-FFQ de fls. 402 a 405, no qual foi testada pela polícia judiciária tal possibilidade, tendo concluído que os cortes apresentavam perfis “características de classe semelhantes às observadas no dano 2 [causados por apunhalamento] da camisa, mas com dimensões inferiores (...) sugerindo que outro instrumento tenha sido usado para produzir esse dano”. Ora, se a mesma não cortava a roupa, muito menos causava os danos em questão, conclusão a que inclusive a Sra. perita LL chega.

Logo, não tendo sido encontrada qualquer outra arma no local dos factos, não podem os ferimentos em apreço ter sido autoinfligidos porquanto a vítima não teria capacidade física para a esconder pois, nas palavras da Sra. perita em questão, não conseguiria deslocar-se até outro local.

Ademais, a posição em que o mesmo foi encontrado – entre o dedo anelar e o dedo mindinho e com o a lâmina no interior da mão – é pouco natural para quem o tenha utilizado para se ferir;

vi. Para mais, o arguido é caçador há cerca de 10 anos e conhecedor da técnica do remate, como o admitiu em audiência de julgamento;

vii. Além do já referido, importa atender à postura do arguido quando questionado sobre se era conhecedor de tal técnica, pois imediatamente referiu perceber onde a Sra. Procuradora pretendia chegar mas que não era igual efetuar tal manobra a um animal que a uma pessoa. Ora, se é o próprio que admite que apenas viu imagens do corpo quando lhe mostradas aquando da sua audição na fase de instrução e que não era conhecedor do modo como a morte da vítima tinha sido causada – apenas sabia que havia muitos cortes – a sua postura defensiva não é justificável se não no facto de que sabia que tal técnica tinha sido aplicada, sendo que tal só é possível se tivesse sido o mesmo a fazê-lo;

viii. Mais se deve ter em conta a atuação conhecida do arguido no dia dos factos.

O arguido e a vítima trocaram mensagens – 3 na rede social Facebook (fls. 94 a 96), 13 SMSs (fls. 97 a 99) e 29 no whatsapp (fls. 100 a 105) – e chamadas – 49 chamadas telefónicas e 1 videochamada – de forma regular até às 11h31 – hora da última chamada atendida por esta (fls. 140) –, sendo que depois só a partir do 12h01 – fls. 102 – é que as mesmas retomaram por parte daquele de forma obstinada – e muito mais intensa do que as anteriores –, com apenas minutos de distância, sem que tenha mais obtido respostas. Tal indicia que entre tal período algo aconteceu para o arguido alterar o seu comportamento.

Mais importa atender que, tanto em sede de primeiro interrogatório como novamente em instrução, referiu não ter ficado preocupado com a vítima até por volta das 17h, altura em que soube que esta não foi buscar o filho à escola como era previsto, mesmo que não tenha obtido respostas da sua parte a partir do 12h uma vez que tal era habitual.

Ora tal é incoerente pelo seguinte: se por um lado o arguido diz não ter ficado preocupado porque era habitual a vítima não lhe responder porque é que tentou encetar tantos contactos com a mesma ao longo do dia? Por outro lado, a ausência de preocupação não é compatível com o teor e número das mensagens remetidas e chamadas efetuadas que demonstram claramente a intenção de demonstração de preocupação por parte do arguido.

Para mais, pese embora o teor de preocupação das mensagens remetidas especialmente atenta a gravidez e o facto de estar muito calor (veja-se, a título de exemplo, as mensagens de fls. 101 e 102 com o seguinte teor: “mor tem cuidado”; “era por causa das silvias mor”; mor se vez que tá muito calor vem embora”), o mesmo nunca lá se deslocou para verificar se estava tudo bem, pese embora tenha, como já referido, estado perto do local; e isso se diz tendo em conta as declarações do próprio que nega ter ido ao local e o facto de o corpo da mesma apenas ter sido encontrado ao fim do dia após buscas iniciadas pela testemunha NN.

Também se não vislumbra senão por as ter sujado de sangue da vítima aquando da prática dos factos porque é que entre as 6h53 e o 12h50 troca de calças, sendo que, confrontado com esse facto desmente tê-lo feito referindo que são as mesmas nas imagens, justificando que só têm bolso num do lado. Ora tal é manifestamente mentira pois é facilmente comprovável através da comparação das imagens 5 de fls. 299 e 10 de fls. 302 – nas quais são visíveis dois bolsos numa cor mais escura que a demais peça, um em cada perna, – afastando a versão do arguido de que as que trajava tinham um só bolso – e das imagens 2 de fls. 293 e 3 e 4 de fls. 294 – e em especial dos minutos 06h48 a 06h49 do ficheiro contido no CD de fls. 5 do Apenso 1 intitulado Camera2_P57 – nas quais é percetível a existência de bolsos distintos pois da cor das calças. A postura do arguido, negando um facto que é facilmente comprovável mediante visualização de imagens, tentando fazer crer ao Tribunal que é uma questão de perspetiva denota alguma necessidade de encobrir a verdade, sendo mais um indício, a par dos demais, no sentido de que o mesmo foi o autor dos factos imputados;

ix. Pese embora não tão relevante para a questão ora em apreço, mas também indiciador de uma personalidade agressiva do arguido e de que a versão por si apresentada aquando da prestação de declarações não corresponde à verdade, importa atender à conversa tida entre este e a vítima no dia 30 de março de 2023 no qual a mesma lhe imputa agressões físicas, remetendo inclusive uma fotografia, atuação que o mesmo não nega. E assim se entende, pois, quando a vítima lhe diz que tem medo de si porque lhe bateu e não quer que tal aconteça aos filhos, responde “pois nunca ira tocar nos meninos porque gosto muito deles” – vide, imagem 14 do CD constante de fls. 13 do Apenso 1. Ora, da análise das referidas mensagens resulta evidente que a relação não era a descrita pelo arguido uma vez que os problemas que tinham não eram apenas financeiros, o que não poderá deixar de ser tido em conta na apreciação global da prova.

No mesmo sentido aponta a circunstância de o arguido se ter deslocado aos serviços de Ministério Público para que fosse investigada a paternidade de BB (cfr. fls. 847), pese embora tenha negado qualquer dúvida em relação a tal facto. Além disso, a sua postura quando confrontado com tal facto está desfasada da realidade e atenta contra as regras da experiência comum pois, não o negando, sustenta que o fez por questões de necessidade de prova de tal paternidade pois, ainda que não duvidasse, outros podiam ter dúvidas no futuro e precisava de o precaver. Tal é, uma vez mais, indiciador de que a relação mantida com a vítima não era “normal” como quis fazer crer ao Tribunal, havendo desconfianças de traição;

x. A existência de marcas na mão da vítima – vide fotografia 13 de fls. 44 e relatório pericial de fls 460 a 462, mormente fls. 460 verso – compatíveis com o uso do canivete aí encontrado não afasta este entendimento porque, tal como referido pela Sra. perita LL, tal também pode ser explicado com o sangue ter para aí sido transferido depois ou o canivete ter sido sujo de sangue e lá colocado, o que se entende ter sido o que ocorreu – tendo o arguido, pós factos, sujado o canivete de sangue e colocado-o na mão direita da vítima – uma vez que tais marcas se encontram em ambas as mãos o que não aconteceria se tivessem sido utilizadas ambas as mãos para desferir o golpe em apreço – uma mão sobreposta – pois na que ficaria em cima não teria marcas de sangue no local onde estão;

Assim, pese embora tenha sido deixado em aberta pelo exame pericial de autópsia a possibilidade de suicídio – nas palavras da Sra. Perita LL, “a lesão pode ser autoinfligida, dificilmente mas pode, não é impossível” – certo é que tal possibilidade é afastada pelo suprarreferido, entendendo-se antes terem os factos sidos praticados pelo arguido que, em momento prévio aos mesmos, decidiu praticá-los pois só assim se justifica a dinâmica.

