Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO APÓLICE DE SEGURO INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL INVALIDEZ INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA SEGURADORA CONTRATO DE MÚTUO SEGURO DE VIDA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DA PROVA DOENÇA GRAVE PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS | ||
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Data do Acordão: | 02/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGA-SE A REVISTA | ||
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Sumário : | I. A previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência. II. Tal interpretação da dita cláusula é reforçada pela inclusão, na apólice, da estipulação de que “o segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada.” III. O entendimento referido em I e II não obsta a que, em certos casos, se considere que uma aparente permanência de razoável capacidade laboral residual seja considerada, ainda assim, não obstativa de um juízo de invalidez absoluta e definitiva para o efeito da cobertura pelo seguro. IV. Sendo a situação de invalidez absoluta e definitiva o facto constitutivo do direito exercido, cabe ao segurado o ónus de demonstrar que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, de que padece, não lhe permite a angariação de meios de subsistência, para os efeitos referidos em I a III. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 795/19.8T8PVZ.P1.S1 Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA e marido BB instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra GNB – Companhia de Seguros de Vida, S.A, atualmente denominada Mundum – Companhia de Seguros de Vida, S.A, pedindo: a) se declarem nulas e de nenhum efeito as cláusulas 8.2 da apólice nº ...06 e 2 das condições especiais da apólice nº ...43; b) se reconheça que a incapacidade permanente atribuída à Autora preenche os pressupostos de inclusão na garantia da cobertura dos seguros, denominada de “invalidez absoluta e definitiva” por doença; c) a Ré seja condenada: (i) a pagar ao Novo Banco, S.A. o valor em dívida relativo ao contrato de mútuo celebrado no valor atual de € 64.365; ii) ao reembolso dos valores das prestações que pagaram ao Novo Banco S.A., desde a data do diagnóstico até efetivo e integral cumprimento por parte da Ré da obrigação mencionada, que até à data da petição computam em € 9.114,27 e das quantias que pagaram a título de prémios de seguro no âmbito das referidas apólices, no mesmo período, computadas em € 2.438,10; iii) no pagamento dos juros de mora sobre as referidas quantias, calculados à taxa legal em vigor, desde a data do diagnóstico até efetivo e integral pagamento, computados € 1.130,21; iv) no pagamento da quantia de € 5.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Para tanto, alegaram terem celebrado com a R. dois contratos de seguro para cobertura de morte e invalidez absoluta e definitiva, como condição essencial para a concessão do crédito de € 68.000,00 que contraíram junto do Banco Espírito Santo, S.A., atualmente Novo Banco, S.A., mediante a celebração de contrato de mútuo para aquisição de imóvel (descrito Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº ...07- União de Freguesias de ...), garantindo o pagamento do capital mutuado em caso de morte dos segurados AA. e em caso de invalidez absoluta e definitiva. Alegam ter-se verificado sinistro coberto pelo seguro, por a A., em virtude e consequência de carcinoma diagnosticado em Junho de 2015 e dos tratamentos a que foi sujeita, ter ficado impossibilitada de exercer a profissão na atividade de restauração em estabelecimento explorado pelos autores, tendo também impacto na sua rotina, para vestir-se, pentear-se, cuidar da sua higiene e organizar a casa, levando mais tempo e necessitando da ajuda do marido. Em suma, dadas as suas limitações físicas e emocionais, a A. mulher não se encontra apta para o exercício daquela nem de qualquer outra atividade remunerada. Invocaram ainda a nulidade das cláusulas do contrato que estabelecem as condições para o acionamento da garantia em caso de invalidez absoluta e definitiva (com a sua consequente exclusão), por a exigência cumulativa de 1) grau de incapacidade permanente igual ou superior a 85 %, de 2) impossibilidade total e definitiva de exercer qualquer atividade remunerada e, ainda de 3) assistência permanente de uma terceira pessoa para realização dos atos elementares da vida, prevista na apólice n.º ...43, se revelar desproporcional à caraterização do estado de invalidez absoluta que o seguro visou prevenir: precaver o eventual risco de ocorrência de uma situação – morte ou invalidez absoluta e definitiva – que não permita ou dificulte o pagamento das prestações em dívida do contrato de mútuo. Concretizando, os AA. alegam que a situação da A. mulher se enquadra na cobertura de invalidez absoluta e definitiva, porquanto a A. encontra-se total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada e apresenta um grau de incapacidade superior a 85%. Nomeadamente, de 94%, conforme atestados médicos de incapacidade multiuso, que os AA. juntaram. 2. A Ré contestou, excecionando a ilegitimidade processual ativa dos autores por preterição de litisconsórcio necessário ativo, dada a falta de intervenção da instituição de crédito na qual os AA. possuem o mútuo cujo pagamento se encontra garantido pelos contratos de seguro, por os AA. pretenderem a condenação da R. no pagamento do valor correspondente ao capital em dívida do contrato de mútuo que celebraram com a instituição bancária. Impugnando parcialmente os factos, contestou o preenchimento pela A. da situação de invalidez definitiva e absoluta contratualmente prevista, razão pela qual declinou o pagamento do capital seguro. Alegou ainda que a prestação principal a seu cargo é a garantia de pagamento de um determinado capital em caso de morte, sendo as restantes coberturas meramente complementares, pelo que, quanto à cobertura complementar para os casos de invalidez absoluta e definitiva, exige-se uma situação de quase total invalidez para fazer o que quer que seja, pelo que as cláusulas são válidas. Quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, referiu que o contrato não prevê essa cobertura. 3. Os AA. requereram a intervenção principal provocada do Novo Banco, S.A, o que foi deferido por despacho de 19-11-2019. 4. Citado, o interveniente Novo Banco, S.A. arguiu a sua ilegitimidade passiva e a manifesta inviabilidade do pedido, por não ter qualquer obrigação de ressarcimento de obrigações advindas do Banco Espírito Santo, S.A., atentas as deliberações do Banco de Portugal de 3 e 11 de agosto de 2014, inerentes à sua constituição e ao perímetro das transferências de passivos do Banco Espírito Santo, S.A., invocando a ineptidão da petição inicial. 5. Exercendo o contraditório, alegaram os AA. que, sendo a intervenção principal do Banco uma intervenção do lado ativo, e não passivo, a apresentação da contestação se deve a equívoco, estando os seus fundamentos votados ao insucesso. 6. Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador que julgou as exceções improcedentes e se pronunciou pela validade e regularidade dos restantes pressupostos processuais, tendo sido proferido despacho que fixou o valor da ação em € 82.047,58 e que procedeu à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, tendo ainda elencado a matéria de facto assente por prova documental. 7. Realizou-se prova pericial. 8. Realizou-se audiência final e em 10.7.2023 foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, o Tribunal, reconhecendo, embora, a nulidade das cláusulas identificadas no ponto 4) da fundamentação de facto, no segmento respeitante à exigência de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e apresentação de um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, julgando a ação não provada e improcedente, absolvendo a Ré Mundum – Companhia de Seguros de Vida, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores AA e marido BB identificados no relatório sob as alíneas b) e c) Custas a cargo dos Autores”. 