Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22/22.0JAPRT.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LATAS
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MOTIVO FÚTIL
ESPECIAL CENSURABILIDADE
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO.
Sumário :
I - Imputada ao arguido a de prática de facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP), provando-se apenas que a vítima tinha 79 anos de idade e o arguido 42, e nada se apurando sobre o estado de saúde da vítima à data dos factos ou sobre eventual aproveitamento, por parte do arguido, de especiais fragilidades que a afetassem, não pode afirmar-se, com a certeza exigível face aos princípios da culpa e da presunção de inocência, que a circunstância de o agressor, ora arguido, ter menos 37 anos que a vítima o coloca, necessariamente, em posição de se aproveitar de eventual fragilidade daquela em razão da idade, dada a diversidade de situações que se verificam na realidade prática, quer relativamente a pessoas com a idade da vítima, quer no que respeita a eventuais efeitos da diferença de idades entre a vítima e o arguido. Assim, impõe-se concluir em face da factualidade provada que não se mostra preenchido o exemplo padrão previsto na al. c) do n.º 1 e 2 do art. 132.º do CP.
II - Em si mesma, a convicção ou a sensação de que foi roubado na sequência de decisão judicial que objetivamente teve efeitos negativos para o agente do ponto de vista patrimonial, não será tomado por traço de caráter vil, ignóbil, infame, repugnante ou baixo para a generalidade dos cidadãos, pois surge ainda entre as motivações homicidas relativamente frequentes, relacionada com valores estimáveis na comunidade, sobretudo em meios rurais mais fechados, pelo que não pode considerar-se incluído no motivo torpe, a que se reporta a al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
III - Diferentemente, tendo o arguido decidido agir, decidida e eficazmente, contra a vida da vítima no mesmo dia em que o fez, movido pelo desfecho de ação judicial entre os seus pais e os herdeiros dos terrenos objeto de litígio ocorrido há cerca de 20 anos, associado à ausência de qualquer discussão entre ambos apesar de se encontrar desavindo com a vítima por causa daquela mesma ação, mostra-se excluído o sentido e relevância que o prejuízo ou sentimento de desapropriação patrimonial ou perda provocado pela perda da ação judicial pudesse assumir, face ao sistema de valores socialmente vigente.
IV - Deste modo, em face da factualidade provada e na ausência de outros factos, revela-se a motivação do arguido especialmente desproporcionada, particularmente desajustada à gravidade da sua conduta contra a vítima, configurando-se, assim, o plus que acresce à normal desproporcionalidade que sempre se verifica entre um homicídio e a razão que o haja motivado, o que fundamenta a qualificação do homicídio com base na al. e) do n.º 2 do art.132.º CP.
V - No caso concreto, mostra-se especialmente desfavorável ao arguido, na determinação da medida concreta da pena, o grau de ilicitude do facto, especialmente o modo de execução do crime (al. a) do n.º 2 do art. 7.º do CP), de que se destaca ter o arguido surgido subitamente junto da vítima, espetando a faca de cozinha, com 24 cm de lâmina, que levava consigo, no pescoço, tórax e costas da vítima, que caiu no chão já inanimado, altura em que o arguido lhe desferiu mais 3 golpes com a referida faca, perfurando-o na zona do tórax, esclarecendo o n.º 9 da factualidade provada que a vítima não reagiu uma vez que não se apercebeu que o arguido estava munido de uma faca e que tinha intenção de o agredir e matar, tendo sido surpreendido com tal atitude.
VI - Não fosse o homicídio mostrar-se qualificado pela verificação de motivo fútil e esta forma de agir do arguido, surpreendendo e retirando qualquer hipótese de reação à vítima, colocar-nos-ia seriamente perante a hipótese de qualificação do crime em face do disposto na al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP, tão grave se apresenta a determinação de matar e a forma traiçoeira como agiu.
Decisão Texto Integral:


Recurso Penal

*

Acordam os Juízes, em conferência, nas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

1. No Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal coletivo, o arguido, AA, a quem o MP imputara a autoria de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas c) e e) do Código Penal, e que aquele tribunal condenou como autor de um crime de homicídio simples, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 26º e 131º, do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos e 6 (seis) de prisão, absolvendo-o da prática de um crime de homicídio qualificado p. p. punível pelos arts. 26º, 131º e 132º, nº1 e 2, als. c) e e) do C. Penal

2. Inconformados recorreram diretamente para o STJ o MP e a assistente, BB, filha da vítima.

a) O MP extrai da sua motivação as seguintes Conclusões, que se transcrevem ipsis verbis:

«1.       No nosso entendimento o tribunal recorrido incorreu em erro na qualificação jurídica, uma vez que no acórdão agora em recurso a desqualificação do crime de homicídio é incorreta.

2.         Do nosso ponto de vista os factos que foram dados como provados no acórdão recorrido integram, sem margem para quaisquer dúvidas, a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, do crime de homicídio qualificado p. p. punível pelos arts. 26º, 131º e 132º, nº1 e 2, als. c) e e) do C. Penal, que lhe era imputado no douto despacho de acusação proferido nos presentes autos, pois da factualidade que foi dada por assente resulta manifestamente que se mostra preenchido o elemento objetivo deste tipo legal de crime, sendo que, relativamente ao elemento subjetivo do crime de homicídio qualificado, conjugando a factualidade que foi dada por provada com as regras da experiência comum, resulta claramente que no presente caso também se mostra preenchido o elemento subjetivo deste tipo legal de crime.

3.         Perante a factualidade que foi dada por assente no acórdão recorrido o arguido devia ter sido condenado pela prática crime de homicídio qualificado, pelo qual estava acusado.

4.         Isto porque, no nosso entendimento a factualidade que foi dada por provada conjugada com as regras da experiência levam necessariamente à conclusão, ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido, de que no presente caso se mostram preenchidos todos os elementos constitutivos (objetivo e subjetivo) do crime de crime de homicídio qualificado p. p. punível pelos arts. 26º, 131º e 132º, nº1 e 2, als. c) e e) do C. Penal que na acusação dos presentes autos era imputado ao arguido.

5.         Ao contrário do sustentado pela Mma Juiz do Tribunal a quo, entendemos que a vítima contava com 79 anos de idade, e não tinha capacidade para se defender do agente com 42 anos de idade, pelo que é evidente que a vítima era uma pessoa particularmente indefesa devido à idade que tinha, pois nem esboçou tentativa de se defender perante um homem jovem e empunhando uma faca, que o apanhou absolutamente desprevenido, encontrando-se sim, à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, podendo mesmo afirmar-se que se   encontrava numa situação de completa ausência de defesa.

