Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
| Descritores: | DUPLA CONFORME ADMISSIBILIDADE RECURSO DE REVISTA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA ERRO DE JULGAMENTO PODERES DA RELAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA DECISÃO SINGULAR ÓNUS DE ALEGAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 10/21/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | RECLAMAÇÃO INDEFERIDA | ||
| Sumário : | I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objeto de recurso de revista, se ocorrer ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 722, n. 2 do Código de Processo Civil). II. Cabendo ao recorrente, em tal caso, um especial ónus de alegação, na concretização dessa ofensa, não se limitando a um pedido de reapreciação genérica da prova pela Relação. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em Conferência, na 6ª secção, no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório Veio AA reclamar para a Conferência nos termos do art. 652º, 3 do CPC, relativamente ao despacho da relatora que manteve a não admissibilidade da revista normal, depois de sugerido pela Formação uma reapreciação por possível descaracterização da dupla conforme, quanto ao tópico relativo ao modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo art. 662.º do CPC. Reportam os autos que, na presente ação comum BB pediu contra AA que, estando registado em nome deste um imóvel cuja aquisição foi custeada pelo pai de ambos, entretanto falecido e, estando o seu património sob inventário, fosse proferida decisão no sentido de: a) a fração doada ser submetida à colação através da restituição do bem à massa da herança aberta por óbito de CC, com alteração ou retificação do registo de transmissão; b) ou, em alternativa, ser imputado o valor da doação na quota hereditária do Réu. Efetuado o julgamento em 1ª instância e tendo sido dado como provado que o falecido havia custeado a aquisição do imóvel em causa, dando posteriormente o usufruto à Autora e a nua propriedade ao Réu, a ação veio a ser julgada procedente, tendo a sentença determinado “a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., computado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação”. Ambos, Autora e Réu, recorreram de apelação. A Autora impugnou os factos e defendeu que o imóvel devia regressar à massa da herança. O Réu impugnou os factos e pugnou pela improcedência total dos pedidos. No conhecimento das apelações o Tribunal da Relação proferiu acórdão que conhecendo das impugnações de facto, as julgou improcedentes mantendo a factualidade dada fixada pela 1ª instância, e decidiu, por unanimidade: «Julgar improcedentes ambas as apelações (a interposta pela autora e a interposta pelo réu), mas altera-se a sentença proferida em primeira instância e onde se escreveu “determina-se a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., computado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação” passará a constar “determina-se a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao preço pago pela nua propriedade do prédio identificado em 1., atualizado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação”.» Ou seja, na sentença declarou-se sujeito à colação: o valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., computado à data do óbito daquele. No acórdão disse-se sujeito à colação: o valor correspondente ao preço pago pela nua propriedade do prédio identificado em 1., atualizado à data do óbito daquele. Precisou-se a forma de cálculo do valor sujeito à colação, referenciando-o ao preço pago. Afastando desse modo outros possíveis referenciais, como por exemplo, o valor do mercado da nua propriedade à data do negócio. 11. De novo inconformado veio o Réu interpor recurso de Revista na modalidade de Revista a título normal e subsidiariamente de Revista a título excecional. 12. São do seguinte teor as suas conclusões de recurso de Revista: a) O douto acórdão trazido à colação e agora colocado em crise viola diversos princípios legais, suscitando-se por via deste recurso diversas questões; b) Considera o aqui recorrente ser o presente recurso admissível, quer por via de revista quer, eventualmente, por via de revista excecional; c) Pretende-se uma avaliação exaustiva da decisão do TRP, quer das suas lacunas, quer das suas omissões, quer das suas erradas interpretações ou ainda dos erros em matéria de direito que incorreu; d) Não pode o recorrente aceitar os termos do ora decidido pelo TRP; e) Pese embora definitivamente decidida a questão sobre uma qualquer simulação, que foi descartada, f) O mesmo não ocorreu relativamente à questão da existência de uma doação indireta do pai do recorrente em benefício do aqui recorrente; g) Erra o