Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
150/17.4T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: CASAMENTO CATÓLICO
CONCORDATA
EFEITOS DO CASAMENTO
TRANSCRIÇÃO
REGISTO CIVIL
EFEITOS PATRIMONIAIS
RETROATIVIDADE
REGIME DE BENS
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OBSCURIDADE
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Através da Concordata, assinada entre a Santa Sé e o Estado Português, em 07-05-1940, o Estado Português reconheceu efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento fosse transcrita nos competentes registos do estado civil.

II. Foi, na sequência, em 25-07-1940, publicado o Decreto-lei nº 30615, que, entre o mais, promulgou várias disposições relativas à celebração do casamento, estabelecendo, no art. 2º , designadamente, que o casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produziria todos os efeitos civis se o respectivo assento fosse transcrito no registo do estado civil, produzindo-se os efeitos desde a data da celebra­ção, se a transcrição fosse feita nos sete dias ulteriores, e, no art. 3º, que  os casamentos celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor desse di­ploma seriam transcritos, nos termos dos artigos 11.º e 12.°, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil.

III. Assim, enquanto que o casamento concordatário se considera contraído no momento da celebração católica, funcionando a sua transcrição como condição legal da sua eficácia, no casamento pré-concordatário (como é o caso de um casamento celebrado em 1938), a transcrição vale, para efeitos patrimoniais (maxime, os que se prendem com a definição dos regimes de bens) como se fosse o próprio casamento, não se retroagindo esses efeitos à data da celebração, com as consequências daí resultantes quanto a saber se os bens adquiridos apenas por um dos cônjuges se comunicam ao outro e integram a respectiva herança.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I


AA e mulher, BB, vieram intentar contra CC e mulher, DD, EE e FF e mulher, GG, acção declarativa, com processo comum, alegando, em resumo, que:

O Autor marido é filho de HH, que também usava HH, e de pai incógnito, tendo nascido em … de Fevereiro de 1932.

Posteriormente ao seu nascimento, concretamente em … de Maio de 1938, a sua mãe casou catolicamente com II, com quem teve dois filhos: o Réu CC e JJ, já falecida, mãe dos Réus EE e FF.

A mãe do Autor faleceu em … de Novembro de 1977 e, no respectivo assento de óbito, constava que tinha falecido no estado de solteira, o que não correspondia à verdade, sucedendo que o referido casamento católico não se encontrava averbado na Conservatória do Registo Civil .......

O A. deduziu, junto da Sé ....., o pedido de justificação do matrimónio canónico de sua mãe e de II, o que veio a ser julgado procedente. Foi, então, requerer à Conservatória do Registo Civil o averbamento do referido casamento, tendo confiado que todo o processo estava em conformidade.

II faleceu em … de Maio de 2011.

Em … de Junho de 2014, os RR. procederam à partilha entre si dos bens pertencentes a seu pai e avô, mas também pertencentes na proporção de metade a HH – os imóveis que o A. identifica –, tendo procedido junto da Conservatória do Registo Predial ao averbamento em seu nome dos prédios em causa.

Os Réus aproveitaram-se de um lapso na transcrição do assento de casamento, onde foi colocado que a mãe do Autor e II teriam celebrado “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”.

Os bens foram adquiridos na constância do matrimónio, o que os Réus bem sabiam e pretenderam ocultar.

O Autor marido em 5 de Dezembro de 2016 reclamou junto da Conservatória do Registo Civil ...... a rectificação do assento de casamento, rectificação essa que teve lugar por averbamento de 19 de Dezembro de 2016.

O casamento católico celebrado em 1938, sem convenção antenupcial, regia-se pelo regime da comunhão geral de bens, pelo que todos os bens partilhados como sendo próprios de II eram bens comuns com a falecida HH.

Fazendo os bens parte da herança de HH, sempre teriam os Autores que intervir na partilha, como interessados, tendo os Réus partilhado bens que não pertenciam àquela herança, mas sim à herança da mãe do A..

Concluíram, pedindo que:

A) Os Réus sejam condenados a reconhecer que os Autores são herdeiros e interessados na herança aberta por óbito de HH, que também usava HH, falecida em … de Novembro de 1977.

B) Seja declarado, e os Réus condenados a reconhecer, que HH e II, casaram em … de Maio de 1938, catolicamente e sem convenção antenupcial, por conseguinte, no regime da comunhão geral de bens.

C) Os Réus sejam condenados a reconhecer que os quatro prédios identificados como verbas 1 a 4 do procedimento simplificado de habilitação e herdeiros e partilha e registos com o nº 87…….. de 20 de Junho de 2014, mencionados no artº 14 da PI,  fazem parte, na proporção de metade, da herança aberta por óbito de HH.

D) Em consequência, se declare nula a escritura/procedimento simplificado de habilitação e partilha com o nº 87…….. com referência aos prédios mencionados em C), outorgada na Conservatória do Registo Civil ...... em 20 de Junho de dois mil de catorze.

E) Se ordene o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados com base em qualquer acto referido na alínea anterior, designadamente o registo da aquisição a favor dos Réus, bem como aqueles que se seguirem, e que resultem directamente daquela transmissão.


Contestaram os RR. CC e DD, dizendo, em resumo, que:

 Os bens imóveis partilhados através de procedimento simplificado de partilha eram e são bens próprios do falecido II.

II e HH não casaram, nem se encontravam casados no regime da comunhão geral de bens. Apenas celebraram casamento católico no dia 28/5/1938, sem processo preliminar de publicações.

Não contraíram casamento civil.

O casamento entre II e HH foi celebrado apenas catolicamente, não tendo o casamento sido precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais, até porque, na altura, o casamento católico era proibido e punido. De resto, tal casamento nem sequer ficou a constar de qualquer assento ou registo paroquial, tendo sido celebrado oralmente, sem que tal acto fosse ou ficasse reduzido a escrito. Daí a necessidade de recurso ao processo de justificação do matrimónio canónico, conforme sentença da Cúria Arquiepiscopal de Agosto de 1982, junta pelo A., que ordenou que fosse lavrado o assento no respectivo livro de matrimónios.

Com base no assento de casamento católico omisso e assim suprido, o A. requereu, em 15/7/1997, a sua transcrição na Conservatória do Registo Civil ......, transcrição que foi efectuada em 25 de Julho de 1997.

Estamos perante um casamento católico pré-concordatário, cuja transcrição foi efectuada apenas em 1997 e após o óbito de HH, ocorrido em 1977.

A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa foi celebrada em 7/5/1940 e transposta para a ordem jurídica portuguesa através do Decreto-Lei nº 30615 de 1/8/1940.

Os casamentos católicos pré-concordatários eram absolutamente proibidos, inexistentes e não produziam quaisquer efeitos jurídicos.

Com o DL 30615 de 25 de Julho de 1940, veio a aceitar-se como válidos os casamentos católicos celebrados a partir daí e permitiu-se ainda a legalização dos casamentos católicos celebrados entre 1911 e anteriores a 1/8/1940, no intuito de legalizar tais situações irregulares.

Dispõe-se no artigo 2º do DL 30615, relativamente aos casamentos católicos celebrados a partir da sua publicação, que “o casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produzirá todos os efeitos civis se o respectivo assento for transcrito no registo do estado civil”.

Quanto aos casamentos católicos anteriores, como é o caso dos autos, preceituava o art. 3º que “os casamentos que tenham sido celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor deste diploma serão transcritos, nos termos dos artigos 11 e 12, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil”. Assim, enquanto no casamento católico concordatário o casamento se considera contraído no momento da sua celebração, funcionando a transcrição como condição legal da sua eficácia, no casamento católico pré-concordatário a transcrição vale como se fosse o próprio casamento. Assim, o casamento dos autos, porque celebrado apenas catolicamente em 1938 e porque apenas foi transcrito em 1997, só vale como casamento civil com a transcrição, atendendo-se ao momento da transcrição para a verificação de impedimentos e para efeitos do regime de bens.

À data da transcrição (25/7/1997) dispunha o art. 1720º, nº 1, al. a), do Código Civil que “considera-se sempre contraído sob o regime da separação de bens o casamento celebrado sem precedência do processo de publicações”. Ora, o casamento entre II e HH foi celebrado apenas catolicamente em 1938, constituindo esse casamento um acto nulo, não tendo sido precedido de processo de publicações, até por se tratar de um casamento proibido.

Tal casamento nem sequer foi registado nem ficou a constar no assento paroquial, tendo o A. recorrido ao processo de justificação para suprimento do respectivo assento.

