Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/17.2F1PDL-L.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
LIBERDADE CONDICIONAL
PRAZO JUDICIAL
ILEGALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A providência de Habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade.
II - Estando o requerente em cumprimento de uma pena de prisão de 7 (sete) anos, transitada em julgado e aplicada a factos tipificados pela lei como ilícito criminal, por entidade competente, conclui-se que o período de reclusão ainda não se completou. A exceção que importa respeitar é os cinco sextos da duração da reclusão, pois tratando-se de condenação em pena de prisão superior a 6 (seis) anos, esse é o momento da libertação condicional obrigatória imposta pelo art. 61.º, n.º 4, do CP, e que ainda não foi atingido.
III- A circunstância de terem decorrido os dois terços da pena aplicada, embora imponha uma decisão tempestiva por parte do TEP, no sentido de verificar se estão ou não cumpridos os pressupostos de concessão da liberdade condicional, não permite que se conclua, sem mais, pela ilegalidade da manutenção da sua prisão, nos termos previstos pelo art. 222.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 1471/17....

Processo n.º 19/17.2F1PDL S1

Habeas Corpus

Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. AA veio requerer nos processos acima identificados a providência de habeas corpus alegando o seguinte (transcrição):
«1 – O peticionário foi preso à ordem do processo 19/17.2F1PDL em 23/08/2017 sendo determinado no despacho de homologação da pena que o meio da mesma ocorria em 23/02/2021 e os dois terços da pena em 23/04/2022.
2 – Por despacho judicial de 17/03/2021 proferido nos autos de liberdade condicional à margem supra referenciados, foi decidido sobrestar o conhecimento da liberdade condicional do recluso ora peticionário em virtude da pendência dos processos nºs 2429/16...., 1912/20.... e 1229/18.... junto da Procuradoria da República da Comarca ... e respectivo DIAP. Fundamentou o TEP ... essa decisão num entendimento do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura proferido em 03/11/2015, relativamente ao proc. Nº 727/13.7TXPRT-A, “a pendência de um processo crime justifica, in mellius, aconselha a indagação do seu desfecho para melhor sustentar o imprescindível juízo de prognose acerca do recluso”.
3 – Quanto aos processos pendentes, o 2429/16.... adotou o nº 757/16.... e encontra-se em fase de instrução, o 1912/20.... derivado de queixa de recluso encontra-se em inquérito, o 1229/18.... resultado de queixa de recluso foi arquivado definitivamente pelo Tribunal da Relação ... e outro que entretanto surgiu, também proveniente de participação de recluso, com o Nº 90/21.... também foi arquivado, encontrando-se os dois primeiros atrás indicados pendentes.
4 – Refere-se ainda que em nenhum desses processos foi decretada prisão preventiva, nem o podia ser, por inadmissível, nos termos do disposto no artº 202º, nº 1, alínea a), do CPP, sendo o estatuto coativo unicamente o TIR.
5 – Verifica-se que o TEP – ... baseou a decisão de sobrestar a apreciação da liberdade condicional, num parecer do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, órgão que tutela a classe dos Srs. Juízes, sem competência para legislar, competência essa exclusiva da Assembleia da República e sem poder também para efetuar jurisprudência, poder esse reservado aos tribunais ad quem, os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça.
6 – Dispõe o artigo 178º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, (CEPMPL – Lei 115/2009), que o juiz pode suspender a decisão, por um período não superior a três meses, tendo em vista a verificação de determinadas circunstâncias ou condições ou a elaboração do plano de reinserção social.
7 – Tendo em conta a data desse despacho de sobrestação, 17/03/2021, verifica-se que o prazo máximo legal de suspensão expirou a 17/06/2021 e até a presente data não foi efetuada a apreciação da liberdade condicional, pelo que a suspensão mantém-se ilegalmente.
8 – Deste modo, violam-se os direitos do recluso, designadamente o artigo 61º, do Código Penal (CP), conjugado com o artigo 27º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
9 – Na apreciação da liberdade condicional só há duas hipóteses, ou é concedida verificando-se os requisitos legais e o consentimento do recluso, ou é recusada e, lavrada em despacho que fundamente a decisão de indeferimento.
10 – Não havendo apreciação da liberdade condicional por referência ao 1/2 da pena, não existe nenhum despacho de indeferimento que legitime a prisão e, que a mesma há-de prosseguir, tornando-a ilegal desde 17/06/2021, data do término do prazo máximo de suspensão originado pelo despacho proferido a 17/03/2021, artº 146, nº 1, do CEPML.
11 – É facto que o peticionário também já ultrapassou o marco de 2/3 da pena em 23/04/2022, marco esse onde já nem sequer se põem as necessidades de prevenção geral, conforme vertido no artigo 61º, nº 3, do CP e a sua apreciação da liberdade condicional continua por efectuar, reconfirmando a ilegalidade da prisão.
12 – Não há nenhum dispositivo legal no direito penal, processual penal e de execução de penas que preveja a não apreciação da concessão da liberdade condicional nos marcos previstos no artº 61º, do CP, em virtude da existência de processos crime pendentes. Mesmo havendo decretação de prisão preventiva a, apreciação da concessão da liberdade condicional é obrigatória e tem de ser efetuada, não podendo, como é óbvio, é ser concedida, por a prisão preventiva se sobrepor ao interesse da concessão da liberdade condicional.
13 – O número 1 do artigo 31º, da CRP, sob o título de “Habeas Corpus”, prescreve que “Haverá Habeas Corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”.
14 – A providência de habeas corpus é um dispositivo que visa assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido (vejam-se os artigos 17º, nº 1 e 31º, nº 1, da CRP), com o objetivo de pôr termo às situações de prisão ilegal.
15 – Assim, in casu, a prisão é ilegal e está duplamente fundamentada, porquanto;
15.1 - Verifica-se que não existe nenhum dispositivo jurídico onde conste que processo crime pendente obsta na apreciação da concessão da liberdade condicional, fundamentando-se a presente petição de habeas corpus no disposto no artigo 222º, nº 2, alínea b), do CPP, por a prisão, “ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite”.
15.2 - Constata-se ainda que foram violadas normas legais, nomeadamente foi excedido o prazo legal da suspensão da decisão, artigo 178º, do CEPMPL, (Lei 115/2009); não foi respeitado o marco de 1/2 da pena para a apreciação da liberdade condicional, artigo 61º, nº 2, nem o dos 2/3, artigo 61º, nº 3, ambos do Código Penal, fundamentando-se aqui a petição de habeas corpus no artigo 222º, nº 2, alínea c), do CPP, “manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.
16 – A sobrestação/suspensão da apreciação da concessão da liberdade condicional, (prazo legal à muito expirado) com base no facto da situação jurídico-processual do recluso estar ainda indefinida, viola claramente o princípio da presunção de inocência e é extensível também à própria concessão da liberdade condicional.
17 – No caso em apreço importa referir desde logo que o facto do peticionário não ter a situação processual-criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, nem se pode presumir que nesses processos será condenado, sendo o mais provável o arquivamento dos mesmos.
18 – Pela factualidade descrita e razões de direito apontadas, não restam dúvidas que a prisão não se encontra legitimada e o recluso peticionário mantém-se preso ilegalmente.
19 – Pelo explanado, deverá a presente petição da providência de habeas corpus ser admitida e considerada procedente, libertando-se o peticionário, suprindo assim os digníssimos juízes desembargadores com elevada Sapiência, a ilegalidade da prisão, fazendo a competente e desejada justiça.
Mui respeitosamente, espera deferimento».