TRP ao caucionar e aceitar – de forma taxativa - a versão que terá existido um acordo entre o recorrente e o seu pai, criando uma ficção de modo a enganar os demais herdeiros; h) O TRP não fez uso, como devia, dos seus poderes deveres relativamente à prova produzida ou dita como produzida, previstos no art. 662º, 1 e 2 e 674º, 1 a) e b) do CPC, i) Deveria o TRP ter constatado vistas as referências em sede de julgamento a dívidas do pai, avais, penhoras e empréstimo pelo recorrente, j) Da necessidade de ordenar oficiosamente a realização de novos meios de prova, nomeadamente a obtenção de documentos via entidade bancária ou judicial que comprovassem quer a penhora sobre a empresa do pai – ou sobre aquele – quer da actuação da entidade bancária acionando uma qualquer garantia que tinha sobre o pai do recorrente (assim se provando o empréstimo efectuado pelo recorrente àquele pai); k) A ter agido assim teria o TRP fazendo uso dos ditos poderes-deveres sido mais assertivo e cuidadoso e chegado à verdade dos factos por outra via do que a prova testemunhal por que se ficou a 1ª instância; l) Diga-se poderes, mas também, e principalmente, deveres, que recaiam sobre o TRP como imposição clara resultantes da reforma processual de 2013; m) A ter tratado de indagar muito mais ao invés de uma atitude passiva e repetidora do já sustentado em 1ª instância, modificando a decisão proferida, obviamente dando como não provada uma qualquer alegada doação indirecta; n) A este STJ não está vedada a análise sobre a produção e modificação ou não da matéria de facto, censurando a mesma e verificando se foi violada ou feita aplicação errada da lei de processo (alínea b) do nº1 do artigo 674º do Código de Processo Civil); o) Constatando da omissão pelo TRP do seu poder-dever fundamental de lançar mão de outros meios de prova oficiosamente, p) Em face da contestação apresentada pelo recorrente, do alegado e contra-alegado e do resultante (ou não) da mera prova testemunhal; q) A omissão de agir pelo TRP traduz um não cumprimento de um dever violando o estatuído no art. 662º, 1 e 2 al. a) e b) do CPC como o previsto na CRP no seu art. 20º d CRP e mesmo o referido no art. 6º, 2 do CPC; r) O acórdão do TRP não fez uso do reforço dos poderes das Relações na reapreciação da matéria de facto, frustrando-se o conhecer das questões enunciadas limitando-se a “repetir” a 1ª instância; s) Não formou o TRP de forma autónoma uma convicção própria de todos os elementos de prova, pelo que em termos práticos (ou teóricos se quisermos) vimos a cair no âmbito um recurso de apelação excepcional no que toca à matéria de facto; t) Estamos perante uma questão jurídica que necessita (uma vez mais) de uma melhor aplicação direito, perante o caso concreto, pois uma resposta adequada à mesma permitirá no futuro um melhor enquadramento da disciplina da reapreciação da matéria de facto, contribuindo quiçá, para uma diminuição dos recursos nesta sede, e cumprindo o desiderato constitucional de obtenção de Justiça pelos cidadãos (art. 20º da CRP); u) No acórdão em crise o TRP decidiu mal ao considerar o recurso do recorrente como improcedente, tendo feito errada interpretação dos factos (e errado exame critico), e inadequada aplicação do direito principalmente quanto à aplicação das leis do processo sobre reapreciação da matéria de facto pois não buscou de outras provas tendentes a chegar à verdade dos factos; v) Conforme diversos doutos acórdãos (Ac. do TRP, datado de 08/10/2018, Acs STJ de 30/05/2013, e Ac. STJ de 18/05/2017, ora juntos) um qualquer Tribunal da Relação deve formar a sua própria e autónoma convicção, procedendo à análise crítica, à luz das regras da ciência, da lógica e das regras da experiência humana, dos meios de prova convocados pelo apelante e outros que julgue relevantes para a decisão e se mostrem acessíveis o que de todo neste caso não sucedeu; w) A ser assim o TRP deveria ter dado como não provados os factos ditos provados nos pontos 13, 14 e 15 (pelo menos) (fls. 28 a 30 do douto acórdão em crise) e como provados os ditos como não provados nas alíneas b), d), f), g), h), i), j), k) e l) (fls. 30 e 31 do acórdão do TRP); x) Considera também o recorrente que o TRP não deu cumprimento ao preceituado nos art.s 205º da CRP e 154º do CPC quanto ao seu dever de fundamentação da decisão/sentença, y) Pois não procedeu a uma verdadeira restauração e exame crítico do que conduziu o tribunal de 1ª instância a considerar cada facto como provado ou não provado; z) O recorrente considera que não tendo sido igualmente tratada ou discutida pelo TRP a questão sobre o tipo de qualificação jurídica da acção em concreto como interposta pela A. ocorreu uma omissão de pronuncia; aa) Em sede anterior foi suscitada