Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOSÉ CARRETO | ||
Descritores: | ESCUSA IMPARCIALIDADE ISENÇÃO JUIZ NATURAL MOTIVO JUSTIFICATIVO | ||
Data do Acordão: | 10/31/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | ESCUSA / RECUSA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário : | I - O instituto da escusa do juiz assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares II - É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências. III - Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. IV - o motivo invocado: ter intervindo noutro processo entre as mesmas partes e onde parcialmente se discute um mesmo circunstancialismo, deve ser avaliado segundo uma perspectiva de natureza subjectiva, traduzido na averiguação de saber se o juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspectiva de natureza objectiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz. V - Se o Mº Juiz não manifesta nenhum interesse no caso nem se vê que possa existir, e inexistindo uma relação pessoal com as partes no processo pelo que na perspectiva subjectiva não ocorre motivo para a escusa. Numa perspectiva objectiva, não existem razões para que ocorra uma qualquer desconfiança, porque a situação em que interveio (despacho de pronuncia por crime de fotografia ilícita) e a presente apesar de se reconduzirem à mesma situação de facto, as posições estão invertidas, além o arguido acusava a assistente autora do ilícito porque o fotografou, aqui a assistente acusa o arguido de abuso de poder por ter consigo agentes da PSP numa situação de entrega de menor, no âmbito de regulação de responsabilidades parentais: naquele apenas se analisou o ato da arguida, aqui apenas o ato do arguido que não têm qualquer similitude, e o conhecimento advindo daquele não se repercute neste. VI - O motivo elencado não traduz mais do que as situações da vida do juiz, quantas vezes tem de julgar as mesmas partes por factos diversos e até em posições divergentes. VII - A possibilidade de ocorrer animosidade do arguido ou da assistente para com o juiz que o julga ou que aprecia os seus atos é uma decorrência normal do exercício das suas funções, que de modo algum põem em causa a sua independência e imparcialidade VIII – Se nem sequer ocorreu um juízo definitivo sobre uma parte da ocorrência (apenas indícios para a pronuncia pelo crime de fotografia ilícita), não existe motivo para afastar o principio do juiz natural, que só deve ocorrer se existiram razões mais fortes para tal do que aquelas que “visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça. No Proc. nº 24/20.1TRLSB a correr termos no Tribunal da Relação de ..., ... Secção Criminal, em que é arguido Sr. Juiz ... Dr. AA, e Assistente a Srª Dra. BB Veio o Mº Juiz Desembargador Dr. CC, apresentar pedido de escusa, para intervir nos presentes autos, na fase de instrução. Alega que lhe foi distribuído o processo de instrução em causa e que a assistente nos presentes autos veio juntar aos mesmos, em 28/06/2024, cópia do acórdão deste Tribunal da Relação de ... que confirma a absolvição da aqui assistente, no âmbito do processo 4514/20.8..., no qual interveio tendo proferido despacho de pronuncia, instrução essa cujos factos têm uma coincidência parcial com aqueles porque proferiu despacho de pronuncia. Por esse facto, embora considere que a sua “capacidade de julgar com independência e imparcialidade não está em causa e de se sentir apto a proferir decisão nestes autos, com imparcialidade,” entende “existir uma forte probabilidade da possibilidade de uma situação de animosidade, susceptível de gerar desconfiança sobre a minha imparcialidade” face à sua repercussão publica (com pedido de acesso ao processo por jornalistas) e ao impacto que aquele processo teve na vida dos intervenientes. O presente incidente foi instruído com certidão do processado O ilustre PGA, emitiu parecer no sentido do indeferimento Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência, com observância do formalismo legal. Cumpre decidir. Com interesse para a decisão há a considerar. Nos presentes autos foram denunciados pela assistente contra o arguido factos que podem ser integradores dos crimes de denuncia caluniosa, abuso de poder (este em duas situações de facto). O Mº Pº no final do inquérito arquivou o mesmo por insuficiência de indícios A assistente requereu abertura de instrução. O Mº Juiz Desembargador requerente pronunciou a assistente pelo crime de fotografia ilícita em que o fotografado era o Mº Juiz arguido. A foto foi tirada pela assistente na situação em que o arguido estava acompanhado por agentes da PSP aquando da entrega por aquela a este do filho menor, para comprovar essa entrega em vista do incumprimento das responsabilidades parentais. Neste inquérito a assistente acusa o arguido de ao fazer-se acompanhar da PSP ter usado a sua qualidade de juiz e ter abusado do seu poder como tal, quando não estava no exercício das suas funções. Pelo crime de fotografia ilícita a assistente foi absolvida pelo Tribunal da Relação, por não considerar tal facto ilícito. + O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), está previsto no art. 43º do CPP, nos termos do qual: “1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. (…). 