Tendo o casamento sido celebrado catolicamente sem precedência de processo de publicações e passando a existir como casamento civil pela transcrição efectuada em 1997, é-lhe aplicável o disposto no art. 1720º, nº 1, al. a), do CC em vigor à data da transcrição. Assim, o casamento considera-se imperativamente contraído sob o regime da separação de bens.

Considerando-se o casamento em questão celebrado em 1997, apenas valendo como casamento civil na data da sua transcrição, é-lhe aplicável a legislação em vigor na data da transcrição, pois que só com a transcrição o casamento católico produziu e produz os efeitos de casamento civil.

A transcrição do casamento católico pré-concordatário não tem efeitos retroactivos.

Os prédios das verbas 1, 2, 3 e 4 do art. 14 da p.i. foram adquiridos apenas por II entre os anos de 1950 e 1965, ou seja, quando se encontrava casado apenas catolicamente e com base num casamento nulo, inválido e inexistente.

A falecida HH não comprou nem adquiriu, fosse a que título fosse, nenhum dos prédios identificados no art. 14 da p.i..

Constituindo tais prédios bens próprios do falecido II, a partilha efectuada através do procedimento simplificado junto como doc. 10 da p.i. foi e encontra-se correcta, não sendo passível de qualquer nulidade ou anulação.

Os bens descritos no art. 14º da p.i. não integram a herança da falecida HH, mas sim e apenas a herança do falecido II.

O casamento só começou a produzir os seus efeitos depois da morte de um dos cônjuges, não sendo a comunhão juridicamente possível, porque nem existiu sociedade conjugal a que se aplicasse um regime de bens.

Concluíram pela improcedência da acção.


Realizou-se a audiência prévia.

Foi proferido despacho saneador tabelar.

Definiu-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas de prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, se reconheceu que os autores são herdeiros e interessados na herança aberta por óbito de HH, falecida a ...11.1977, absolvendo-se os réus dos demais pedidos efectuados.


Inconformados, recorreram os AA. para o Tribunal da Relação ……, onde veio a ser proferido acórdão que negou provimento ao recurso.

De novo inconformados, interpuseram os AA. recurso de revista (normal e, subsidiariamente, excepcional) para este Supremo Tribunal, concluindo o seguinte:

«I. Face ao enquadramento da factualidade dos presentes autos e a sua importância, estão reunidos os pressupostos de que depende a admissibilidade da revista excecional, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

II. No entanto a decisão final do Digno Tribunal recorrido é no sentido da confirmação da decisão recorrida (dupla conforme), oferecendo-nos dúvidas que assim seja, já que a fundamentação não é coincidente, aliás desconhecem os recorrentes a fundamentação para se manter o regime imperativo de separação de bens face à alteração da matéria de facto. Assim caso Vossas Excelências entendam que não existe a dupla conforme, os recorrentes desde já requerem a autuação e prossecução do presente recurso como recurso de revista.

III. Na verdade, a questão em causa não só reveste excecional relevância jurídica, que torna claramente necessária a sua apreciação em via de recurso de revista para melhor aplicação do direito porque, pelas dificuldades que suscita a sua resolução, é suscetível de causar, em geral, fortes dúvidas e probabilidade de decisões jurisprudenciais diferentes.

IV. Neste sentido vem sedimentando o entendimento de que a relevância jurídica de uma questão, apresentando-se como autónoma, deve revelar-se pelo elevado grau de complexidade que apresenta, pela controvérsia que gera na doutrina e/ou na jurisprudência, com vista à obtenção de decisão suscetível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial.

V. Para efeitos da melhor aplicação do direito e sua clara necessidade, a relevância jurídica será de considerar quando a solução da questão postule análise profunda da doutrina e da jurisprudência, em busca da obtenção de “um resultado que sirva de guia orientadora a quem tenha interesse jurídico ou profissional na sua resolução”.

VI. Atendendo às motivações do acórdão recorrido, no que concerne à alteração da matéria de facto, e decisão da matéria de direito, coloca-se assim a questão de saber em que momento o casamento pré-concordatário se considera válido, quais os seus efeitos, qual o regime de bens aplicável sendo o casamento transcrito em 1997, regime esse que determina se os bens são comuns ou próprios de um dos cônjuges.

VII. Estamos perante uma decisão recorrível, uma vez que a matéria em questão o admite, atenta a sua excecionalidade, considerando que a questão é inédita, e necessita de uma clarificação por parte deste Digno Tribunal, até para a segurança e certeza do direito.

VIII. Assim os ora recorrentes interpuseram recurso da decisão proferida em primeira instância, quer da decisão da matéria de facto, quer da decisão de direito.

IX. Quanto à decisão da matéria de facto, os apelantes discordaram da decisão quanto aos pontos 17, 18 e 19 dos factos provados e 4 dos factos não provados, baseando-se, para tanto, no documento constante de fls. 15 (Registo nº 3082, de 25/08/1982), bem como no depoimento da testemunha KK.

X. Decidiu então o aliás douto acórdão recorrido “Quanto ao mais que consta do ponto 17, que tal casamento foi celebrado sem processos preliminar de  publicações e quanto aos pontos 18 (o casamento católico não foi precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais) e 19 (tal casamento não ficou a constar de qualquer assento ou registo paroquial, tendo sido celebrado oralmente), não resulta, efetivamente qualquer prova dos autos que sustente tal matéria, motivo pelo qual terá de considerar-se como não provada, com os números 5 e 6.”

XI. Adicionado assim à matéria não provada os pontos 5 e 6

5. O casamento católico não foi precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais;

6. Tal casamento não ficou a constar de qualquer assento ou registo paroquial, tendo sido celebrado oralmente.

XII. Sucede que a Meritíssima juiz da primeira instância tinha baseado a sua decisão no facto de considerar como provados os factos que agora o Digno tribunal da Relação considerou como não provados como a seguir se descreve:

Ora, à data da transcrição dispunha o art. 1720.º, n.º 1 al. a) do Código Civil que “considera-se sempre contraído sob o regime da separação de bens o casamento celebrado sem precedência do processo de publicações”.

E o casamento entre II e HH foi celebrado apenas catolicamente em 1938, não foi registado nem ficou a constar no assento paroquial, tendo o autor marido recorrido ao processo de justificação para suprimento do respectivo assento.

Tendo o casamento sido celebrado catolicamente sem precedência de processo de publicações e passando tal casamento a existir como casamento civil pela transcrição efectuada em 1997, é-lhe aplicável o disposto no aludido art. 1720.º, n.º 1 al. a) do Cód. Civil em vigor à data da transcrição.

O aludido preceito aplica-se a todos os casamentos que se tenham celebrado sem precedência de processo preliminar de publicações, quer dos que assim se tenham celebrado legalmente, trate-se de casamento católicos ou civis, quer aos que deveriam ter sido precedidos do processo de publicações, mas foram celebrados, de facto, sem precedência desse processo. – cfr. Pereira Coelho, Direito da Família, 1977, pág. 360.

XIII. Assim a Meritíssima Juiz da primeira instância considera que, por não existir processo preliminar de publicações, o regime de casamento aplicável seria o imperativo da separação de bens nos termos do artº 1720 nº 1 al a) do Código civil, em vigor à data da transcrição em 1997, e que a retificação efetuada oficiosamente não teria sido efetuada corretamente pelo facto de não ter existido o processo preliminar de publicações.

XIV. Sucede que o Digno Tribunal da Relação …… retirou essa matéria dos factos provados, ou seja, não se provou que não houve processo preliminar de publicações, pelo que, com o devido respeito por opinião diversa, também não existe fundamento para aplicação do 1720º nº 1 al a) do Código Civil.

XV. Considerou, no entanto, o acórdão recorrido que não havia motivo para a retificação do averbamento e que se deveria manter o regime da separação de bens, sem que no entanto tenha indicado qual o fundamento para tal, nomeadamente com recurso ao artº 1720º do Código Civil que será a disposição que regula a imperatividade do regime da separação de bens.

XVI. Não existe assim fundamento legal e factual para a aplicação do regime imperativo da separação de bens ao casamento transcrito e em causa nos autos em clara violação do dever de fundamentar as decisões art. 154.º do CPC

XVII. Assim verifica-se a nulidade prevista no artº 615 na alínea c) do nº 1 do CP Civil, ou seja a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão.

XVIII. Também a decisão padece de obscuridade quando nada na decisão de facto apoia a aplicação do regime imperativo da separação de bens, e a decisão logo de seguida entende ser esse o regime aplicável. Se face à alteração da matéria de facto não se provou que não houve processo preliminar de publicações, que tinha sido a base da primeira instância para a aplicação do regime imperativo da separação de bens, como se mantém a decisão que será esse o regime aplicável?

