Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ACÁCIO DAS NEVES | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REGIME APLICÁVEL ADMISSIBILIDADE DE RECURSO CONSTITUCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/29/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO | ||
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Sumário : | Não é admissível revista do acórdão da Relação que confirmou a decisão da 1ª instância que indeferiu a pretensão da autora recorrente de que fosse lavrada nos autos uma cota a assinalar a data exata em que foi descarregada no "citius" a ata da audiência, uma vez que incidiu sobre uma mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual, enquadrável na previsão nº 2 do artigo 671º do CPC – disposição esta que não padece de inconstitucionalidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista nº 1387/17.1T8GRD.C2.S1
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
No âmbito da ação declarativa comum, intentada por AA (entretanto falecido) e mulher BB contra CC(pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 16.000,00 a cada um dos autores e numa sanção pecuniária compulsória de € 2.000,00 pelas práticas equivalentes, com fundamento em alegadas expressões injuriosas e ameaçadoras do réu), após a realização da audiência final em 24.12.2018: Vieram os autores, por requerimento enviado a 28 de janeiro, requerer que se elaborasse imediatamente ata da audiência final para “poder responder com toda a serenidade à suspeita e labéu de litigância de má-fé que lhes foi lançada pelo tribunal” e, por requerimento de 7 de fevereiro de 2019, vieram requerer que, tendo a ata da audiência de 24.01.2019 sido colocada no Citius só a 06 de fevereiro de 2019, e não lhe tendo sido certificada qualquer cota “que referisse o anacronismo, pois a ata figura no cititus como tendo sido descarregada no próprio dia, requer, que lhe seja aditada uma quota no sentido acima referido”.
Incidindo sobre tal requerimento, e em simultâneo com a prolação da sentença, (na qual a ação foi julgada improcedente, sendo o réu absolvido do pedido), foi proferido o seguinte despacho: “Requer ainda a A. que lhe seja “aditada uma cota” no sentido de um alegado anacronismo da ata que só foi colocada a 6/02/2019 mas aparece com a data do julgamento. Com todo o respeito, não se entende o que pretende a A. e para que finalidade. A ata de julgamento tem a data da realização do mesmo, independentemente da data em que a Sra Funcionária a pôde elaborar e da que foi analisada e assinada pela Magistrada, o que nem sempre é possível, como não foi, no próprio dia, devido ao demais serviço do tribunal. De todo o modo, qualquer prazo para impugnar as decisões proferidas na audiência contam-se da mesma, onde a A. estava representada, e não da data em que a mesma ficou disponível. Assim, é irrelevante a pretensão deduzida para os interesses da A. Pelo exposto, indefere-se o requerido. Custas do incidente pela A. que se fixa em 2 Ucs, sem prejuízo do apoio judiciário - art.º 7º do RCP”.
Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação, no qual formulou as seguintes conclusões: I. As apelações pendentes, no desígnio da recorrente, prosseguirão para acórdão. II. A cota que falta no processado a assinalar a data exata em que foi descarregada no "citius" a ata da Audiência, é elemento essencial, visto nomeadamente o disposto no art.º 253.° do CPC. III. A Audiência é nula, por não ter sido praticado ato essencial à boa e justa decisão da causa, em infração ao disposto no art.º 195.°/1 do CPC. IV. Com efeito, estando documentada a impossibilidade justificada da presença da recorrente na Audiência, mas capaz de depor, podia e devia ser utilizado meio adequado para lhe tomar as declarações (deslocação do Tribunal ou via telefone). V. Isso mesmo prescrevem os art.°s 457.°/1/2 e 520.°/1/2 do CPC, que foram . infringidos. VI. Enquanto é contrário à regra de terceiro imparcial do juiz pressupor que um "depoimento" não prestado seja irrelevante para o julgamento da matéria de facto. VII. Nula a Audiência, nula a sentença recorrida, condicionada in totum pelo vício assinalado. VIII. Assim, a sentença recorrida deve ser revogada, para que a Audiência de Discussão e Julgamento venha a ser repetida.
Tal recurso veio a ser julgado improcedente pela Relação de Coimbra que, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou a decisão recorrida (a Relação considerou inexistir qualquer nulidade e que, ainda que integrasse uma nulidade processual, a apreciação de tal questão em sede de recurso, sempre se encontraria dependente da sua arguição prévia junto do tribunal recorrido, uma vez o âmbito de ação do tribunal de recurso se circunscreve à reapreciação de questões julgadas na 1ª instância).
Inconformada, interpôs a autora recurso de revista excecional, com referência às als. a) e b) do nº 1 do artigo 672º do CPC – recurso esse que foi admitido pelo respetivo Relator da Relação, que remeteu para o STJ a verificação dos invocados pressupostos da revista excecional.
