Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MANUEL AGUIAR PEREIRA | ||
| Descritores: | OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO EMBARGOS DE EXECUTADO OFENSA DO CASO JULGADO ENCARGO DA HERANÇA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA TÍTULO EXECUTIVO | ||
| Data do Acordão: | 02/11/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGA-SE A REVISTA | ||
| Sumário : | I) Na falta de acordo das partes envolvidas, a obrigação dos herdeiros pelas dívidas da herança não tem natureza solidária, respondendo cada um deles conjuntamente na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança; II) Sendo instaurada acção executiva com base em sentença que condenou os réus, “herdeiros da herança aberta por óbito de (…)”, no pagamento ao autor de determinada quantia global, acrescida dos respectivos juros de mora, até integral pagamento, não incorre em ofensa de caso julgado a sentença proferida em sede de oposição à execução por embargos de executado, que decidiu que cada herdeiro responde apenas pela dívida da herança na proporção da quota que lhe coube na herança, que no caso era de 1/9 (um nono); III) Tal decisão, imposta pelo regime legal das obrigações dos herdeiros por dívidas da herança, está em linha com o dispositivo da sentença exequenda, limitando-se a clarificar a obrigação nele contida. | ||
| Decisão Texto Integral: |
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: ֎ I - RELATÓRIO Parte I – Introdução 1) Por apenso a processo de execução com base numa sentença, transitada em julgado, que lhes move AA, os executados BB, CC e DD deduziram oposição à execução por embargos de executado, alegando, em síntese, que, de acordo com o título executivo cada um deles era apenas responsável pela quantia exequenda até ao limite do valor do quinhão hereditário que individualmente lhes coube na herança aberta por óbito de EE, já que a obrigação dos herdeiros pelos encargos da herança não tem natureza solidária. Alegaram ainda os embargantes a excepção da compensação com crédito sobre o exequente de que são titulares, tendo sido interposta a competente acção declarativa em que é peticionada a condenação do exequente a reconhecer ser devedor da herança do mencionado EE. 2) O exequente embargado apresentou contestação impugnando factos alegados pelos embargantes e pedindo a improcedência dos embargos. 3) Foi oportunamente proferida sentença em primeira instância que declarou que cada um dos executados embargantes herdeiros era responsável por 1/9 (um nono) do montante em dívida ao exequente e decidiu suspender a instância de embargos de executado, quanto à questão da compensação de créditos, até ser proferida decisão nos autos em que a alegada dívida do exequente é debatida – acção nº 3586/22.5... do Juízo Central Cível de ... (Juiz ...). 4) Inconformado com o assim decidido o exequente / embargado interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa defendendo a revogação da sentença e a improcedência da oposição por embargos deduzida. Por seu acórdão de 6 de julho de 2023 o Tribunal da Relação de Lisboa 1 julgou a apelação improcedente e confirmou integralmente, usando do mesmo núcleo essencial de argumentação e sem declaração de voto de sentido divergente, a sentença recorrida. 5) Tendo o exequente / embargado AA interposto recurso de revista, por acórdão de 10 de abril de 2024, o Supremo Tribunal de Justiça julgou parcialmente procedente o recurso, declarou a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à excepção do caso julgado e à legalidade da suspensão da instância na acção declarativa 3586/22.5... do Juízo Central Cível de ... (Juiz ...) e ordenou a baixa do processo ao Tribunal da Relação, a fim de serem supridas as omissões verificadas. 6) O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão datado de 6 de junho de 2024, debruçando-se sobre a alegação da excepção do caso julgado, e também da legalidade da suspensão da instância da acção declarativa 3586/22.5... do Juízo Central Cível de ... (Juiz ...), manteve a sentença recorrida quanto à questão da responsabilidade de cada um dos executados/embargantes pelo pagamento de 1/9 (um nono) do total da dívida exequenda, por não ter por verificada a excepção do caso julgado nos termos alegados, anulando a sentença na parte relativa à suspensão da instância por pendência de causa prejudicial. O acórdão, ora recorrido, regista igualmente unanimidade entre os Juízes do Tribunal e adopta uma fundamentação nuclearmente coincidente com a sentença de primeira instância. ◌ ◌ ◌ ◌ Parte II – A Revista 7) Mais uma vez inconformado o exequente/embargado interpôs recurso de revista, limitando a impugnação do acórdão recorrido à parte que não reconheceu a invocada excepção do caso julgado. O recorrente rematou as suas alegações com as conclusões que, na parte relevante, de seguida se transcrevem. “1. (…) 2. Efetivamente, a execução mostra-se titulada por uma sentença, pela qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, sendo que os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença são os enumerados no artigo 729º do Código de Processo Civil. 