9. Os AA. apelaram da sentença e, por acórdão datado de 10.7.2024, a Relação do Porto negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada. 10. Os AA. interpuseram revista excecional, formulando as seguintes conclusões: “I. Por sentença datada de 10 de julho de 2023, os Recorrentes viram a ação ser julgada improcedente, por não provada e a recorrida absolvida da generalidade dos pedidos formulados. II. Na mesma sentença, os Recorrentes viram ser indeferido um requerimento de junção de documento – atestado multiusos fundamental para a verdade material, o qual podia e deveria ter sido admitido, corroborando toda a restante prova produzida e conduzindo inevitavelmente a uma decisão em sentido completamente inverso. III. Por Acórdão datado de 21 de março de 2024, os Recorrentes viram a ação ser julgada improcedente, por não provada e a recorrida absolvida da generalidade dos pedidos formulados pelo Tribunal da Relação do Porto. IV. No mesmíssimo Acórdão, os Recorrentes viram, no entanto, ser deferido um requerimento de junção de documento – Atestado Multiusos – fundamental para a verdade material e para a boa decisão da causa, o qual foi admitido, devendo corroborar toda a restante prova produzida e conduzindo inevitavelmente a uma decisão diferente da que foi tomada. V. Não obstante o seu regime e finalidades específicas, afirmou o Tribunal que o Atestado Médico Multiusos, pode servir como um meio de prova indireta da incapacidade absoluta e definitiva alegada como fundamento do acionamento de contrato de seguro associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário. VI. Sem embargo, o Tribunal declarou que tendo sido realizada prova pericial para aferição do grau de incapacidade de que a autora padece, tal meio de prova – pericial – assume relevância preponderante face à prova documental consistente em Atestado Médico Multiusos que atribui distinta percentagem de incapacidade, por tal meio de prova ser produzido com garantia de contraditório pelas partes e pela sua específica finalidade enquanto meio de prova pericial destinado precisamente à avaliação da incapacidade decorrente do sinistro e em discussão no processo. VII. Para mais, explanou que a decisão do tribunal de primeira instância que, com fundamento na leitura conjugada dos artigos 423.º, n.º 3, e 425.º ambos do CPC, não admite a junção de documento requerida após o encerramento da audiência final mas antes de proferida a sentença, não integra qualquer violação do princípio da adequação formal consagrado no artigo 547.º do CPC. VIII. Pois, o recurso à adequação formal visa permitir a prática de ato não previsto, mas a sua utilização deve ser feita com ponderação e cautela, perante necessidades e situações que efetivamente justifiquem o recurso a tal alteração à forma e atos processuais legalmente previstos. IX. Finalizou aclarando que adequação formal só surge quando o juiz atua; a falta de utilização da adequação formal – que é o que os apelantes invocam como fundamento do recurso – não será passível de recurso: quando muito, poderá constituir uma nulidade processual (por omissão de observância do dever de gestão processual mediante a prolação de despacho de adequação formal), nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC (omissão de ato que a lei prescreva), que apenas poderia ter sido arguida perante o tribunal a quo. X. Não poderão, por isso, os Recorrentes conformarem-se com a decisão em causa. XI. Para concluir de tal forma, o tribunal a quo justificou que a situação da Recorrente não se enquadra numa situação de invalidez. XII. Sem prejuízo, e mesmo assim considerando, entende o aqui Recorrente que a fundamentação, constante do acórdão, além de argumentativamente escassa é manifestamente insuficiente e obscura, padecendo de nulidade por falta de fundamentação jurídica e superficial tratamento de diversas questões de direito, relevantes para a boa e justa decisão da causa, nos termos do artigo 815.º, n.º 1, al. b) do CPC. XIII. Salvo o devido respeito por opinião distinta, é entendimento da aqui recorrente que o douto acórdão recorrido – à semelhança da decisão proferida na 1.ª instância – opera com uma desaquada interpretação e consequente desapropriada aplicação do direito, no que concretamente diz respeito à interpretação a conferir ao conceito integrador da cobertura do risco de “invalidez absoluta e definitiva” e às condições de verificação desse mesmo risco no caso concreto. XIV. Quer a douta sentença proferida na 1.ª instância, quer o douto acórdão que a confirmou e de que agora se recorre, pronunciaram-se sobre a mesma questão fundamental de direito que agora se submete a douta sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça: As condições de verificação, para efeitos de contrato de seguro e do risco suscetível de acionar a cobertura complementar de incapacidade /invalidez absoluta e definitiva. XV. Com efeito, em ambas as decisões se considerou que, à luz das normas que regulam a interpretação das cláusulas contratuais se impunha julgar tais cláusulas nulas, excluindo-as do contrato, por exigir, cumulativamente com a incapacidade de exercício de qualquer atividade, que o segurado tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efetuar os atos essenciais da vida corrente, e ainda que a cobertura de invalidez absoluta e definitiva deve ser interpretada, de acordo com as regras de integração do negócio jurídico, como ocorrendo quando o segurado, com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer. XVI. Devendo ter sido considerado, pois, à luz dessa interpretação, que está verificada uma situação de incapacidade absoluta definitiva na situação em que o segurado, estando afetado de incapacidade, essa o impede de exercer a sua profissão habitual, bem como outras profissões. XVII. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 3 do CPC, é sabido que não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, estas são as chamadas situações de “dupla conforme”. XVIII. No entanto, pese embora esta restrição de acesso a uma 2.ª instância de recurso, o legislador consagrou circunstâncias de revista excecionais, nas quais, apesar de se verificar esta “dupla conforme”, ainda assim é dada possibilidade às partes de acesso a um terceiro grau de jurisdição. XIX. Nesta toada, estatui-se no artigo 672.º n.º 1 do CPC (designado “Revista excecional”) que, a título excecional do artigo 671.º n.º 3 do CPC, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido quando: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme. XX. Nos presentes autos foram proferidas, na 1.ª instância e posteriormente na Relação, duas decisões de idêntico teor, e que incidiram sobre a interpretação e solução jurídica a conferir à seguinte questão: XXI. Da nulidade e de nenhum efeito das cláusulas 8.2 da apólice ...06 e 2 das condições especiais da apólice n.º ...43, insertas no contrato de seguro, que estabelecem que se verifique o risco suscetível de acionar a cobertura complementar de incapacidade/invalidez absoluta e definitiva (IAD), há que estar diante de uma situação em que a Pessoa Segura é considerada clinicamente inapta e incapaz, em consequência de doença ou acidente, de exercer qualquer atividade e, além disso, tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efetuar os atos essenciais da vida corrente e da interpretação a conferir ao conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, devendo-se considerar que a cobertura de invalidez absoluta e definitiva deve ser interpretada como ocorrendo quando o segurado com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer. XXII. É patente que, perante situações fácticas muito semelhantes, foram proferidas decisões contraditórias quanto à interpretação do conceito de “Invalidez Absoluta e Definitiva” e da relevância do grau de incapacidade, para efeitos de acionamento da cobertura do contrato de seguro. XXIII. É este ponto fulcral em concreto que espelha a contradição das citadas decisões proferidas sobre a mesma questão fundamental de direito, e no domínio da mesma legislação. XXIV. Face ao supra explanado, sempre mui respeitosamente, acham-se suficientemente verificados os pressupostos para que seja admitido o presente recurso de revista excecional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 672.º n.