6.         Por outro lado, uma questão que ocorreu há já 20 anos e que foi naquela altura definitivamente decidida pelo tribunal, é notoriamente desproporcionada ou inadequada, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime de homicídio praticado; e traduz a insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais elevada na brutal malvadez do agente, que, surpreendendo a vítima totalmente desprevenida, empunhando a referida faca de cozinha na mão, abeirou-se daquele e, sem que este lhe tivesse dirigido a palavra, utilizando a dita faca desferiu-lhe golpes que atingiram a vítima no pescoço, toráx e costas, provocando-lhe a morte.

7.         Por todo o exposto, impõe-se a revogação do acórdão que absolveu da prática de um crime de homicídio qualificado p. p. punível pelos arts. 26º, 131º e 132º, nº1 e 2, als. c) e e) do C. Penal e condenou pela prática de um crime de homicídio simples, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 26º e 131º, do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos e 6 (seis) de prisão que foi proferido nos presentes, agora em recurso, e a sua substituição por outro que condene o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efetivo, prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições legais anteriormente mencionadas.

8.         Assim, impõe-se alterar a medida da pena, considerando as razões de prevenção geral, e especial, a ilicitude do facto, a culpa do arguido, bem como as circunstâncias agravantes, de acordo com os normativos ínsitos nos artigos 40.º e 71.º, do Código Penal.

9.         Entende-se assim, como adequada, justa e proporcional a aplicação da pena de 18 anos de prisão.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, assim V. Exªs fazendo por certo a costumada JUSTIÇA»

b) Por sua vez, a assistente termina a sua Motivação com as seguintes conclusões, que igualmente se transcrevem ipsis verbis:

I - A Recorrente, não se conformar com a absolvição do arguido pelo crime de homicídio qualificado e bem assim com a medida da pena que concretamente lhe foi aplicada e vislumbra no acórdão proferido, um humanismo excessivo, que acaba por se traduzir numa injustiça para a infeliz vítima e para quem lhe dedicava carinho, amor e respeito no caso a assistente e demais familiares.

II - O Tribunal Recorrido no douto acórdão proferido, entendeu não se verificar nenhum facto suscetível de qualificar o homicídio do infeliz CC, e em consequência absolveu o arguido da prática do crime de homicídio qualificado punindo-o apenas pela prática do homicídio simples.

III - A especial censurabilidade e perversidade acrescida e que qualificam o homicídio como qualificado, são um mais, um grau mais elevado de culpa relativamente à censurabilidade e perversidade inerente à própria conduta de matar, tendo que ocorrer uma situação de culpabilidade especial, agravada que ultrapasse deveras a culpa já de si perversa e censurável inerente ao homicídio simples.

IV – Apoiados na verificação indiciada pelos factos ou situações constantes das diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º do Código Penal e no critério orientador do nº 1 e da combinação na situação concreta destes dois elementos do tipo e temos o que Figueiredo Dias apelida de imagem global do facto agravado.

V- Os factos provados nos pontos 3º, 4º, 5º, 6º,7º, 8º, 9º e 10º do douto acórdão leva-nos a concluir que a conduta do arguido preenche em absoluto o crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e 132º nº 1 e 2 alíneas c) e e) do Código Penal.

VI - A atuação do arguido encerra em si mesmo uma especial e peculiar censurabilidade e perversidade, atuou com evidente premeditação e subjacente à mesma está um motivo fútil, sem significado, que não lhe dizia respeito, sendo essa atuação, um bolsar de ódio acumulado sobre a pessoa da vitima com quem nunca teve qualquer discussão, que foi surpreendido pelo agente com golpes de faca, no pescoço, tórax e costas e já depois de caído e inanimado ainda  foi vitima de mais três golpes perfurantes da zona do tórax.

VII - A conduta do arguido revela um ódio extremo, pela vítima, um desvalor, um desdém absoluto, uma insensibilidade moral pela pessoa humana e pelo seu direito à vida que valida a sua qualificação como torpe ou fútil.

VIII – A motivação do crime, sustentada na ficção de injustiça criada pelo arguido é algo de mesquinho, de insignificante, que demonstra perante a vida do próximo, valor supremo da sociedade, um desvalor inqualificável, uma personalidade especialmente insensível, perversa, onde não ocorreu a interiorização de valores socialmente aceites e que devem conduzir todo e qualquer cidadão.

IX - Os factos dados como provados integram, pois, uma atuação subsumível ao que a lei (artigo 132 nº 2 alínea e) do Código penal) qualifica como motivo torpe ou fútil.

X - Acresce que o arguido atuou, de forma premeditada, consistente e bem refletida, sem aviso prévio relativamente à vítima e quiçá de modo traiçoeiro, utilizando instrumento que sabia com capacidade letal e da impossibilidade de defesa para a vítima, seu conhecido e cuja idade (79 anos), afastava uma atuação/reação de defesa consistente e eficiente.

XI – Entende a assistente verificados os elementos constitutivos do tipo de culpa exigíveis para a subsunção da conduta do agente ao tipo legal de homicídio qualificado previsto e punido pelas normas entre si conjugadas dos artigos 26º, 131º e 132º nº1 e 2 alínea e) do código penal, e em consequência deve revogar-se o acórdão recorrido e ser proferida decisão que condene o arguido como autor do crime de homicídio previsto e punido pelas citadas disposições do Código Penal e em consequência altera-se a pena privativa da liberdade concretamente aplicada devendo o seu limite mínimo situar-se entre os 16 e 20 anos de prisão atenta os factos atenuantes que resultam do acórdão recorrido.

XII - Admitindo por mero deve de patrocínio que não estão verificados os elementos constitutivos do tipo de culpa exigíveis para a subsunção da conduta do agente ao tipo legal de homicídio qualificado previsto e punido pelas normas entre si conjugadas dos artigos 26º, 131º e 132º nº1 e 2 alínea e) do código penal, e tem por bom o argumento que no caso concreto é possível ao assistente escrutinar a concreta medida da pena aplicada, nada abala a nossa certeza da brandura da concreta pena aplicada que acaba por ser uma injustiça à vítima, seus familiares e às próprias finalidades punitivas.

XIII- As atenuantes que o arguido beneficiou, a confissão e o arrependimento não podem fazer esquecer a atuação do arguido, demonstrativa de um caracter frio, com que formou a sua vontade de matar a vítima, o modo refletido, deliberado e que persistiu nessa resolução de acabar com a vida do infeliz CC até ao momento da sua execução.

XIV – Atendendo às finalidades punitivas da pena e aos parâmetros rigorosos da sua determinação, que resultam do artigo 71º nº 1 e 2 do C.P. é nossa convicção que o Tribunal a quo foi demasiado brando e nessa medida ofendeu os elementos cruciais (prevenção e culpa) na concreta pena aplicada.

XV - Sendo o crime de homicídio simples punido com prisão de 8 a 16 anos, e não se subsumindo a atuação do arguido também no preceituado no artigo 132º nº 1 e 2 alínea e) (situação que se coloca apenas por mera hipótese de trabalho) no caso concreto e atendendo às necessidades de prevenção geral (intensas) e à culpa do arguido (atuação com dolo direto, também intenso) a pena privativa de liberdade abaixo dos 14 anos é necessariamente, branda e viola o artigo 71º do Código Penal.