A tal não obsta o preceituado no artigo 163.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nos termos do qual “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.” E assim é, pois, apenas ficam sujeitos à disciplina desse preceito “os juízos periciais, os juízos técnicos, científicos ou artísticos propriamente ditos, e já não os dados de facto que lhes serviram de fundamento. Note-se ainda que o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/07/2015, relatado por Vasques Osório, proc. n.º 168/09.0TATND.C2, disponível in www.dgsi.pt. Assim, “quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião, ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, que decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova” – vide, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/11/2017, relatado por Isabel Valongo, proc. n.º 254/14.5 JACBR.C1, disponível in www.dgsi.pt –, o que ocorre precisamente nos presentes autos.

Ademais, é o próprio arguido que, quando questionado sobre o que terá ocorrido à vítima afasta perentoriamente a possibilidade de suicídio “pela forma como foi”.

Por fim, entende-se que o arguido se deslocou ao local com o intuito de retirar a vida à vítima com base nos seguintes factos: (i) hiato temporal que esteve no local; (ii) tipo de golpe e posição desta aquando do mesmo; (iii) ausência de marcas de defesa; (iv) ausência de comunicação daquele a esta de que se iria deslocar ao local.

Vejamos.

Em primeiro lugar, pese embora a troca de mensagens recorrentes, inexiste nas mesmas qualquer aviso por parte do arguido de que se iria deslocar ao local onde a vítima estaria, o que seria natural atenta a linha de comunicação existente entre ambos, tendo o próprio descartado tê-la avisado na última chamada trocada pois referiu que o seu conteúdo cingiu-se a informá-la de que iria para o monte.

Em segundo lugar, tendo em consideração que a última chamada efetuada por si e atendida pela vítima foi às 11h31, aquele não estava ainda junto desta por essa hora, pese embora já estivesse necessariamente nas imediações tendo em conta a célula ativada com a mesma como já referido. Mais se sabe que ao 12h01 remeteu uma mensagem pelo WhatsApp à mesma que já não foi aberta e que ao 12h19 ativou a célula de Santo Aleixo aquando da utilização do seu telemóvel. Importa ainda atender que ao 12h45 encontrava-se no Posto de Combustível de Monforte, tendo trocado de calças, uma vez que a sua presença é visível nas imagens de videovigilância. Ora, tendo em conta as distâncias entre os referidos locais e a necessidade de paragem para troca de roupa e limpeza, o arguido não pode ter estado no local mais do que 30 minutos. Além disso o arguido refere que antes de se ter dirigido ao Posto de Combustível em questão deslocou-se ao seu Monte – o que acionaria a célula V. Boim e levaria cerca de 23 minutos (fls. 636 a 639, 641 e 980) – e depois ao café Pôr-do-Sol em Santo Aleixo – onde já acionaria a célula efetivamente ativada pelas 12h19 o que, a ser verdade, reduziria o seu tempo “útil” no local dos factos.

Por fim, tendo em conta a forma como o golpe foi desferido – por trás e quando a mesma estava debruçada, sendo compatível com a atividade de que estava a desenvolver na altura (apanhar orégãos) – e a ausência de marcas de defesa, entende-se que a vítima foi apanhada de surpresa não tendo tido oportunidade de reagir, sugerindo a ausência de qualquer altercação em momento prévio. A isto acresce a sua conduta posterior uma vez que não se limitou a abandonar o local, antes tentando encenar um suicídio o que sempre lhe tomaria algum tempo, mais se não tivesse ido ao local já com este planeamento o que não é compatível com o tempo que permaneceu no local. O referido afasta, no entender do Tribunal, um crime de aproveitamento de oportunidade criminosa ou um homicídio passional, pois se assim o fosse, (i) o arguido teria de ter discutido com a vítima por motivo surgido no momento – uma vez que nas mensagens nada indicia mau estar entre ambos pois ambos utilizavam termos carinhosos como “mor” –; (ii) de seguida os ânimos tinham de ter acalmado; (iii) após, o arguido ter-se-ia de ter deslocado ao seu veículo automóvel para ir buscar a arma utilizada para desferir o golpe pois inexistia motivo aparente para que a mesma tivesse sido ab initio carreada consigo; (iv) matado-a; e (v) encenado um suicídio; tudo em, no máximo trinta minutos (se não for tido em consideração a sua versão quanto aos sítios onde esteve).

No que aos elementos subjetivos, da culpa e da consciência da ilicitude concerne (factos provados n.º 15 e 16) pertencendo o dolo à vida interior de cada um, é insuscetível de ser apreendido diretamente tendo de ser retirado de outros factos.

Tendo em conta que o arguido, quando se encontrava perto da vítima e dirigindo-se apenas a ela, desferiu um só golpe na sua direção na zona do tórax apanhando órgãos vitais – o que sabia e queria uma vez que é caçador e está familiarizado com a técnica do remate utilizada uma vez ter, de forma inclusive precipitada como se sentisse necessidade de afastar imediatamente tal ideia, referido aquando do 1.º interrogatório de arguido detido que a conhecia mas que era diferente fazê-lo a um humano que a um animal –, fica demonstrado que pretendeu tirar a vida daquela e, necessariamente, ao feto que carregava. Mais ficou demonstrado que, em virtude da relação de proximidade que os unia, fruto da relação que mantinham, a mesma não iria fugir nem debater, o que o mesmo sabia.

Considera-se ainda que é do seu conhecimento de que a vítima era sua companheira e mãe do seu filho BB, porquanto facto pessoal que cujo conhecimento confirma ter, ao que não obsta o pedido de teste de paternidade perante o Ministério Público em fevereiro de 2023, e ainda que estava grávida pois é o próprio que admite que no dia anterior ao dos factos tinha ido com a mesma a uma ecografia e descoberto o género do feto – uma menina – que, pelo menos disse, não ter dúvidas de que era seu.

Quanto às condições pessoais e sociais do arguido (factos provados n.º 17 a 24) deram-se os mesmos como assentes com base no teor do relatório social, corroborado pela postura do arguido aquando da prestação de declarações em sede de primeiro interrogatório e instrução que demonstrou frieza e distanciamento perante os factos e a vítima.

Por fim, deu-se como provados os antecedentes criminais do arguido (factos provados n.º 25 e 26) com base no seu certificado do registo criminal.

Preceitua o Artº 410 nº2, do CPP, que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) - Erro notório na apreciação da prova”.

Por outro lado, dispõe o seu nº3, que, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.