oficiosamente a questão de se saber se estaríamos no âmbito de uma acção de reivindicação ou de uma petição de herança; bb) Vistos os seus poderes deveres deveria o TRP igualmente se pronunciado sobre tal questão que ora não deverá deixar de ser obrigatoriamente escrutinada por este douto Tribunal porque de matéria de direito se tratando (art. 674º, 1 do CPC); cc) Da consideração do tipo de acção como intentado pela A. decorrem consequências jurídicas não desvalorizáveis e com influência directa no resultado da acção pelo que urge ora suprir inercias anteriores e averiguar da qualificação jurídica do tipo de acção em causa (que se dirá será de conhecimento oficioso); dd) A não ser entendido assim – bem como na outra questão levantada sobre a omissão relativa à matéria de facto – estaríamos de uma certa forma a denegar a justiça; ee) Entende o recorrente, que as questões que supra levantou a não serem compagináveis com a revista dita normal, sempre o deverão ser como de revista excepcional pela sua relevância jurídica que conduzirá à melhor aplicação do direito (art. 672º CPC); ff) O STJ não deve estar sujeito a limitações ou amarras na sua intervenção, condicionado por visões meramente formais, sob pena de poder deixar passar em claro, distorções ou erros anteriores; gg) A intervenção do STJ deve ser um meio para obtenção quer da aproximação ao ideal de justiça quer da justeza de cada decisão nos casos concretos (art. 20º, 1, 4 e 5 da CRP); hh) Em suma no caso presente, este Venerando Tribunal indo mais além, suprindo erros e omissões, dos Tribunais a montante ou das partes, chegará a conclusões diversas daquela do TRP, revogando a decisão daquele. 13. Em resposta a Autora recorrida contra alegou, assim concluindo: 1.º - Não existe uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, que legitime o recurso de revista. 2º - A primeira instância reconheceu a existência de uma verdadeira doação, camuflada pela compra e venda, e considerou, em consequência, que deve ser determinada a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., à data do óbito daquele, o qual deve ser declarado sujeito ao ónus da colação. Por sua vez, o Ac. recorrido que manteve a decisão, improcedendo o recurso da A. e o do R., acrescentou que “Como estamos perante uma doação em dinheiro (doação do preço) o valor é atualizado, nos termos do artigo 551 do CC (artigo 2109, n.º 3 do CC).” Significa isto que aquela consideração final, não constitui fundamentação essencialmente diferente nos termos e para os efeitos do n.º 3 do art.º 671.º do CPC. 2.º No que concerne à revista excepcional, é cristalino que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no n.º 2 do art. 672.º do CPC. Sendo que, o que os autos revelam é que a divergência do Recorrente relativamente ao julgado se situa essencialmente no plano da fixação dos factos provados e dos juízos neste âmbito levados a cabo pelo Tribunal da Relação, matéria em que, como se sabe, a mesma Relação goza de autonomia decisória, nos termos regulados nos arts. 662.º, n.º 4, e 674º, nº 3. 3.º Pelo que, devem ambos os recursos ser liminarmente rejeitados, por manifesta falta de fundamento legal. Termos em que o Recurso apresentado deve ser liminarmente rejeitado ou caso assim não se entenda, o que se aceita por mera hipótese académica, declarado improcedente, com o que se fará inteira e sã Justiça! Apreciando do pedido de revista normal motivou a Relatora a sua decisão de 28/03/2025 do seguinte modo: «Da reação do Réu Recorrente extrai-se que, para fundamentar a admissibilidade da Revista a título normal invoca, em relação ao acórdão recorrido: “ser aquele portador de vícios, erros e irregularidades passíveis de ser qualificados como nulidades e porque o mesmo tem fundamentação essencialmente diferente da decisão da 1ª instância (inexistindo a designada “dupla conforme”), dele pretende interpor recurso de revista prevista no art. 671º, 1 e 3 do CPC, com fundamento na violação dos art.s 154º, 186, n.º 1 e 2, al. a), 196º, 662º, 1 e 2, al. a) e b), 663º, ex vi 607º, 3 e 4, 666º ex vi 615º, 1 b), c) e d) 674º, 1 b) e c) e 682º todos do CPC, art. 342º, 1 do CC e art. 20º da CRP.” Resulta assim invocado: - A existência de vícios, erros e irregularidades passíveis de ser qualificados como nulidades; - A inexistência de dupla conforme. Vejamos da viabilidade de tal sustentação. O art. 615.º, n.º 4, do CPC, aplicável à 2ª instância (art.