XV - A decisão recorrida viola por erro de interpretação e aplicação os artigos 26º, 131º e 132º nº1 e 2 alínea e) do código penal quando absolve o arguido do homicídio qualificado e também na concreta pena aplicada, ofende o artigo 71º do código penal.

TERMOS EM QUE, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que condene o arguido pela pratica do crime de homicídio qualificado previsto e punido pelas disposições conjugados dos artigos 26º, 131º e 132º nº1 e 2 alínea e) do código penal, na concreta pena privativa da liberdade de 20 anos , ou, caso assim se não entenda, seja o arguido punido pela prática do crime de homicídio simples na pena de 14 anos de prisão atenta os factos supra alegado, com o que se fará justiça. »

3. Admitido o recurso e cumprido que foi o disposto no art. 411.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, o arguido apresentou a sua resposta,de onde extrai as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem ipsis verbis:

« A) O aqui arguido foi condenado, por acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância, pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelos 26.º e 131.º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

B) Sendo nos mesmos autos absolvido da prática de um crime de homicídio qualificado, do qual vinha acusado.

C) Acórdão esse no qual foram dados como provados os factos para os quais se remete, por mera questão de economia processual.

D) Inconformadas, recorreram a Digma. Magistrada do M.P. e a Assistente, pugnando pela condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos da acusação pública, e ainda a Assistente na agravação da dosimetria da pena.

E) Com o que não pode o Arguido concordar, em particular porque pretendem as Recorrentes uma diferente imputação dos factos que foram dados como provados, pretendendo a qualificação do crime cometido pelo Arguido.

F) Pretendem assim as Recorrentes o julgamento do julgamento, obliterando o princípio da imediação, que resultou, perante os factos dados como provados, na absolvição do Arguido da prática do crime agravado, condenando-o na prática do crime de forma simples.

G) Decidindo, a nosso ver bem, o Tribunal a quo.

H) Com o presente recurso, querem as Recorrentes seja este EGRÉGIO TRIBUNAL levado a decidir quanto à imputação daqueles factos, com os pressupostos da qualificação do crime, pretendendo seja avaliado a matéria de facto, e não a matéria de direito.

I) Conforme resulta claro das motivações e conclusões aduzidas nos recursos interpostos.

J) Reiterando-se não merecer o douto acórdão do Tribunal a quo qualquer reparo, quer na condenação, quer na dosimetria aplicada, nos termos elencados no douto aresto, que sufragamos.

K) Nessa esteira, e em particular quanto ao princípio da imediação, que consubstanciou a recorrida decisão, veja-se o douto aresto do VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO no processo 409/11.4 GBTMC.P1.

L) Pelo que não se pode agora avaliar da intenção, frieza, capacidade ou incapacidade de defesa, matéria de facto, para obter uma condenação em crime diverso, porque não de Justiça.

M) Mais cumprindo referir que, ao não ser recuperável o bem jurídico violado pela conduta praticada pelo Arguido, que este admitiu, a manutenção da pena aplicada não merece qualquer crítica, porque justa e equitativa.

Nestes termos, e nos melhores de direito que v/ excias., Egrégios conselheiros, sabiamente suprirão, não devem Proceder os recursos interpostos pela digma. Magistrada do ministério público nem pela assistente, mantendo-se a decisão prolatada em douto acórdão do tribunal a quo»

5. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir, o presente recurso.

* II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso questões a decidir.

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo da decisão das questões de conhecimento oficioso.

a)         No seu recurso, o MP questiona a qualificação jurídica dos factos realizada pelo tribunal a quo (homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º C.Penal), por entender que os mesmos integram os elementos constitutivos de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132º nºs 1 e 2 als c) e e), do C.Penal, tal como era imputado ao arguido na acusação pública. Caso proceda o recurso, entende o MP recorrente que se impõe proceder à determinação da medida da pena em 18 anos de prisão a aplicar, face à moldura legal de 12 a 25 anos de prisão prevista no artigo 132º C.Penal.

b)         A assistente põe igualmente em causa a qualificação jurídica dos factos, por considerar que a factualidade típica integra os elementos constitutivos de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132º nºs 1 e 2 al. e), do C. Penal a punir com pena concreta entre 16 e 20 anos, ou medida superior, pedindo ainda, subsidiariamente, que o tribunal ad quem aplique ao arguido a pena de 14 anos de prisão em vez da pena de 12 anos e 6 meses determinada pelo tribunal a quo, caso mantenha a qualificação jurídica dos factos decidida pelo tribunal a quo.

2. – Transcrição integral da decisão proferida sobre a matéria de facto.

« Resultou provado com interesse para a decisão da causa.

1. O arguido AA era inquilino da vítima CC;

2. E encontrava-se desavindo com a vítima CC por causa de uma acção em tribunal acerca da propriedade de uns terrenos em ..., que já havia ocorrido há cerca de 20 anos, entre os seus pais e os herdeiros dos referidos terrenos.

3. Pese embora o arguido AA estivesse desavindo com a vítima, nunca houve uma discussão entre ambos.

4. No dia 3 de Janeiro de 2022, o arguido AA, motivado pelo facto de se sentir roubado no âmbito da referida acção em tribunal, decidiu que iria tirar a vida e matar a vítima CC;

5. Na execução de tal decisão o arguido AA muniu-se de uma faca de cozinha com lâmina de gume com 24 centímetros e com um cabo de 15 centímetros e dirigiu-se no seu veículo de marca Opel, modelo Corsa, com a matrícula HQ-..-.. à Travessa ..., em ..., ..., local onde a vítima CC normalmente se encontrava a tratar de um terreno agrícola da sua propriedade.

6. O arguido AA passou uma vez no referido local e não parou e, pouco tempo depois ali regressou, tendo então imobilizado o veículo junto ao referido terreno.

7. Assim, pelas 13:25 horas do referido dia 3 de Janeiro de 2022, vendo a vítima CC a trabalhar no referido terreno agrícola, o arguido empunhando a referida faca de cozinha na mão, abeirou-se daquele e, sem que este lhe tivesse dirigido a palavra, utilizando a dita faca desferiu-lhe golpes que atingiram a vítima no pescoço, toráx e costas;

8. CC caiu no chão já inanimado altura em que o arguido AA lhe desferiu mais três golpes com a referida faca, perfurando-o na zona do toráx.

9. A vítima CC não reagiu uma vez que não se apercebeu que o arguido AA estava munido de uma faca e que tinha intenção de o agredir e matar, tendo sido surpreendido com tal atitude.

10 .A testemunha DD, que estava a passar na Travessa ... apeado naquele momento, ao ver o sucedido abeirou-se e estando o arguido a sair do local em passo acelerado, aí o reteve.