2. No processo da condenação (19/17.2F1PDL), foi prestada a informação de acordo com o disposto no art. 223.º/1, CPP, nos seguintes termos (transcrição):
«Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223°, n° l do Código de Processo Penal, informamos que o condenado AA se encontra preso no Estabelecimento Prisional Regional ... à ordem destes autos, desde a data ficcionada de 24 de agosto de 2017, no âmbito da execução da pena de sete ano de prisão a que foi condenado por acórdão de 17/05/2018».
3. No processo pendente no TEP (1471/17....) foi prestada a informação de acordo com o disposto no art. 223.º/1, CPP, nos seguintes termos (transcrição):
«Habeas Corpus
Nos termos do disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, envie, imediatamente, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a petição de habeas corpus apresentada, informando que a prisão em causa se mantém com base na decisão de 29/04/2022, proferida no apenso B, a qual deverá ser junta à informação prestada».

4. Convocada a secção criminal e notificados o MP e o defensor, realizou-se a audiência (arts. 11.º/4/c, 223.º/2/ 3, e 435.º, CPP).
II
1. Questão a decidir: a legalidade da manutenção da pena de prisão aplicada ao requerente, após o decurso dos 2/3 (dois terços).

2. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus e da informação, que por exígua foi completada com os elementos oficiosamente solicitados, e é o seguinte:
2. 1. AA, foi condenado por acórdão transitado em julgado na pena de 7 (sete) anos de prisão.
2.2. Está ininterruptamente preso desde o dia 23/08/2017.
2.3. Atingiu o meio da pena em 23/02/2021 e os dois terços em 23/04/2022; os cinco sextos estão previstos para 23/06/2023 e o termo da pena para 23/08/2024.»
2.4. A decisão de 29.04.2022 proferida no processo pendente no TEP é do seguinte teor transcrição):
«Liberdade Condicional (Lei 115/2009)
Requerimentos de fls. 214 a 221, 222 a 228, 229 e 230: De acordo com os elementos que constam dos autos, continuam pendentes contra o recluso o Proc. nº 757/16.... (ao qual foi apensado o Proc. nº 2429/16.... – vide fls. 188 e 190) e o Proc. nº 1912/20.... (vide fls. 189).

Pelo que, por referência a estes processos, permanecendo a situação jurídica do recluso indefinida, mantêm-se os pressupostos de facto e de direito que determinaram que se sobrestasse o conhecimento da liberdade condicional no despacho datado de 17/03/2021, com a Ref.ª ...22 (vide fls.166), não havendo motivos para que, neste momento, cesse o ali determinado.
Neste sentido, a Decisão Sumária do TRP de 20/06/2012[1], relativamente à falta de requisitos/pressupostos para a apreciação da Liberdade Condicional, diz que se a situação jurídico-penal do condenado não se encontrar estabilizada, não há lugar a Conselho Técnico: “se não lugar à apreciação da possibilidade de concessão de liberdade condicional, por isso de haver uma condenação ainda não transitada em julgado em virtude da qual a situação jurídico-penal do recorrente ainda não se encontra estabilizada, não lugar a Conselho Técnico. Claro como a água”.
Igualmente, de forma directa e em situação de Habeas Corpus, o STJ decidiu em Ac. de 06/09/2012[2] que “a liberdade condicional (…) poderá ser determinada pelo TEP quando a situação prisional do arguido estiver estabilizada”.
Do mesmo modo, o Ac. do TRL, de 29/02/2012[3], onde em lugar paralelo relativamente ao despacho onde se constata a falta de requisitos/pressupostos para a apreciação da Liberdade Condicional através da marcação de Conselho Técnico e audição do recluso se pode ler que “(…) II Trata-se de um despacho que não aprecia se o Recorrente reúne as condições materiais ou substanciais para que lhe seja concedida a liberdade condicional, nos termos do art. 61º do Código Penal. Limita-se a constatar que ainda não se verificam os pressupostos processuais para se iniciar a instrução desse processo. (…)”.

Citando este mesmo acórdão a decisão liminar do TRP, de 08/02/2016[4], onde, rejeitando o recurso interposto do despacho que indeferiu tramitação de instrução para apreciação de Liberdade Condicional, face a instabilidade jurídica dos autos e a não verificação de pressupostos do art. 63º do CP, se diz que “a decisão recorrida que indeferiu o pedido de tramitação com vista à convocação de conselho técnico, não se insere em nenhuma daquelas decisões, expressamente previstas na lei (…), sendo pois apenas uma rejeição de um requerimento inicial, nos termos do art. 148º, al. a) do CEP e como tal é irrecorrível.”