3. Os pontos 2. 3. e 4. indicados como factualidade provada no Acórdão do Tribunal da Relação apenas são alcançados porquanto foi junta por um dos embargados a sentença de partilha (que ocorreu muito anteriormente ao encerramento da discussão no processo declarativo). 4. Efetivamente, não faz parte do título executivo ou da sentença condenatória a indicação de qual a legítima de cada um dos herdeiros, e se a herança é dividida por igual (quais os quinhões hereditários, se há testamento…), etc. 5. Termos em que, não obstante os RR. terem sido condenados na qualidade de herdeiros (em virtude de se encontrarem a representar uma herança indivisa ou património autónomo destituído de personalidade judiciária), os Exmos Senhores Juizes Desembargadores dividiram a dívida por igual, e por 9… (tantos quantos os RR), considerando que a dívida não é solidária, mas conjunta… 6. Pelo que estas premissas não deveriam constar no iter decisório, porquanto erróneas e em direta contravenção com o disposto no preceituado na al. g) do artigo 729º do CPC, assim como o mencionado no artigo 2.097º do Código Civil: «Os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos.» 7. E, contrariamente ao decidido pelo Acórdão ora posto em crise, não está em causa uma mera interpretação da sentença proferida na ação declarativa, dado que é inequívoco e explicito os termos da condenação: a herança aberta ou indivisa, por óbito de EE, representada pelos seus herdeiros, incluindo aqui os embargantes e recorridos, terá que pagar ao autor e aqui embargado a quantia de 186.500,00 € – constate-se o documento nºs 1 e 2 - petição inicial – em que foi demandada a herança indivisa – e a sentença que refere expressamente porque a herança responde pelas dívidas do falecido. 8. O Acórdão ora posto em crise, ao afirmar que na sentença exequenda não se condenou a herança indivisa está, com o devido respeito, a incorrer num erro crasso e contra legem, dado que a herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária (arts. 11º e 12º do CPC e 2088º, 2089º e 2091º, todos do CC), pelo que terão que ser os herdeiros a representar essa mesma herança (legitimidade passiva). 9. Tendo sido demandada na ação declarativa uma herança indivisa (vide documento nº 2), representada pelos seus herdeiros, a partilha da herança por acordo dos herdeiros realizada na pendência dessa ação é um facto modificativo da obrigação exequenda. 10. Pelo que não integra a hipótese prevista no artigo 729º alínea g) do Código de Processo Civil a partilha entre os réus executados com base nessa sentença, realizada muito tempo antes do encerramento da discussão no processo de declaração e que, se fosse nele conhecida, poderia ter levado à modificação dos termos em que a obrigação de cada um deles foi definida. 11. Estando os herdeiros conhecedores da ação proposta pelo credor, mas ainda assim partilhando por acordo a herança, omitindo o chamamento do credor para intervir no inventário, não relacionando o crédito litigioso, não o aprovando, rejeitando ou deliberando o seu pagamento e, sobretudo, conformando-se com a sentença que os condenou como representantes da herança indivisa no pagamento da quantia de 186.500 € e juros de mora, não podem agora os herdeiros embargantes opor tal partilha ao exequente. 12. O facto invocado nos embargos é anterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e a lei facultou aos embargantes os meios para atempadamente salvaguardar os seus interesses, pelo que a partilha não é fundamento para embargar a sentença. 13. De qualquer forma, a instrumentalização da partilha realizada nas evidenciadas circunstâncias para alterar o sentido e o alcance da decisão condenatória por meio de dedução de embargos à execução sempre constituiria um abuso de direito. 