11.       Fruto das descritas facadas levadas a efeito pelo arguido CC sofreu diversos ferimentos, designadamente seis soluções de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, na superfície corporal da vítima, a saber; uma na face anterior do pescoço; três na face anterior do tórax; e duas na face posterior do tórax, mais concretamente:

- no pescoço uma solução de continuidade de bordos lisos, regulares, coaptáveis e infiltrados de sangue na região submandibular à esquerda, sensivelmente paralela ao bordo mandibular, com 8,5 cm de cumprimento, superficial, permitindo entrever apenas o tecido celular subcutâneo, sem exposição muscular;

- no toráx - Parede (face anterior) três soluções de continuidade de bordos lisos, regulares, coaptáveis e infiltrados de sangue no hemitórax esquerdo; - uma no terço medial da região supraclavicular com 3,5 cm de cumprimento, sensivelmente transversal, com extremidade angulosa medial e extremidade romba lateral, interessando o tecido celular subcutâneo e os planos musculares subjacentes; - uma na região peitoral esquerda com 3,2 cm de comprimento, oblíqua, com extremidade angulosa superolateral e extremidade romba inferomedial, interessando o tecido celular subcutâneo subjacente, toda a espessura do músculo peitoral e o músculo intercostal no 3º espaço intercostal, continuando-se como entalhe na 4ª costela (de seguida descrito) com infiltração sanguínea até à região axilar do mesmo lado; - uma lateralmente ao mamilo esquerdo com 3,2 cm de cumprimento, sensivelmente transversal, com extremidade angulosa lateral e extremidade romba medial, infiltrada de sangue interessando o tecido celular subcutâneo        subjacente, sem atingimento dos planos musculares; - áreas de infiltração sanguínea na região do arco anterior entre as 7.ª e 9.ª costelas à direita, adjacente à 4.ª articulação condroesternal à esquerda e entre o arco anterior das 7.ª e 8.ª costelas à esquerda;

- no tórax Paredes (face posterior) duas soluções de continuidade de bordos lisos, regulares, coaptáveis e infiltrados de sangue; - uma paramediana na região escapular direita, com 3 cm de comprimento, sensivelmente vertical, com ambas as extremidades de aspecto anguloso, interessando o tecido celular subcutâneo e músculo trapézio, sem extensão a outros planos musculares adjacentes; - outra na região escapular esquerda com 3,3 cm de comprimento, sensivelmente transversal, com extremidade romba lateral e extremidade angulosa medial, interessando o tecido celular subcutâneo, o músculo trapézio e romboide maior; -Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: - solução de continuidade, infiltrada de sangue, da 4.ª costela na sua transição costocondral (entalhe), em relação com a solução de continuidade anteriormente descrita na região peitoral esquerda; - Pericárdio e cavidade pericárdica: — duas soluções de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, uma na face anterior do saco pericárdico, sobre o ventrículo esquerdo e outra na sua face posterior, adjacente à aurícula esquerda; hemopericárdio de 50 centímetros cúbicos; - Coração: Cardiomegalia discreta, com morfologia conservada; Três soluções de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, duas delas transfixivas: uma com 3,5 centímetros de comprimento, na parede anterolateral do ventrículo esquerdo, e outra pericentimétrica na parede posterior da auricula do mesmo lado [ao corte, estas duas lesões configuravam trajecto entre si, interessando os folhetos da válvula mitral conforme descrito em seguida]; uma solução de continuidade infracentimétrica na parede anterior do ventrículo esquerdo abrangendo apenas a superfície epicárdica; - Válvulas: — Solução de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, interessando os folhetos da válvula mitral. Restante aparelho valvular íntegro, sem lesões traumáticas. Calcificações das cúspides da válvula aórtica; -Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Em relação com a solução de continuidade descrita na região supraclavicular esquerda, tecido celular subcutâneo e planos musculares subjacentes, uma solução de continuidade, infiltrada de sangue, na pleura parietal. Infiltração sanguínea da pleura parietal adjacente à cabeça das 2.ª e 3.ª costelas, sem solução de continuidade. Hemotórax de 100 centímetros cúbicos. Sem aderências; - Pulmão esquerdo e pleura visceral: — Pulmão parcialmente atelectasiado. Duas soluções de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, configurando trajecto entre si, nas faces anterior e posterior do ápex pulmonar; — Uma solução de continuidade, de bordos lisos, regulares e infiltrados de sangue, abrangendo apenas a pleura visceral, na face anterior do lobo superior.

12. Das soluções de continuidade referidas, a lesão cervical e a lesão lateral ao mamilo esquerdo apresentavam profundidade superficial, interessando apenas a pele e a camada mais superficial do tecido celular subcutâneo e ambas as lesões observadas na face posterior do tórax interessavam apenas a pele, tecido celular subcutâneo e planos musculares, sem trajecto intra-torácico.

12. [repetido] As duas lesões na região supraclavicular e peitoral à esquerda interessavam pele, tecido celular subcutâneo e planos musculares, apresentando ainda os seguintes trajectos lesionais intra-torácicos: — Lesão supraclavicular esquerda — parede torácica subjacente — cavidade pleural — ápex pulmonar esquerdo — face anterior do lobo superior do pulmão esquerdo [configurando assim um trajecto sensivelmente vertical, de superior para inferior]; — Lesão peitoral esquerda — parede torácica subjacente — saco pericárdico — ventrículo esquerdo — aurícula esquerda — saco pericárdico [configurando assim um trajecto sensivelmente oblíquo, de lateral para medial e de superior para inferior];

13.As referidas lesões traumáticas torácicas foram causadas pela actuação do arguido e das facadas por este desferidas nos termos descritos, as quais de forma directa, adequada e necessária, lhe provocaram dores e a morte imediata.

14. Ao desferir tais facadas com a referida faca de cozinha no corpo da vítima CC, usando um instrumento com grande potencialidade letal e atingindo a vítima em órgãos vitais, o arguido sabia que podia provocar-lhe a morte, propósito que visava alcançar e que ocorreu.

15.O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo a capacidade letal da faca de cozinha que usou e ao empunhá-la e direccioná-la à vítima CC quis atingi-lo no seu corpo, como efectivamente aconteceu, com o propósito de lhe causar a morte, como viria a suceder.

16.O arguido AA agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei, não se tendo coibido de as praticar.

17.No momento da prática dos factos supra descritos o arguido encontrava-se capaz de avaliar a ilicitude dos actos por si praticados e de se comportar de acordo com essa avaliação.

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18.Por decorrência da morte do beneficiário CC NISS ... foi apresentado pela viúva BB junto do Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P. um requerimento para atribuição de prestações por morte deferido em Fevereiro de 2022;

19.Este atribuiu-lhe pensão de sobrevivência no montante mensal actual de €214, 58 (duzentos e catorze euros e cinquenta e oito cêntimos) sendo que no período de 2/22 a 09/22 estas contabilizaram o montante de €1931,22 (mil novecentos e trinta e um euros e vinte e dois cêntimos);

20.E procedeu ainda ao pagamento do subsidio por morte de €1329,60 (mil trezentos e vinte e nove euros e sessenta cêntimos);

Mais se provou.