º 1 al. c) do CPC. XXV. A conclusão sufragada pela douta sentença e pelo douto acórdão consubstancia-se em observações que não podemos aceitar, pois considerar que mesmo “tendo a Autora permanecido em baixa médica de 2015 a 2021, a verdade é que sendo o estabelecimento explorado juntamente com o marido, os rendimentos da atividade também lhe pertencem.” XXVI. Por outro lado, afiguram que poderá a Autora “dividir tarefas com o Autor por forma a excluir aquelas que impliquem maiores esforços físicos, executando atendimento ao público no quiosque e a nível de pedido dos produtos de cafetaria”. XXVII. Sumariamente, decidiram que face às limitações decorrentes da sua doença e analisando todos os elementos fácticos a Autora pode trabalhar no seu estabelecimento, sem que para isso faça esforços físicos, no entanto não se compreende esta interpretação. XXVIII. Se a Autora não consegue laborar, não pode interessar para a boa decisão da causa afirmar que esta pode conseguir trabalhar efetuando tarefas que não impliquem grandes esforços e também não nos parece, de todo, razoável nem interessa equacionar quais as possibilidades existentes dentro da profissão que auferia, o que realmente deve ser tido em causa é exclusivamente a sua incapacidade para o trabalho, nada mais. XXIX. E não se concebe que o grau de incapacidade da Autora seja sequer argumento válido para a improcedência, cláusula esta que foi considerada nula por ser manifestamente excessiva. XXX. É um facto que na jurisprudência do STJ a apreciação dos requisitos do acionamento de contratos de seguro em situações de incapacidade, resultante de estados de invalidez, não é unívoca. XXXI. Contudo, para além da redação dos clausulados contratuais divergirem na definição das condições que são necessárias para acionar cada um dos contratos de seguro apreciados, também existe uma variação das condições que são invocadas, estando em causa a verificação de uma situação de incapacidade absoluta e ou definitiva. XXXII. É também por isso que a jurisprudência deste Supremo Tribunal apresenta para cada uma das situações apreciadas uma leitura que coloca na equação da exigibilidade do capital das diversas circunstâncias que rodeiam o sinistrado, desde a sua profissão, à situação económica e social. XXXIII. A apelante fez prova da sua alegação de que se encontra totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa, a Mm.ª Juiz a quo é que preferiu, em face da prova produzida em julgamento, concluir que os depoimentos não oferecem credibilidade quanto à efetiva incapacidade, entendimento com o qual não pode a apelante conformar-se, por se consubstanciar em erro de julgamento, em concreto, gerado pelo erro na apreciação da prova testemunhal e na fixação dos factos materiais da causa. XXXIV. É atribuído um excessivo relevo ao facto que a 1.ª instância considerou provado de que a Autora está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinam demasiado esforço físico, como trabalhar no quiosque ou vender cafés. XXXV. Não devendo ignorar-se a afirmação de tal facto assentou, essencialmente, nas conclusões do relatório de medicina subscrito por perito médico da seguradora, a que estava subjacente a possibilidade de, em circunstâncias específicas, traduzir-se a reconversão da atividade profissional de Autora. XXXVI. Ora, desempenhando a Autora, antes do sinistro, uma atividade profissional que implicava quer o contacto com clientes, quer com outras pessoas, esforço físico, sendo estes aspetos que subjetiva e objetivamente se mostram gravemente condicionados (note-se, pela incapacidade que lhe foi atribuída pelos Atestados Médicos), uma interpretação do clausulado em referência e em função da impressão do destinatário e das regras da boa fé não pode levar a que se sujeite a Autora a exercer uma atividade, que a mantenha afastada do contacto com as atividades que antes realizara, ou a realizar trabalhos de mera retaguarda, com o risco de se agravar ainda mais a sua condição, pela frustração que daí decorre, a carga psicológica que emerge da doença de que padece e dos efeitos que projetou na sua realização profissional e pessoal. Como corrobora o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 1681/18.4T8VFR.P1.S1 de 10-02-2022, disponível em www.dgsi.pt. XXXVII. Assim, perante as graves repercussões de ordem física e psicológica provocadas pela doença e provadas, o acionamento do seguro do contratado não pode ser afastado pelo simples facto de se provar que a segurada está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinem esforços extremos, na medida em que não está demonstrado como e com que resultados poderia ser reajustada a sua vida profissional, somente replicam que pode estar no quiosque, vender cafés e jornais. XXXVIII. Note-se que, a profissão específica que a Autora pratica, numa determinada área, associada à sua realização pessoal e profissional, o que esteve seguramente na base da abertura de um negócio próprio, foi gravemente perturbada por um sinistro de todo imprevisível. XL. Em cada um dos referidos aspetos, que não podem ser facilmente separados, exercem uma forte influência negativa não apenas as sequelas físicas incapacitantes, como os efeitos de ordem psicológica, não menos importantes, que a situação criou na Autora e que seguramente tenderão a agravar-se com uma solução que lhe recuse o acionamento do seguro, forçando-a a exercer outras funções não ajustadas às suas, agora, nenhumas reais aptidões profissionais. XLI. Como já mencionado, a sentença e o acórdão corroboram com o entendimento de que se “afigura que poderá (a Autora) dividir tarefas com o Autor por forma a excluir aqueles trabalhos que impliquem maiores esforços físicos” (parênteses nossos). XLII. Supunhamos que o Autor não pode estar presente no estabelecimento e, por isso, fica também ele impedido de trabalhar e auxiliar a sua esposa nas poucas funções que, alegadamente, o tribunal considera que a Autora pode exercer. XLIII. Note-se que o Autor, não pode de maneira alguma ver a sua vida condicionada a um dever de cuidado e auxílio que não lhe está adstrito legalmente. XLIV. Parece-nos que este condicionalismo se denota atentatório dos direitos, liberdades e garantias e direitos económicos sociais e culturais plasmados na lei fundamental, restringindo a liberdade dos próprios Autores e restringindo o direito ao trabalho de forma plena a ambos, pela dependência que irá ter a aqui Autora, do seu marido. XLV. Não obstante, afirmou ainda o tribunal a quo que os rendimentos da atividade prestada também pertencem à aqui Autora. XLVI. Argumento totalmente desprovido de lógica, pois, em situações de possível carência do negócio de que são proprietários, seria impossível para os Autores adquirirem rendimentos suficientes para alcançarem uma vida condigna, pelo pressuposto de que a aqui Autora nunca conseguiria laborar onde quer que seja. XLVII. Aliás, este entendimento parece-nos violador do princípio da igualdade plasmado na CRP, significa isto que, caso a mesma não fosse proprietária de um negócio, já poderia ser-lhe admitida uma incapacidade permanente? XLVIII. Pois não só os juízos de razoabilidade impunham nesse sentido, como também não promoveu qualquer diligência no sentido de apurar a verdade e justa composição do litígio, conforme lhe impunha o artigo 411º e 604º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, nomeadamente através de uma perícia médica a designar pelo tribunal a quo que iria permitir todas as questões que o tribunal revelou ter na redação da sentença e acórdão, agora, recorrido. XLIX. Por contrário, se o tribunal a quo tivesse procedido a essa prova pericial que não a fornecida pelo médico da seguradora, seria indiscutível para o tribunal a incapacidade absoluta e definitiva da Recorrente, de acordo com todos os meios probatórios elencados. L. Não se pode conceber o que foi dito: “No confronto com a incapacidade fixada nos atestados médicos de incapacidade multiusos, importa referir, antes de mais, que os mesmos têm repercussões fiscais, no âmbito da aposentação antecipada por doença, na isenção de taxas moderadoras, mas não relevantes no âmbito de uma ação destinada ao cumprimento de um contrato de seguro, na medida em que a tramitação processual compreende a instrução da causa com recurso a perícias por forma a proporcionar ao Julgador informações seguras para decidir em matéria técnica que não domina.” LI. Do excerto imediatamente anterior se extrai duas conclusões: Por um lado, o errado total descrédito dos atestados médicos multiusos que, sem prejuízo de terem diversos fins, nomeadamente fiscais, traduzem uma realidade fáctica e material do