Subidos os autos e convidadas as partes, pelo ora Relator, a tomar posição sobre a questão da inadmissibilidade da revista à luz do disposto no nº 2 do artigo 671º do CPC, apenas a autora recorrente se veio pronunciar sobre tal questão, tomando posição no sentido de as decisões interlocutórias sobre declaração ou não de nulidades ocorridas antes da decisão final não caberem na proibição do nº 2 do artigo 671º do CPC.
Seguidamente foi, pelo Relator, proferido despacho de não admissão da revista, nos seguintes termos: “Estabelecendo-se no nº 1 do artigo 671º do CPC o princípio da admissibilidade da revista relativamente aos acórdãos da Relação que conheçam do mérito da causa ou que ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, estabelecendo-se por sua vez no nº 2 do mesmo artigo, e por contraposição, que os acórdãos da Relação “que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista” na situações referidas nas suas alíneas a) e b) – situações estas que não estão ora em causa, nem sequer foram invocadas. O acórdão da Relação objeto da revista (excecional) em questão incide sobre uma decisão da 1ª instância que conheceu (indeferindo-a) de uma mera nulidade processual invocada pela autora ora recorrente (que não de uma nulidade da sentença). Tal acórdão incidiu assim, não sobre decisão que conhecesse do mérito da causa ou que tenha posto termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, mas sim sobre uma mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual, razão pela qual é manifesto estarmos perante uma situação enquadrável na previsão do corpo do nº 2 do artigo 672º do CPC. Assim, não sendo a revista admissível, nem sequer se coloca questão da sua admissibilidade como revista excecional, a qual pressupõe que a revista normal apenas não poderia ser admitida por haver dupla conforme (nos termos e para os efeitos do nº 3 do mesmo artigo). Em face do exposto, impõe-se rejeitar a revista, seja como revista normal, seja como revista excecional. Termos em que não se admite a revista. Custas pela recorrente. Notifique”.
Inconformada, veio a autora recorrente reclamar para a conferência, dizendo o seguinte: “1. A Revista (Excecional) que interpôs foi rejeitada porque o acórdão da Relação impugnado incidiu “não sobre decisão que conhecesse do mérito da causa ou que tenha posto termo ao processo, absolvendo da instância o R. ou algum dos RR. quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, mas sim sobre uma mera decisão interlocutória, de cariz processual”. 2. Prosseguiu o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator: “razão pela qual é manifesto estarmos perante uma situação prevista no corpo do n.º 2 do art.º 672.º do CPC”. 3. Logo considerou, pois, que a Revista Excecional não era admissível, por nem sequer ser admissível a simples Revista, impedida por dupla conforme. 4. Para além da dúvida (relevante) de se saber, quanto a um despacho sobre nulidades, acaso se trate de uma mera decisão sobre a tramitação do processo (já que a nulidade excede o sentido da mera regulação da lide), certo é que a recorrente levantou um problema principal, que ultrapassou o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator. 5. Na verdade, tratou-se na apelação da sentença de 1.ª Instância, de arguir uma nulidade (ou inexistência jurídica) por infração de dispositivo constitucional de aplicação direta e imediata. 6. Ora, este sistema que decorre do art.º 18.º/1 da CRP não pode ser tido como de mera regulamentação processual, mas sim como campo problemático dos direitos fundamentais. 7. Muito menos têm a qualidade de incidentes de processo estes casos que suscitam uma automática aplicação do direito constitucional. 8. Nesta direção, portanto, falece qualquer legitimidade e legalidade à consequência argumentativa do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator. 9. Em suma, “o acórdão da Relação objeto da Revista (Excecional) em questão [não] incide sobre uma decisão de 1.ª Instância que conheceu (indeferindo-a) de uma mera nulidade processual invocada pela A., ora recorrente (que não de uma nulidade da sentença)”. 10. O que, com efeito, está em causa é não ter sido praticado em Audiência ato essencial à boa e justa decisão da causa, estando documentada a impossibilidade justificada da presença da recorrente, mas capaz de depor: podia e devia ter sido utilizado meio adequado para lhe tomar as declarações (deslocação do tribunal ou via telefone). 11. Ao mesmo tempo, alegou a recorrente que “é contrário à regra de terceiro imparcial do juiz pressupor que um depoimento não prestado seja irrelevante para o julgamento da matéria de facto. 12. Porém, neste caso, a Mma. Juíza de 1.ª Instância assim decidiu, com a consequência jurídica incontornável da nulidade da Audiência. 13. E nula a Audiência, nula a sentença recorrida, condicionada in totum pelo vício assinalado. 14. Agora, no foco desta nulidade da Audiência e da sentença, está necessariamente uma infração não da tábua dos trabalhos de julgamento, mas do sistema constitucional do processo civil como direito fundamental. 15. É que os art.ºs 18.º/1 e 20.º/4 da CRP (processo equitativo, como direito fundamental de aplicação imediata) impõem uma alteração qualitativa da “mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual”. 16. Assim, não é aplicável a este caso o travão do art.º 672.º/2/3 do CPC. 17. Vossas Excelência, reformarão pois a decisão singular, no sentido da admissibilidade da Revista Excecional interposta pela A..