21.O arguido confessou os factos e revelou sincero arrependimento.

22.A modelação social de AA beneficiou de atenção educativa e de laços de proximidade bem como de ambiente familiar afectuoso, propiciados pelo núcleo familiar de origem, independente, composto pela díade parental e pela fratria de três, da qual é o mais novo.

23.A organização económica do agregado era suportada pelos rendimentos profissionais auferidos pelos pais de AA, o pai deteve uma fábrica de móveis e a mãe uma loja/mercearia, actividades que permitiram vivenciar uma condição confortável.

24.Habilitado com o 2º ciclo do ensino básico pelos 13 anos de idade, AA principiou o desempenho laboral na fábrica do pai, alternou para outra empresa, para motorista embalador de entregas.

25.Mais tarde, passou a exercer as funções de motorista de entregas e montagem de móveis a particulares.

26.Após a habilitação com a carta de condução de pesados de mercadorias e articulados, passou exercer as funções de motorista de pesados nacional e internacional.

27.Ainda que tivesse ocorrido alguma alternância entre entidades patronais, são reconhecidos hábitos de trabalho ao arguido.

28.Neste seu trajecto de realização pessoal, AA não encetou a autonomização do agregado, permanecendo vinculado às figuras parentais até ao falecimento destes, ocorrido em Janeiro 2020, o do pai, e em Março 2021, o da mãe.

29.Sem filhos, sem relacionamento ou compromisso amoroso, estabeleceu laços sociais e amizades no meio de residência, onde lhe são conhecidos padrões de abuso de álcool em contexto de grupo de pares.

30.À data dos factos, AA mantinha agregado próprio singular desde o falecimento dos seus pais, autónomo, com maior proximidade à irmã mais velha, EE, junto de qual efectuava, por vezes, refeições pontuais.

31.Realizava tarefas em regime irregular de motorista de entregas e montagem de móveis a particulares e conseguia, ainda que, com exiguidade económica e apoio da sua irmã, assegurar a sua sobrevivência.

32.Mantinha a residência na Rua ... ... ..., habitação na qual o seu agregado de origem vivia desde há várias décadas, correspondendo a uma casa arrendada à vítima, tendo já procedido à sua entrega aos respectivos sucessores.

33.AA não possui actualmente qualquer fonte de rendimento e tem dificuldade em concretizar um projecto de vida face à presente situação jurídica, no entanto, gostaria de retomar a actividade de motorista de pesados.

34.Os dois irmãos de AA estão autonomizados em agregados próprios, em relativa proximidade residencial, e detêm uma condição vivencial estável assegurada pelo desempenho laboral regular.

35.AA cumpre a medida de coacção de prisão preventiva à ordem do presente processo no EP..., desde o dia 04-01-2022.

36.Conformado ao disciplinado exigido, demonstra preocupação com este confronto com a justiça penal e com o desfecho do mesmo.

37.Mantém a conduta prisional direccionada para um quotidiano de ocupação na carpintaria.

38.AA reconhece a ilicitude e a gravidade da tipologia criminal do presente processo, a existência de vítimas e de danos.

39.Face à situação do processo judicial em curso, à perda do enquadramento habitacional e eventuais consequências penais, os familiares de AA não equacionam, por ora, o regresso do arguido e que suporte prestarão ao seu processo de reinserção social, todavia, perspectivam manter o apoio e suporte necessário a AA em contexto prisional, à semelhança do que vem acontecendo, através de um regime regular de visitas efectuadas pelos irmãos e por alguns elementos do grupo de pares do arguido.

40.No meio comunitário de residência onde estava inserido, AA não é alvo de sinalização negativa, sendo conhecido o seu percurso, a história familiar e o respectivo agregado.

41.Os factos subjacentes a este processo suscitaram impacto social, sendo conhecidas as dificuldades comunicacionais atribuídas a ambas as partes (arguido e vítima).

**

42.Do registo criminal do arguido constam averbadas as seguintes condenações:

i.No proc. sumário nº246/18...., do Juízo Local ... desta comarca ..., pela prática a 22.04.2018 de um crime de condução de estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º, mº1 e 69º, nº1, al. a) do C. Penal, por decisão de 23.04.2018, transitada a 24.05.2018, na pena de 84 dias de multa à taxa diária de €5 e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo prazo de 3 meses e 15 dias, já extinta pelo cumprimento;

ii. No proc. sumário nº249/20...., do Juízo Local ... desta comarca ..., pela prática a 28.09.2020 de um crime de condução de estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º, mº1 e 69º, nº1, al. a) do C. Penal, por decisão de 29.09.2020, transitada a 30.10.2020, na pena de 94 dias de multa à taxa diária de €5 e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 meses, já extinta pelo cumprimento;

iii. No proc. sumário nº5/22...., do Juízo Local ... desta comarca ..., pela prática a 2.01.2022 de um crime de condução de estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º, mº1 e 69º, nº1, al. a) do C. Penal, por decisão de 12.01.2022, transitada a 14.02.2022, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por 1 ano sob condição de pagamento aos Bombeiros Voluntários no período da suspensão da quantia de €250 e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 13 meses.

B. Não resultou provado com interesse para a decisão da causa. Não resultaram não provados quaisquer factos.

*

As demais circunstâncias relatadas e considerações efectuadas, na acusação não foram tidas em conta (e por isso não constam da fundamentação de facto) por conterem meros juízos conclusivos ou matéria de direito, ou constituírem em rigor meios de prova, sendo certo que a lei apenas exige que devam constar da sentença os factos com relevo para a decisão da causa e só estes, devendo proceder-se se necessário ao aparo do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha das referidas peças processuais de que aquela não é nem pode ser mera serventuária – cfr: a este propósito Ac. do STJ de 2 de Junho de 2005, proc. 05P1441, dgsi).

C. Motivação de Facto e Exame Crítico das Provas.

A convicção do tribunal assentou nas declarações do arguido que confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação revelando evidenciando sincero arrependimento.