próprio detentor do atestado. Portanto, desacreditar neste tipo de documento probatório é, por consequência, pôr em causa o conteúdo atestado e os seus subscritores; é também admitir a possibilidade de legalmente fraudar a Lei no sentido em que uma pessoa é fiscalmente inválida, mas materialmente apta para o trabalho. LII. Por outro lado, põe a nu o poder-dever por parte do tribunal de primeira instância, no qual deveria sub-rogar-se às partes e, perante a prova (indiciária para aquele tribunal), ter ordenado as diligências que se lhe apraziam necessárias e adequadas, nomeadamente a perícia médica da Recorrente, distinta da concebida pelo médico da seguradora. LIII. Tendo em conta as palavras finais da nossa última transcrição – “(…) com recurso a perícias por forma a proporcionar ao Julgador informações seguras para decidir em matéria técnica que não domina” – é manifestamente contraproducente o tribunal a quo afirmar que” (…) as dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, a fadiga associada à hormonoterapia e as limitações da mobilidade do braço direito, tiveram como impacto a perda de motivação e interesse da Autora pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores, porém, atualmente, ultrapassado o período de cinco anos em que ficou sujeita a terapia hormonal, os efeitos secundários da mesma terão cessado, permanecendo um síndrome depressivo com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional.” LIV. Tendo o tribunal a quo concluído – e bem! – pela nulidade das cláusulas contratuais e admitido o Atestado Multiusos, de igual forma deveria ter concluído pela situação de invalidez da Recorrente. LV. Concluindo inevitavelmente pela procedência da ação, condenando a recorrida nos termos peticionados na petição inicial, pedido que expressamente se sindica nesta sede de recurso de revista.” Os recorrentes terminaram pedindo que fosse reconhecida a incapacidade absoluta e definitiva para o trabalho por parte da Recorrente, fosse revogado o acórdão recorrido no que tange à não consideração da recorrente como inválida e se condenasse os recorridos nos termos peticionados na primeira instância. 11. A R. apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela inadmissibilidade da revista e, em todo o caso, pela improcedência do recurso. 12. Distribuído o processo e apresentado este ao relator, foi o processo remetido à Formação prevista no n.º 3 do art.º 672.º do CPC. 13. A Formação deliberou admitir a revista excecional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC. 14. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Admitida a revista, haverá, primeiramente, que apreciar se, como alegam os recorrentes, o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Para fundamentar a imputação de tal vício ao acórdão, os recorrentes asseveram que “a fundamentação, constante do acórdão, além de argumentativamente escassa é manifestamente insuficiente e obscura, padecendo de nulidade de falta de fundamentação jurídica e superficial tratamento de diversas questões de direito, relevantes para a boa e justa decisão da causa…” – cfr. conclusão XII). Vejamos. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do CPC). Trata-se, de resto, de um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da CRP). Consonantemente, as sentenças e os despachos não fundamentados padecem de nulidade (artigos 613.º n.º 3 e 615.º n.º 1 al. b) do CPC). Sendo certo que, como é jurisprudência constante, não pode confundir-se falta de fundamentação com fundamentação alegadamente insuficiente ou desacerto da decisão (v.g., STJ, 02.6.2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt). Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC a sentença (e o acórdão – art.º 666.º n.º 1) será nula se não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. O art.º 607.º do CPC estipula que na sentença o tribunal deve, a par da identificação do objeto do litígio e das questões a resolver (n.º 2), indicar os factos que julga provados e não provados e dar a conhecer os fundamentos desse seu juízo, analisando criticamente a prova (n.ºs 3 e 4). Mais deve indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (n.º 3). In casu, como resulta com clareza do acórdão recorrido, o tribunal a quo cumpriu todos esses ónus. Identificou as questões a resolver e emitiu juízo em relação a cada uma delas, tanto no plano da decisão de facto como na de direito, tendo em consideração o teor da apelação. Analisou a decisão de facto, à luz das críticas apresentadas pelos apelantes e, emitido o respetivo juízo, procedeu à subsunção dos factos às normas jurídicas que considerou pertinentes. O acórdão recorrido não enferma, pois, da nulidade que lhe foi assacada. 2. A revista foi excecionalmente admitida, porquanto se considerou, nas palavras da Formação prevista no n.º 3 do art.º 672.º do CPC, que “A circunstância de a questão objeto de recurso se prender com a integração da matéria de facto provada no âmbito de cláusula integrante de contrato de seguro, que reveste a natureza de cláusula contratual geral, apresentando inegável repercussão no âmbito da tutela de direitos patrimoniais da parte contratual mais fraca (os autores) desloca o presente caso, em nossa perspetiva, para uma arena jurídica sensível, que beneficiaria do tratamento clarificador por parte deste Supremo Tribunal” (negrito nosso). Acrescentando-se: “Assim, ainda que a matéria não apresente complexidade atípica e venha sendo objeto de tratamento reiterado por parte dos tribunais superiores, a operação de subsunção em causa, por implicar a densificação de uma cláusula contratual geral que, pelo seu objeto, é suscetível de interessar a uma ampla comunidade de aderentes, reclama um derradeiro olhar liderante do órgão de cúpula do sistema judiciário apto a lograr certeza e segurança jurídicas no tema” (negrito nosso). A operação subsuntiva em causa concretiza-se, nas palavras da recorrente, transcritas pela Formação, na questão de “saber se a doença sofrida pela autora e as respetivas sequelas se subsumem ao conceito de invalidez para efeitos de acionamento do contrato de seguro celebrado entre os autores a ré, pelo qual, mediante o pagamento de contrapartida mensal pelos autores, a seguradora garantiu, em caso de morte dos primeiros, o pagamento do capital decorrente de um contrato de mútuo bancário para aquisição de um imóvel e, em complemento, a antecipação total do mesmo capital numa situação de invalidez absoluta e definitiva” (negritos nossos). Em suma, cabe a este Supremo Tribunal de Justiça averiguar se, face aos factos provados, se deve considerar que a situação de doença e respetivas sequelas, de que a A. padece, é coberta pelo contrato de seguro objeto dos autos. 3.1. As instâncias deram como provada a seguinte Matéria de facto 1. Por escritura pública outorgada a 30 de Outubro de 2013, no Cartório da Dr.ª CC, sito na Praça ..., ..., DD declarou vender aos Autores, que declararam aceitar, pelo preço já recebido de € 70.000, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, com armazém agrícola e logradouro, sito na Rua da ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o nº ...07-... [alínea A) do despacho em referência]. 2. Declararam os Autores que, para aquisição do prédio, haviam solicitado ao Banco Espírito Santo, S. A. – Sociedade Aberta um empréstimo no valor de € 68.000, concedido pelo prazo de 420 meses a contar do subsequente dia 20, de que se confessavam solidariamente devedores e que para caução e garantia de todas as responsabilidades assumidas, nomeadamente, juros e despesas judiciais e extrajudiciais que fixavam para efeitos de registo em € 2.720, constituíam hipoteca sobre o dito imóvel, tendo a procuradora EE, em representação do Banco, declarado aceitar a confissão de dívida e a hipoteca [alínea B) do despacho em referência]. 3. Por escrito titulado pelas apólices nº ...06 e ...43, os Autores e BES Vida, a quem a Ré sucedeu, acordaram entre si, mediante o pagamento de contrapartida mensal, a garantia, pela segunda, do pagamento do capital decorrente do empréstimo identificado em 2) em caso de morte dos primeiros e, em complemento, a antecipação total do mesmo capital numa situação de invalidez absoluta e definitiva [alínea C) do despacho em referência]. 