XIX. Padece assim o acórdão recorrido de nulidade nos termos do artº 615 al. c do C.P. Civil.

XX. Assim, e tendo a retificação oficiosa sido efetuada em conformidade o regime de bens que vigora é o do” casamento católico sem convenção antenupcial”

XXI. Sendo celebrado sem convenção antenupcial é o regime da comunhão geral de bens que vigorava à data da sua celebração e bigamia, nos termos da alínea c) do artigo 1601).”

XXII. Assim, tendo o casamento sido transcrito em 1997, tal casamento (que era proibido, nulo e inexistente por se tratar de um casamento pré-concordatário) passou a produzir efeitos como casamento civil com a transcrição, ou seja II e HH passaram a estar legalmente casados, tendo-o feito sem convenção antenupcial, ou seja sob regime da comunhão geral de bens, regime supletivo que vigorava à data da sua celebração.

XXIII. Deste modo e estando casados sob o regime da comunhão geral de bens todos os bens elencados no ponto 11 da matéria de facto dada como provada pertencem a ambos os cônjuges, por conseguinte metade a HH, mãe e sogra dos Recorrentes, pelo que é nula a partilha efetuada.

XXIV. O casamento dos autores da herança foi celebrado em 1938, sendo pré-concordatário, sendo ilícito face à lei Civil mas lícito face à lei canónica se registado, que sendo transcrito, como foi, aplicava-se ao mesmo o Código de Seabra (cfr. art. 1720.º), onde não havia imperatividade do regime de separação de bens”.

XXV. Refere ainda a decisão recorrida “Quanto à objeção levantada pelos apelantes, segundo os quais a força probatória material e formal do registo civil só pode ser colocada em causa através de uma ação de registo ou de estado, a questão sempre se mostraria deslocada, uma vez que aquilo que está em causa não é propriamente a transcrição do casamento, embora sem efeitos práticos, como se viu, mas a retificação, que sendo irregular e ilegal, porque não conforme ao regime legal e sendo da responsabilidade dos serviços, que a efetuaram, é obrigatória a promoção oficiosa da sua retificação, nos termos do disposto no artigo 92º nº 2 do Código de Registo Civil.”

XXVI. Ora conforme já se referiu, apesar de a transcrição ter sido feita em 1997; o regime de casamento a aplicar é o da data em que o casamento foi celebrado -1938, sendo por isso, no caso, o regime de casamento o da comunhão geral de bens.

XXVII. Assim, para que o Digno Tribunal da Relação pudesse concluir que o averbamento realizado em 19.12.2016, foi indevidamente efetuado, seria necessário suprir os eventuais vícios que o registo possa eventualmente sofrer, o que não se sucedeu!

XXVIII. Ao colocar-se em causa o registo civil sem recorrer à competente ação de registo ou Estado, incorreu-se na violação do princípio da legalidade e, dos princípios da autenticidade, veracidade ou fidelidade do registo, segundo os quais o estado resultante do registo existe e existe nos precisos termos nele definida, termos em que o averbamento do ponto 16 dos factos provados deve ser considerado válido e eficaz. E, assim é em obediência ao princípio da concomitância do facto e do registo.

XXIX. Com efeito, o registo mesmo que nulo, enquanto a nulidade não for retificada oficiosamente, ou reconhecida por sentença judicial, produz efeitos como se fosse válido.

XXX. Face ao exposto, entendem os recorrentes que violou a decisão recorrida entre outras as normas dos artº 154 do C. P. Civil, o disposto nos artigos 1º al.s d ) e e) e 3º nº 1 e nº 2 do Código de Registo Civil, artº 1108º do Código de Seabra, 1732 º do Código Civil.

Termos em que, deverá ser julgado procedente por provado o presente recurso, e revogado o acórdão recorrido, decidindo-se pela procedência do pedido dos Autores.

Fazendo, deste modo, Vossas Excelências, como sempre, inteira JUSTIÇA!»


Contra-alegaram os RR., pugnando pela manutenção da decisão recorrida e alargando o objecto do recurso, mediante as seguintes conclusões:

«1- Entendem os recorridos que não se verificam os requisitos quer para a revista normal, dada a ocorrência de dupla conforme, quer para a revista excepcional.

2 - No douto acórdão recorrido não se verifica qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, nem se vislumbra nenhuma obscuridade que torne a decisão ininteligível, devendo ser indeferida e julgada improcedente a nulidade arguida.

3 - A questão a decidir tem a ver com a eficácia da transcrição do casamento católico pré-concordatário, efectuada apenas em 1997 e após o óbito de um dos cônjuges, falecido em 1977.

4 - Até à publicação do DL 30615 de 1/8/1940 os casamentos católicos pré concordatários eram absolutamente proibidos, nulos, inexistentes e não produziam quaisquer efeitos jurídicos.

5 - Com o DL 30615 de 25 de Julho de 1940, veio aceitar-se como válidos os casamentos católicos celebrados a partir daí e permitiu-se ainda a legalização dos casamentos católicos celebrados entre 1911 e anteriores a 1/8/1940, considerados inválidos e inexistentes, no intuito de legalizar tais situações irregulares (situações concubinárias à face da lei civil, mas válidas à face da lei canónica) e de ilibar os ministros da Igreja das penas em que incorreram pela celebração ilegal do matrimónio católico, dispondo-se no artigo 2º do DL 30615, relativamente aos casamentos católicos celebrados a partir da sua publicação que “o casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produzirá todos os efeitos civis se o respectivo assento for transcrito no registo do estado civil” e quanto aos casamentos católicos anteriores, como é o caso dos autos, preceituava o art. 3º que “os casamentos que tenham sido celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor deste diploma serão transcritos, nos termos dos artigos 11 e 12, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil”.

6 - Enquanto que no casamento católico concordatário o casamento se considera contraído no momento da sua celebração, funcionando a transcrição como condição legal da sua eficácia (“o casamento produzirá todos os efeitos civis”- art. 2º), no casamento católico pré concordatário a transcrição vale como se fosse o próprio casamento (“produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil” – art. 3º).

7 - O casamento dos autos, porque celebrado apenas catolicamente em 1938 e porque apenas foi transcrito em 1997, só vale como casamento civil com a transcrição, atendendo-se ao momento da transcrição para a verificação de impedimentos e para efeitos do regime de bens.

8 - Tendo o casamento sido transcrito em 1997, tal casamento (que era proibido, nulo e inexistente por se tratar de um casamento pré-concordatário) passou a produzir efeitos como casamento civil apenas com a transcrição, ou seja, em 1997, aplicando-se a legislação em vigor nesta data.

9 - Ora, à data da transcrição (25/7/1997) dispunha o art. 1720 nº 1 do Código Civil que “consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:

a) O casamento celebrado sem precedência do processo de publicações;

b) O casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade".

10 - E dispunha o artigo 1717º do C.C. que "na falta de convenção antenupcial, ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção, o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos".

11 - O casamento entre II e HH foi celebrado apenas catolicamente em 1938, constituindo tal casamento um acto nulo, não tendo sido precedido de processo de publicações até por se tratar de um casamento proibido, não tendo sido registado, nem ficado a constar no assento paroquial, tendo o A. recorrido ao processo de justificação para suprimento do respectivo assento.

12 - Tendo o casamento sido celebrado catolicamente sem precedência de processo de publicações e passando tal casamento a existir como casamento civil pela transcrição efectuada em 1997, é-lhe aplicável o disposto no art. 1720 nº 1, als. a) e b) do CC em vigor à data da transcrição (25/07/1997).

13 - Considerando-se o casamento em questão celebrado em 1997, apenas valendo como casamento civil na data da sua transcrição, ao mesmo é aplicável a legislação em vigor na data da transcrição, pois que só com a transcrição o casamento católico produziu e produz os efeitos de casamento civil.

14 - A transcrição do casamento católico pré-concordatário não tem efeitos retroactivos.

15 - Em 25/07/1997, data da transcrição do casamento católico pré-concordatário, II, nascido em 06/02/1932, tinha já 65 anos de idade.

16 - E nessa data (25/07/1997), a HH (que, entretanto, havia falecido em 27/11/1977 com 70 anos de idade - cfr. certidão junta com a p.i.) perfaria, se fosse viva, 90 anos.

17 - Ou seja, à data da transcrição do casamento (25/07/1997), ambos tinham ou teriam completado mais de 60 anos de idade.