Como ressalta do nº2 do citado Artº 410, a norma reporta-se aos vícios intrínsecos da decisão, como peça autónoma, verificáveis pelo simples exame do seu texto ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum, sendo por isso evidente que os ditos vícios têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.

Daí que não possa invocar-se a existência de qualquer um dos vícios enumerados nas alíneas do referido nº2 apelando para elementos não constantes da decisão, como sejam, por exemplo, um documento junto ao processo, ou um depoimento prestado em audiência, ainda que os mesmos se achem documentados, como é o caso dos autos.

São vícios que não podem ser confundidos - apesar de assim suceder com frequência - com o erro de julgamento, que resulta de uma errada apreciação da prova produzida ou da insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida. O vício da insuficiência para a matéria de facto provada, resulta da circunstância de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, ou seja, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite este seu dever, conduzindo a que, no limite, não se possa formular um juízo seguro de condenação.

O conceito de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (Cfr. o Acórdão do STJ de 04/10/2006, proc. 06P2678, Rel. Santos Cabral, in www.dgsi.pt).

Refere-se, por isso, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova) e ocorre quando, nas palavras de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Editorial Verbo, 2000,pág. 340, “a matéria de facto se apresenta como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão”

Também no Ac. do STJ de 03/07/02, Proc. nº 1748/02-5ª se refere que a insuficiência “decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”, ou seja, quando da decisão revidenda resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição.

Isto é, como é referido por inúmeras decisões jurisprudenciais, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto, enquanto vício desta, com as consequências a que conduz – o reenvio do processo para novo julgamento quando não for possível decidir da causa, conforme consagra o nº 1, do artigo 426º, do CPP - não se identifica nem com a eventual insuficiência da prova produzida para se poder ter por assente a factualidade apurada pelo tribunal recorrido, nem com a dos factos provados para a decisão que está em causa, antes concerne à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, ainda que com orientação diferente da prosseguida, não estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas, eventualmente, face a erro de julgamento e de subsunção dos factos provados ao direito.”

Ora, pela simples leitura da peça recursória se verifica a inexistência de qualquer questão que se relacione com a insuficiência da matéria de facto provada enquanto vício da matéria de facto nos termos legalmente configurados, tornando-se cristalina a inobservância do apontado vício, na medida em que, entre a fundamentação – quer factual, quer de direito – e a decisão, há todo um processo lógico e sequencial de modo a se concluir que esta mais não é do que o resultado coerente e necessário daquela, daqui se extraindo, à evidência, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de homicídio qualificado e de aborto pelo qual o recorrente foi condenado.

O que ali está, em causa, por parte do recorrente – à semelhança, aliás, da invocação dos demais vícios previstos no Artº 410 do CPP – é a mera divergência em relação à forma como foi apreciada, pela instância recorrida, a prova produzida e como foi firmado o esqueleto factual dos autos, nomeadamente, quanto à prática pelo arguido dos factos consubstanciadores dos crimes pelos quais se viu condenado, mas tal impugnação apenas consubstancia um mero erro de julgamento que à frente será dirimido.

Como referem Leal Henriques e Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, de acordo com o Código de Processo Penal revisto, 7ªedição, 2008, Rei dos Livros, pág.75, por contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, entende-se a incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ensina amplamente a jurisprudência, que tal só ocorrerá, quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ou quando se dão como provados factos contraditórios entre si, ou a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou ainda, entre a fundamentação e a decisão.

Também não se verifica, nos autos, a contradição insanável da fundamentação - que o recorrente concretiza no sentido de o tribunal recorrido ter dado como provado a existência de um plano com vista a retirar a vida à falecida, referindo-se também a um outro plano feito em relação à ocultação da sua conduta - já que nenhuma oposição existe entre os factos provados e os não provados, entre aqueles entre si, no seio da fundamentação probatória, ou entre esta e a decisão.

O tribunal a quo apenas deu por provado a existência de um plano por parte do arguido, qual seja, o de tirar a vida à vítima, plano este, que concretizou.

No mais, nada consta da factualidade apurada, o que logo impede o desenho da apontada contradição, sendo que em sede de determinação da medida concreta da pena, aludiu à circunstância de o arguido ter tentado ocultar a sua conduta, sem que daí, todavia, resultasse qualquer diferente incriminação do seu comportamento global, designadamente, no que toca a um eventual ilícito de crime de ocultação de cadáver.

Não há nestes termos, o vício previsto na al. b) do Artº 410 do CPP, tal como acima foi definido, de uma incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Relativamente ao invocado erro notório na apreciação da prova pelo tribunal a quo, ensinam Simas Santos e Leal-Henriques, em Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª Ed., pág. 80, que é uma « falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis. » Erro notório na apreciação da prova é, assim, aquele que não escapa à normal observação da generalidade das pessoas, isto é, o que, pela sua certeza, não pode passar despercebido ao comum dos cidadãos e que só deve ter-se por verificado quando se dê como provada uma determinada factualidade com base em juízos ilógicos, arbitrários, contraditórios e insustentáveis e que, por isso, desde que detectados no texto decisório, se apresentem como manifestamente violadores das regras da experiência comum.

Lendo o texto da motivação do recurso - que as conclusões reproduzem - verifica-se que o recorrente invoca este vício por discordar da forma como o tribunal deu como provados os factos que levaram à sua condenação.

Com efeito, em abono de tal invocação, aduz que o tribunal a quo cometeu esse erro por ter dado como provados os factos nsº7/16, sem ter valorizado, devidamente, quer as suas próprias declarações, quer os depoimentos das testemunhas arroladas na acusação pública.

O alegado pelo recorrente não consubstancia, de nenhum modo, o vício reclamado, uma vez que aquilo que o recorrente traz à liça é, unicamente, a sua discordância com o tribunal julgador no tocante à apreciação que este fez da prova, pretendendo sobrepor a sua perspectiva pessoal à livre convicção daquele tribunal, mas esquecendo que esta, neste domínio, se impõe soberanamente sem outros limites para além dos que a lei assinala.

Aduz assim o recorrente, na essência, um erro de julgamento, decorrente do Artº 412 nº3 do CPP, e não, um erro/vício da sentença previsto no nº2 do Artº 410 do mesmo diploma legal.

É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410 nº2 do aludido Código.

O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP.

É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pela recorrente.

E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo), ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº3 do Artº 412 do CPP.

Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Mais se lhe atribui, a individualização das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considera mal julgado.

Por fim, é-lhe ainda assacada a pormenorização das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410 do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (Cfr. Artº 430 nº1 do citado diploma).

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12:

«Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.»

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer, desde já, que a recorrente não cumpriu, com rigor, a tripla exigência do nº3 do Artº 412 do CPP, o que logo acarretaria o naufrágio do recurso, nesta parte, ainda que se entenda o ataque factual que deduz à decisão sindicada.

Pretende o recorrente, no fundo, dar por provada a sua versão, no sentido de não ter cometido os factos em causa, alimentando a ideia que a vítima se teria suicidado, ou, pelo menos, que esta é uma hipótese tão plausível como aquela que foi alcançada pelo tribunal recorrido, entendendo ainda a inexistência de elementos probatórios suficientes para se alcançar a conclusão firmada pelo tribunal a quo.