4. Da cláusula 8.2 e do artigo 2º das cláusulas especiais das apólices identificadas em 3) consta “o segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada e simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e desde que apresente um grau de incapacidade igual ou superior a 85% de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais” oficialmente em vigor no momento do reconhecimento da invalidez” [alínea D) do despacho em referência]. 5. A cláusula e artigo referidos em 4) definem ato elementar da vida corrente: “- lavar-se: significa efetuar os atos necessários à manutenção de um nível de higiene correto; - alimentar-se: significa tomar as refeições preparadas e servidas à mesa; - vestir-se: significa vestir-se e despir-se, tomando em consideração o vestuário usado habitualmente; - deslocar-se no local de residência habitual” [alínea E) do despacho em referência]. 6. Por escritura pública celebrada a 8 de Novembro de 2016, no Cartório Notarial da Dr.ª FF, os Autores, GG e HH, estas na qualidade de procuradoras de Novo Banco, S.A., declararam que os primeiros solicitaram a migração do crédito à habitação identificado em 2) para o regime de crédito bonificado à habitação para pessoa com deficiência, no montante de € 64.930,49, que passaria a reger-se por esse regime, a amortizar em prestações iguais e sucessivas de capital e juros à TAN de 0,03250%, correspondente a uma TAE de 0,03250%, suportando os juros correspondentes a 65% da taxa de referência, naquela data de 0,05%, variável, a alterar de acordo com as alterações da taxa de referência do Banco Central Europeu, vencendo-se a primeira prestação 30 dias após a data dessa alteração e as restantes em igual dia dos meses seguintes [alínea F) do despacho em referência]. 7. A Autora nasceu a ... de ... de 1976 [resposta ao artigo 9º da petição inicial]. 8. Em Maio de 2015 foi diagnosticado à Autora carcinoma invasor NST, de grau III na mama direita, com envolvimento axilar [resposta ao artigo 9º da petição inicial]. 9. Entre 11 de Junho e Setembro de 2015 a Autora realizou oito ciclos de tratamentos de quimioterapia com Trastuzumab, tendo também frequentado a fisioterapia devido a radiculalgia do membro superior direito [resposta aos artigos 10º, 12º da petição inicial]. 10. Em 1 de Dezembro de 2015 a Autora foi submetida a cirurgia para pesquisa de gânglio sentinela com mastectomia radical modificada tipo Madden à direita e excisão de 3 nódulos benignos da mama esquerda [resposta ao artigo 12º da petição inicial]. 11. Após a mastectomia direita, a Autora continuou a ser acompanhada em consultas regulares, sendo submetida a exames complementares de diagnóstico a vários níveis [resposta ao artigo 13º da petição inicial]. 12. Por razões profiláticas, a 27 de Dezembro de 2016 a Autora submeteu-se a nova intervenção cirúrgica, para mastectomia esquerda e anexetomia bilateral (remoção dos ovários e trompas de Falópio) [resposta ao artigo 14º da petição inicial]. 13. A doença teve como efeito a perda de ambos os seios, a infertilidade, a menopausa precoce, cicatrizes cirúrgicas, bem como perda temporária de cabelo, fadiga e dores, como efeitos secundários dos tratamentos [resposta aos artigos 15º, 16º, 18º da petição inicial]. 14. Devido ao impacto do diagnóstico da doença oncológica, a Autora sofreu alterações de humor, grande fragilidade emocional com incidência de sintomas depressivos, tendo tido acompanhamento por psicologia a partir de Setembro de 2015 até data não concretamente apurada [respostas aos artigos 17º, 19º e 20º da petição inicial]. 15. A Autora continuou a ser acompanhada em consultas de follow up, apresentando dores osteoarticulares secundárias a hormonoterapia e risco de desenvolver linfedema do braço direito de cerca de 90%, tendo a médica oncologista desaconselhado pegar em pesos superiores a 1 kg e realizar movimentos repetitivos [resposta aos artigos 21º, 22º, 60º da petição inicial]. 16. Após a cirurgia referida em 10) a Autora realizou tratamentos: - de radioterapia adjuvante nas regiões das cicatrizes da mastectomia e axilar, que terminou a 3 de Março de 2016; - com Trastuzumab que completou em 15 de Setembro de 2016: - de hormonoterapia oral e castração química, inicialmente Anastrozole + Goserelina, passando a ser Examestano a partir de 4 de Agosto de 2016, com o ciclo de cinco anos a terminar em Agosto de 2021[resposta ao artigo 23º da petição inicial]. 17. Presente a junta médica, em 20 de Janeiro de 2016 foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos do qual se fez constar que a Autora padecia de deficiência que, naquela data, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 94%, suscetível de variação futura e a ser reavaliada em 2020 [resposta ao artigo 24º da petição inicial]. 18. A incapacidade referida em 17) reportava-se ao seguinte: a) capítulo XVI, nº IV alínea 3 - 0,60; b) capítulo X, nº 2 Grau 3 – 0,30; c) capítulo III, nº 7 – 0,20; d) capítulo III, nº 7 – 0,20; e) capítulo XVI, nº IV alínea 3 - 0,60; f) capítulo II, nº 1.4.2 alínea a) - 0,15 [resposta ao artigo 25º da petição inicial]. 19. Após a emissão do atestado identificado em 17), os Autores participaram à Ré o estado de saúde da demandante [resposta ao artigo 26º da petição inicial]. 20. Por missiva datada de 4 de Março de 2016, dirigida à Autora, a Ré acusou a receção da documentação recebida e referindo que os elementos clínicos em seu poder não eram esclarecedores quanto à incapacidade de que era portadora e o enquadramento na cobertura de invalidez questionava sobre a possibilidade de ser consultada por médico da Companhia [alínea G) do despacho em referência]. 21. A Autora acedeu, sendo observada pelo Dr. II que lhe atribuiu uma incapacidade de 66% [resposta aos artigos 29º, 31º da petição inicial, 26º, 27º da contestação da Ré]. 22. Por missiva datada de 6 de Maio de 2016, dirigida à Autora, a Ré aludiu às cláusulas identificadas em 4) e 5), comunicou que, após análise da documentação clínica enviada e a consulta médica a que fora submetida, concluía que a invalidez de que era portadora não se enquadrava nas condições especiais dos seguros complementares [alínea H) do despacho em referência]. 23. Presente a nova junta médica, em 19 de Outubro de 2016 foi emitido atestado médico de incapacidade multiusos com o mesmo teor do identificado em 17) e 18) [resposta ao artigo 33º da petição inicial]. 24. Na sequência das intervenções referidas em 10) e 12), a Autora foi encaminhada para consulta de cirurgia de reconstrução, a qual se concretizou através de duas cirurgias, a primeira em 8 de Março e a última em 7 de Junho de 2018 com colocação de implantes mamários [resposta ao artigo 61º da petição inicial]. 25. Nos exames de follow-up realizados em 13 de Agosto de 2021 foi detetada a diminuição de massa óssea na região proximal do fémur e na coluna lombar em L3 e L4, associados a osteopenia de 5% e 5,3%, respetivamente [resposta ao artigo 43º da petição inicial]. 26. Antes do diagnóstico referido em 8), a demandante dedicava-se à atividade de venda de jornais/revistas e serviço de cafetaria, exercida em estabelecimento comercial que é explorado por ambos os Autores [resposta ao artigo 46º da petição inicial]. 27. A Autora esteve de baixa médica desde Junho de 2015, com renovação dos certificados de incapacidade temporária até 17 de Junho de 2021 [resposta ao artigo 47º da petição inicial]. 28. O atendimento ao público no estabelecimento referido em 26) é realizado pelo Autor, uma funcionária e o filho do casal [resposta ao artigo 53º da petição inicial]. 29. Por referência a 4 de Novembro de 2021, data da consolidação médico-legal da patologia sofrida pela Autora, o capital do financiamento identificado em 2), após a transformação referida em 6), ascendia a € 54.885,73 [resposta ao artigo 111º da petição inicial]. 30. Os Autores continuaram a pagar as prestações mensais do financiamento referido em 29), no valor de € 7.421,79 correspondente ao período compreendido entre 20 de Novembro de 2016 e 20 de Maio de 2020, assim como os prémios das apólices referidas em 3), em montante não concretamente apurado [resposta aos artigos 113º, 116º, 117º da petição inicial]. 31. Devido à doença e aos tratamentos necessários, a Autora ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, com base no seguinte: a) Cap. II 1.4.2 b) - mastectomia bilateral com reconstrução mamária (coeficiente 0,16-0,40): 0,20; b) Cap. XVI 2) - doença oncológica crónica - tumor maligno com estabilização clínica (coeficiente 0,10-0,25): 0,25; c) Cap. X 1 grau II – perturbação funcional moderada (coeficiente 0,06-015): 0,15 [resposta ao artigo 32º da contestação da Ré]. 