14. Mais é de referir que, esta interpretação dada à sentença pelos Exmos Senhores Juízes Desembargadores vai inclusivamente contra o entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça que, no âmbito deste mesmo processo, quando ordenou a baixa dos autos, pronunciou-se doutamente nos seguintes termos: “Como decorre dos factos provados supra descritos, não tendo, aparentemente, sido dado conhecimento na ação declarativa 28247/10.4... da realização da partilha entre os ali réus, foi, de modo inequívoco, decidido na sentença ali proferida que os herdeiros da herança aberta por óbito de EE, entre os quais se incluem os embargantes, eram condenados no pagamento ao então autor e ora exequente embargado, da quantia de 186.500,00 € (cento e oitenta e seis mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a citação ocorrida em 3 de abril de 2012. Foi esta sentença, transitada em julgado e não cumprida pelos ali réus que nela tiveram intervenção, que foi dada à execução como título executivo, com vista à obtenção do pagamento coercivo da quantia em dívida ao exequente. Ainda que a partilha realizada constitua um facto anterior modificativo da obrigação, sempre se imporia respeitar inteiramente o teor da sentença proferida na ação declarativa 28247/10.4... que correu termos entre as partes no Juízo Central Cível de ... (Juiz ...) e que constitui título executivo. Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Outubro de 2023, proferido no apenso A do processo principal (consultável em www.dgsi.pt) em que um outro executado questiona a mesma decisão, “não obstante a bondade dos motivos invocados, a sentença proferida nos embargos acaba por alterar radicalmente o sentido e o alcance da sentença proferida na ação declarativa: onde antes estava a condenação da herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, no pagamento da reconhecida dívida passou agora a constar a condenação de cada um dos sucessores a pagar 1/9 da reconhecida dívida”. Aqui chegados logo se antevê forçosa a conclusão que o recurso de revista interposto pelo exequente e embargado AA é admissível (…) na medida em que a sentença alterou a definição dos termos em que a relação material controvertida entre as partes foi regulada na mencionada acção declarativa 28247/10.4...” 15. Portanto, não obstante V. Exas terem ordenado a baixa do processo a fim de ser conhecida a exceção de caso julgado (porquanto não houve pronúncia, que implica nulidade), forneceram desde logo o douto entendimento de que haveria ofensa de caso julgado; a que os Exmos Senhores Juizes Desembargadores fizeram absoluta tábua-rasa deste entendimento, decidindo de modo diferente do entendimento do Tribunal Superior, assim como da própria decisão tomada pelos Exmos Senhores Desembargadores da 6ª Seção, que no âmbito do mesmo processo, também decidiram de modo diferente, em consonância com o entendimento de V. Exas. 16. Havendo assim que afirmar a autoridade do caso julgado na ação declarativa, com a consequente absolvição do embargado do pedido: 17.Tendo sido decidido por sentença na ação declarativa que os herdeiros da herança aberta por óbito de seu pai iam condenados no pagamento ao autor da quantia de 186.500,00 €, acrescida de juros de mora, a subsequente decisão dos embargos que reduz a quantia exequenda incluindo juros de mora e despesas (honorários e custas), a ser liquidada pelo embargante em 1/9 (considerando 1/9 recebido da herança) ofende a autoridade de caso julgado, em conformidade com o disposto no artigo 619º, nº 1, do CPC, o que determina a improcedência dos embargos. (…)” 8) Os autos não evidenciam a apresentação de resposta às alegações do recurso de revista por parte dos recorridos. ◌ ◌ ◌ ◌ 9) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir. O presente recurso de revista foi, à semelhança da anterior, interposto com fundamento em ofensa de caso julgado (artigo 629.º n.º 2 a) parte final do Código de Processo Civil), única questão de que cumpre agora conhecer Defende o recorrente que a decisão proferida em primeira instância, julgando parcialmente procedentes os embargos de executado e o acórdão que, em segunda instância, a confirmou, violaram o caso julgado formado pela sentença que serve de título executivo na acção de que estes autos são apenso. 10) Vem a propósito clarificar que no acórdão de 10 de abril de 2024 não foi apreciada nem decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça a ocorrência, in casu, da excepção do caso julgado formado pela sentença que serve de título executivo. O que se analisou e decidiu preliminarmente, enquanto pressuposto de admissibilidade da revista e afastamento da inadmissibilidade do recurso por dupla conforme (artigo 671.º n.º 3 do Código de Processo Civil), foi a verificação dos fundamentos da revista interposta – tal como apresentados pelo recorrente – no regime de recurso decorrente da ofensa de caso julgado (artigo 629.º n.º 2 a) do Código de Processo Civil). A apreciação das nulidades imputadas ao acórdão recorrido, incluindo a decorrente de omissão de pronúncia acerca da alegada excepção do caso julgado, só teria cabimento se tivesse sido expressamente invocada e liminarmente reconhecida a ofensa de caso julgado que, nesse contexto incidental, se afirmou. O Tribunal da Relação pronunciou-se no acórdão agora recorrido acerca da alegada excepção do caso julgado, nos termos que o exequente agora contesta. Admitida que foi a revista interposta cabe agora ao Supremo Tribunal de Justiça definir o direito aplicável à situação de facto apurada. 