Ora, lida a motivação factual que supra se transcreveu, é inegável a preocupação do tribunal recorrido em explicar os motivos pelos quais, ao contrário do que defende o recorrente, conseguiu, sem dúvida razoável, dar por assente os factos que lhe eram imputados.

Recorde-se o essencial do que ali se escreveu no que toca à imputação delitiva, com total acerto e que se subscrevem na íntegra;

As lesões desferidas na vítima foram causadas por um só golpe na zona do tórax desferido com um instrumento corto-perfurante, tendo sido explicado pela perita LL quem embora existam dois ferimentos, estes resultam de um único golpe, seguidos de movimentos em cruz do lado direito, para cima e para baixo. Entendeu-se que o mesmo foi desferido pelas costas da vítima por três motivos: (i) a técnica utilizada para o efeito, conhecida no mundo da caça como técnica do remate, é assim efetuada; (ii) as marcas de sangue existentes nas vestes da vítima são compatíveis com a mesma estar debruçada aquando do golpe, atenta a inexistência de sangue no zona abdominal, estando este mais concentrado na zona nas pernas, tornando mais improvável que a actuação de terceiro tenha sido de frente para si pois dificultaria a conduta; e (iii) a inexistência de marcas de defesa na vítima que, embora também sejam compatíveis com a relação de confiança existente entre ambos, também aponta no sentido de o ataque ter sido por trás e aquela não se ter apercebido que o mesmo iria ocorrer.

Em relação á autoria do crime por parte do arguido, o tribunal foi particularmente prolixo e explicativo, numa dimensão argumentativa que é inatacável.

Relembre-se, também neste domínio, o essencial do que se plasmou na decisão recorrida, com pleno acerto e ao qual se adere totalmente.

O arguido, à data e hora aproximada em que a morte da vítima se deu, encontrava-se no local, sendo que este não é um lugar de passagem, mas antes um lugar de destino, pois é um local ermo e não cultivado, paralelo a uma estrada de melhor qualidade, não sendo por isso utilizado a não ser que efetivamente se pretenda deslocar para lá.

Por outro lado, pelo próprio arguido, foi admitido que só ele, entre os familiares mais próximos da vítima, tinha conhecimento do local onde esta se encontrava. A justificação que o arguido deu para ter ido a Borba não é, como bem refere o tribunal recorrido, credível.

Na lâmina do canivete descoberto na mão da vítima foi encontrado um pelo/cabelo, que, após exame pericial, veio a comprovar-se ser do arguido, o que indicia que esteve em contacto com aquele após os factos, já que pelo próprio, em sede de primeiro interrogatório, foi confirmado que tal canivete era utilizado exclusivamente pela vítima na apanha de orégãos, como então sucedia, não sendo plausível que o cabelo tenha lá sido colocado em momento anterior e lá permanecido após a referida atividade, pelo que o mesmo não poderá ter caído para o canivete noutro momento que não após o golpe, no momento em que o arguido o sujou do sangue da vítima.

Por outro lado, o tribunal recorrido discutiu a hipótese aventada de suicídio da vítima, tendo-a afastada através de um raciocínio pleno de lógica e de conformação com a normalidade da vida e o sentido das coisas.

Ali se escreveu a tal propósito:

“Ademais, tendo em conta (i) o tipo de golpe – com a profundidade necessária para atingir a aorta –; (ii) o local atingido – a zona tórax pelo lado direito – (iii) a forma como foi desferido – com entrada pelo lado direito do corpo, atravessando o lado esquerdo –; (iv) os órgãos atingidos – ambos os pulmões, brônquios, coração e aorta; (v) a inexistência de lesões de ensaio; e (vi) a ausência de indícios de depressão e o resultado toxicológico negativo, entende-se que a conduta não foi autoinfligida como pretende fazer crer a defesa, fundando-se numa possibilidade descrita no relatório de autópsia – mas negado pelo próprio arguido quando questionado sobre tal possibilidade.

E assim é, pois, a zona escolhida para o ferimento não é a tipicamente utilizada para o suicídio, tendo a médica perita LL sustentado que, em vinte anos de carreira, nunca ter visto suicídios em que a zona atingida fosse o peito, tendo o mais próximo sido golpes no pescoço “a descer para o peito”.

Mais.

O facto de o golpe de entrada ter sido no lado direito do corpo implica uma atuação não natural da vítima que, sendo destra (veja-se que a arma foi encontrada na sua mão direita), teria tendência a acertar no lado esquerdo do corpo, arrastando para o lado direito e não o contrário.

Por outro lado, tendo em conta a intensidade dos ferimentos – especialmente tendo sido atingida a aorta – e a consequente morte quase imediata, considera-se que seria difícil a vítima retirar a arma utilizada do corpo.

v. No mesmo sentido aponta a circunstância de ter sido encontrada na mão da vítima um canivete com apenas 6,2 cm de lâmina (cfr. auto de apreensão a fls. 17 e relatório n.º ........80-EEVLC da polícia judiciária de fls. 144 a 167, especialmente fls. 157), que não pode ter sido a arma do crime... que não permitia cortar a roupa que a vítima trajava não tendo sido encontrada qualquer outra arma no local dos factos, não podem os ferimentos em apreço ter sido autoinfligidos porquanto a vítima não teria capacidade física para a esconder pois, nas palavras da Sra. perita em questão, não conseguiria deslocar-se até outro local.

Ademais, a posição em que o mesmo foi encontrado – entre o dedo anelar e o dedo mindinho e com o a lâmina no interior da mão – é pouco natural para quem o tenha utilizado para se ferir;

(...)

Assim, pese embora tenha sido deixado em aberta pelo exame pericial de autópsia a possibilidade de suicídio – nas palavras da Sra. Perita LL, “a lesão pode ser autoinfligida, dificilmente mas pode, não é impossível” – certo é que tal possibilidade é afastada pelo suprarreferido, entendendo-se antes terem os factos sidos praticados pelo arguido que, em momento prévio aos mesmos, decidiu praticá-los pois só assim se justifica a dinâmica.

(...)

Ademais, é o próprio arguido que, quando questionado sobre o que terá ocorrido à vítima afasta perentoriamente a possibilidade de suicídio “pela forma como foi”.

(...)

Por fim, entende-se que o arguido se deslocou ao local com o intuito de retirar a vida à vítima com base nos seguintes factos: (i) hiato temporal que esteve no local; (ii) tipo de golpe e posição desta aquando do mesmo; (iii) ausência de marcas de defesa; (iv) ausência de comunicação daquele a esta de que se iria deslocar ao local.”

Acresce, que o arguido é caçador há cerca de 10 anos e conhecedor da técnica do remate, como o admitiu em audiência de julgamento, ainda que, quando questionado sobre se era dela conhecedor, imediatamente referiu perceber onde a Sra. Procuradora pretendia chegar, sendo evidente que, se refere que apenas viu imagens do corpo quando lhe foram mostradas aquando da sua audição na fase de instrução, não se compreende tal postura defensiva, a não ser que tivesse conhecimento que essa tenha sido a técnica aplicada, o que revela ter sido ele o seu autor.

Igualmente a mudança de calças por parte do arguido na manhã dos factos apenas se pode explicar por as ter sujado de sangue.