No que às consequências na pessoa da vitima das lesões resultantes da actuação do arguido resultaram assentes também na conjugação dos seguintes elementos probatórios documentais e periciais:

— Cópia do bilhete de identidade de CC de fls. 20 de onde decorre a sua idade; Ficha CODU de fls. 28 subscrito pelo médico do INEM que descreve as manobras de reanimação levadas a efeito na pessoa da vítima e atesta a hora de verificação do óbito; Relatório de diligências iniciais de fls. 34-45 e fotografias anexas que espelham o local onde ocorreram os factos e o estado visual da vitima na sequência do evento; o local onde o arguido estacionou o veículo imediatamente antes da respectiva actuação, o interior de tal viatura; a face usada (fls.71); Auto de colheita de amostras e de identificação do arguido de fls. 115-117; Auto de apreensão de fls. 121 (da dita faca e das roupas do próprio arguido contendo vestígios hemáticos; Termo de consentimento prestado pelo arguido e relativo a tais apreensões – incluindo do telemóvel - de fls. 122; Reportagem fotográfica de fls. 176-184 e respeitando à roupa da vitima e seu estado; Relatórios de exame pericial de fls. 47-80, 203-204, respeitante aos vestígios recolhidos na aludida faca e vestuário do arguido e vítima no momento dos factos; Relatório de exame psiquiátrico ao arguido de fls. 272-274 e que concluiu pela sua imputabilidade; Relatório de autópsia médico-legal de fls. 320-328.

No que concerne, especificamente, aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, respeitantes à conduta do arguido para além de ter resultado da própria postura confessória, que é imputável e têm consciência dos actos que pratica, o que a perícia psiquiátrica confirma, tendo-se em conta ainda, quanto ao elemento subjectivo, designadamente, no que respeita à intenção do arguido referida, o que decorre de presunção judicial decorrente das circunstâncias que envolveram os factos ocorridos, nomeadamente a circunstância de o arguido ter atingido o ofendido da forma descrita

Mais ponderou o tribunal as certidões de fls. 406 e 471, quanto ao pagamento pelo Centro Nacional de Pensões à viúva da vitima falecida e relativo a pensão de sobrevivência e subsídio por morte, e respectivos montantes pagos até 29 de Setembro de 2022.

E ainda quanto às condições pessoais, profissionais e sociais do arguido o relatório social de fls. 443 verso a 444 verso e ainda as suas declarações em audiência quanto à entrega do arrendado aos sucessores da vítima.

E bem assim o certificado de registo criminal de fls. 430 a 434, quanto aos respectivos antecedentes criminais. ».

3. Decidindo

A. A qualificação jurídica dos factos.

1. Os termos da questão no presente recurso.

Tanto o MP como a assistente põem em causa a condenação do arguido como autor de um crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal, por considerarem que da matéria de facto provada resulta que o arguido praticou o facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (al. c) do nº2 do art. 132º) e que, ao produzir a morte da vítima o arguido foi determinado por motivo torpe ou fútil (al. e) do nº2 do artigo 132º CPP), circunstâncias reveladoras, in casu, de especial censurabilidade ou perversidade do arguido, implicando a sua condenação pela autoria do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132º nºs 1 e 2, alíneas c) e e), tal como lhe era imputado na acusação pública.

Por sua vez, o tribunal recorrido condenou o arguido pelo tipo de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º C.Penal, por entender não resultar da factualidade provada a verificação daquelas circunstâncias ou quaisquer outras que pudessem fundamentar o juízo de especial perversidade ou censurabilidade acolhido na acusação do MP com base na mesma factualidade.

Assim, à partida, em face do posicionamento jurídico do tribunal recorrido e do MP e assistente recorrentes, não se discute no presente recurso questão que releve das relações entre o tipo legal de Homicídio do artigo 131º e o tipo legal de Homicídio qualificado do artigo 132º, da caraterização do método que preside à qualificação com base nas diversas alíneas e na cláusula geral prevista no nº1 do artigo 131º ou mesmo em que termos pode considerar-se a qualificação do crime com base em circunstâncias que não se subsumam diretamente a nenhum dos exemplos-padrão previstos nas alíneas do nº2, ou quaisquer outras questões.

2. a) Em todo o caso, cumpre reafirmar, de forma enxuta, o essencial da relação estabelecida no art. 132º entre a cláusula geral do nº1 e as diversas cláusulas do nº2, enquanto grelha de análise da factualidade provada com vista à eventual qualificação do crime por este tribunal.

A este respeito, pode dizer-se que constitui aquisição pacífica na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que as diversas situações elencadas no n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal, não são de preenchimento automático.

E, se igual unanimidade não pode ser constatada no que concerne ao exato enquadramento dogmático dos chamados “exemplos-padrão” - se elementos do tipo de ilícito, se do tipo de culpa - dúvidas também não existem, de que foi este segundo entendimento o que veio a sobrelevar na doutrina e na praxis judiciária, ao ser propugnada por autores como Eduardo Correia e Figueiredo Dias e colher a concordância unânime das decisões do STJ a tal respeito.

Erigiu, pois, o legislador, na definição da qualificação do homicídio, um sistema que fazendo apelo, por um lado, a uma forma de culpa agravada - a especial censurabilidade e perversidade do agente referida no respetivo n.º 1 - faz implicar, por outro - pela sua definição mediante uma cláusula geral, descrita com conceitos indeterminados - , o seu preenchimento de forma integrada na enumeração casuística do número subsequente, buscando-se ali o “tipo orientador”, ou por outras palavras, a concretização e a determinação de tal critério, de molde a, nomeadamente, se lograr a sua compatibilidade com o princípio dogmático e constitucional da tipicidade e da legalidade.

Vejamos, pois, a esta luz, se da factualidade provada resulta que o arguido revelou especial censurabilidade ou perversidade ao praticar o facto contra pessoa particularmente

indefesa em razão da idade (al. c) do nº2 do art. 132º) e ao produzir a morte da vítima o arguido foi determinado por motivo torpe ou fútil (al. e) do nº2 do artigo 132º CPP), conforme lhe era imputado na acusação e é pedido por ambos os recorrentes.

b. Relativamente à imputação ao arguido de prática de facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (al. c) do nº2 do art. 132º), apesar de não constar da enumeração da factualidade provada qual a idade da vítima e do arguido à data dos factos, resulta da identificação do arguido no acórdão recorrido, que este, nascido a .../.../1979, tinha então (3.1.22), 42 anos de idade e a vítima 79 anos, conforme se menciona na p. 20 do acórdão recorrido com base no teor do B.I. que o acórdão cita na fundamentação da decisão em matéria de facto (p. 12 do mesmo acórdão). Nada se apurou, porém, sobre o estado de saúde da vítima à data dos factos ou sobre eventual aproveitamento, por parte do arguido, de especiais fragilidades que a afetassem, sendo certo que não pode afirmar-se, com a certeza exigível face aos princípios da culpa e da presunção de inocência, que a circunstância de o agressor, ora arguido, ter menos 37 anos que a vítima o coloca, necessariamente, em posição de se aproveitar de eventual fragilidade daquela em razão da idade, dada a diversidade de situações que se verificam na realidade prática, quer relativamente a pessoas com a idade da vítima, quer no que respeita a eventuais efeitos da diferença de idades entre a vítima e o arguido. Por outro lado, a  acusação não inclui   factos que permitissem concluir pela verificação de alguma dessas situações, nem resulta do acórdão que hipóteses factuais nesse sentido pudessem ter sido objeto da discussão da causa, de modo que o tribunal recorrido tivesse de pronunciar-se sobre as mesmas ao decidir da factualidade provada, em face dos especiais deveres de instrução impostos ao tribunal de julgamento pelo particular peso do princípio da investigação nesta fase – cf. artigos 340º e 410º nº2 a), CPP.

