Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES MEDIDA DA PENA PENA DE PRISÃO PENA DE SUBSTITUIÇÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/11/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
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Sumário : | I - O crime de tráfico de estupefaciente é caracterizado como um ilícito penal que fica preenchido com um único acto conducente ao resultado previsto no tipo, sendo um crime de perigo comum, pluriofensivo, cuja punição exige a ponderação da prevenção da prática de futuros crimes. O bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde pública, nas suas componentes física e mental. II - A determinação da medida da pena é fixada dentro dos limites da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e de critérios de prevenção geral e especial, visando-se com a sua aplicação “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, conforme art. 40.º, n.º 1, do CP. A culpa funciona como limite da medida da pena (n.º 2 do art. 40.º do CP). III - Para a decisão de suspender ou não as penas de prisão são decisivos os critérios de prevenção, geral e especial de socialização, sem qualquer apelo aos critérios da culpa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso Penal Processo: 16/22.6GABCL.S1 5ª Secção Criminal
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO 1. AA, neste processo comum (tribunal coletivo), Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., por acórdão de 21/12/2022, foi condenado, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela Anexa I-A e I-B, nos termos seguintes: “Da matéria de facto apurada resulta que o arguido, nas circunstâncias de tempo e local vertidas nos factos provados detinha heroína e cocaína, aquela com o peso de 0,881 gramas (correspondente a menos do que uma dose individual, de acordo com a Portaria 94/96) e esta com o peso global de 120,482 gramas (correspondente a 959 doses individuais de acordo com a Portaria 94/96). Em face destes factos não podemos se não concluir que a actuação do arguido integra a prática dos elementos objectivos do crime de tráfico de estupefacientes que lhe vem imputado, pois detinha heroína e cocaína ilicitamente (isto é, fora dos casos previstos no capítulo II do diploma em análise). Por outro lado, porque ficou demonstrado que o arguido conhecia as características daquelas substâncias e sabia que a sua detenção era proibida e punida por lei, tendo agido deliberada, livre e conscientemente, também o elemento subjectivo do crime se mostra preenchido. Ao agir da forma descrita os arguidos actuou com dolo directo – cf. art. 14º, nº 1 do Código Penal. Incorreu, por isso, o arguido na prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL 15/93 de 22/1. (…) Pelo exposto e ao abrigo dos citados preceitos legais, julga-se a acusação procedente por provada e, em consequência: Condena-se o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela Anexa I-A e I-B na pena de 5(cinco) anos e 6(seis) meses de prisão.”.
2. Inconformado com essa decisão, dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Porto, sendo certo que, que foi admitido por despacho judicial de 22/02/2023 e a 23/03/2023 foi ordenada a subida a este STJ, conforme o disposto nos art.ºs 432.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, e 414.º, n.º 8, ambos do CPP.
Para o efeito, o arguido apresentou as seguintes conclusões: “A- Salvo o devido respeito por opinião contrária, a pena de 5 anos e seis meses de prisão que foi aplicado ao arguido ora recorrente não é, de todo, adequada á gravidade dos factos, nem á ilicitude da sua conduta, nem á sua culpa e personalidade; B- Com efeito, face á factualidade dada como provada nos respectivos itens 9 a 12, 14, 15, 17, 19 a 22, 25 a 27 , 29 a 31 e 33, cremos que a pena que foi aplicada ao arguido ora recorrente não é adequada á sua personalidade, nem á sua culpa, nem á ilicitude da sua conduta; C- Na verdade, a acusação não logrou demonstrar que o produto apreendido se destinasse á venda a terceiros e, ao invés, dos factos provados resulta apenas que as substâncias ilícitas que foram apreendidas ao arguido ora requerente se destinavam ao seu próprio consumo; D- Por outro lado, militam a favor do arguido ora recorrente várias circunstâncias atenuantes, nomeadamente a confissão e o facto do mesmo (não obstante o seu habitual consumo de drogas) se encontrar social, familiar e profissionalmente integrado; E- Razão pela qual, a pena de prisão a aplicar ao arguido ora requerente não deveria ter ultrapassado os 2 anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e condicionada á obrigação do arguido se sujeitar a um tratamento de desintoxicação da dependência de drogas. F- Pelo que, ao ter decidido como decidiu, a douta decisão ora recorrida violou as normas contidas nos artºs 40º, nº2, 42º, nº1, 50º, nºs 1 e 2, 52º, nº3, 71º, nº2, e 72º do código Penal Termos em que, dando-se integral provimento ao presente recurso, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra em que a pena a aplicar ao arguido não ultrapasse os 2 anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e condicionada á obrigação do arguido se sujeitar a um tratamento de desintoxicação da dependência de drogas , com todas as legais consequências. Só assim se fará sã, Inteira e boa Justiça!”