É certo que o arguido nega este facto, alegando que esteve sempre com as mesmas calças, mas, como bem assinala o tribunal recorrido, tal não corresponde à verdade, como se comprova pelas imagens constantes dos autos, o que leva à acertada conclusão que “A postura do arguido, negando um facto que é facilmente comprovável mediante visualização de imagens, tentando fazer crer ao Tribunal que é uma questão de perspetiva denota alguma necessidade de encobrir a verdade, sendo mais um indício, a par dos demais, no sentido de que o mesmo foi o autor dos factos imputados”.

Importa ainda referir duas notas em relação a duas questões que o arguido levanta de passagem, sem, contudo, as concretizar devidamente e que têm a ver com a validade da prova recolhida pelas imagens de videovigilância e pelos metadados.

O tribunal a quo, em sede de acórdão, pronunciou-se sobre estas matérias, em termos que se julgam suficientes e sem necessidade de considerações complementares, atenta a simplicidade da questão.

Eis o que ali se escreveu e com o qual se concorda inteiramente:

“Das imagens de videovigilância

Em sede de alegações finais a defesa invocou a nulidade das imagens de videovigilância recolhidas nos postos de abastecimento de combustíveis e juntas aos autos.

Cumpre apreciar e decidir.

Ao abrigo do artigo 125.º, do Código de Processo Penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, ou seja, rege entre nós o princípio da legalidade da prova.

Todavia, se obtidas por meio de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular são nulas nos termos do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Ademais, dispõe o artigo 167.°, n.° 1, do mesmo diploma legal que “as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.”

Para que as gravações ou reproduções sejam válidas não podem ter sido obtidas com condutas que se traduzam na prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal, ou um crime de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.º, do mesmo diploma legal.

Prevê o n.° 1, al. a), do primeiro preceito que comete o crime em apreço “quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas.”

O registo de imagem que é alcançado com o uso de sistemas de videovigilância pode atentar contra os direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, tutelados na Constituição da República Portuguesa no seu artigo 26.º, n.º 1 e 2. Assim, a sua utilização está limitada a situações em que, no confronto entre a violação deste direito e as necessidades de assegurar, no mais, as exigências de polícia e de justiça, se considera que a restrição do primeiro não é excessiva e é justificável.

No que ao caso dos autos concerne, importa ter em conta que a recolha de imagens de videovigilância em estabelecimentos comerciais para registar e visualizar imagens de um espaço protegido é permitida pelo artigo 2.º, al. h), da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio. Mais, como estabelece o artigo 100.º, da Portaria 273/2013, de 20 de agosto, “os postos de abastecimento de combustível devem adotar (...) [um] sistema de videovigilância por câmaras de vídeo para captação e gravação de imagens”, sendo, por isso, uma obrigação.

Tendo as imagens obtidas através do sistema de câmaras de videovigilância instaladas nos postos de abastecimento de combustível Q8 sinto em Monforte, João A. L. Anjos & Filhos, Lda., sita em Borba e Q8 sita em Santa Eulália, sido captadas em local de acesso ao público – parque de estacionamento, zona de abastecimento de combustível e caixas de pagamento –, não atentador do artigo 19.º, n.º 2, da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto, inexiste qualquer intromissão no núcleo duro da vida privada do arguido, justificando-se a sua obtenção e a sua utilização para a prova da prática das infrações penais ora em juízo.

Termos em que se considera que a prova em apreço não é proibida nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, sendo, por isso, válida e passível de utilização.

Dos metadados

Pese embora a questão já tenha sido discutida em sede de instrução, tendo sido sobre ela proferido despacho aquando do despacho de pronúncia, a defesa voltou a invocar a sua nulidade pelo que importa pronunciarmo-nos sobre a mesma.

Entende-se, como já decidido em sede de instrução, que tal prova não é nula. E assim é, pois, alcançada ao abrigo de normativos legais que o permitem.

Vejamos.

No que à obtenção de dados de localização e tráfego de conversações e comunicações telefónicas concerne, regeu até à entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, o disposto no artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Contudo, com a entrada em vigor daquele diploma legal, passou a mesma a ser admitida nos termos dos seus artigos 4.º e 6.º.

Sucede que por Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19 de abril, foi tal normativo declarado, com força obrigatória, inconstitucional, por violação do disposto dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1 e 35.º n.º 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa. Assim, inculca a questão de saber se tal prova ficou vedada em absoluto por inexistência de base legal para o efeito ou se, ao invés, é admissível. Pese embora não seja consensual na jurisprudência, havendo decisões em diversos sentidos, sufraga-se este segundo entendimento pelos motivos que se irá expor.

Prevê o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que a “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”; confere, assim, força repristinatória à norma declarada inconstitucional que, para evitar um vazio normativo, repõe em vigor a norma anteriormente revogada.

Pese embora inicialmente o normativo aplicável à prova em apreço fosse o estabelecido no artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com a entrada em vigor da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, passou a ser esta a aplicável mormente tendo em consideração o disposto no seu artigo 14.º. A este entendimento não obsta o arresto do referido arresto do Tribunal Constitucional que apenas se pronunciou quanto à inconstitucionalidade de preceitos previstos na Lei n.º 32/2008 – neste sentido, vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2024, relatado por Lopes da Mota, proc. n.º 170/11.2TA0LH-E.S1; de 10/01/2023, relatado por Teresa de Almeida, proc. n.º 731/09.GMBTS-J.S1; e de 13/04/2023, relatado por Lopes da Mota, proc. n.º 4778/11.8JFLSB-B.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Assim, tendo em conta o tipo de crime investigado nos autos e a existência de despacho a admitir a recolha dos dados em apreço nos termos da Lei n.º 109/2009 (proferido a 13/07/2023 com ref.ª citius ......00), considera-se válida a prova recolhida pelo que se indefere a nulidade invocada.

Ademais, ainda que assim não se entendesse, importa realçar que a eventual proibição da recolha destes dados tutela a reserva da vida privada que, sendo um direito constitucionalmente protegido, pode ser validamente suprimido se existir consentimento do seu titular; é o que dispõe o n.º 3 do artigo 126.º, do Código de Processo Penal.

Tendo o arguido consentido na sua recolha como resulta do auto de dispensa de sigilo de telecomunicações contido a fls. 88, sempre se entenderia pela não verificação da invocada nulidade de prova.

Deste modo, não assiste razão ao recorrente, atenta a forma clara, extensa, profusa e isenta de dúvidas, pelas quais foi definido o cenário factual dos autos, num processo explicativo que se mostra suficientemente objectivado e motivado, capaz, portanto, de se impor aos outros.

Importa ter ainda em conta que a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, deve ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os seus diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.

É assim evidente que o tribunal recorrido não cometeu qualquer erro na avaliação probatória dos autos, nomeadamente, nos Artsº 7 a 16 dos factos provados, já que os elementos de prova que se referiram outra conclusão não poderiam levar que não fosse à prova daqueles factos, sob pena de uma grosseira violação das regras de experiência, do sentido das coisas e da normalidade da vida.

É certo que o recorrente não concorda com essa avaliação, mas tal discordância, por si só, não consubstancia o cometimento, pela instância sindicada, de qualquer erro de julgamento.