18 - Pelo que, ao efectuar-se, em 25/07/1997, a transcrição do casamento católico pré-concordatário, tal casamento teria sempre de ser considerado celebrado sob o regime da separação de bens, (também) pelo facto de ambos terem completado mais de 60 anos de idade.

19 - O regime de bens aplicável ao casamento católico de 28/5/1938, entre II e HH, transcrito em 25/7/1997, era e é o regime imperativo da separação de bens, quer ao abrigo da alínea a), quer ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 1720º do CC.

20 - Não assiste razão ao A. na sua pretensão, nem quanto ao regime de bens que entende ser aplicável, nem quanto à nulidade da partilha, uma vez que os bens partilhados eram, como são, bens próprios do falecido II.

21 - Acresce que, entre os referidos II e HH não existiu património comum, nem se verificou a comunicabilidade de bens, nomeadamente dos imóveis descritos no art. 14 da p.i.

22 - Tendo o casamento católico apenas sido transcrito em 1997, ou seja, após a morte de HH, casamento católico que apenas ficou a valer como casamento civil e a produzir efeitos com a transcrição, ou seja, em 1997, não houve comunicabilidade de bens para a HH, que faleceu muito antes de o casamento produzir efeitos.

23 - Com efeito, conforme refere o Insigne Mestre Pires de Lima, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 77, pág. 307, “para que pudesse verificar-se a comunicação de bens entre marido e mulher era necessário que, por um momento ao menos, o casamento produzisse os seus efeitos jurídicos em vida de ambos os cônjuges”, o que não se verificou e “Desde que o casamento só começou a produzir, como tal, os seus efeitos depois da morte de um deles, a comunhão já não é juridicamente possível, porque nem existiu sociedade conjugal a que se aplicasse um regime de bens.

24 - Os bens partilhados e descritos no art. 14 da p.i., porque comprados e adquiridos apenas por II, eram e são bens próprios deste, como consta da partilha junta como doc. 10 da p.i., das certidões prediais juntas como docs. 11 a 14 da p.i. e dos factos provados.

25 - Ao casamento católico de 1938 celebrado entre II e HH, sem precedência de publicações, e transcrito apenas em 1997, quando ambos já tinham mais de 60 anos e após o óbito do cônjuge HH, aplica-se o regime imperativo da separação de bens, não havendo qualquer comunicabilidade de bens.

26 - Não obstante ter sido efectuada a transcrição do casamento, entendem os R.R. que a mesma não deveria ter sido feita, atenta a situação em questão nos autos e o facto de o § 2º do art. 2º do DL 30615 que dispõe que “não obsta à transcrição a morte de um ou de ambos os cônjuges” integrar o art. 2º que diz respeito aos casamentos concordatários, não havendo nenhum preceito que torne aplicável tal disposição aos casamentos pré-concordatários, regulados no art. 3º do DL 30615.

27 - No casamento pré-concordatário a transcrição funciona como o próprio casamento, ou seja, a transcrição é condição de validade do casamento (vale como casamento) e sendo a transcrição condição de validade do casamento (“a transcrição produz os mesmos efeitos do casamento civil”), a transcrição após o óbito de algum dos cônjuges significaria que haveria casamento entre mortos, o que é inconcebível.

28 - De qualquer modo, entendem os R.R. que mesmo que pudesse assistir razão aos A.A./recorrentes, a acção teria de improceder, pois que, o registo mesmo que nulo, enquanto a nulidade não for rectificada oficiosamente, ou reconhecida por sentença judicial, produz efeitos como se fosse válido, sendo assim, atendíveis os efeitos produzidos durante o período em que o registo existiu, ou seja, o cancelamento tem eficácia ex-nunc, ficando sempre ressalvados os efeitos anteriormente produzidos.

29 - Tendo a partilha sido celebrada com base no assento de casamento, do qual constava “casamento contraído sob o regime imperativo da separação de bens”, foi tal partilha bem efectuada, respeitando a lei e a forma do registo.

30 - Ainda que depois se viesse a alterar o assento de casamento, considerando-se nulo o regime de bens aí descrito, tal nulidade só teria efeitos ex-nunc, ficando ressalvados os efeitos anteriormente produzidos, carecendo, assim, os A.A. de razão.

31 - Mesmo que se entenda não ser aplicável o disposto no artigo 1720º do Cód. Civil, deveria ser aplicado o disposto no artigo 1717º do Cód. Civil que estipula o regime de bens supletivo no caso de falta de convenção antenupcial (comunhão de adquiridos).

32 - Não tendo os pais dos R.R. (II e HH) celebrado qualquer convenção antenupcial e considerando-se o casamento celebrado na data da transcrição (25/07/1997), o casamento poderia ser considerado celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos (caso não fosse considerado celebrado no regime imperativo da separação de bens ao abrigo do disposto no artigo 1720º nº 1 alíneas a) e b) do Cód. Civil), mas nunca no regime da comunhão geral de bens, como os A.A. pretendem.

33 - Tendo todos os bens (partilhados) sido adquiridos apenas por II antes da transcrição do casamento, ou seja, antes do casamento, sendo, assim, bens próprios do referido II, foi bem efectuada a partilha.

34 - De qualquer modo, sem prescindir e por cautela, os R.R. requerem a ampliação do objecto do recurso no tocante à questão da decisão da matéria de facto apreciada e julgada pela Relação, que considerou como não provados os pontos 17 (parte final), 18 e 19 que haviam sido dados como provados na 1ª instância.

35 - Entendem os recorridos que a alteração da matéria de facto efectuada pela Relação no douto acórdão recorrido não era permitida nem legalmente admissível porque tais factos encontram-se provados por documento autêntico e ainda por acordo e confissão ficta dos A.A.

36 - A prova da materialidade constante dos pontos 17 a 19 dos factos provados na sentença de 1ª instância, resulta da certidão junta pelos próprios A.A. como doc. 8 da petição inicial – registo nº 30…. de 25/8/1982 (certidão emitida pela Cúria Arquiepiscopal ….), documento autêntico relativo à justificação do matrimónio canónico de II e HH, no dia 28 de Maio de 1938.

37 - O recurso à justificação do matrimónio canónico fez-se pelo facto de tal casamento se encontrar omisso, ou seja, não constar de nenhum assento paroquial nem ter sido reduzido a escrito.

38 - E isto porque, à data, os casamentos católicos eram nulos e eram proibidos e punidos por lei e, por isso, também proibidas as publicações ou editais.

39 - Os factos dos nºs 17 a 19 dos factos provados da sentença de 1ª instância correspondem ao alegado nos arts. 14, 15 e 16 da contestação, matéria que não foi impugnada pelos A.A., antes sido aceite, conforme resulta dos nºs 20, 21 e 22 do articulado dos A.A. de 8/11/2017.

40 - Deste modo, salvo o devido respeito, estava vedado à Relação a alteração da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 17 a 19 dos factos provados constantes da decisão de 1ª instância, pois que tais factos estão cobertos por meio de prova com força vinculada como o são o acordo das partes e a confissão, instituídos respectivamente nos nºs 2 e 3 do artigo 574º do CPC.

41 - Por se tratar de factos plenamente provados por documento autêntico e por reconhecimento tácito ou ficto dos A.A., não podia, salvo melhor opinião, o Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação e dar como não provados com base em prova testemunhal, que in casu é inócua e ineficaz.

42 - Ao alterar a decisão da matéria de facto, dando como não provados os pontos 17 (parte final), 18 e 19 da decisão de 1ª instância (que devem ser considerados provados quer por documento autêntico quer por acordo e confissão ficta dos A.A.) a decisão da Relação violou regras adjectivas que lhe impediam a reapreciação de tal matéria de facto e nomeadamente o disposto nos artigos 371º do C.C. e nos artigos 574º, nº 2, 587º nº 1 e 607º nº 4 do CPC.

43 - Pelo que, devem ser considerados provados os factos que a Relação considerou não provados e que constam dos nºs 17 (parte final), 18 e 19 que no douto acórdão recorrido transitaram para os nºs 5 e 6 dos factos não provados.

44 - A decisão recorrida deve ser mantida independentemente de serem dados como provados ou não os factos reapreciados pelo Tribunal da Relação.

45 - Isto porque, o casamento católico pré-concordatário dos autos, ao ser transcrito em 25/07/1997 teria, como foi, de ser considerado celebrado no regime imperativo da separação de bens, ou caso assim se não entenda, no regime da comunhão de adquiridos, mas nunca no regime da comunhão geral de bens.