32. A Autora não necessita da ajuda permanente de terceira pessoa para os atos referidos em 5) [resposta ao artigo 32º da contestação da Ré]. 33. A Autora sofreu choque quando foi confrontada com a gravidade do diagnóstico, humor depressivo, ansiedade psíquica somatizada com interferência no início e continuidade do sono, reativa ao prognóstico reservado da doença, correspondente a reação depressiva prolongada, atualmente relacionada com o receio de recidiva, traduzida na perturbação funcional moderada referida em 31), com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional [resposta aos artigos 36º, 38º, 39º, 40º da petição inicial]. 34. Devido ao referido em 33), às dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, à fadiga associada à hormonoterapia, às limitações da mobilidade do braço direito, a Autora perdeu a motivação e o interesse pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores [resposta aos artigos 37º, 58º, 59º da petição inicial]. As instâncias enunciaram os seguintes Factos não provados a) antes do diagnóstico a Autora era uma jovem mulher alegre, sociável e entusiasta; b) em consequência da doença oncológica e subjacente tratamento a Autora sofreu: - perda total do pelo; - enfraquecimento das unhas e pele; - ganho de peso; - perda de apetite; c) a Autora continua a realizar tratamentos de quimioterapia, por via oral, os quais prolongar-se-ão pelo período mínimo de 8 anos após cirurgia, isto é, até 2024; d) as cirurgias a que foi submetida afetaram absoluta e irremediavelmente a feminilidade da Autora, sentindo-se mutilada e diminuída enquanto mulher, rejeitando o seu corpo e tendo uma representação negativa da sua imagem; e) a entrada da menopausa com apenas 40 anos teve um impacto negativo na qualidade de vida da Autora, nomeadamente, pela vivência de sintomas como atrofia vaginal, redução da libido, dificuldades em dormir, mudanças de humor, irritabilidade, ansiedade, diminuição da autoestima, diminuição da elasticidade da pele e dores de cabeça; f) com a menopausa aumentaram os riscos de osteoporose e de doenças cardiovasculares para a Autora; g) o estado de ansiedade e de fadiga em que a Autora se encontra não lhe permite lidar com os seus clientes e fornecedores de forma adequada; h) a capacidade de concentração, a memória e a resistência ao stress foram profunda e irremediavelmente afetadas pelos efeitos da doença e dos seus tratamentos, bem como as faculdades físicas como a força, a destreza e a mobilidade; i) dadas as limitações físicas e emocionais, a Autora não se encontra apta para o exercício da atividade referida em 26) nem de qualquer outra atividade remunerada; j) à data da propositura da ação o capital em dívida ascendia a € 64.365; k) à data da propositura da ação os Autores tinham pago € 9.114,27 a título de prestações do crédito bancário, por referência a Junho de 2015; l) o valor pago dos prémios dos seguros referidos em 6) ascendia a € 874,80 relativamente à apólice ...06 e € 1.563,30 quanto à apólice ...43, desde o diagnóstico até data da propositura da ação. 3.2. O Direito Está provado que em outubro de 2006 os AA. contraíram um empréstimo junto do banco interveniente, a fim de adquirirem um imóvel para habitação. Na mesma ocasião os AA. aderiram, cada um, a um contrato de seguro de grupo do ramo vida, no qual o banco mutuário figura como tomador do seguro e a seguradora é a ora R.. Nos termos do contrato de seguro, em caso de morte ou invalidez total e permanente de qualquer um dos AA. (pessoa segura) a seguradora liquidaria ao banco interveniente (beneficiário) a totalidade do capital seguro que à data se encontrasse em dívida. Sobre isto não há controvérsia. O que se discute é se, tendo a A. adoecido, nos termos acima dados como provados, a incapacidade daí decorrente é coberta pelo seguro, constituindo a R. na obrigação de pagar ao banco mutuante o capital mutuado em dívida. O contrato de seguro pode ser descrito como “o contrato pelo qual uma pessoa singular ou coletiva (tomador do seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) [ - obrigação que, como ocorre no seguro de grupo, poderá ser assumida pelo aderente - ] e a última a efetuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro)” (Engrácia Antunes, O contrato de seguro na LCS 2008, in ROA, vol. 69, 2009, p. 821). Tratando-se, como sucede em regra, de um contrato de adesão, na medida em que integra cláusulas contratuais gerais elaboradas prévia e unilateralmente pelos seguradores e que os tomadores dos seguros (ou os segurados, como no caso destes autos) se limitam a aderir ou rejeitar em bloco a esse conjunto de cláusulas padronizadas, aplica-se-lhe o regime do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25.10 (LCCG). Desse regime resulta a imposição, à parte que submete à outra as cláusulas não negociadas, dos deveres de comunicação adequada e de informação suficiente das referidas cláusulas (artigos 5.º e 6.º), sob pena de se haver como excluídas do contrato concretamente celebrado (artigo 8.º, todos do Decreto-Lei n.º 446/85). Por outro lado, o uso de cláusulas contratuais gerais, assente na mera adesão por parte do contraente aderente, suscita a vigilância do equilíbrio do regime contratual, obstando-se à imposição ao aderente de cláusulas abusivas. Neste quadro, a 1.ª instância declarou a nulidade, ao abrigo dos artigos 12.º, 15.º e 16.º da LCCG, da cláusula 8.2 e do artigo 2.º das cláusulas especiais das apólices subscritas pelos AA., na parte em que, conforme transcrito em 4 da matéria de facto, se exige, para que o segurado/pessoa segura seja considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva (e assim acionar o seguro), para além de ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada, careça “de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e desde que apresente um grau de incapacidade igual ou superior a 85% de acordo com a “Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais…” Nessa parte, a sentença transitou em julgado. Resta, pois, como foi ajuizado pelas instâncias e está assente nos autos, aplicar o remanescente do clausulado contratual. No art.º 10.º da LCCG dispõe-se que “as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”. Nessa tarefa interpretativa ter-se-á como ponto de partida o disposto nos artigos 236.º, 237.º e 238.º do Código Civil: a declaração negocial valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; tratando-se de um negócio formal (no sentido de que, pese embora o princípio da simples consensualidade quanto à validade da sua formação, é obrigatória a redução a escrito, por meio da apólice, do conteúdo do acordado entre as partes) não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade); tratando-se de um contrato oneroso, prevalece o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações. Por outro lado, deverá levar-se em consideração a teleologia do contrato, isto é, a conexão existente entre o seguro e o mútuo que visa garantir. Esse aspeto foi acentuadamente ponderado no acórdão do STJ, de 27.02.2020, processo n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2, citado pelos recorrentes, onde se exarou que “[q]uando estamos perante seguros de vida associados à contratação de crédito bancário (habitualmente impostos a favor do credor mutuante como condição da concessão do crédito), as cláusulas que definem a cobertura de invalidez devem ser interpretadas de acordo com uma adequada ponderação entre o risco do segurado e o compromisso do segurador, de maneira que tal resulte em equilíbrio de prestação das partes contratantes tendo como azimute o interesse do seguro (enquanto elemento essencial do contrato), estando esse ancorado na titularidade do segurado nos termos do art. 43º do RJCS. Na verdade, sendo esse – em primeira linha e sem prejuízo de o tomador do seguro optar por outras modalidades, coberturas, riscos e beneficiários a propósito do seguro conexo com o financiamento – o pagamento do crédito ao banco (tipicamente como primeiro beneficiário do seguro em face do capital coberto e do prazo do contrato de crédito) quando o segurado já não o possa razoavelmente fazer como o terá feito até ao