Numa palavra, o dissídio do recorrente não assenta em qualquer divergência entre o que afirma ter sido dito no decurso da audiência e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, mas apenas e tão só, na avaliação que faz da prova que ali foi produzida.

O que se impunha ao tribunal recorrido é que explicasse e fundamentasse a sua decisão factual, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal a quo, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova provada e não provada se apresentam como lógicas, racionais e coerentes com o conjunto da prova produzida.

«A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.»- Ac. do STJ de 13/02/92, CJ Tomo I, pág. 36.

O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, «é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (...) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.).

Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo».

Por outro lado, e segundo o mesmo, «a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. (...) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável».

Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in «Curso de Processo Penal», 1986, 1° Vol., pág. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».

Directamente ligada a esta apreciação livre das provas, e determinante na formação da convicção do julgador, está o princípio da imediação, que Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 232, define como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão».

«(...) Só estes princípios (também o da oralidade) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso».

Como se diz no Ac. da Relação de Coimbra, de 18/02/09, proferido no proc. 1019/05.0GCVIS.IC, disponível em www.dgsi.pt:

“A sindicância da matéria de facto na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações (cfr ac. do S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt):

1º) – A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

2º) – A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação, com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;

3ª) – A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disse;

4ª) – A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)”.

Ora, analisada a valoração que da prova foi feita pelo tribunal recorrido, é óbvio que a convicção alcançada por este se mostra suficientemente objectivada e motivada, capaz, portanto, de se impor aos outros.

E, para assim se concluir, basta atentar-se, com a isenção ou distanciamento exigidos, nos meios de prova que da respectiva fundamentação constam como tendo sido ponderados pelo tribunal a quo e, bem assim, nas razões invocadas pelo mesmo para terem sido relevados pela forma como o foram.

Com efeito, lido o acórdão recorrido, em especial a parte relativa à fundamentação da convicção, verifica-se que o tribunal fez uma análise crítica de toda a prova, sendo perfeitamente compreensíveis as razões pelas quais assumiu como provados os factos contestados pelo ora recorrente.

O raciocínio do tribunal recorrido configura-se indiscutivelmente adequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não são sindicáveis por este tribunal, inexistindo por isso motivos para alterar o desenho factual feito pela instância sindicada.

No confronto entre as duas versões em causa – a do arguido e a desenhada na pronúncia – o tribunal optou por aquela que era sustentada pelos meios de prova produzidos, quer de prova directa, quer de prova circunstancial, em detrimento de uma outra sem qualquer corroboração em meios de prova fiáveis e violadora da normalidade das coisas e das regras de experiência.

O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro de julgamento.

Importa trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt,

«O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes. Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas ...

... A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável ...»

Quando as provas produzidas em julgamento permitem duas ou mais soluções possíveis para determinada situação de facto, o tribunal a quo, pode, fundamentadamente, optar por uma delas, sendo tal decisão inatacável pelo tribunal superior, desde que tal escolha se mostre fundamentada com a prova produzida, em sentido lógico com as regras de experiência, e em plano coerente com a normalidade da vida.

A intervenção do tribunal superior, ao nível factual, apenas poderá ocorrer, quando o tribunal recorrido tiver decidido ao arrepio da prova produzida ou a tiver valorado de um modo que contraria as regras da experiência.

Ora, essa não é, de todo, a situação dos autos.

A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se apresentassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se configurasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.

Mas nenhuma destas condições é o caso sub judice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica ou razoabilidade necessárias, de modo que, se deve concluir como no aresto citado: «...se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.»

Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23/03/01: «A divergência quanto à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente».

O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.

Trata-se de uma evidente limitação em matéria de facto, o qual não serve para possibilitar uma intervenção reparadora do tribunal de recurso face a toda e qualquer discordância relativamente à apreciação factual levada a cabo pelo tribunal recorrido, mas apenas e tão só, para os casos em que esta foi proferida através de uma clara, flagrante e patente violação das regras que regem a apreciação da prova, seja porque assente em prova proibida, seja porque existe evidente desconformidade entre a prova produzida e a decisão recorrida.

Só nestes casos é que se poderá dizer que as provas impõem uma decisão diversa.

Por outro lado, ao ter assim decidido, em caso algum se desenha uma violação do princípio in dubio pro reo, na medida que esta só ocorre, quando, em sede de prova, perante uma dúvida objectiva e intransponível, o tribunal decide desfavoravelmente ao arguido.

Sendo uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência, surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo.

Se, a final, persistir uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova terá de ser resolvido a seu favor, por imposição do estatuído no Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.

Mas esta dúvida não é a que o recorrente entende que o tribunal deveria ter tido, mas antes, a que o tribunal, efectivamente, teve.

Ora, resulta com toda a clareza da fundamentação da sentença recorrida, que não existiu qualquer dúvida no espírito do julgador, na construção do esqueleto factual dos autos, após a apreciação, livre, mas responsável, livre, mas motivada, da prova produzida em Audiência de Julgamento, corroborada com a já existente nos autos.

Nessa medida, não tem cabimento a aplicação do referenciado princípio in dubio pro reo, pois o tribunal a quo entendeu que havia sido produzida suficiente prova do cometimento dos factos pelo arguido, entendimento que foi sufragado ao abrigo do já escalpelizado princípio da livre apreciação da aprova, ínsito no Artº 127do CPP.

Inexistindo, assim, qualquer vício dos apontados pelo recorrente, ou erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo e por consequência, qualquer violação do disposto no Artº 127 do CPP, ter-se-á que finalizar pela improcedência total do recurso interposto pelo arguido do acórdão condenatório.

3. Apreciando.

O vício de omissão de pronúncia que o recorrente aduz, a este segmento da decisão proferida pelo TRE, traduz-se numa ausência, numa lacuna, quer quanto a factos, quer quanto a consequências jurídicas; isto é, verificar-se-á quando se constatar que o tribunal não procedeu ao apuramento de factos, com relevo para a decisão da causa que, de forma evidente, poderia ter apurado e/ou não investigou, na totalidade, a matéria de facto, podendo fazê-lo; ou se absteve de ponderar e decidir uma questão que lhe foi suscitada ou cujo conhecimento oficioso a lei determina.

Assim, para que se verifique a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, é necessário que o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões pertinentes para o objecto do processo, tal como delimitado pela acusação/pronúncia e pela contestação (bem como, em existindo, pelos articulados relativos ao pedido de indemnização civil). Ou, no caso presente, não se pronuncie sobre uma questão concreta proposta num recurso apresentado por um recorrente, em que este pede que se proceda a uma reapreciação probatória, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 412 nºs 3 e 4 do C.P.Penal.

A eventual não ponderação de algum argumento, tese ou doutrina esgrimidos pelos sujeitos processuais escapa ao referido vício decisório, desde que a questão colocada - e em cuja discussão se insira - seja efectivamente apreciada e decidida. Este é um entendimento pacífico e generalizado, a nível jurisprudencial, como nos dá conta, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 02/02/2006; vide ainda Pº 05P2646, relator Cons. Simas Santos. - A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art. 379.°), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão e acórdão do STJ de 24.10.2012, processo nº 2965/06.0TBLLE.E1).