. “1. O arguido AA foi condenado nestes autos pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão. 2. Não tendo o arguido impugnado a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, temos aquela por definitivamente assente. 3. No presente recurso, o arguido insurge-se contra a medida concreta da pena que, foi aplicada, pretendendo vê-la reduzida no número de anos. 4. Sufragando que o quantum exacto de pena não deverá exceder 2 anos e 6 meses de prisão; 5. Pugnando, a final, pela suspensão da execução da pena de prisão. 6. Em abono deste seu entendimento aduz que não se logrou demonstrar que o produto apreendido se destinava à venda a terceiros. 7. Mais aduzindo que, dos factos dados como provados resulta apenas que as substâncias ilícitas apreendidas ao arguido destinavam-se ao seu consumo. 8. Salvo sempre o devido respeito, cremos que é absoluta a falta de razão que assiste ao arguido recorrente. 9. Lido e relido o douto Acórdão proferido nos autos, em nenhum lugar dele se extrai, como pretende fazer crer o arguido, que o produto estupefaciente apreendido se destinava ao consumo do arguido. 10. Aliás, a detenção de 120,482 g de cocaína é, de acordo com as mais elementares regras da normalidade e experiência comum, incompatível com uma situação de consumo. 11. Por outro lado, o crime de tráfico é um «crime exaurido» que fica consumado com a mera detenção da substância estupefaciente. 12. Concordamos inteiramente com o Colectivo de Juízas quanto à medida concreta da pena aplicada ao arguido AA. 13. No caso concreto, não se encontram violados os critérios de determinação da pena enunciados nos artigos 40.º, n.º 1 e 71.º do Código Penal, nem foi desrespeitado o princípio da proporcionalidade na graduação da pena. 14. Considera-se perfeitamente adequada a pena de 5 anos e 6 meses de prisão tendo em consideração que são muito intensas as exigências de prevenção geral, o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos em face da natureza e quantidades de produtos estupefacientes detidos e, não menos importante, no que toca à prevenção especial, o passado criminal do arguido e a condenação anteriormente sofrida pela prática de factos integradores do mesmo ilícito criminal. 15. Cremos que, a ser-lhe aplicada, tal como preconiza nas suas alegações de recurso, uma pena concreta em medida não superior a 5 anos de prisão, seria postergada a crença da comunidade na validade e eficácia da norma violada. 16. A suspensão da execução da pena de prisão só deverá ser decretada se o Tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade. 17. No caso vertente, o arguido, para além de contar com um vasto passado criminal, sofreu uma condenação anterior pela prática do mesmo tipo legal de crime em pena de prisão suspensa na sua execução que não lhe serviu de suficiente advertência para o demover da prática do mesmo ilícito criminal. 18. No caso vertente, o arguido foi condenado anteriormente no âmbito do processo n.º 569/20...., que corre termos pelo J... dos Juízos Centrais Criminais de ..., por Acórdão datado de 6.10.2021, transitado em julgado em 5.11.2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 4 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período. 19. Pena essa que não o demoveu de, como se deu provado no ponto 1, 3 e 4 do Acórdão agora posto em crise, no dia 8 de Março de 2022, deter as quantidades de heroína e cocaína em apreço nestes autos. 20. A pena tem de ser suficientemente expressiva para que o arguido pondere futuramente o que consigo se passou e a condenação de que foi alvo e não volte a reincidir.”. “(…) Começa o recorrente por dizer que não ficou demonstrado «que o produto apreendido se destinasse à venda a terceiros» e que, ao invés, «dos factos provados resulta apenas que as substâncias (…) se destinavam ao seu próprio consumo». Mais do que a medida da pena, esta alegação questiona o enquadramento jurídico-penal dos factos. É verdade que não ficou assente que «o arguido, sem que, para tanto, estivesse autorizado, destinava as substâncias estupefacientes que lhe foram apreendidas à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária ou outra» (facto não provado n.