Assim, impõe-se concluir em face da factualidade provada que não se mostra preenchido o exemplo padrão previsto na al. c) do nº e 2 do artigo 132º do C. Penal, pelo que não merecem provimento ambos os recursos com aquele fundamento.

c) No que respeita ao motivo torpe ou fútil a que se refere a al. e) do nº2 do artigo 132º C.Penal, relevam os factos descritos sob os nºs 3), 4) e 2) da factualidade provada, dos quais resulta ter o arguido decidido tirar a vida à vítima no dia em que o fez, motivado pelo facto de se sentir roubado no âmbito de uma ação em tribunal acerca da propriedade de uns terrenos, que já havia ocorrido há cerca de 20 anos, entre os seus pais e os herdeiros dos referidos terrenos, embora, pesar de se encontrarem desavindos por causa daquela mesma ação judicial, nunca tenha havido uma discussão entre o arguido e a vítima, CC.

c.1. Considerando motivo torpe, a motivação do agente por razões que revelam caráter vil, ignóbil, infame (Dicionário Houaiss), que segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade deve ser considerado pesadamente repugnante ou baixo (F. Dias, Comentário Conimbricense do C.Penal, I, 2ª ed. p. 62), suscetível por isso de revelar índole especialmente perversa, não pode considerar-se incluído nesta categoria o motivo que, de acordo com a factualidade provada, levou o arguido a tirar a vida à vítima. Em si mesma, a convicção ou a sensação de que foi roubado na sequência de decisão judicial que objetivamente teve efeitos negativos para o agente do ponto de vista patrimonial, não será tomado por traço de caráter vil, ignóbil, infame, repugnante ou baixo para a generalidade dos cidadãos, pois surge ainda entre as motivações homicidas relativamente frequentes, relacionada com valores estimáveis na comunidade, sobretudo em meios rurais mais fechados.

c.2. Diferente é a conclusão a tirar relativamente à verificação de motivo fútil, que na sua significação corrente é o “que tem pouca ou nenhuma importância, nulo, vão, inútil”(Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira), superficial, frívolo, leviano, insignificante (Dicionário Houaiss), assumindo significado distinto do motivo torpe previsto na mesma alínea e). A doutrina e a jurisprudência referem-se-lhe, sem variações assinaláveis, como correspondente a «…motivo incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio » (Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal, p. 351), a motivo «…notavelmente desproporcionado …do ponto de vista do homem médio e em relação ao crime de que se trata (Nelson Hungria citado por Leal Henriques, Simas Santos, O Código Penal de 1982, 1986, vol.2, p.28, a «…motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um princípio de explicação da conduta» - Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8ª ed-1995, p. 545. Na jurisprudência do STJ, que alinha com o entendimento doutrinário aludido, tem sido entendimento constante que motivo fútil “é o notoriamente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime praticado”; [que] se traduz em motivos subjetivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a ação praticada (cf., entre outros, os acórdãos do STJ, de 12/06/97, proc. n.º 359/07, sumariado no Boletim Interno n.º 12/Junho/97, 11/12/97, BMJ 472, pág. 163, e de 7/12/99, BMJ 492, pág. 175).

Na mesma linha, aliás, se situam as considerações do acórdão recorrido a propósito de motivo fútil que, porém, depois de algumas notas de caráter genérico relativas ao não funcionamento automático dos exemplos-padrão, mormente a possibilidade (por todos reconhecida) de a situação “…pode[r] ser uma tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, máxime, por se ligar a um estado de afeto particularmente intenso (v.g., o ciúme ligado à paixão)”, «ou … como outra situação exemplificativa, v.g. o estado emocional em que o agente pode ficar, estar ou permanecer na sequência de uma situação que perceciona como injusta», acaba por concluir, algo abruptamente, que «… a situação que envolveu os factos não pode considerar-se como atuação determinada por qualquer motivo torpe ou fútil.».

Entendemos, porém, não resultar da factualidade provada outras circunstâncias que pudessem matizar o que resultou provado quanto à motivação do arguido e que pudessem conferir-lhe a consistência ou densidade que a factualidade provada não lhe confere, de modo a poderem afastar o arguido do campo das motivações levianas e superficiais próprias da futilidade, ainda que, porventura, pudessem suscitar a potencial relevância de outras alíneas do nº 2 do artigo 132º .

Antes resultou provado que o arguido decidiu tirar a vida à vítima no mesmo dia em que o fez e que tal foi motivado pelo facto de se sentir roubado no âmbito de uma ação em tribunal que já havia ocorrido há cerca de 20 anos, apesar de - encontrando-se desavindo com a vítima por causa daquela mesma ação -, nunca ter havido uma discussão entre ambos. Isto é, o que ressalta da factualidade provada é que um dia o arguido decidiu agir, decidida e eficazmente, contra a vida da vítima movido pelo desfecho da ação judicial entre os seus pais e os herdeiros dos terrenos objeto de litígio ocorrido há muito tempo; o que, associado à ausência de qualquer discussão entre ambos e mesmo à circunstância de o arguido ser inquilino da vítima (nº1 dos factos provados), sem nota de qualquer dissídio nos últimos anos, exclui o sentido e relevância que o prejuízo ou sentimento de desapropriação patrimonial ou perda provocado pela perda da ação judicial pudesse assumir, face ao sistema de valores socialmente vigente. Assim, como já referimos, em face da factualidade provada e na ausência de outros factos, revela-se a motivação do arguido especialmente desproporcionada, particularmente desajustada à gravidade da sua conduta contra a vítima, configurando-se, assim, o plus que acresce à normal desproporcionalidade que sempre se verifica entre um homicídio e a razão que o haja motivado, o que fundamenta    a qualificação do homicídio com base na alínea e) do nº2 do art.132º C. Penal (vd Ac STJ de 15.12.2005, rel. Simas Santos, e demais jurisprudência citada. Acessível em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos citados sem outra indicação,)-/

Têm, pois, razão os recorrentes, impondo-se concluir, contrariamente ao acórdão recorrido, que o arguido agiu determinado por motivo fútil, produzindo desse modo a morte da vítima em condições que revelam especial censurabilidade do agente, pelo que a conduta do arguido é punível, em concreto, pelo artigo 132º nºs 1 e 2 al. e) C. Penal, procedendo, assim, o recurso do MP e da Assistente nesta parte.