Não foi apresentada resposta.
Cumpre decidir:
Antes de mais, cumpre explicitar e corrigir o que no despacho do Relator objeto da presente reclamação se consignou, no sentido de que “é manifesto estarmos perante uma situação enquadrável na previsão do corpo do nº 2 do artigo 672º do CPC.” É manifesto que a referência ao “corpo do nº 2 do artigo 672º do CPC” não passou de um mero lapso, já que o que se pretendia era fazer referência ao “corpo do nº 2 do artigo 671º do CPC” – no qual se estabelece que “os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias sobre a relação processual só podem ser objeto de revista” nas situações elencadas nas alíneas a) e b) –alíneas estas referentes a situações que não estão minimamente em causa nos autos (nem sequer foram invocadas). Com efeito, e após se fazer referência ao nº 1 deste artigo 671º, explicitou-se no despacho reclamado que “Tal acórdão incidiu assim, não sobre decisão que conhecesse do mérito da causa ou que tenha posto termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, mas sim sobre uma mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual”.
No acórdão recorrido, a Relação limitou-se a confirmar a decisão da 1ª instância que indeferiu a pretensão da autora recorrente, ora reclamante, de que fosse lavrada nos autos uma cota a assinalar a data exata em que foi descarregada no "citius" a ata da Audiência. É assim manifesto que o acórdão recorrido, se enquadra, não na previsão do nº 1 mas sim na previsão do nº 2 do artigo 671º do CPC, na medida em que, efetivamente, conforme bem se salienta no despacho reclamado “incidiu assim, não sobre decisão que conhecesse do mérito da causa ou que tenha posto termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, mas sim sobre uma mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual”.
Trata-se, aliás de uma qualificação e enquadramento legal que em bom rigor não só não é posto em causa, como até é aceite pela reclamante quando no requerimento de reclamação para a conferência diz que “os art.ºs 18.º/1 e 20.º/4 da CRP (processo equitativo, como direito fundamental de aplicação imediata) impõem uma alteração qualitativa da “mera decisão interlocutória, de cariz meramente processual”.
E, relativamente à questão assim suscitada relativa à admissibilidade da revista à luz daqueles preceitos constitucionais, é manifesta a falta de razão da reclamante. Para além de se mostrar de todo irrelevante para os efeitos em questão o que se dispõe no nº 1 do artigo 18º da CRP (“Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”), a norma constante do corpo do nº 2 do artigo 671º do CPC, aplicável ao caso dos autos, conforme supra se expôs – da qual resulta a inadmissibilidade da revista, nem sequer coloca em causa o princípio constitucional do direito a um processo equitativo estabelecido no invocado nº 4 do artigo 20º da CRP (“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”). Com efeito, a pretensão da autora recorrente em causa nos autos (objeto de indeferimento) foi apreciada em duas instâncias (na 1ª instância e numa instância de recurso), sendo que, conforme bem se considerou no acórdão deste Tribunal de 26.11.2019 (proc. nº 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, in www.dgsi.pt) “A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem assumindo que a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais, manifestamente inexistente nas normas do Código de Processo Civil relativas aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista.” Em suma, uma vez que a situação dos autos se enquadra na previsão do corpo do nº 2 do artigo 671º do CPC – disposição esta que não padece de inconstitucionalidade, a revista não é admissível – razão pela qual se impõe o indeferimento da reclamação e a confirmação do despacho do Relator que não admitiu a revista.
Termos em que se acorda em indeferir a reclamação e em manter o despacho do Relator que não admitiu a revista.
Custas pela reclamante com taxa de justiça de duas UCs Lx., 29.09.2020 (Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de maio, o Relator, que assina eletronicamente, declara que os Exmos. Conselheiros Adjuntos, abaixo indicados, têm voto de conformidade e não assinam o presente acórdão por não o poderem fazer pelo facto de a sessão, dada atual situação pandémica, ter sido realizada por videoconferência).
Acácio das Neves (Relator) Fernando Samões (1º Adjunto) Maria João Vaz Tomé (2ª Adjunta). |