º 5). No entanto, a não prova desse facto não significa, de todo, que o recorrente destinasse a totalidade dos estupefacientes apreendidos ao seu consumo (e que, por conseguinte, possa aspirar à recondução da sua conduta ao tipo do artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal). Na verdade, à luz das regras da experiência comum, ou seja, das regras que se extraem de casos semelhantes e que «exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes (id quod plerumque acidit)», as quantidades apreendidas (121,625 gramas de cocaína/éster metílico, das quais 118,764 gramas, juntamente com 0,881 gramas de heroína, foram encontradas no cofre do quarto do hotel onde o arguido estava hospedado) e o correspondente número de doses individuais diárias (987 doses de cocaína e 1 dose de heroína), refutam essa hipótese. De resto, o próprio arguido admitiu em julgamento que «o que tinha no carro era para consumo (consumia 10, 15 pedras por dia, de cocaína). Já o que estava no quarto de hotel tinha sido subtraído a uma pessoa do ... e ia entregar-lho mediante uma determinada quantia que considerava ser-lhe devida por motivos relacionados com outro processo em que essa pessoa não cumpriu o que havia combinado consigo» (v. a página 11 do acórdão recorrido). Diz ainda o recorrente que militam a seu favor «várias circunstâncias atenuantes», nomeadamente «a confissão» e o facto de «não obstante o seu habitual consumo de drogas» se encontrar «social, familiar e profissionalmente integrado». Ponderou-se a propósito no acórdão o seguinte (destaques a negrito da nossa autoria): «(…) a elevada ilicitude dos factos, tendo em conta a qualidade das substâncias detidas, heroína e cocaína, consideradas “drogas duras” com elevado grau de perigosidade social e para a saúde e a significativa quantidade de estupefaciente em causa, não olvidando o n.º de doses correspondente. É também elevada a intensidade do dolo, pois o arguido atuou com dolo direto. São muitíssimo elevadas exigências de prevenção geral que neste tipo de crime se fazem sentir, atento o perigo que o consumo de estupefacientes representa para a saúde pública e para a vida das pessoas, o alarme social e insegurança que gera, por estar normalmente associado à prática de outros ilícitos, e o sentimento de repulsa que a sua prática gera na comunidade, que anseia pela sua erradicação. Também as exigências de prevenção especial são muito acentuadas no caso, atendendo ao tipo de crime em causa e aos antecedentes criminais do arguido, já condenado anteriormente pela prática de crimes de recetação, furto qualificado (com várias condenações), condução de veículo em estado de embriaguez, ofensa à integridade física simples, falsidade de testemunho e, ainda recentemente, tráfico de estupefacientes. Atender-se-á à situação social, familiar e económica do arguido referida nos factos provados, com destaque para o enquadramento familiar e profissional e à confissão dos factos, ainda que sem grande relevância probatória, em face da demonstração que resultava já das apreensões efetuadas, mas à qual não poderá deixar de ser atribuído o seu justo valor (pois há arguidos que negam mesmo a evidência)». Deste trecho sobressaem duas ideias. Em primeiro lugar, que o tribunal ponderou as pertinentes circunstâncias e índices legais orientadores da operação de individualização da pena (artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal), sem esquecer as atinentes à confissão e à situação social, familiar e profissional invocadas pelo recorrente. Em segundo lugar, que a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, diante da moldura abstrata aplicável ao tipo de tráfico e outras atividades ilícitas do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (4 a 12 anos de prisão), de modo algum se pode considerar excessiva ou desajustada. De resto, ainda que se entenda que, nomeadamente por via da convolação dos factos para o tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (por apenas se ter provado a mera detenção ilícita dos estupefacientes), hipótese que o recorrente, em todo o caso, pelo menos abertamente, não ousou sustentar, a pena seja reduzida para medida igual ou inferior a 5 anos, os seus antecedentes criminais, que remontam a 2013 e englobam condenações por crimes de recetação, de furto qualificado, de condução em estado de embriaguez, de ofensa à integridade física simples, de falsidade de testemunho e de tráfico de estupefacientes (facto provado n.º 8), associados às «recidivas cíclicas nos consumos de drogas» e aos «défices de interiorização de valores sociojurídicos» (facto provado 32), estorvam inelutavelmente a formulação do juízo de prognose favorável, que permita acreditar que não voltará a cometer novos crimes, pressuposto basilar da aplicação da almejada pena de suspensão (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal). Acompanhando em tudo o mais as considerações vertidas no acórdão recorrido e na resposta da senhora procuradora da República… ”.