sinistro, por perda da sua capacidade de obtenção de rendimento, a densificação das suas coberturas tem necessariamente que ser empreendida de acordo com esse horizonte teleológico, naturalmente ancorado na expectativa legítima do segurado com a celebração desse seguro. Em síntese, garantir a alteração de vida profissional que constitui causa para não se dispor da mesma condição remuneratória com que se contava para o pagamento dos créditos obtidos”. Nessa linha, nesse acórdão o STJ considerou que preenchia o conceito de “invalidez absoluta definitiva”, previsto no contrato de seguro aí em questão, a situação de pessoa segura que, na sequência de problemas cardíacos, ficou a sofrer de incapacidade permanente de 39,62%, padecendo de quadro clínico que a impedia de exercer a sua profissão habitual e, bem assim, outras profissões que exigissem esforços físicos em geral, estando, atento o tipo de trabalho para o qual o sinistrado estava habilitado (tipo de trabalho que não é mencionado no acórdão, na versão publicada na base de dados www.dgsi.pt), bem como a sua idade, fora do seu alcance a sua reconversão. De todo o modo, e sem esquecer as considerações de proteção dos contraentes mais fracos que a legislação prevê, não poderão arredar-se, sem mais, as consequências da consagração, no nosso sistema jurídico, dos princípios fundamentais do respeito pela autonomia da vontade e da liberdade contratual (cfr. artigos 405.º e 406.º do Código Civil). Do que resulta que, à luz das regras de interpretação das cláusulas contratuais já acima identificadas, expurgadas das normas contrárias ao sistema jurídico, haverá que respeitar o sentido querido por ambas as partes, dedutível das respetivas declarações, nos termos já mencionados. Atentemos, então, no teor do clausulado que, in casu, está em questão. Arredado que está o segmento que impunha, para o preenchimento do risco de invalidez, a cumulativa necessidade de assistência permanente do sinistrado, por terceiro, para efetuar os atos elementares da vida corrente e uma incapacidade de grau igual ou superior a 85% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais, o seguro cobrirá, nos termos textuais da apólice, uma situação de invalidez absoluta e definitiva (n.º 3 da matéria de facto), conforme o que se transcreve: “o segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada (sublinhado nosso). Para contratos de seguro em que apenas há que considerar cláusulas tendo por objeto a previsão de invalidez absoluta e definitiva, encontram-se (para além do já acima citado acórdão de 27.02.2020) decisões do STJ no seguinte sentido: “A previsão de invalidez absoluta e definitiva, tal como foi convencionada, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal, que estivesse na situação dos reais declaratários, aqui autores, como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência” (acórdão de 17.10.2019, processo n.º 2978/15.0T8FAR.E1.S1) (negrito nosso). Tal visão do sentido normal dessas cláusulas é persistentemente reiterada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme se extrai de acórdãos como os de 19.6.2018 (proc. n.º 2300/15.6T8PNF.P1.S1), de 22.01.2009 (proc. n.º 08B4049), de 17.11.2020 (proc. n.º 4093/18.6T8VCT.G1.S1), acórdãos esses onde, por sua vez, se citam, no mesmo sentido, diversos outros arestos do STJ. Entre eles se inclui um que os AA. mencionam (acórdão do STJ, de 17.10.2019, processo n.º 2978/15.0T8FAR.E1.S1) como se abonasse a sua tese, mas, afinal, alinha pela tese defendida pelas instâncias, como se retira dos seguintes extratos: “A previsão de invalidez absoluta e definitiva, tal como foi convencionada, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal, que estivesse na situação dos reais declaratários, aqui autores, como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência”; “Está, pois, adquirido que a autora não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior; mas está ao seu alcance o desempenho de funções de natureza idêntica – dentro da sua área de formação técnico profissional -, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, o que é conciliável com uma situação de incapacidade parcial”; “Diz-se no acórdão recorrido: “(…) admitindo o relatório pericial que a A. poderia exercer outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com carácter parcial e sem esforços físicos significativos, não está demonstrado que tais actividades possam ser remuneradas ou que garantam o nível de remuneração que minimamente lhe permitiriam satisfazer as responsabilidades financeiras decorrentes do mútuo contratado com o Banco.” É ideia que não acompanhamos, pois, a nosso ver e na linha do que considerou a 1ª instância, era à autora que cabia o ónus de demonstrar que a sua atual e subsistente capacidade de trabalho não lhe permite a angariação de remuneração, já que a situação de invalidez absoluta e definitiva é facto constitutivo do direito que aqui pretende fazer valer – art. 342º, nº 1 do CC. Sendo assim, não pode ter-se como verificada a situação de invalidez absoluta e definitiva que faria nascer o direito da autora a exigir da seguradora o pagamento da cobertura garantida pelo seguro”. Tal entendimento não obsta a que, em certos casos, se considere que uma aparente permanência de razoável capacidade laboral residual seja considerada, ainda assim, não obstativa de um juízo de invalidez absoluta e definitiva para o efeito da cobertura pelo seguro – como se afere do já mencionado acórdão do STJ, citado pelos recorrentes, datado de 27.02.2020 (processo n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2). Aí, recorde-se, tratava-se de um sinistrado que, embora padecesse de insuficiência cardíaca que lhe causava uma incapacidade permanente avaliada em “apenas” 39,62%, ambas as instâncias, assim como o STJ (que interveio no âmbito de revista excecional deduzida pela seguradora), consideraram que, estando demonstrado que o quadro clínico do sinistrado era incapacitante para a sua profissão habitual (não indicada na base de dados onde o acórdão está publicado – www.dgsi.pt -, por confidencialização), bem como para outras profissões que exigissem esforços físicos em geral, atendendo ao tipo de trabalho para o qual o autor estava habilitado, bem como à sua idade, a sua reconversão não estava ao seu alcance – o que correspondia, atento o escopo do seguro, a invalidez absoluta e permanente ou definitiva. Quanto ao acórdão do STJ, de 10.02.2022, processo n.º 1681/18.2, igualmente citado pelos AA./recorrentes, há que atentar o seguinte: Nesse acórdão deu-se relevância ao facto de, no clausulado do contrato de seguro aí sub judice, se cobrir, como sinistro, a situação de invalidez total e permanente, que se considerou ser diferente, para o efeito de resolução do litígio, de uma situação de incapacidade absoluta e definitiva. Apelando para o teor dos diversos clausulados contratuais trazidos a juízo a propósito desta categoria de litígios, o STJ expendeu o seguinte: “Na jurisprudência deste Supremo a apreciação dos requisitos do acionamento de contratos de seguro em situações de incapacidade resultante de estados de invalidez não é unívoca. Contudo, para além de a redação dos clausulados contratuais divergirem na definição das condições que são necessárias para acionar cada um dos contratos de seguro apreciados nos arestos, também existe uma variação das coberturas que são invocadas, pois nuns casos está em causa a verificação de uma situação de incapacidade absoluta e definitiva e noutros, como no caso concreto, a situação de invalidez total e permanente. Ora, ainda que possam parecer semelhantes os dois conceitos, cláusulas como esta destinam-se a cobrir realidades diversas, como se comprova também no caso concreto. Na verdade, segundo o ponto 2. do art. 3º referente às Coberturas da apólice, a situação de incapacidade absoluta e definitiva, mais grave, é prevista como cobertura obrigatória e sujeita a um diverso condicionalismo: “Incapacidade funcional e irrecuperável igual ou superior a 75%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa”, em cumulação com a “Comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada”. Já no caso concreto está em causa uma cobertura complementar referente a incapacidade total e permanente que foi contratada facultativamente, sujeita a um diverso condicionalismo que não exige o estado de gravidade previsto para a primeira cobertura. É também por isso que a jurisprudência deste Supremo apresenta para cada uma das situações apreciadas uma leitura que coloca na equação da exigibilidade do capital as diversas circunstâncias que rodeiam o sinistrado, desde a sua profissão, à situação económica e social” (negritos nossos). No caso concreto objeto desse acórdão, a apólice de seguro cobria situações de invalidez total e permanente, aí se clausulando que uma pessoa seria considerada afetada por invalidez total e permanente “quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.” (negrito e sublinhados nossos). Além disso, era necessário que ocorresse “um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e doenças profissionais [TNI] em vigor à data do sinistro…” No caso analisado pelo dito acórdão do STJ, de 10.02.2022, a segurada sofrera de um carcinoma no nariz que a desfigurara, causando-lhe uma incapacidade parcial permanente para o trabalho, de acordo com a TNI, de 89,74%. Embora se tivesse provado que a autora estava apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinavam contacto com o público, o STJ, à semelhança da 1.