11) A única questão a decidir é a de saber se as decisões impugnadas foram proferidas em violação de caso julgado anterior, mais precisamente, se a sentença proferida nos embargos de executado ao declarar que cada um dos embargantes era responsável por 1/9 (um nono) do montante da dívida exequenda interpretou erradamente o decidido e modificou o conteúdo material da obrigação dos executados tal como definida na sentença que constitui o título executivo. Recapitulemos em primeiro lugar os factos apurados pelas instâncias… ֎ ֎ II - FUNDAMENTAÇÃO Parte I – Os Factos 1) Os factos considerados provados pelas instâncias e que sustentaram a solução jurídica assumida são os seguintes: “2.1.1. Por sentença proferida em 18 de maio de 2020 no processo 28247/10.4... do Juízo Central Cível de ... (Juiz ...), foram os executados, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de EE, condenados a pagar ao Exequente AA a quantia de € 186.500,00 (cento e oitenta e seis mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a data de citação (03.04.2012) até integral pagamento. 2.1.2. Por sentença proferida em 7 de novembro de 2012 no Processo n.º 108/09.7... que correu termos no extinto Juízo de Média Instância Cível da ... da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, transitada em julgado em 12 de dezembro de 2012, foi homologado o acordo de Partilha da Herança aberta por óbito de EE, lavrado por transação naquele Processo em 23 de outubro de 2012. 2.1.3. Do acordo de partilha referido resulta que todos os 9 (nove) Executados, na qualidade de herdeiros de EE, tiveram direito a um quinhão hereditário de 1/9 (um nono) da herança, o que se traduziu na prática um valor de € 657.081,33 para cada herdeiro. 2.1.4. Em 28 de fevereiro de 2022, DD, cabeça de casal da herança aberta por óbito de EE, instaurou contra o ora Exequente, acção declarativa de condenação, que corre termos no Juízo Central Cível de ... (Juiz ...) sob o nº 3586/22.5...” 2) Extrai-se da certidão junta aos autos que na ação 3586/22.5... é formulado o seguinte pedido: “a) Ser o réu condenado a reconhecer a autora como herdeira e cabeça de casal da herança de EE; b) Ser declarada a contitularidade da conta bancária aberta na “Union Bancaire Privée” em nome do réu e do falecido EE; c) Ser o réu condenado a entregar à herança de EE metade do valor que se encontrava depositado, à data do óbito, ... de ... de 2007, na conta bancária aberta na “Union Bancaire Privée”, a qual possuía na referida data um saldo de 1.045.342$00 (um milhão e quarenta mil trezentos e quarenta e dois dólares americanos), o que corresponde, à taxa de câmbio média nessa data (%1,4710 - …2007) à quantia de € 768.849,04 (setecentos e sessenta e oito mil oitocentos e quarenta e nove euros e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação, até integral e efectivo pagamento do capital em dívida; Ou caso assim não se entenda; d) Ser o réu condenado a entregar à herança de EE metade do valor de 1.045.342$00 (um milhão e quarenta mil trezentos e quarenta e dois dólares americanos), que se encontrava depositado, à data do óbito, ... de ... de 2007, na o de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data do óbito, …2007, até integral e efectivo pagamento do capital em dívida; e) Ser o réu condenado a entregar à herança as pedras preciosas que se encontravam depositadas na identificada conta bancária, a concretizar em sede de liquidação de sentença”. ◌ ◌ ◌ ◌ Parte II – O Direito 1) O recorrente AA alega que a sentença proferida em primeira instância nos autos de oposição à execução por embargos de executado – e bem assim o acórdão recorrido que a confirmou – violou de forma ostensiva a definição do seu direito efectuada na sentença da acção declarativa 28247/10.4... do Juízo Central Cível de ... (Juiz ...) que serve de título executivo no processo principal. Pugna, por isso, pela afirmação de violação do caso julgado pelo acórdão recorrido e pela insubsistência da argumentação nele produzida de acordo com a qual a sentença proferida em primeira instância traduz inteiramente o sentido da sentença exequenda. Vejamos se lhe assiste razão. 2) Sobre a figura do caso julgado enquanto excepção dilatória e sobre a conexa figura da autoridade do caso julgado recolhem-se aqui algumas, breves, considerações vertidas no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2023 (Revista 3358/20.1T8BRG.G1.S1) (disponível em www.dgsi.pt) também relatado pelo ora relator e subscrito por um dos aqui Juízes Conselheiros adjuntos. 3) “O caso julgado constitui uma excepção dilatória cuja verificação pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido julgada por sentença que já não admita recurso ordinário. A repetição de uma causa depende, como decorre do artigo 581.