46 - Pelo que, constituindo os bens partilhados bens próprios de II, porque adquiridos antes da transcrição do casamento (25/07/1997), foi bem efectuada a partilha, nada havendo a censurar, devendo, assim, ser negado provimento ao recurso interposto.»

Termina, dizendo que deve manter-se a decisão recorrida.


Os AA. Vieram responder à ampliação do objecto do recurso, pugnando pela sua improcedência.


*


Considerando-se haver dupla conforme, remeteram-se os autos à Formação, que entendeu admitir o recurso.

*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões centrais a apreciar, in casu, as de saber se o acórdão recorrido enferma das apontadas nulidades e se, diversamente do decidido, se deve concluir que os bens submetidos à partilha referida nos autos fazem também parte da herança aberta por óbito de HH, mãe do A., por ter sido casada com II no regime da comunhão geral de bens, regime supletivo à altura (no ano de 1938) do casamento católico entre ambos celebrado.

Importará, ainda, caso tal se imponha, após análise da revista dos AA., verificar se deve ser alterada a matéria de facto, conforme defendem os Recorridos, que, para tanto, nas contra-alegações, ampliaram o objecto do recurso.



II


Deram-se, no acórdão recorrido, por provados e não provados os seguintes factos:

I. FACTOS PROVADOS

Da petição:

1. O autor marido é filho de HH, que também usava HH, e de pai incógnito;

2. Tendo nascido em 6 de fevereiro de 1932;

3. Posteriormente ao seu nascimento, a 28 de maio de 1938, a sua mãe HH casou catolicamente com II;

4. Com quem teve dois filhos, o réu CC e JJ, já falecida, e mãe dos réus EE e FF;

5. A HH faleceu em 27 de novembro de 1977;

6. No referido assento de óbito constava que a mesma havia falecido no estado de solteira;

7. Pois o referido casamento católico não se encontrava averbado na Conservatória do Registo Civil ......, tendo o ora autor procedido junto da Sé …. ao pedido de justificação do matrimónio canónico de sua mãe e de II;

8. O que veio a ser julgado procedente a 25.08.1982;

9. A 15.07.1997 o autor requereu à Conservatória do Registo Civil o averbamento do referido casamento, ficando a constar que aqueles celebraram “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”;

10. II faleceu em 1 de maio de 2011;

11. A 20.06.2014 os réus procederem à partilha entre si, através de procedimento simplificado de partilha e registos com o nº 87……, dos seguintes bens:

Verba nº 1: prédio rústico, composto pelo “Campo ............ e Leira ..............”, de cultura, ramada e oliveiras, com a área de 12.500 m2, a confrontar do norte e sul com caminho, do nascente com LL e do poente com herdeiros de MM, situado no Lugar ........... (..........), freguesia ……. (..........), concelho ......, descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob os n.ºs …44 e …46 (..........), e nela inscrito a favor do autor da herança pela apresentação quatro de 20-01-1965, seis de 29-01-1919 e oito de 14-02-1950, inscrito na matriz sob o artigo …42 que proveio do art. ….82 da matriz da freguesia ..... (..........) extinta, o qual proveio dos arts. …29 e …90 da antiga matriz, com o valor patrimonial de €1.184,81, a que atribuem igual valor;

Verba nº 2: prédio rústico, composto de lavradio e mato, com a área de 3.500 m2, sito no Lugar .............. (..........), freguesia.............. (..........), concelho ......, descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob o nº ……43, e nela inscrito a favor do autor da herança pela apresentação quatro de 06-10-1953, inscrito na matriz sob o art. …45, que proveio do art. …54 da matriz da freguesia …. (..........) extinta, que corresponde aos arts. …50 e …52 da antiga matriz, com o valor patrimonial de €259,78, a que atribuem igual valor;

Verba nº 3: ¾ indivisos do prédio urbano, que por alteração superveniente é agora composto de casa torre e térrea, para habitação, com a superfície coberta de 57 m2 e junto eirado de lavradio com 600 m2, sito no Lugar ......... (..........), freguesia ............. (..........), concelho ......, a confrontar de todos os lados com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob o nº ….45 (..........), e nela inscrito a favor do autor da herança pela apresentação sete de 14-02-1950, inscrito na matriz sob o art. …35, que corresponde ao art. ….75 da matriz da freguesia ..... (..........) extinta, com o valor patrimonial correspondente à fração de €12.930,00, a que atribuem igual valor;

Verba nº 4: prédio rústico composto de eucaliptal, denominado “Bouça ..........”, com a área de 3.500 m2, sito no Lugar .......... (..........), freguesia .............. (..........), concelho ......, descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob o nº …..42 (..........), e nela inscrito a favor do autor da herança pela apresentação três de 06-10-1953, quanto a um/oitavo e sem qualquer inscrição a favor, quanto aos restantes sete/oitavos, inscrito na matriz sob o art. ….02, que proveio do art. …61 da matriz da freguesia ..... (..........) extinta, que corresponde ao artigo 986 da antiga matriz, com o valor patrimonial de €118,59, a que atribuem igual valor.

12. E procederam junto da Conservatória do Registo Predial ao averbamento em seu nome dos referidos prédios;

13. Como na transcrição do assento de casamento, constava “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”, declararam os réus que os bens eram próprios daquele II;

14. Os aludidos bens foram adquiridos, na constância do matrimónio católico dos falecidos HH e II;

15. A 5 de dezembro de 2016 o autor marido reclamou, junto da Conservatória do Registo Civil ......, a retificação do aludido assento de casamento;

16. Retificação essa que foi ordenada e efetuada por averbamento em 19 de dezembro de 2016, passando a contar que aqueles celebraram “casamento católico sem convenção antenupcial”;


*


Da contestação:

17. II e HH celebraram casamento católico

no dia 28/05/1938 [após alteração introduzida pelo Tribunal da Relação, sendo que a anterior redacção era a seguinte: «II e HH celebraram casamento católico no dia 28/05/1938, sem processo preliminar de publicações»];

[…]

20. Por se encontrar omisso o assento de casamento católico, o autor marido requereu o seu suprimento, através de processo de justificação do matrimónio canónico, o que foi deferido por sentença do Tribunal Eclesiástico de 25 de agosto de 1982, que ordenou que fosse lavrado o assento no respetivo livro de matrimónios;

21. E com base no assento de casamento católico omisso e assim suprido, o autor marido requereu em 15/07/1997 a sua transcrição na Conservatória do Registo Civil de ......, transcrição que foi efetuada em 25 de julho de 1997;

22. O prédio da verba nº 1 foi adquirido, em parte por compra de II, no estado de casado com HH, a OO, PP, QQ e RR, por escritura de 28/10/1964, e outra parte por partilha por óbito de seu pai SS;

23. O prédio da verba nº 2 foi comprado por II, casado, a TT e mulher UU, por escritura de compra e venda de 20/06/1953;

24. O prédio da verba nº 3 foi comprado por II, casado, a VV e WW, por escritura de 6/02/1941;

25. O prédio da verba nº 4 foi comprado por II, casado, a XX e outros por escritura de 20/12/1952.


*


II. FACTOS NÃO PROVADOS

1. Em finais de 2016 foi o autor marido abordado pelos réus no sentido de partilharem ¼ indiviso do prédio urbano;

2. O que o autor recusou, por existirem outros bens comuns do casal;

3. Antigamente os bens eram inscritos no serviço de finanças e conservatória em nome do cônjuge varão;

4. Os bens referidos em 11. dos provados foram adquiridos em comum por HH e II.

5. O casamento católico não foi precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais;

6. Tal casamento não ficou a constar de qualquer assento ou registo paroquial, tendo sido celebrado oralmente.

[Os pontos 5 e 6 correspondem aos pontos 18 e 19 que constavam da matéria provada na sentença proferida em 1ª Instância e passaram, por decisão da Relação, a figurar, assim, nos factos não provados].



III



III.1.

 Ao AA. Recorrentes defendem que a decisão impugnada é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, c), do CPC, quer por contradição entre os fundamentos e a decisão quer por obscuridade.

Alegam que:

O Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, do que resultou ter sido dado como não provado que:

5. O casamento católico não foi precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais;

6. Tal casamento não ficou a constar de qualquer assento ou registo paroquial, tendo sido celebrado oralmente.

A 1ª Instância tinha baseado a sua decisão nessa matéria que agora o Tribunal da Relação considerou como não provada, pois concluiu que o regime de bens aplicável seria o da separação de bens, por ter sido o casamento celebrado sem precedência do processo de publicações.