º 666º) estabelece as situações em que é nula a sentença. O Réu, agora recorrente, sustenta que o Tribunal da Relação não conheceu das questões enunciadas – desde logo quanto à decisão relativa à matéria de facto; não fundamentou a decisão e omitiu a pronúncia, concretamente sobre a qualificação jurídica da ação (alªs b) e d) do referido artigo). O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, concordantemente, que a arguição de nulidades do acórdão recorrido não é admitida como fundamento exclusivo de recurso de revista (cfr, P. 2332/20.2T8PNF.P1.S2. de 07/07/2022 e P. 13272/18.5T8SNT.L1.S1 de 02/02/2023, in www.dgsi.pt). O que implica que, se aquela decisão não admitir recurso ordinário, as referidas nulidades só são arguíveis mediante reclamação perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, nos termos dos artigos 615.º, n.º 4, 1.ª parte, e 617.º, n.º 6, do CPC. A sua apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça ficará, assim, dependente da admissão do recurso, seja a título normal, seja a título excecional. O art. 671º do CPC estabelece as regras essenciais respeitantes à admissibilidade do recurso de revista dos acórdãos da Relação. Assim, nos termos do nº 1: “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.” O nº 3 do art. 671º do CPC prevê uma restrição de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça assente na «dupla conforme»: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.” Não haverá “dupla conforme” seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação confirmando embora a decisão da 1ª instância o faça com uma “fundamentação essencialmente diferente”. Assim, se para chegar ao resultado idêntico, a Relação percorreu caminho diferentes, tal equivale, para efeitos de admissibilidade da revista, a que se tomaram duas decisões substancialmente diversas, sendo justificado o terceiro grau de jurisdição. Sendo linear que o presente recurso de revista preenche a regra estabelecida no nº 1 do art. 671º, importa apurar se, face à aparente identidade de decisórios, se verifica uma situação de “dupla conforme” impeditiva da admissibilidade da Revista normal. No caso, a sentença decidiu: “Julgar procedente a presente ação e, em consequência, determina-se a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., computado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação.” Por seu turno, o acórdão da Relação decidiu: «Julgar improcedentes ambas as apelações (a interposta pela autora e a interposta pelo réu), mas altera-se a sentença proferida em primeira instância e onde se escreveu “determina-se a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio identificado em 1., computado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação” passará a constar “determina-se a restituição à massa da herança aberta por óbito de CC e para igualação da partilha, do valor correspondente ao preço pago pela nua propriedade do prédio identificado em 1., atualizado à data do óbito daquele, o qual se declara sujeito à colação.”» Ambas as decisões são concordantes quanto à condenação do Réu à restituição do valor correspondente ao da nua propriedade do prédio, acrescentando o acórdão um elemento definidor do apuramento do montante – o valor há-de corresponder ao que foi pago, atualizado à data do óbito -, e não apenas computado à data do óbito como estabelecido na sentença. Tal definição, por secundária, não permite concluir por uma desconformidade decisória entre sentença e acórdão. Poder-se-á ainda questionar se a Relação empregou uma “fundamentação essencialmente diferente” ao concluir que, o que o pai doou ao Réu não foi a “nua propriedade” (doação direta) como decidiu a sentença, mas o “preço da nua propriedade” (doação indireta) como decidiu o acórdão. A doutrina e a jurisprudência têm clarificado o conceito de “fundamentação essencialmente diferente”. Assim, para o que ora importa: “A alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente induz-nos a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso” – António Santos Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, p. 425. “O aditamento de um fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de lª instância, não descaracterizam a dupla conforme” - Ac. STJ de 07-07-2022, P. 2672/12.4TBPDLL1 -A.S1 in www.dgsi.pt. Face à coincidência de construção dogmática na consideração de que a liberalidade praticada pelo pai do réu relativamente a este tem os requisitos da doação sujeita a colação e refere-se a uma nua propriedade, a divergência entre “doação da nua propriedade” e “doação do preço da nua propriedade”, por marginal e secundária relativamente aos efeitos e ao resultado - não permite sustentar uma diversidade de fundamentação essencial. Assim, importa afirmar que o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, logo, não é admissível, ao caso, o Recurso de Revista normal (nº 3 do art. 671º do CPC).» Não se tendo admitido a revista normal, remeteram-se os autos à Formação para o efeito de indagação dos requisitos de admissibilidade da revista excecional previstos no artigo 672.