No mesmo sentido, em acórdão do CSM, proferido em 11/11/2014[5], depois de se entender que nesta sede, antes de mais o quanto está em causa é um entendimento jurisdicional do juiz do processo, escreveu-se que “não pode deixar de considerar-se que inerente ao instituto da liberdade condicional está a finalidade ressocializadora e que, por essa razão, sendo condicionante da sua concessão a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado uma vez em liberdade conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, se pode entender afinal que esse juízo não possa ser alcançado sem a cabal definição da situação prisional do recluso”.
Mais recentemente, em acórdão do CSM, proferido em 03/11/2015[6], pode-se ler, em lugar paralelo, sobre a questão, “não se patenteia qualquer retardamento, e ainda menos injustificado ou irrazoável, na tramitação do processo de liberdade condicional e a sustação da decisão de liberdade condicional, para apurar do resultado do processo pendente, tem pleno cabimento para valoração do pressuposto substancial da concessão de liberdade condicional, que supõe um juízo de prognose favorável sobre o recluso no sentido de que, uma vez em liberdade, conduza a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, numa libertação compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social. Está, portanto, em causa um pressuposto relativo à prevenção especial, positiva e negativa, à perigosidade do agente e à sua reinserção social e, por isso, exige-se a formulação desse juízo de prognose favorável quanto ao modo socialmente inclusivo como conduzirá a sua vida. Isto para dizer que a “reprovada” sustação do processo de liberdade condicional encontra explicação nas finalidades da liberdade condicional”(…), que é “uma medida de modelação do cumprimento da pena e visa suspender a reclusão, por forma a criar um período de transição entre a prisão e a liberdade definitiva, que permita ao recluso a aquisição do sentido de orientação social, esbatido pelo período de reclusão. Implica, por isso, a verificação de um conjunto de circunstâncias que, no fundo, correspondem ao alcance da finalidade da execução da própria pena. por si, esta tem de revelar a capacidade ressocializadora do sistema, com vista a prevenir a prática de futuros crimes (artigos 61.º a 63.º do C. Penal). E a pendência de um processo crime, (…) justifica, in mellius, aconselha a indagação do seu desfecho para melhor sustentar o imprescindível juízo de prognose acerca do recluso.

Assim sendo, por ora, não se procederá à apreciação da Liberdade Condicional e audição do recluso, nos termos por si pretendidos. Notifique»
*
3. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, art. 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (arts. 7.º/1/m, e 179.º, CEPMPL, no caso de cumprimento de pena de prisão).
4. Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art. 222.º CPP:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso (…) e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
(…)

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

5. O requerente foi condenado na pena de 7 (sete) anos de prisão, reportando-se o início do cumprimento da pena a 23/08/2017, pelo que atingiu o meio da pena em 23/02/2021; os dois terços em 23/04/2022; os cinco sextos verificam-se em 23/06/2023 e o termo da pena em 23/08/2024.
6. Sustenta o requerente que «a existência de processos crime pendentes não constitui obstáculo à apreciação da concessão da liberdade condicional nos marcos previstos no art. 61º, do CP, em virtude da existência de processos crime pendentes». Parte daí para afirmar «a ilegalidade da prisão, pois não foi respeitado o marco de 1/2 da pena para a apreciação da liberdade condicional, artigo 61º, nº 2, nem o dos 2/3, artigo 61º, nº 3, ambos do Código Penal, fundamentando-se aqui a petição de habeas corpus no artigo 222º, nº 2, alínea c), do CPP, “manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”. Que a «sobrestação/suspensão da apreciação da concessão da liberdade condicional, (prazo legal à muito expirado) com base no facto da situação jurídico-processual do recluso estar ainda indefinida, viola claramente o princípio da presunção de inocência e é extensível também à própria concessão da liberdade condicional»; que «o facto do peticionário não ter a situação processual-criminal (dois processos crime pendentes) resolvida não lhe é imputável, nem se pode presumir que nesses processos será condenado, sendo o mais provável o arquivamento dos mesmos». Desta alegação retira a conclusão de que «a prisão não se encontra legitimada e o recluso peticionário mantém-se preso ilegalmente».