Não tendo o Tribunal da Relação …… dado por provado que não houve processo preliminar de publicações, não existe fundamento para a aplicação do art.  1720º, nº 1, al a), do Código Civil. Considerou, no entanto, o acórdão recorrido que não havia motivo para a rectificação do averbamento no assento de casamento e que se deveria manter o regime da separação de bens, em vez de casamento católico sem convenção antenupcial, sem que, no entanto, tenha indicado qual o fundamento para tal,

Não há fundamento legal e factual para a aplicação do regime imperativo da separação de bens ao casamento transcrito, ocorrendo clara violação do dever de fundamentar as decisões previsto no art. 154.º do CPC

Verifica-se, assim, a oposição entre os fundamentos e a decisão.


Vejamos.

Há que referir, desde logo, que a violação do dever de fundamentar as decisões, a que os Recorrentes fazem menção, só redundaria em nulidade (prevista no art. 615º, nº 1, b), do CPC, e que aqui não é formalmente invocada, apenas se fazendo referência ao art. 150º do mesmo Código) se houvesse total falta de fundamentação – como sempre tem sido sublinhado pela jurisprudência e a doutrina – o que, no caso, não se verifica, pois a decisão recorrida está fundamentada, de facto e de direito.

No que concerne à contradição entre os fundamentos e a decisão, importa recordar os ensinamentos de José Alberto dos Reis no sentido de que uma tal nulidade ocorre quando «a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» (Código do Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1952, Vol. V., pág. 141), ou como refere Lebre de Freitas: «(…) se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão foi tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, a nulidade verifica-se» (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 333).


Não há que confundir a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão com o erro de subsunção dos factos ao direito (deles extraindo consequências jurídicas que não suportam).

No que concerne à obscuridade, trata-se de um vício que se prende com a ininteligibilidade da decisão, ocorrendo quando «não seja percetível qualquer sentido da parte decisória» (Lebre de Freitas, ibidem).

A propósito destes vícios, o Tribunal a quo referiu, em conferência, não assistir razão aos Recorrentes:

 «(…) dado que o acórdão afirma que se refere “no artigo 3º do referido Decreto-Lei nº 30.615, de 25/07/1940 que “os casamentos que tenham sido celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor deste diploma serão transcritos, nos termos dos artigos 11º e 12º, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil.”

Importa notar que a 5 de dezembro de 2016 o autor marido reclamou, junto da Conservatória do Registo Civil ......, a retificação do aludido assento de casamento, a qual foi ordenada e efetuada por averbamento em 19 de dezembro de 2016, passando a constar que aqueles celebraram “casamento católico sem convenção antenupcial”.

Ora, como muito bem afirmou a Mª Juíza na sentença recorrida, como a transcrição do casamento católico pré-concordatário não tem efeitos retroativos, o assento de casamento nº 467 foi bem lavrado a 25/07/1997, quando nele se fez constar “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”, tendo sido indevidamente deferida, salvo o devido respeito, a retificação de 19/12/2016.”

Face ao exposto resulta inexistir qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão ou qualquer obscuridade e, portanto, a invocada nulidade que, assim, improcede, antes se manifestando inconformismo dos recorrentes em face da decisão proferida que não pode fundamentar a referida invalidade


Podendo discordar-se ou não da decisão ou entender-se que, no que toca aos fundamentos aduzidos, outro pudesse ser o desenvolvimento ou completude, considera-se que estes não se mostram em desarmonia com o decidido, de modo a desembocar na nulidade do acórdão. Na verdade, apesar da alteração da matéria de facto, entendeu-se extrair da factualidade subsistente a conclusão a que se chegou. O problema é, assim, de subsunção dos factos ao direito, importando verificar se estes permitem tal conclusão (para a qual nunca se deixou de apontar na fundamentação), e não de contradição entre os fundamentos e a decisão.

Por outro lado, não se pode considerar que o acórdão, independentemente de algum reparo que se possa fazer no que concerne ao desenvolvimento da fundamentação, é ininteligível, por não ser perceptível qualquer sentido da parte decisória. As dúvidas levantadas pelos Recorrentes radicam, também aqui, na aplicação dos factos ao direito, ou seja, sobre se os factos permitem sustentar a decisão a que se chegou.

Não se verificam, pelo exposto, as invocadas nulidades.


III.2.

Defendem os Recorrentes, reportando-se ao casamento católico de II e HH (mãe do A.), celebrado que foi em 28/05/1938, que tendo sido «transcrito em 1997, tal casamento (que era proibido, nulo e inexistente por se tratar de um casamento pré-concordatário) passou a produzir efeitos como casamento civil com a transcrição, ou seja II e HH passaram a estar legalmente casados, tendo-o feito sem convenção antenupcial, ou seja sob regime da comunhão geral de bens, regime supletivo que vigorava à data da sua celebração». Daí que entendam que a correcção oficiosa efectuada no registo (passando da referência a casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens a casamento católico sem convenção antenupcial) é a ajustada.

Importa apreciar.

Está provado, na verdade, que II e HH celebraram casamento católico em 28/05/1938.

Conforme refere Mendonça Correia, no artigo “O matrimónio canónico-concordatário em Portugal”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 63, vol. I/II- Abril de 2003, consultável em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2003/ano-63-vol-i-ii-abr-2003/artigos-doutrinais/mendonca-correia-o-matrimonio-canonico-concordatario-em-portugal/:

«Até ao século XX, Portugal foi um Estado confessional católico. Saídas da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, a Lei de Separação de 20 de Abril de 1911 e a Constituição de 21 de Agosto do mesmo ano […] puseram formalmente termo à confessionalidade do Estado e representaram uma fractura na unidade da Fé até então existentes no nosso País. Os princípios da aconfessionalidade e da separação entre a Igreja e o Estado foram mantidos na Constituição de 1933 […]; e subsistem na actual Constituição […]).

Sem prejuízo de tais princípios, foi assinada com a Santa Sé, em 7 de Maio de 1940, uma importantíssima Concordata, que regulou ‘por mútuo acordo e de modo estável a situação jurídica da Igreja Católica em Portugal, para a paz e maior bem da Igreja e do Estado’».


Através da Concordata, assinada entre a Santa Sé e o Estado Português, em 07-05-1940, o Estado Português reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento seja transcrita nos competentes registos do estado civil (art. XXII).

Foi, na sequência, em 25-07-1940, publicado o Decreto-lei nº 30615, que, entre o mais, promulgou várias disposições relativas à celebração do casamento, prevendo nos arts. 1º a 3º o seguinte:

«Artigo 1.° O casamento poderá ser celebrado perante os funcionários do registo civil, com as condições e pela forma estabelecida na lei civil, ou perante os ministros da Igreja Católica, em harmonia com as leis canónicas.

Art. 2.° O casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produzirá todos os efeitos civis se o respectivo assento for transcrito no registo do estado civil.

§ 1.° Os efeitos produzem-se desde a data da celebra­ção se a transcrição for feita nos sete dias ulteriores. Não o sendo, os efeitos, relativamente a terceiros, contam-se a partir da transcrição.

§ 2.° Não obsta à transcrição a morte de um ou de ambos os cônjuges.

Art. 3.º Os casamentos que tenham sido celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor deste di­ploma serão transcritos, nos termos dos artigos 11.º e 12.°, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil.»


Conforme assinala Mendonça Correia, op. cit., p. 7, «diz-se «casamento católico pré-concordatário» o que tiver sido celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 30.615, de 25 de Julho de 1940», que esclarece, ainda, que (com destaque nosso, a negrito):

«A transcrição do respectivo assento é admitida desde que o casamento tenha sido celebrado apenas catolicamente; e produz os mesmos os efeitos do casamento civil, porém não retroactivos à data da celebração


Pires de Lima debruçou-se sobre as especificidades destes casamentos, no estudo intitulado “Casamentos católicos pré-concordatários”, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 77º (1945), nº 2786, pp. 257-261; nº 2787, pp. 273-276; nº 2788, pp. 290-294, e nº 2789, pp. 305-310.

Explica que:

«Dominado pelo espírito da Concor­data, o Estado reconheceu a conveniên­cia de regularizar todas as situações puramente concubinárias à face da lei, mas regulares à face da Igreja, por uma forma semelhante à que lhe foi im­posta pela Concordata em relação aos casamentos celebrados depois de 1 de agosto de 1940, isto é, permitindo a sua transcrição. (RLJ nº 2788, p. 291).


O problema está em saber quais os efeitos dessa transcrição, designadamente se são retroactivos à data da celebração.