º do Código de Processo Civil, de uma tríplice identidade: identidade das partes, identidade do pedido e identidade da causa de pedir. Assim se garante que no caso se encontra presente e justificada a razão de ser do instituto do caso julgado: evitar que entre as mesmas partes se volte a discutir o mesmo pedido assente na mesma causa de pedir, colocando o Tribunal perante a necessidade de reapreciar litígio já anteriormente decididos de forma definitiva. 3) Como é sabido há identidade de sujeitos quando as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica – artigo 581.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – relevando a sua posição quanto à relação jurídica substancial. Por outro lado, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – artigo 581.º n.º 3 do Código de Processo Civil – considerando-se que continua a existir identidade do pedido quando o efeito jurídico obtido no primeiro processo radica nos mesmos pressupostos de direito material (ou estão neles necessariamente implícitos) que fundamentam a pretensão formulada no segundo. E há identidade de causa de pedir – artigo 581.º n.º 4 do Código de Processo Civil – quando a pretensão deduzida em ambas as acções procede do mesmo facto jurídico, sendo a causa de pedir – como salienta a sentença de primeira instância recorrida – “o facto ou conjunto de factos articulados pelo autor e dos quais derivam os efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecido”. Nesta perspectiva a função da excepção do caso julgado é a de evitar que o Tribunal seja confrontado com a opção de contradizer a decisão anterior ou de a repetir (artigo 580.º do Código de Processo Civil), assegurando a estabilidade e a paz social já que é com o trânsito em julgado de uma sentença que esta adquire a força e a imperatividade que lhe são próprias. 4) Numa abordagem diversa a força e a autoridade do caso julgado visam evitar que a relação jurídica material anteriormente decidida de forma definitiva possa ser apreciada diferentemente por nova decisão sobre a mesma matéria. Nesta perspectiva a autoridade do caso julgado pode mesmo afirmar-se fora do contexto dos estritos requisitos da excepção do caso julgado supra referidos, como sucede, de forma paradigmática, nos casos de prejudicialidade entre objectos processuais em que a decisão proferida sobre o objecto prejudicial “vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente” 2, já que ela “não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, tudo isto em nome da economia processual, do prestígio das instituições judiciárias e da estabilidade e certeza das relações jurídicas” 3. Do que se trata é de saber se a sentença proferida na acção declarativa, e que constitui o título executivo, por efeito da autoridade do caso julgado impede a interpretação levada a cabo pelas instâncias acerca da natureza solidária ou conjunta da obrigação exequenda. 4) Estamos perante uma oposição à execução baseada em sentença proferida em acção declarativa que definiu o direito do autor, ora exequente, condenando os executados, na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de EE, a pagar ao exequente AA a quantia de € 186.500,00 (cento e oitenta e seis mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação (3 de abril de 2012). Serão os executados, entre os quais se incluem os embargantes, responsáveis solidariamente pela satisfação do crédito reconhecido ao ora recorrente? Ou a responsabilidade de cada um dos herdeiros é conjunta e tem por medida apenas a proporção do seu quinhão na herança? 5) Na génese da dúvida que acaba de ser exposta – ainda que em verdade infundada – parecem estar os termos da parte dispositiva da sentença condenatória que serve de título executivo – proferida em maio de 2020 – condenando os réus “na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de EE”, quando é certo que na data da prolação da sentença a herança de EE já se se encontrava aceite pelos herdeiros e partilhada há vários anos, pois que o acordo para partilha de tal herança entre os herdeiros foi homologado por sentença datada de 7 de novembro de 2012, tendo cada um dos nove herdeiros direito a um quinhão hereditário de 1/9 (um nono) da herança. 6) Sucede que a sentença proferida a acção declarativa 28247/10.4... que constitui o título executivo não contém qualquer condenação da herança de EE, mas sim dos réus ali identificados, na qualidade de herdeiros da herança aberta pelo seu óbito, nada sendo especificado quanto a ser ou não solidária a responsabilidade entre eles perante o credor. Porque assim a referência à qualidade de herdeiros de EE só pode ser entendida, na economia do dispositivo da sentença, como a explicitação da fonte da obrigação dos réus no pagamento da quantia em dívida ao autor: os réus e executados são responsáveis por dívida da herança aberta por óbito do EE. E na ausência de qualquer acordo das partes acerca da solidariedade da obrigação a natureza desta (solidária ou conjunta) tem que ser encontrada por efeito do respectivo regime legal, uma vez que, não sendo a solidariedade o regime regra, em caso de pluralidade de sujeitos num dos lados da relação jurídica, ela só existe quando resulte da lei (artigo 513.