Por seu turno, o excesso de pronúncia configura-se como o vício que decorre do facto de o tribunal conhecer questões de que não podia tomar conhecimento, por ultrapassarem o thema decidendum e/ou por não serem de conhecimento oficioso.

4. Revertendo ao caso que ora nos ocupa, constata-se que a nulidade que o recorrente imputa à decisão se prende com a omissão de apreciação do seu pedido de reapreciação probatória, nos termos previstos no artº 412 nº3, 4 e 6 do C.P.Penal.

5. Basta uma mera leitura do texto decisório (que supra se transcreveu), para se constatar não assistir qualquer razão ao arguido.

De facto, o tribunal “a quo” apreciou expressamente tal questão de natureza jurídica, em relação ao arguido, entendendo, no final de tal exame, que não se mostravam reunidos os requisitos que permitiam a sua aplicação.

Permitimo-nos chamar a atenção ao recorrente, do teor dos seguintes excertos retirados da aliás longa e bem fundada explanação realizada pelo TRE em que, revendo a matéria de facto provada e as provas produzidas, se salienta o seguinte:

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer, desde já, que a recorrente não cumpriu, com rigor, a tripla exigência do nº3 do Artº 412 do CPP, o que logo acarretaria o naufrágio do recurso, nesta parte, ainda que se entenda o ataque factual que deduz à decisão sindicada.

Pretende o recorrente, no fundo, dar por provada a sua versão, no sentido de não ter cometido os factos em causa, alimentando a ideia que a vítima se teria suicidado, ou, pelo menos, que esta é uma hipótese tão plausível como aquela que foi alcançada pelo tribunal recorrido, entendendo ainda a inexistência de elementos probatórios suficientes para se alcançar a conclusão firmada pelo tribunal a quo.

(…)

Ora, lida a motivação factual que supra se transcreveu, é inegável a preocupação do tribunal recorrido em explicar os motivos pelos quais, ao contrário do que defende o recorrente, conseguiu, sem dúvida razoável, dar por assente os factos que lhe eram imputados.

Recorde-se o essencial do que ali se escreveu no que toca à imputação delitiva, com total acerto e que se subscrevem na íntegra;

(…)

Relembre-se, também neste domínio, o essencial do que se plasmou na decisão recorrida, com pleno acerto e ao qual se adere totalmente.

(…)

Por outro lado, o tribunal recorrido discutiu a hipótese aventada de suicídio da vítima, tendo-a afastada através de um raciocínio pleno de lógica e de conformação com a normalidade da vida e o sentido das coisas.

(…)

É assim evidente que o tribunal recorrido não cometeu qualquer erro na avaliação probatória dos autos, nomeadamente, nos Artsº 7 a 16 dos factos provados, já que os elementos de prova que se referiram outra conclusão não poderiam levar que não fosse à prova daqueles factos, sob pena de uma grosseira violação das regras de experiência, do sentido das coisas e da normalidade da vida.

É certo que o recorrente não concorda com essa avaliação, mas tal discordância, por si só, não consubstancia o cometimento, pela instância sindicada, de qualquer erro de julgamento.

Numa palavra, o dissídio do recorrente não assenta em qualquer divergência entre o que afirma ter sido dito no decurso da audiência e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, mas apenas e tão só, na avaliação que faz da prova que ali foi produzida.

(…)

Ora, analisada a valoração que da prova foi feita pelo tribunal recorrido, é óbvio que a convicção alcançada por este se mostra suficientemente objectivada e motivada, capaz, portanto, de se impor aos outros.

(…)

O raciocínio do tribunal recorrido configura-se indiscutivelmente adequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não são sindicáveis por este tribunal, inexistindo por isso motivos para alterar o desenho factual feito pela instância sindicada.

No confronto entre as duas versões em causa – a do arguido e a desenhada na pronúncia – o tribunal optou por aquela que era sustentada pelos meios de prova produzidos, quer de prova directa, quer de prova circunstancial, em detrimento de uma outra sem qualquer corroboração em meios de prova fiáveis e violadora da normalidade das coisas e das regras de experiência.

O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro de julgamento.

(…)

A intervenção do tribunal superior, ao nível factual, apenas poderá ocorrer, quando o tribunal recorrido tiver decidido ao arrepio da prova produzida ou a tiver valorado de um modo que contraria as regras da experiência.

Ora, essa não é, de todo, a situação dos autos.

(…)

O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.

(…)

Trata-se de uma evidente limitação em matéria de facto, o qual não serve para possibilitar uma intervenção reparadora do tribunal de recurso face a toda e qualquer discordância relativamente à apreciação factual levada a cabo pelo tribunal recorrido, mas apenas e tão só, para os casos em que esta foi proferida através de uma clara, flagrante e patente violação das regras que regem a apreciação da prova, seja porque assente em prova proibida, seja porque existe evidente desconformidade entre a prova produzida e a decisão recorrida.

Só nestes casos é que se poderá dizer que as provas impõem uma decisão diversa.

6. Como se vê, embora o TRE tenha entendido – acertadamente, diga-se - que o recorrente, nem sequer cumpriu rigorosamente as exigências constantes no artº 412 nº3 e nº4 do C.P.Penal, ainda assim procedeu a tal reapreciação, de modo exaustivo e completo.

Um recurso é o mecanismo jurídico de reapreciação de uma decisão prevenindo-se, através do mesmo, a possibilidade de, a ter existido erro por parte do julgador “a quo”, o mesmo possa vir a ser suprido por outro julgador. O recurso é assim, um remédio jurídico, o que significa que não se pretende com o mesmo discutir a integralidade do decidido, mas tão-somente os segmentos precisos em que tal erro terá ocorrido, procedendo-se à respectiva reparação.

E foi isso, precisamente, o que foi realizado pelo TRE, de acordo com os pressupostos legais de reapreciação, em sede de recurso; ou seja, de acordo com os poderes de reapreciação de matéria de facto, que a lei estabelece, dentro dos seus limites e dos seus condicionalismos.

7. Na verdade, este poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder originário atribuído ao juiz do julgamento, não podendo ser arbitrariamente alterado apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face à convicção formada pelo julgador.

Efectivamente, compete ao Tribunal (e não aos intervenientes processuais), julgar a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artº127 do C.P.Penal, nomeadamente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (desde que se não esteja perante prova vinculada), sendo estes os parâmetros determinantes do acto de julgar. Na realidade, embora este acto tenha sempre, forçosamente, um lado subjectivo (o julgador não é uma máquina), a verdade é que estas regras, complementadas ainda pelo disposto no artº374 nº2 do C.P.Penal determinam que este acto de julgar não se possa fundar em arbitrariedade ou discricionariedade, pois balizam os fundamentos da decisão.

Assim sendo, a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim não fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final.

O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.

8. Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, há ainda que notar que existem limites a tal reapreciação – ou seja, existem balizas no que se refere aos poderes de cognição do tribunal de apelo.

Mesmo nos casos em que exista documentação dos actos da audiência, o recurso para a Relação não constitui um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova. O que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso (pois este serve, essencialmente, como remédio jurídico, como acima se referiu), é verificar, ponto por ponto, se os erros concretos de julgamento, indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correcção.