É patente a diferença entre a redacção dos arts. 2º e 3º.

No art. 2º, que se refere ao casamento concordatário, ou seja, o celebrado após a Concordata, prescreve-se que o casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produzirá todos os efeitos civis se o respectivo assento for transcrito no registo do estado civil e tais efeitos produzem-se desde a data da celebra­ção se a transcrição for feita nos sete dias ulteriores. Não o sendo, os efeitos, relativamente a terceiros, contam-se a partir da transcrição.

No art. 3º, estabelece-se que os casamentos que tenham sido celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor deste di­ploma serão transcritos, nos termos dos artigos 11.º e 12.°, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil.


Relativamente aos “efeitos do casamento”, refere Pires de Lima:

- «Não deixamos de considerar, em prin­cípio, o casamento como celebrado na data em que o foi; simplesmente, ele só produz efeitos de casamento a partir da transcrição, e como se neste momento tivesse sido celebrado.»

(RLJ nº 2788, p. 292)

- «Por efeitos do casamento entendemos, naturalmente, os efeitos pessoais e patri­moniais entre os cônjuges, a legitimação dos filhos, as relações com terceiros, etc. Tudo o que diga respeito, porém, à for­mação do vínculo, como manifestação de vontade e seus vícios, forma, impedimen­tos (em princípio), jurisdição, etc, deve reportar-se, não ao momento da transcri­ção, mas ao da celebração.

É esta a síntese das soluções que dei­xamos enunciadas para trás.

E dela podemos tirar uma conclusão: é que, afinal, a transcrição dos casamen­tos pré-concordatários não apresenta uma natureza estruturalmente diferente da transcrição dos casamentos concordatários. Se esta funciona como conditio juris, também aquela. Somente os efeitos atri­buídos   ao   casamento   católico   diferem.

Num caso, esses efeitos, em princípio, produzem-se desde a celebração, e somente em relação a terceiros podem deixar de produzir-se se a transcrição não for feita nos prazos legais. No outro, e no domí­nio dos efeitos resultantes do casamento, tudo se passa como se este tivesse sido contraído no momento da transcrição.

(RLJ nº 2788, pp. 293-294, com destaque nosso).


Distingue, assim, Pires de Lima entre aquilo que respeita à formação do vínculo (reportado à data da celebração) e os efeitos do casamento, em que figuram os efeitos pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, tudo se passando, quanto a estes, como se o casamento tivesse sido contraído no momento da transcrição.

Ora, se os efeitos do casamento, maxime os que respeitam aos aspectos patrimoniais (regimes de bens) dos casamentos católicos pré-concordatários se verificam apenas após a transcrição, ou seja, sem efeitos retroactivos à data da celebração do casamento, há que concluir que, não existindo casamento, para efeitos patrimoniais, antes da transcrição, os bens adquiridos por II não se comunicaram a HH.

Os Recorrentes defendem que há retroactividade em relação ao casamento pré-concordatário, mas, salvo o devido respeito, tal não resulta demonstrado.

Pires de Lima explica, na esteira de Mário de Figueiredo, naquele estudo citado, que houve intenção por parte do legislador  em regularizar as situações, ilegais, ilibando os sacerdotes, que tinham intervindo em tais casamentos, de sanções. E considera, ainda, o seguinte (com destaque nosso, a negrito):

«O artigo[1] manda aplicar à transcrição destes casa­mentos, como vimos, o disposto nos arti­gos 11.° e 12.°, admitindo-o, consequente­mente, a requerimento de qualquer inte­ressado  e  do  Ministério  Público.  Ora isto significa que, não obstante o legisla­dor ter atribuído a essa transcrição os efeitos de um casamento civil, não deixou de considerar contraído o casamento no momento da sua celebração católica, pois dispensa, uma nova manifestação do con­sentimento dos nubentes. E não só a dispensa como admite a transcrição con­tra a própria vontade dos cônjuges, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público.

Cremos que fica, assim, afastada a consideração de que não pode admitir-se a celebração de um casamento por parte de uma pessoa falecida. O casamento já está celebrado; a lei limita-se a atribuir-lhe efeitos, mediante a transcrição, mas somente a partir dessa transcrição

(RJL nº 2787, p. 275)


No Ac. do STJ de 03-05-1974, Rel. Rodrigues Bastos, BMJ 237º, 242, considerou-se, relativamente a um casamento canónico celebrado em 17-07-1935, que:

«A essa data é indúbio que esse acto não podia constar, nem por inscrição, nem por averbamento, dos livros do registo civil; tal acto não era, numa palavra, registável.»

Esclarece-se, nesse aresto, que vigorava, então, a regra do casamento civil obrigatório, sistema que se veio a modificar com a Concordata assinada em 1940.

Diogo Leite de Campos refere, em Lições de Direito de Família e das Sucessões, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, p. 175, que:

 «(…) os casamentos católicos celebrados anteriormente à Concordata continuavam a não estar abrangidos por esta. O Estado Português reconhecia efeitos civis só aos casamentos civis celebrados anteriormente à celebração da Concordata: os casamentos católicos celebrados antes da Concordata continuavam desprovidos de efeitos civis.»


Pires de Lima e A. Varela, no Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 2010, p. 233, em anotação ao nº 2 do art. 1657º (quando ainda vigorava, pois foi revogado pelo Decreto-lei nº 324/2007, de 28-09), em que se previa que a morte de um dos cônjuges não obstava, em caso algum, à transcrição, observam o seguinte (com destaques nossos):

«Dúvidas poderia suscitá-las, em tal hipótese, a transcrição dos casa­mentos católicos pré-concordatários, à qual o artigo 3.° do Decreto-Lei 30615 atribuía os mesmos efeitos do casamento civil.

Enquanto no casamento concordatário, dizem os autores, o casamento se considera contraído no momento da sua celebração católica, funcionando a sua transcrição como condição legal da sua eficácia, neste, a transcrição vale como se fosse o próprio casamento. (Pires de Lima, Casa­mentes católicos pré-concordatários, na Rev. Leg. Jur., ano 77.º, pág. 274).»


Afirmam, em seguida, não existir «tal obstáculo no articulado do Código Civil Vigente em relação aos casamentos católicos concordatários. Quanto a estes, pode continuar a afirmar-se que o casamento se considera contraído no momento culminante da celebração e não da transcrição.»

Reconhecem, assim, a diferença entre casamento pré-concordatário e concordatário, associando este ao texto do Código Civil e reafirmando a tese de Pires de Lima no sentido de a transcrição do casamento pré-concordatário valer como se fosse o próprio casamento.

Os efeitos civis, relativamente aos casamentos católicos anteriores à Concordata, seriam assegurados, nos termos previstos no citado art. 3º do Decreto-Lei nº 30615, de 25-07-1940, através da transcrição, a partir dela se produzindo tais efeitos, sem eficácia retroactiva (neste sentido, veja-se, ainda, para além dos autores referenciados, Álvaro Sampaio, que cita o dito estudo de Pires de Lima no Código do Registo Civil Anotado, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 329).

 Não se tendo lançado mão da transcrição prevista no referido art. 3º – consagrada dois anos depois do casamento –, surgiu a menção de “solteira” no assento de óbito de HH (falecida em 27-11-1977).

A transcrição só teve lugar, por iniciativa do Autor, em 15-07-1997. Uma vez que os efeitos patrimoniais se devem aferir por esta data, como se o casamento nela se tivesse celebrado, não se retroagindo os efeitos à data da celebração do casamento católico (28-05-1938), entende-se que, como já se deixou adiantado, os bens adquiridos por II, em 1964, 1953, 1941 e 1952 (pontos 22 a 25) não se comunicaram a HH.

No acórdão recorrido, considerou-se que:

«Ora, como muito bem afirmou a Mª Juíza na sentença recorrida, como a transcrição do casamento católico pré-concordatário não tem efeitos retroativos, o assento de casamento nº 467 foi bem lavrado a 25/07/1997, quando nele se fez constar “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”, tendo sido indevidamente deferida, salvo o devido respeito, a retificação de 19/12/2016.

Tendo os bens partilhados sido adquiridos na constância do aludido casamento católico pré-concordatário, são bens próprios do falecido II, porque adquiridos quando se encontrava casado apenas catolicamente, sem ser transcrito, isto é, sem produzir efeitos, como se viu, tratando-se de um averbamento irregular e ilegal, na medida em que não foi tido em consideração o regime legal aplicável, para ser averbada aquela retificação.»