II. FUNDAMENTAÇÃO É a seguinte a matéria de facto fixada pelo tribunal da 1.ª instância: 2.1. A matéria de facto assim fixada não padece de quaisquer vícios que este Supremo Tribunal pode conhecer tal como prevê o art.º 410.º, n.º 2, do CPP, nem estes foram arguidos, não se vislumbrando quaisquer nulidades e por isso está definitivamente fixada, pelo que, com base nela, se passam a decidir as questões de direito suscitadas.
2.2. Enquadramento legal A única questão a resolver respeita à apreciação da dosimetria da pena aplicada, conforme conclusões A, B e E), do requerimento de recurso apresentado pelo arguido ora recorrente. O arguido interpôs o recurso per saltum, para este Supremo Tribunal de Justiça, fundando-se no disposto nos artigos 427.º e 432.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, visando a reapreciação da matéria de direito e pedindo, essencialmente, a redução da pena aplicada, visando ser possível a suspensão da execução da pena de prisão.
Nos termos do art.º 432.º do CPP estabelece-se, taxativamente, os casos em que tem lugar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, visando, exclusivamente a reapreciação da matéria de direito, aí se referindo que: “1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;”.
E, nos termos do Ac. Fixação Jurisprudência n.º 5/2017, publicado no Diário da República n.º 120/2017, Série I, de 23/06/2017, determinou-se que “A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas”.
É o caso dos autos em que a arguido, ora recorrente o que pretende é a reapreciação da pena de prisão que lhe foi aplicada em medida superior a 5 anos de prisão, visando a apreciação dos critérios utilizados no acórdão recorrido para a escolha e medida da pena, conforme o disposto nos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal. Assim precisada a intervenção deste tribunal superior, no presente recurso, importa apreciar os seus termos.
No caso, a discordância do recorrente cingiu-se à questão da medida concreta da pena, concretizada na pena de prisão efectiva de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, sem que, no seu entendimento, o tribunal tivesse efectuado a devida valoração da confissão e do facto de o mesmo (não obstante o seu habitual consumo de drogas) se encontrar social, familiar e profissionalmente integrado – conclusão D, do recurso. Para tanto sustenta que o tribunal “a quo” “(…),a acusação não logrou demonstrar que o produto apreendido se destinasse á venda a terceiros e, ao invés, dos factos provados resulta apenas que as substâncias ilícitas que foram apreendidas ao arguido ora requerente se destinavam ao seu próprio consumo.”, militando a seu favor militam a favor do arguido ora recorrente várias circunstâncias atenuantes – conclusões C e D, do recurso. O bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde pública, nas suas componentes física e mental, tal com tem vindo a ser assinalado pela jurisprudência e doutrina – a título de exemplo, vd. o Ac. do STJ de 10/10/2018, Proc. n.º 5/16.0GAAMT.S1 ou o Ac. de 02/10/2014, Proc. n.º 45/12.8SWSLB.S1, ambos em www.dgsi.pt.
Nos termos do art.º 21.º, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, para a verificação do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual o arguido, ora recorrente, foi condenado basta que alguém, “ (…) sem que para tal se encontrar autorizado, (…) por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver (…) substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III …”, sendo punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão, (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) e do bem jurídico protegido, a saúde pública.