º do Código Civil). 7) A obrigação dos herdeiros pelos encargos da herança não tem natureza solidária, não podendo o credor demandar qualquer um dos devedores pela prestação integral dos encargos da herança (artigo 512.º do Código Civil). 8) A sentença proferida em primeira instância nos embargos de executado ponderou a circunstância de a herança de EE já estar partilhada na data em que foi proferida a sentença que serve de título executivo, salientando os diferentes regimes jurídicos de liquidação dos encargos da herança enquanto esta permanece indivisa e depois de partilhada. Estando a herança indivisa quem responde pelos respectivos encargos é o património comum e, colectivamente, os bens que o integram (artigo 2097.º do Código Civil), carecendo de rigor equacionar a questão da responsabilidade solidária dos herdeiros por dívidas da herança enquanto esta permanecer indivisa. Efectuada que seja a partilha cada herdeiro só responde pelos encargos da herança na proporção que nela lhe tenha cabido – artigo 2098.º do Código Civil. Em qualquer dos casos nunca o credor pode demandar o devedor que escolher pela totalidade da obrigação. 8) Daí que, o dispositivo da sentença que serve de título executivo não consinta outra leitura que não aquela que foi feita na sentença proferida nos embargos de executado e sufragada pelo acórdão recorrido: a condenação dos executados, “na qualidade de herdeiros” de EE no pagamento do valor global da dívida significa, em rigor, que, efectuada a partilha, cada um dos herdeiros só responde pelos encargos da herança na proporção que nela lhe tenha cabido, no caso 1/9 (um nono) do valor global da dívida de que o ora recorrente é titular activo. 9) Ora se assim é, logo se antevê que as decisões recorridas não incorreram em violação da autoridade do caso julgado formado pela sentença que constitui o título executivo no processo principal, limitando-se a explicitar e a clarificar, tendo em conta a natureza jurídica da obrigação dos executados transposta para a sentença, a limitação da responsabilidade dos herdeiros pelos encargos da herança (artigo 2098.º do Código Civil), isto é, que cada um dos executados só responde na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança, sendo no caso essa proporção de 1/9 (um nono) do total. 10) Em conclusão, não se tem por verificada a ofensa de caso julgado, nem enquanto excepção dilatória nem na vertente da autoridade do caso julgado, devendo a revista interposta ser julgada improcedente na exacta medida em que o acórdão recorrido, interpretando adequadamente e respeitando os limites materiais da sentença que constitui o título executivo, decidiu que nenhum dos herdeiros respondia pela totalidade da dívida da herança e que cada um deles apenas respondia na proporção do que lhe coube na herança aberta por óbito de EE. 11) Não tendo o recorrente obtido ganho de causa de acordo com o disposto no artigo 527.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, fica responsável pelas custas devidas nesta fase do processo. ֎ III - DECISÃO Termos em que acordam em julgar improcedente a revista interposta por AA e confirmar o acórdão recorrido. Mais acordam em condenar o recorrente, por ter ficado vencido, nas custas relativas ao recurso de revista Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 11 de fevereiro de 2025 Manuel José Aguiar Pereira (relator) Jorge Manuel Leitão Leal Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro _____________________________________________________________________________________ 1. A título de questão prévia o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu o pedido de apensação entre estes autos e os do recurso de apelação de decisão proferida nos embargos de executado que constituem o apenso A – por terem sido suscitadas em ambos as mesmas questões de direito, havendo risco de serem proferidas decisões finais contraditórias – atendendo à falta de fundamento legal para tal apensação por as decisões impugnadas não terem sido proferidas no mesmo processo.↩︎ 2. Assim o Prof. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o Novo Processo Civil” – Editora Lex – 1996 a pág. 335.↩︎ 3. Cfr sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2010 proferido na revista 3749/05.8TTLSB.L1.S1 (consultável em www.dgsi.pt) e de que foi relator o Juiz Conselheiro Sousa Grandão.↩︎ |