O Tribunal a quo entendeu, ainda, que:

«Quanto à objeção levantada pelos apelantes, segundo os quais a força probatória material e formal do registo civil só pode ser colocada em causa através de uma ação de registo ou de estado, a questão sempre se mostraria deslocada, uma vez que aquilo que está em causa não é propriamente a transcrição do casamento, embora sem efeitos práticos, como se viu, mas a retificação, que sendo irregular e ilegal, porque não conforme ao regime legal e sendo da responsabilidade dos serviços, que a efetuaram, é obrigatória a promoção oficiosa da sua retificação, nos termos do disposto no artigo 92º nº 2 do Código de Registo Civil.»


Os Recorrentes referem que, apesar de a transcrição ter sido feita em 1997, o regime de casamento a aplicar é o da data em que o casamento foi celebrado, 1938, sendo por isso, no caso, o regime de casamento o da comunhão geral de bens (regime supletivo).

Acrescentam que, para que o Tribunal da Relação pudesse concluir que o averbamento realizado em 19.12.2016 foi indevidamente efectuado, seria necessário suprir os eventuais vícios de que o registo possa eventualmente sofrer, o que não sucedeu, e, ao colocar-se em causa o registo civil sem recorrer à competente acção de registo ou estado, incorreu-se na violação do princípio da legalidade e dos princípios da autenticidade, veracidade ou fidelidade do registo.

Vejamos.

No acórdão recorrido, teve-se, por um lado, em conta o facto de os bens que foram partilhados terem sido adquiridos por II, quando este e HH estavam unidos apenas pelo casamento católico, inexistindo, então (antes da transcrição que veio a ser efectuada, sem efeitos retroactivos),  uma sociedade conjugal a que se aplicasse um regime de bens (tal como observa Pires de Lima, relativamente a um exemplo que dá, no aludido estudo, in  RLJ, nº 2789, p. 307). Apenas após a transcrição o casamento produziu efeitos em termos patrimoniais, numa altura em que em que HH já havia falecido.

Conforme, já se referiu, não se concorda com a tese dos AA. no sentido de que a transcrição produziu efeitos retroactivos e o averbamento que por eles é invocado (cujo teor é “casamento católico sem convenção antenupcial”) em nada interfere com essa conclusão, que resulta da lei (na interpretação que fazemos).

Os Recorrentes consideram que não era possível o Tribunal a quo considerar o averbamento de 2016 indevidamente efectuado, pois, para se colocar em causa o registo civil teria de haver uma acção de registo ou de estado (art. 3º, nºs 1 e 2 do C. Reg. Civil).

Na verdade, o Tribunal a quo concordou com a ponderação, realizada na sentença, de que era correcto ter-se feito constar do assento “casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens”. Ora, embora não explicitado no acórdão, tal seria possível concluir, como é referido pelos Recorridos nas contra-alegações – mesmo não se provando (como decidiu a Relação, alterando a matéria de facto) que o casamento católico não foi precedido de qualquer publicação, proclamação ou editais (e sem discutir aqui esse aspecto, alvo de ampliação do objecto do recurso), pois, de acordo com a al. b) do art. 1720º, é contraído sob o regime imperativo da separação de bens o casamento celebrado por quem tenha mais de 60 anos de idade. Sucede que, em 15-07-1997, data da transcrição, ou seja, a que releva para o desencadear dos efeitos patrimoniais do casamento, II tinha mais de 60 anos (como se retira, desde logo, de, em ..-05-2011, data do seu falecimento, ter 95 anos – cf. assento de óbito junto com a petição inicial), o mesmo se dizendo em relação a HH, se viva fosse naquela data (faleceu em 1977, com 70 anos, conforme assento de óbito também junto com a petição).

O Tribunal da Relação não ignorou o disposto no art. 3º do C. Reg. Civil. O que assinalou foi que o que estava em causa não era propriamente a transcrição do casamento, embora sem efeitos práticos, mas a rectificação efectuada, que considerou irregular e ilegal, referindo ainda que, sendo da responsabilidade dos serviços que a efectuaram, se assume como obrigatória a promoção oficiosa daquela, nos termos do disposto no artigo 92º nº 2 do Código de Registo Civil.

Verifica-se, na verdade, que, quando foi lavrado o assento de casamento, em 1997, dele ficou a constar “casamento católico sob o regime da separação de bens” (ponto 9) e que, em 2016, o A. requereu, junto da Conservatória do Registo Civil, a rectificação do assento, passando a dele constar «casamento católico sem convenção antenupcial”. Ora, o A. logrou a alteração do assento, no que concerne ao regime de bens, não por via de uma acção de registo, com o inerente exercício do contraditório – meio que os próprios Recorrentes defendem ser o adequado, citando, a propósito, o Ac. do STJ de 19-04-2001, relatado por Miranda Gusmão, Proc. nº 01A398, publicado em www.dgsi.pt –, mas de um simples requerimento. E é sobre a rectificação desencadeada (tão-só) por este requerimento que o Tribunal a quo se pronunciou, considerando que, pela mesma forma utilizada (e que a Conservatória teve por suficiente), haveria razões para, oficiosamente, por ser irregular e ilegal, proceder-se à rectificação (reversão) daquela, nos termos do art. 92º, nº 2, do CRC.

Há que referir que partilha que os AA. pretendem que se declare nula foi realizada em 2014, antes dessa rectificação, que teve lugar em 2016, ou seja, numa altura em que o que constava do assento de casamento era a menção ao regime da separação de bens e daí que, como se provou, tenham os RR. declarado que os bens eram próprios de II (ponto 13 dos factos provados), considerando, ademais, o teor das escrituras também mencionadas na matéria de facto.

Entende-se que, de qualquer modo, o problema é, desde logo, resolvido a montante, tendo em atenção que foi II quem adquiriu os bens, numa altura em que não estavam reunidas as condições legais para se entender existente um regime de bens, pois apenas a transcrição, já depois da morte de HH e sem efeitos retroactivos, dotou o casamento dos efeitos patrimoniais, como se, para esse efeito, ele tivesse sido celebrado nesse momento. Não se demonstra, assim, a tese dos AA. no sentido de que o registo do casamento pré-concordatário em apreço teve como consequência a aplicação do regime da comunhão geral de bens, regime supletivo previsto no Código Civil anterior. E nem mesmo o regime da comunhão de adquiridos (regime supletivo actual) facultaria a comunicação dos bens a HH, pelas sobreditas razões.


Improcede a revista.


Os Recorridos ampliaram, “à cautela”, o objecto do recurso, defendendo a alteração da matéria de facto no que tange aos pontos 17 a 19.

Não tendo sido acolhidos os argumentos dos Recorrentes, entende-se que não há que apreciar a ampliação do objecto do recurso (neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 149).



*


Sumário (da responsabilidade do relator):

1. Através da Concordata, assinada entre a Santa Sé e o Estado Português, em 07-05-1940, o Estado Português reconheceu efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento fosse transcrita nos competentes registos do estado civil.

2. Foi, na sequência, em 25-07-1940, publicado o Decreto-lei nº 30615, que, entre o mais, promulgou várias disposições relativas à celebração do casamento, estabelecendo, no art. 2º , designadamente, que o casamento celebrado em conformidade com as leis canónicas produziria todos os efeitos civis se o respectivo assento fosse transcrito no registo do estado civil, produzindo-se os efeitos desde a data da celebra­ção, se a transcrição fosse feita nos sete dias ulteriores, e, no art. 3º, que  os casamentos celebrados só canonicamente antes da entrada em vigor desse di­ploma seriam transcritos, nos termos dos artigos 11.º e 12.°, produzindo neste caso a transcrição os mesmos efeitos do casamento civil.

3. Assim, enquanto que o casamento concordatário se considera contraído no momento da celebração católica, funcionando a sua transcrição como condição legal da sua eficácia, no casamento pré-concordatário (como é o caso de um casamento celebrado em 1938), a transcrição vale, para efeitos patrimoniais (maxime, os que se prendem com a definição dos regimes de bens) como se fosse o próprio casamento, não se retroagindo esses efeitos à data da celebração, com as consequências daí resultantes quanto a saber se os bens adquiridos apenas por um dos cônjuges se comunicam ao outro e integram a respectiva herança.



IV


Pelo que ficou exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se a decisão recorrida.


Custas pelos Recorrentes.


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Lisboa, 17-11-2021


Tibério Nunes da Silva (relator)


Maria dos Prazeres Beleza


Maria de Fátima Gomes


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[1] Reporta-se, obviamente, ao art. 3º do Decreto-lei nº 30615.