7. Como resulta claro do despacho de 29.04.2022, ao contrário do recorrente, a Ex.ma juíza entende que a existência de processos pendentes – subentende-se de natureza criminal e independentemente da sua gravidade – constitui obstáculo legal à apreciação da concessão da liberdade condicional nos marcos previstos no art. 61.º, do CP, quando o condenado, obviamente, nela consente.
8. Retornando ao essencial do pedido, o objeto da providência é a legalidade da manutenção da prisão do requerente transcorrido o cumprimento dos 2/3 da pena aplicada e não a conformidade com a Constituição (violação dos princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade, pela inferência automática de efeitos contra o arguido da mera pendência sem julgamento de processos criminais, independentemente da sua gravidade) e com a lei (a pendência de processo(s) relativos a factos que não admitem a prisão preventiva – alegação do requerente não contrariada pelas informações da 1.ª instância – ter como efeito automático obstar à apreciação da liberdade condicional).
9. Como reiteradamente tem dito o Supremo Tribunal de Justiça, nem toda a ilegalidade decorrente da inobservância e postergação dos princípios e comandos constitucionais ou da lei ordinária legitima o recurso à providência de habeas corpus.
10. Após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o pedido de habeas corpus coexiste com os meios judiciais comuns (recurso ordinário) mas não deixou de ser um remédio excecional, pelo que não deve ser usado senão em casos de «prisão ilegal», art. 222.º/1, CPP. As questões suscitadas pelo requerente deviam/devem ser postas em reação ao despacho de 29.04. 2022.
11. A avaliar pela fundamentação da Ex.ma juíza, o despacho em causa parece ter subjacente o entendimento de que o mesmo é irrecorrível. Essa é ainda questão, eventualmente, a decidir. Certo é que, nesta data, o despacho ainda não transitou em julgado, nem o requerente dele recorreu, sendo essa uma possibilidade em aberto, dado que a irrecorribilidade, em via ordinária, não é questão pacífica; e afirmada a irrecorribilidade, resta ainda o recurso de constitucionalidade da solução normativa pressuposta no despacho de 29.04.2022.
12. Cingindo-nos ao núcleo do pedido, não se pode concluir, como faz o requerente, pela «ilegalidade da prisão, por “manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial” (art. 222.º/2/c, CPP)». Estando o requerente em cumprimento de uma pena de prisão de 7 (sete) anos, transitada em julgado e aplicada a factos tipificados pela lei como ilícito criminal, por entidade competente, conclui-se que o período de reclusão ainda não se completou. Assim, a privação da liberdade do requerente é, por agora, legal. A exceção que importa respeitar é os cinco sextos da duração da reclusão, pois tratando-se de condenação em pena de prisão superior a 6 (seis) anos, esse é o momento da libertação condicional obrigatória imposta pelo art. 61.º/4, CP, e que ainda não foi atingido.
13. A circunstância de o requerente ter esgotado, no dia 23/04/2022, os dois terços da pena aplicada, embora imponha uma decisão tempestiva por parte do TEP, no sentido de verificar se estão ou não cumpridos os pressupostos de concessão da liberdade condicional (finalidade que, em determinada perspetiva, o despacho de 29.04.2022, teve em vista), não permite que se conclua, sem mais, pela ilegalidade da manutenção da sua prisão, nos termos previstos pelo art. 222.º/1/c, CPP. Os motivos de discordância do requerente aduzidos neste pedido de habeas corpus, devem ser concretizados em recurso ordinário, se assim o entender o requerente, e não através deste meio excecional que, em vista da sua alegação, não é o meio próprio.
III
Indefere-se a providência de habeas corpus por falta de fundamento legal.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça que se fixa em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.
Envie certidão para Processo n.º 19/17.2F1PDL S1 e cópia para o Presidente do Tribunal da Comarca ....
Supremo Tribunal de Justiça, 12.05.2022.