A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, nomeadamente em sede de reapreciação de matéria de facto, prende-se com o princípio da oralidade, no sentido de o mesmo implicar uma imediação, um contacto directo entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros), pois só através deste interagir pessoal, presencial, directo e imediato, é possível ao julgador formar a sua livre convicção.

Este tipo de contacto só existe, de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma percepção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos actos da audiência. E em matéria de credibilidade de depoimento, esta imediação revela-se, muitas vezes, de importância fulcral, já que o desenrolar do depoimento, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou desembaraço, enfim, todas as componentes pessoais ligadas ao acto de depor, que são muitas vezes insusceptíveis de serem registadas, mas que ficam na memória de quem realizou o julgamento, servem como elemento inestimável de formação da convicção do julgador, mas são praticamente insusceptíveis de serem reapreciadas em sede de recurso.

9. Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe apenas ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o tribunal “a quo”, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artº 374 nº2 do C.P.Penal.

10. Mas dentro destes parâmetros de reexame, haverá ainda que atender a um outro limite – a lei refere que, ainda assim, tal reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas acima mencionadas, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.

Neste último caso, havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artºs127 e 374 nº2 do C.P.Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais.

11. Aqui chegados, restará concluir que, tendo o TRE apreciado tal questão, verificando que se não impunha, face à prova produzida, que outra convicção fosse alcançada, demonstra-se que ponderou e decidiu matéria cujo conhecimento lhe incumbia e lhe havia sido pedido.

O que sucede é que o fez em sentido inverso àquele que o arguido propugna, o que não integra qualquer omissão de pronúncia, antes se reconduzindo ao alcançar de uma decisão que vai em sentido diverso daquela pelo recorrente defendida.

12. Determina a al. c) do nº1 do artº 379 do C.P.Penal que ocorre nulidade da sentença quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, verificando-se então o vício de omissão de pronúncia.

Como se viu, tal não é o caso.

Não ocorre, portanto, nenhuma omissão de pronúncia que tenha de ser suprida, sucumbindo, nesta parte, o recurso interposto.


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F. Todos os vícios referidos no artº 410 nº2 do C.P.Penal;

1. Aduz o recorrente, a este respeito, o seguinte em sede de conclusões:

18° - Pese embora os poderes oficiosos do STJ na matéria constante nos art°s 432°¬1-a) e 410°-2 e 3, suscita-se a existência dos vícios constantes no texto da decisão recorrida, por via da sua latência dos mesmos no aresto recorrido, nos termos resultantes da motivação que antecede;

Em sede de motivação, dedica um capítulo à verificação de todos os vícios constantes no dito nº2 do artº 410 do C.P.Penal, entendendo que os mesmos ocorrem e se verificam na decisão prolatada pelo tribunal de 1ª instância, sendo que o TRE, erradamente, entendeu não se verificarem.

2. Apreciando.

Caberá começar por realçar que, também nesta matéria, se mostraria desde logo aplicável a solução relativa às questões supra enunciadas nos pontos A. e B.; isto é, estamos claramente perante uma questão de dupla conforme e daí, o recurso deverá, também neste segmento, ser rejeitado.

3. Mas ainda que assim não fosse, a verdade é que a questão, nos termos em que é proposta, determinaria, por outra banda, igual solução.

De facto, e desde logo, temos que a matéria sobre a qual o recorrente pretende sindicância se mostra contida no acórdão proferido pelo tribunal de 1ª instância.

Ora, como decorre cristalinamente da lei, o recurso para o STJ versa sobre o acórdão da Relação, nos casos, como o presente, em que não estamos numa situação de recurso per saltum – isto é, em que o recorrente não interpõe directamente recurso para o STJ, nos termos do artº 432 nº1 al. c), do C.P.Penal.

4. Efectivamente, dado o que consta na motivação – já que a conclusão apresentada, a este respeito, é, para dizer o mínimo, lacónica – os vícios a que o recorrente alude não se mostram inscritos ou produzidos no acórdão prolatado pelo TRE, mas isso sim, no acórdão proveniente do tribunal de 1ª instância, que foi já alvo de apreciação pelo tribunal da relação. Tal petição recursiva, face à clareza da lei, não é permitida.

Daqui resulta que, de igual modo e por tal fundamento, também aqui e nesta parte, deve o recurso ser rejeitado, como aliás é jurisprudência pacífica deste STJ – vide, por todos, Acórdão do STJ, processo nº 127/16.7GCPTM.E3.S1, 5ª Secção, de 12-12-2024 – I. Estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o STJ com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP. III - Julgado, pela Relação, o recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância, o recorrente, inconformado com a decisão da 2.ª instância, já só esta pode impugnar e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância e não quando tenham sido previamente objeto de decisão pelas Relações.

5. Em sede final dir-se-á que, ainda que a petição de apreciação dos vícios constantes no nº2 do artº 410 do C.P.Penal se reportasse ao acórdão prolatado pelo TRE (e tal não é o caso, dado o que consta na motivação), a verdade é que, ainda que assim fosse, não se mostrava igualmente admissível ao recorrente pedir a sua averiguação, em sede de recurso para este STJ.

Na verdade, a averiguação da ocorrência dos vícios consignados no artº 410 nº2 do C.P.Penal, embora seja de averiguação oficiosa (mas, sobre a mesma, este STJ deve apenas pronunciar-se, caso divise a sua ocorrência, o que não se verifica nestes autos) apenas se mostra prevista nos casos de recurso per saltum, ou seja, nos enquadrados na al. c) do nº1 do artº 432 do C.P.Penal; isto é, apenas em tal tipo de recursos pode o recorrente pedir ao STJ, em sede de recurso, que proceda à averiguação da sua existência.

Como se refere no acórdão do 616/19.1JAPRT.S1, de 17/06/2020, 3ª Secção, Constitui jurisprudência dominante do STJ que «II- O artigo 434º do CPP quando alude aos vícios constantes do artº 410º nº 2 do CPP significa que estes são conhecidos oficiosamente pelo Supremo ao detectá-los na decisão recorrida, e, não quando suscitados pelos recorrentes como fundamento de recurso., uma vez que ” o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito” III - Mesmo nos recursos interpostos das decisões finais do tribunal coletivo, o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, terá de recorrer para a tribunal da relação, já que a invocação expressa dos vícios pertence ao conhecimento de matéria de facto, e é ao tribunal da relação a quem cabe, em última instância, reexaminar e decidir a matéria de facto. - arts. 427º e 428º do CPP». (AC do STJ de 27MAI2010, processo nº 11/04.7GCABT.C1, Relator Pires da Graça),

iv – decisão.

Face ao exposto, acorda-se:

a. Em rejeitar parcialmente o recurso interposto pelo arguido AA barraco, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto nos artigos 400º, nº 1, alínea f), 414º, nºs 2 e 3, 420º, nº 1, alínea b), e 432º, nº 1, alínea b), e 434º, todos do C.P.Penal.

b. No restante, julga-se o recurso interposto pelo arguido AA barraco improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a TJ em 6 UC.

Lisboa, 12 de Novembro de 2025

Maria Margarida Almeida (relatora)

Jorge Raposo

Maria da Graça Silva