º n.º 1 alªs a) e b) do CPC, verificadas que estavam as condições gerais para essa admissão. Culminou o acórdão da Formação com a seguinte pronúncia: «Face ao exposto, acorda-se em não admitir a revista excecional, determinando-se, nos termos do art. 672.º/5 do CPC, a apresentação dos autos à Exma. Senhora Conselheira relatora para apreciação da admissibilidade da revista nos termos gerais (atenta a questão invocada pelo recorrente configurar uma possível situação de descaracterização da dupla conforme).» Tendo fundamentado: «No caso, e sem prejuízo do referido a propósito da problemática relativa à qualificação jurídica da ação interposta, tendo em conta que a questão essencial que a recorrente invoca revestir relevância jurídica e sobre a qual entende existir contradição de julgados se reconduz ao tópico relativo ao modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo art. 662.º do CPC, sendo que esta previsão legal constitui “lei de processo” para os efeitos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, não estará verificada a dupla conformidade decisória pressuposta para a admissibilidade do presente meio impugnatório excecional. Considerando que não foi apreciada no despacho liminar de admissão do recurso, de modo concreto, a sobredita questão atinente à descaracterização da dupla conforme, justifica-se, nos termos preceituados pelo n.º 5 do art. 672.º do CPC, determinar a apresentação do processo à Exma. Senhora Conselheira relatora para conhecimento da revista nos termos gerais.» Remetidos os autos à Relatora a mesma proferiu despacho sustentada nos fundamentos da sua decisão de 28/03/2025. Veio então o Réu/Recorrente reclamar para a Conferência nos termos do art. 652º, 3 do CPC. Invoca para o efeito ser patente a existência de duas posições distintas, abstraindo a questão da revista excecional, ou seja, sobre a questão da admissibilidade ou não da dita revista normal. Tendo o acórdão de 8/5 considerado o que deveria ocorrer a apresentação dos autos “à Exma. Senhora Conselheira relatora para apreciação da admissibilidade da revista nos termos gerais (atenta a questão invocada pelo recorrente configurar uma possível situação de descaracterização da dupla conforme” e, tendo a Senhora Conselheira relatora no despacho de 20/6 vindo a considerar que tal questão se mostrava já decidida, requer seja proferida decisão para que não fiquem dúvidas numa qualquer decisão judicial, pretendendo o Reclamante saber se “É ou não admissível a revista normal neste caso concreto”. Cumpre apreciar: Dispondo o art. 674º nº 1, alª b) que a revista pode ter por fundamento “A violação ou errada aplicação da lei de processo” e, prevendo o nº 3 do mesmo preceito que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa na lei que exija certa espécie de prova para a existência ado facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, tal significa que, a competência do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, está confinada à apreciação da matéria de direito, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, enquanto situações ou ocorrências da vida real das pessoas e das coisas, percetíveis como tal, ficando vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido. Mas significa também que, no âmbito dessa apreciação de direito, poderá o Supremo Tribunal de Justiça conhecer da matéria de facto se houver ofensa de uma disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova. O Supremo Tribunal de Justiça pode igualmente fiscalizar o cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640.º do CPC, que se inscreve nos fundamentos da revista por violação ou errada aplicação das leis de processo e na previsão do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC. O Supremo Tribunal de Justiça pode ainda mandar ampliar a decisão de facto se a mesma for insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou determinar a repetição do julgamento se existirem contradições na decisão sobre essa matéria em ordem a viabilizar a decisão de direito. Sobre tal delimitação, cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., not. 5 do art. 674º onde se refere: “Em síntese, o Supremo pode sindicar a decisão da matéria de facto quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de alguns dos meios de prova admitidos no sistema jurídico português (STJ 30-11-21, 212/15, STJ 13-1-15, 219/11).” Das alegações do recurso de revista resulta que a pretensão recursória subjacente consubstancia uma reapreciação genérica da prova pela Relação, ou seja, traduz-se num recurso genérico pedindo a reapreciação de toda a prova já produzida bem como a produção oficiosa de novos meios de prova. São disso exemplo as seguintes