B. A medida da pena.

Posto isto, impõe-se decidir da medida concreta da pena a aplicar em face da moldura penal de 12 a 25 anos de prisão prevista pelo artigo 132º nº1, C. Penal, para o crime de homicídio qualificado. Como referido antes, o MP entende que em resultado da procedência do recurso deve ser aplicada ao arguido a pena de 18 anos de prisão, pronunciando-se a assistente pela aplicação de pena concreta entre 16 e 20 anos de prisão, ou medida superior, sendo certo que o conhecimento do recurso subsidiário da assistente relativamente à medida concreta da pena de 12 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo tribunal recorrido em face da moldura legal do crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal, fica prejudicado pelo agora decidido sobre a qualificação do homicídio.

1.Ora, de acordo com o chamado modelo de prevenção desenvolvido entre nós por F. Dias e Anabela Rodrigues, que se encontra acolhido, no essencial, no art. 40º do C. Penal após a revisão de 1995, “ Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção).Depois, no âmbito desta moldura, a medida da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.- cfr Anabela Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade in AAVV, Problemas fundamentais de Direito Penal-Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada-2002 p. 207.

De acordo com este modelo, a culpa que opera como limite das necessidades de prevenção, sejam elas gerais ou especiais (“Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” - art. 40º nº2 do C.Penal), é a culpa do arguido pelo facto, pelo que a pena concreta não pode ultrapassar a medida correspondente e proporcional ao concreto ilícito típico praticado, sendo a medida da pena fornecida, em primeiro lugar, pelas exigências de prevenção geral positiva e, depois, pelas necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais.

A medida da pena concreta é, assim, decisivamente determinada pelos fatores relativos ao facto a que se reportam as diversas alíneas do art. 71º do C.Penal, segundo o qual deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra ele.

No caso concreto, mostra-se especialmente desfavorável ao arguido o grau de ilicitude do facto, especialmente o modo de execução do crime (alínea a) do nº2 do art. 7º C.Penal), de que se destaca ter o arguido surgido subitamente junto da vítima, espetando a faca de cozinha, com 24 cm de lâmina, que levava consigo, no pescoço, tórax e costas da vítima, que caiu no chão já inanimado, altura em que o arguido lhe desferiu mais três golpes com a referida faca, perfurando-o na zona do tórax, esclarecendo o nº9 da factualidade provada que a vítima não reagiu uma vez que não se apercebeu que o arguido estava munido de uma faca e que tinha intenção de o agredir e matar, tendo sido surpreendido com tal atitude. Não fosse o homicídio mostrar-se qualificado pela verificação de motivo fútil, como vimos, e esta forma de agir do arguido, surpreendendo e retirando qualquer hipótese de reação à vítima, colocar-nos-ia seriamente perante a hipótese de qualificação do crime em face do disposto na al. i) do nº 2 do art. 132º C.Penal, tão grave se apresenta a determinação de matar e a forma traiçoeira como agiu.

O arguido agiu ainda com dolo direto, direcionando diretamente a sua conduta para a violação do bem jurídico penal protegido pela norma incriminatória, mostrando-se tal conduta acentuadamente desconforme com o ordenamento jurídico-penal.

A favor do arguido o tribunal recorrido enfatiza a confissão integral e sem reservas do arguido, bem como ter aquele demonstrado arrependimento, referindo o acórdão recorrido ao proceder à determinação concreta da pena que, “a demonstração de autocensura e arrependimento sincero revelados e a sua colaboração para a descoberta da verdade e celeridade da resolução dos autos, confessando integralmente e sem reservas os factos; a que acresce a confissão do pedido de indemnização civil - reveladora da vontade de acelerar o ressarcimento possível dos danos que reconhece.

A este respeito, lê-se sob o nº 21 da factualidade provada que « O arguido confessou os factos e revelou sincero arrependimento.» e refere-se na motivação de facto, o seguinte:

- « C. Motivação de Facto e Exame Crítico das Provas.

A convicção do tribunal assentou nas declarações do arguido que confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação revelando evidenciando sincero arrependimento»

Vejamos.

Tanto a confissão como o arrependimento não são mencionados, qua tale, entre os fatores de determinação da medida da pena de que trata o artigo 71º do C. Penal, mas são aí considerados a propósito da conduta posterior ao facto a que se reporta a alínea d) do nº2, que expressamente atribui especial relevância à reparação pelo arguido dos danos causados, até onde lhe seja possível.

No caso presente, a confissão integral e sem reservas do arguido teve os efeitos processuais previstos no nº2 do art. 344º CPP, o que, no que importa à determinação da pena, se traduz num ato de colaboração do arguido com o sistema de justiça, na medida em que induziu ganhos de economia e celeridade processuais ao permitir a dispensa da prova relativa aos factos imputados, ao mesmo tempo que representa inegável assunção de culpa que, aliada ao arrependimento, assume alguma relevância do ponto de vista da prevenção especial e mesmo da prevenção geral positiva, na medida em que o reconhecimento da prática do crime pelo arguido e o arrependimento manifestado, podem reduzir a medida da sanção contrafática necessária para o restabelecimento da confiança da comunidade na efetiva tutela dos bens jurídico-penais protegidos pela norma incriminatória.

Não pode atribuir-se, porém, outra relevância à confissão, porque nada mais resulta da factualidade provada nesse sentido, dando-se mesmo notícia de uma testemunha presencial no nº 10 da factualidade provada que, logo após os factos, a testemunha DD, ao ver o sucedido, reteve o arguido quando este saía do local em passo acelerado, o que desvaloriza o contributo da confissão para a descoberta da verdade. Também o arrependimento surge desacompanhado de outros factos que pudessem conferir-lhe maior significado a favor do arguido, sendo certo que a factualidade provada relativa à sua vida pretérita ou o comportamento do arguido em reclusão, que relevam sobretudo do ponto de vista da prevenção especial positiva, assumem menos importância nos crimes graves como o presente, pois nestes, particularmente quando está em causa a violação da vida, bem jurídico de superior grandeza,        relevam especialmente as fortes necessidades de prevenção geral positiva. Como bem se diz no acórdão recorrido, «Atento o tipo de crime e a forma da sua execução, são acutilantes as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança nas normas infringidas.».

Posto isto e tendo em conta que o mínimo legal da moldura legal aplicável se cifra em 12 anos de prisão e o seu máximo em 25 anos, entende este tribunal adequado fixar em 18 anos de prisão a pena a aplicar ao arguido pela prática do crime de homicídio qualificado por ele praticado na pessoa da vítima, CC.

III

DISPOSITIVO

Por todo exposto, julgando-se procedentes os recursos interpostos pelo MP e pela Assistente, revoga-se o acórdão recorrido, que condenou o arguido, AA, na pena de 12 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º C. Penal,  e decide-se, em substituição, condenar o mesmo arguido como autor de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132º nºs 1 e 2 al. e), do C. Penal, na pena de 18 anos de prisão.

Sem custas, por não haver decaimento do arguido, não recorrente – artigo 513º CPP.

Lisboa, 02 de fevereiro de 2023

António Latas (Relator)

Helena Moniz

António Gama