4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nº 1 e 2”, e assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares - os juízes - cuja importância foi elevada à consagração internacional - cfr. os arts. 2º, 8º, 20º, 202º e 203º da CRP; art. 4º nº 2 da LOFTJ; artºs 4º, 5º e 6º do EMJ; art. 6º § 1 da CEDH; art. 10º da DUDH; art. 14º nº 1 PIDCP e do artº 47º da CDFEU - e as regras estabelecidas em vista dessas garantias emergem também do direito de acesso aos tribunais (artº 20º 1 CRP), e constituem, atenta a sua estrutura acusatória do processo penal (art. 32 nº 5 da CRP), um meio de impor e acautelar os princípios das garantias de defesa e do juiz natural (art. 32º nºs 1 e 9 CRP). É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências, e que constitui a única maneira de administrar a justiça em nome do povo – artº 205º CRP, e de os cidadãos confiarem na justiça, e que constitui a razão de ser desta. Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. O instituto da escusa visa “Mais do que garantir uma atuação dentro da legalidade, objetividade e independência, está em causa defender todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, reforçando por esta via a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, de acordo com a velha máxima inglesa not only must Justice be done; it must also be seen to be done (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», p. 12-13). Esta é uma exigência do processo justo e equitativo.1 Mas a lei não define tais conceitos abertos (motivo sério e grave), pelo que a situação deve ser ponderada caso a caso (já que no aspecto teórico não se suscitam divergência dignas de nota). Certo é que o motivo invocado: ter intervindo noutro processo entre as mesmas partes e onde parcialmente se discute um mesmo circunstancialismo, deve ser avaliado segundo uma perspectiva de natureza subjectiva, traduzido na averiguação de saber se o juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspectiva de natureza objectiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz. Quanto ao primeiro aspecto, o Mº Juiz não manifesta nenhum interesse no caso nem se vê que possa existir, e inexistindo uma relação pessoal com as partes no processo pelo que na perspectiva subjectiva não ocorre motivo para a escusa. Numa perspectiva objectiva, não existem razões para que ocorra uma qualquer desconfiança, desde logo porque a situação em que interveio ( despacho de pronuncia por crime de fotografia ilícita) e a presente apesar de se reconduzirem à mesma situação de facto, as posições estão invertidas, além o arguido acusava a assistente autora do ilícito porque o fotografou, aqui a assistente acusa o arguido de abuso de poder por ter consigo agentes da PSP numa situação de entrega de menor, no âmbito de regulação de responsabilidades parentais. Naquele apenas se analisou o ato da arguida, aqui apenas o ato do arguido que não têm qualquer similitude, e o conhecimento advindo daquele não se repercute neste. Por outro lado, o motivo invocado de modo a escusar o Mº Juiz de intervir, tem de ser sério e grave e adequado a gerar desconfiança, e isto porque está em causa a exceção ao principio do juiz natural, como garantia da independência do juiz e também da sua imparcialidade Ora o motivo invocado não é no contexto nem sério nem grave, e muito menos adequado a geral desconfiança sobre a sua imparcialidade, como aliás o Mº Juiz requerente reconhece, aventando apenas a hipótese ou possibilidade de “existir uma forte probabilidade da possibilidade de uma situação de animosidade”, dado que inexiste qualquer animosidade com as partes. O motivo elencado não traduz mais do que as situações da vida do juiz, quantas vezes tem de julgar as mesmas partes por factos diversos e até em posições divergentes. Ou seja, a possibilidade de ocorrer animosidade do arguido ou da assistente para com o juiz que o julga ou que aprecia os seus atos é uma decorrência normal do exercício das suas funções, que de modo algum põem em causa a sua independência e imparcialidade. Aqui nem sequer ocorreu um juízo definitivo sobre uma parte da ocorrência (apenas indícios para a pronuncia pelo crime de fotografia ilícita). Não existe pois motivo para afastar o principio do juiz natural, que só deve ocorrer se existiram razões mais fortes para tal do que aquelas que “visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal”2 e por isso não deve ser deferido o seu pedido. + Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide: Julgar improcedente o presente incidente e em consequência indeferir o pedido de escusa do Mº Juiz Desembargador Dr. CC de intervir na instrução do proc. nº 24/20.1TRLSB-A.S1 que lhe fora distribuído Sem custas. Notifique. Dn + Lx e STJ, 31/10/2024 José A. Vaz Carreto (relator) Horácio Correia Pinto António Augusto Manso _____
1. In ac. STJ 20/10/2022 proc 981/17.5PBMTS.P2-A.S1 www.dgsi.pt Cons. António Gama 2. Ac. STJ 23/9/2009 Proc 532/09.5YFLSB www.dgsi.pt Cons. Maia Costa |