António Gama (Relator)
Orlando Gonçalves
Eduardo Loureiro (Presidente)




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[1] Relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Airisa Caldinho, proferido no âmbito do Proc. nº 4624/10.0TXPRT-E.P1, não publicado.
[2] Relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Santos Carvalho, proferido no âmbito do Proc. nº 87/12.3YFLSB.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Jorge Raposo, proferido no âmbito do Proc. nº 2192/11.4TXLSB-B.L1-3, in www.dgsi.pt.
[4] Relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Lígia Figueiredo, proferido no âmbito do Proc. nº 4624/10.0TXPRT-L.P1, não publicado.
[5] Decisão do Conselho Plenário, no Proc. nº 92/13.2TXPRT-H, em sede de incidente de pedido de aceleração processual. Em tudo, em idêntico sentido, a Decisão do Conselho Plenário, de 18/11/2014, no Proc. nº 404/11.3TXLSB-B, em idêntica sede de incidente de pedido de aceleração processual, onde, começando por igualmente ressalvar que se trata de entendimento de natureza estritamente jurisdicional do juiz dos autos, se pode ler que: “Com efeito, os autos patenteiam que essa solicitação (dos relatórios) não foi efectuada por não se encontrar estabilizada a situação jurídico-penal do requerente. (…) Ao invés, o TEP revelou um súpero cuidado (…) pronunciando despachos cabalmente esclarecedores dos fundamentos que subjazem à não apreciação da liberdade condicional, explicitando que a pendência daquele processo gera uma indefinição da situação jurídico-penal do recluso e impede a apreciação da sua pretensão”.
[6] Decisão do Conselho Plenário, no Proc. n.º 727/13.7TXPRT-A, em sede de incidente de pedido de aceleração processual (referido no nosso despacho datado de 17/03/2021, com a Ref.ª 6741222 – vide fls.166).