ª instância (e discordando da Relação), considerou que as sequelas padecidas pela autora, à luz das características da sua profissão e das suas habilitações, que incluíam uma forte vertente interpessoal, equivaliam a uma situação de invalidez total e permanente, coberta pelo seguro contratado. Reportemo-nos ao caso destes autos. In casu, o seguro cobrirá, nos termos textuais da apólice, uma situação de invalidez absoluta e definitiva (n.º 3 da matéria de facto), conforme o que se transcreve: “o segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada (…)”. Provou-se que a A. foi acometida de uma doença oncológica que determinou a sua sujeição a mastectomia direita e, por precaução, a mastectomia esquerda, acompanhada de anexetomia bilateral (remoção dos ovários e trompas de Falópio). À data do sinistro a A. dedicava-se à atividade de venda de jornais/revistas e serviço de cafetaria, exercida em estabelecimento comercial que era (e é) explorado por ambos os Autores (n.º 26 dos factos provados). Atualmente o atendimento ao público no aludido estabelecimento é realizado pelo Autor, uma funcionária e o filho do casal (n.º 28 da matéria de facto). Provou-se que devido à doença e aos tratamentos necessários, a Autora ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (n.º 31 da matéria de facto). Tal pontuação foi fixada com base no seguinte: a) Cap. II 1.4.2 b) - mastectomia bilateral com reconstrução mamária (coeficiente 0,16-0,40): 0,20; b) Cap. XVI 2) - doença oncológica crónica - tumor maligno com estabilização clínica (coeficiente 0,10-0,25): 0,25; c) Cap. X 1 grau II – perturbação funcional moderada (coeficiente 0,06-015): 0,15 (n.º 31 da matéria de facto). Provou-se, também, que a Autora “sofreu choque quando foi confrontada com a gravidade do diagnóstico, humor depressivo, ansiedade psíquica somatizada com interferência no início e continuidade do sono, reativa ao prognóstico reservado da doença, correspondente a reação depressiva prolongada, atualmente relacionada com o receio de recidiva, traduzida na perturbação funcional moderada referida em 31), com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional “(n.º 33 da matéria de facto). Mais se provou que “[d]evido ao referido em 33), às dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, à fadiga associada à hormonoterapia, às limitações da mobilidade do braço direito, a Autora perdeu a motivação e o interesse pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores” (n.º 34 da matéria de facto). Não está demonstrado que a falta de motivação e de interesse pelas atividades que a A. anteriormente desempenhava equivalem a uma real incapacidade da A. para a sua execução. Tal como no acórdão recorrido, concorda-se com a 1.ª instância, quando, a este propósito, se exarou na sentença o seguinte: “Precisamos de ter presente que as dores sentidas após os tratamentos de quimioterapia, a fadiga associada à hormonoterapia e as limitações da mobilidade do braço direito, tiveram como impacto a perda de motivação e interesse da Autora pelas atividades que desempenhava a nível profissional, doméstico e de cuidado dos filhos menores, porém, atualmente, ultrapassado o período de cinco anos em que ficou sujeita a terapia hormonal, os efeitos secundários da mesma terão cessado, permanecendo um síndrome depressivo com moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional. (…)”. A tudo isto acresce que se deu como não provado que “dadas as limitações físicas e emocionais, a Autora não se encontra apta para o exercício da atividade referida em 26) nem de qualquer outra atividade remunerada” (alínea i) dos factos não provados). Isto é, pese embora a gravidade da doença diagnosticada à A. e a seriedade das suas consequências, estas não atingem, face aos factos provados, o limiar contratualmente assumido pelas partes para desencadear o acionamento da apólice. As considerações, em sentido contrário, tecidas pelos recorrentes, assentam, no essencial, na reiteração das críticas por aqueles formuladas na apelação contra a decisão de facto, realçando o teor dos atestados médicos de incapacidade multiuso juntos aos autos e acusando a relevância de uma suposta omissão de prova pericial (cfr. conclusões XXXIII, XXXV, XLVIII, XLIX, L, LI, LII, LIII). Tal matéria não foi incluída no âmbito da revista excecional, conforme a delimitação formulada no acórdão da Formação, acima transcrito. De todo o modo, lembrar-se-á que na Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8) anuncia-se que “[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito” (art.º 46.º). Com efeito, estipula o n.º 3 do art.º 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. Em consonância, no julgamento da revista o STJ aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido” (n.º 1 do art.º 682.º do CPC) e, reitera o n.º 2 do art.º 682.º, “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”. Nos termos do disposto no n.º 662.º n.º 4 do CPC, das decisões da Relação tomadas em sede de modificabilidade da decisão de primeira instância sobre matéria de facto não cabe recurso ordinário de revista para o STJ. O STJ apenas interferirá nesse juízo se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogismo ou assente em factos não provados (neste sentido, cfr., v.g., acórdãos do STJ de 08.11.2022, proc. nº. 5396/18.5T8STB-A.E1.S1, 30.11.2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1 e de 14.07.2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2.S1). Como decorre dos autos e foi devidamente evidenciado na sentença e no acórdão recorrido, nos autos foi realizada, sob a égide da 1.ª instância, prova pericial, a cargo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Os juízos periciais aí emitidos, assim como nos atestados médicos de incapacidade multiuso, são livremente apreciados pelas instâncias (artigos 362.º, 388.º e 389.º do Código Civil, artigos 663.º n.º 2 e 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC; especificamente sobre os atestados médicos de incapacidade multiuso, cfr. o acórdão do STJ, de uniformização de jurisprudência, n.º 8/2024, Diário da República, série I, de 25.6.2024). E, na apreciação efetuada pelas instâncias destes autos, não se vislumbra qualquer situação que fundamente a intervenção do STJ prevista no n.º 3 do art.º 674.º do CPC. O factualismo provado nesta causa, reitera-se, não satisfaz o patamar de gravidade (invalidez absoluta e definitiva, que se tem por verificada quando a pessoa segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada) contratualmente exigido para o acionamento do seguro objeto dos autos. A A. não logrou demonstrar que está impossibilitada de colaborar com o seu marido na exploração do estabelecimento de café que lhes pertence, assim como não se provou que está impossibilitada de realizar outras atividades suscetíveis de remuneração – ainda que com limitações. A revista é, pois, improcedente. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido. As custas da revista, na modalidade de custas de parte, são a cargo dos recorrentes, que nela decaíram (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC). Lx, 11.02.2025 Jorge Leal (Relator) António Pires Robalo Henrique Antunes |