conclusões: “c) Pretende-se uma avaliação exaustiva da decisão do TRP, quer das suas lacunas, quer das suas omissões, quer das suas erradas interpretações ou ainda dos erros em matéria de direito que incorreu; (…) g) Erra o TRP ao caucionar e aceitar – de forma taxativa - a versão que terá existido um acordo entre o recorrente e o seu pai, criando uma ficção de modo a enganar os demais herdeiros; h) O TRP não fez uso, como devia, dos seus poderes deveres relativamente à prova produzida ou dita como produzida, previstos no art. 662º, 1 e 2 e 674º, 1 a) e b) do CPC, i) Deveria o TRP ter constatado vistas as referências em sede de julgamento a dívidas do pai, avais, penhoras e empréstimo pelo recorrente, j) Da necessidade de ordenar oficiosamente a realização de novos meios de prova, nomeadamente a obtenção de documentos via entidade bancária ou judicial que comprovassem quer a penhora sobre a empresa do pai – ou sobre aquele – quer da actuação da entidade bancária acionando uma qualquer garantia que tinha sobre o pai do recorrente (assim se provando o empréstimo efectuado pelo recorrente àquele pai); k) A ter agido assim teria o TRP fazendo uso dos ditos poderes-deveres sido mais assertivo e cuidadoso e chegado à verdade dos factos por outra via do que a prova testemunhal por que se ficou a 1ª instância; (…) m) A ter tratado de indagar muito mais ao invés de uma atitude passiva e repetidora do já sustentado em 1ª instância, modificando a decisão proferida, obviamente dando como não provada uma qualquer alegada doação indirecta; (…) q) A omissão de agir pelo TRP traduz um não cumprimento de um dever violando o estatuído no art. 662º, 1 e 2 al. a) e b) do CPC como o previsto na CRP no seu art. 20º d CRP e mesmo o referido no art. 6º, 2 do CPC; (…) r) O acórdão do TRP não fez uso do reforço dos poderes das Relações na reapreciação da matéria de facto, frustrando-se o conhecer das questões enunciadas limitando-se a “repetir” a 1ª instância; (…) w) A ser assim o TRP deveria ter dado como não provados os factos ditos provados nos pontos 13, 14 e 15 (pelo menos) (fls. 28 a 30 do douto acórdão em crise) e como provados os ditos como não provados nas alíneas b), d), f), g), h), i), j), k) e l) (fls. 30 e 31 do acórdão do TRP); x) Considera também o recorrente que o TRP não deu cumprimento ao preceituado nos art.s 205º da CRP e 154º do CPC quanto ao seu dever de fundamentação da decisão/sentença, y) Pois não procedeu a uma verdadeira restauração e exame crítico do que conduziu o tribunal de 1ª instância a considerar cada facto como provado ou não provado; z) O recorrente considera que não tendo sido igualmente tratada ou discutida pelo TRP a questão sobre o tipo de qualificação jurídica da acção em concreto como interposta pela A. ocorreu uma omissão de pronuncia;”. De tais conclusões não resulta indicada ofensa de disposição legal expressa que exija determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de lei de determinado meio de prova. Não resulta igualmente alegado ou concretizado o incumprimento dos ónus primários previstos nas als. a), b) e c) do art. 640.º do CPC, para a impugnação da matéria de facto. E, quanto ao incumprimento do dever de fundamentação da sentença (leia-se “acórdão”) ou do exame crítico da prova e, omissão de pronúncia quanto à qualificação jurídica da ação, não vemos que o acórdão recorrido padeça de qualquer desses vícios. Com efeito, o tribunal de recurso apreciou, com detalhe, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, deduzida por ambos os apelantes, fundamentou, de facto e de direito, a decisão proferida e, em coerência com esse julgamento não tinha que renovar pronúncia sobre a natureza da ação em causa. Desse modo, a pretensão recursiva não integra as exceções que permitem a interferência do Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à delimitação da matéria de facto, mostrando-se, assim, afastada a possibilidade da revista normal, nos termos do art. 674.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do CPC. Em suma: - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objeto de recurso de revista, se ocorrer ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 722, n. 2 do Código de Processo Civil). - Cabendo ao recorrente, em tal caso, um especial ónus de alegação, na concretização dessa ofensa, não se limitando a um pedido de reapreciação genérica da prova pela Relação. II. Decisão Termos em que se acorda em não atender à reclamação, confirmando-se a decisão recorrida de não admissibilidade, ao caso, da revista normal. Custas pelo Reclamante em 1Uc. Lisboa, 21 de outubro de 2025 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Maria Olinda Garcia (1ª Adjunta) Maria do Rosário Gonçalves (2ª Adjunta) |