Nos termos do art.º 71.º, do CP, a medida concreta da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e, em especial, verificadas todas as circunstâncias, referidas expressamente no fundamento da sentença que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente: “a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Ou seja, a determinação da medida da pena é fixada dentro dos limites da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e de critérios de prevenção geral e especial, visando-se com a sua aplicação “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, conforme art.º 40.º, n.º 1, do CP. A culpa funciona como limite da medida da pena (n.º 2, do art.º 40.º, do CP). Para a decisão de suspender ou não as penas de prisão são decisivos os critérios de prevenção, geral e especial de socialização, sem qualquer apelo aos critérios da culpa. A suspensão da execução da pena só poderá ser aplicada se o Tribunal concluir por “um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido”, na medida em que a simples censura da pena realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na verdade, a pena de substituição de suspensão da execução constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores socialmente mais relevantes. Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas. A estas circunstâncias acresce a verificação dos factores atinentes às exigências de prevenção geral presentes no caso, a intensidade do dolo, a ilicitude e as exigências de prevenção especial, relativas ao arguido recorrente. “Realizado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a medida da sanção a aplicar, já que a natureza da mesma está determinada pelo tipo legal, que pune a prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º do DL 15/93, de 22.01 com pena de prisão de 4 a 12 anos. Nos termos do artº 71º, do C.P, a determinação da medida da pena tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção. A função desempenhada por cada um destes critérios é definida de acordo com a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico, que é a que melhor se adequa às intenções do legislador penal. A prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto óptimo de protecção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar. A culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva. Dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena. Está aqui em causa, em princípio, a função de socialização do agente, mas quando esta não for possível, relevará, sobretudo a função de intimidação. Assim, importa atender, dentro dos limites abstractos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas. Na determinação da medida concreta da pena importa, portanto, considerar a elevada ilicitude dos factos, tendo em conta a qualidade das substâncias detidas, heroína e cocaína, consideradas “drogas duras” com elevado grau de perigosidade social e para a saúde e a significativa quantidade de estupefaciente em causa, não olvidando o nº de doses correspondente. É também elevada a intensidade do dolo, pois o arguido actuou com dolo directo. São muitíssimo elevadas exigências de prevenção geral que neste tipo de crime se fazem sentir, atento o perigo que o consumo de estupefacientes representa para a saúde pública e para a vida das pessoas, o alarme social e insegurança que gera, por estar normalmente associado à prática de outros ilícitos, e o sentimento de repulsa que a sua prática gera na comunidade, que anseia pela sua erradicação. Também as exigências de prevenção especial são muito acentuadas no caso, atendendo ao tipo de crime em causa e aos antecedentes criminais do arguido, já condenado anteriormente pela prática de crimes de receptação, furto qualificado (com várias condenações), condução de veículo em estado de embriaguez, ofensa à integridade física simples, falsidade de testemunho e, ainda recentemente, tráfico de estupefacientes. Atender-se-á à situação social, familiar e económica do arguido referida nos factos provados, com destaque para o enquadramento familiar e profissional e à confissão dos factos, ainda que sem grande relevância probatória, em face da demonstração que resultava já das apreensões efectuadas, mas à qual não poderá deixar de ser atribuído o seu justo valor (pois há arguidos que negam mesmo a evidência). Tudo ponderado, considera-se adequado condenar o arguido na pena de 5 anos e 6 meses de prisão. ;”.
Verifica-se, pois, que no aresto recorrido se fez adequada análise dos factos e se observaram os critérios legais de escolha e de determinação da medida concreta da pena a aplicar pela prática do crime perpetrado pelo arguido, respeitando nas considerações e ponderações efectuadas o disposto nos art.ºs 40.º, 70.º, e 71.º do Código Penal.
Efectivamente, da análise da matéria de facto verifica-se que o arguido recorrente agiu com conhecimento de que não lhe era permitido transportar e deter o estupefaciente identificado, subsumindo-se que tal quantidade de produto estupefaciente (cocaína, equivalente a um total de 988 doses de consumo individual) se destinava à venda a terceiros, resultando apurado o modo de detenção do estupefaciente em causa – factos provados sob os pontos 1 a 7, da matéria provada.
Por outro lado, está demonstrado que o arguido à data dos factos desenvolvia a actividade laboral de mecânico embora tivesse retomado o consumo de cocaína e álcool e deixado de comparecer às consultas no CRI – ... (factos provados, sob os pontos 17 e 18, da matéria de facto provada). Porém, segundo as regras da experiência comum, poder-se-á inferir da prova efectuada que o facto de se encontrar a residir num hotel (facto provado sob o ponto n.º 4, da matéria de facto provada) eventualmente significaria que o mesmo se encontrava em conflito com a família ou que, na data dos factos, com ela não estaria a residir e, o facto de deter tal quantidade de estupefaciente, quer transportando-a consigo na viatura quer guardada no quarto do hotel, bem como facto de deter consigo uma quantia de valor igual a 320 (trezentos e vinte) euros em numerário (factos provados sob os ponto 1 e 3, da matéria de facto provada), possivelmente o arguido desenvolveria uma actividade ilícita que constituiria uma fonte extra de obtenção de rendimentos.
Uma ponderação global destes factos aponta para uma situação de gravidade da sua conduta, pois, pesa, desfavoravelmente contra o arguido, o facto de não desconhecer a qualidade, a quantidade e o tipo de estupefaciente que detinha, transportava e guardava no cofre do quarto do hotel, que, apesar de não confessada, se compreende como destinando tal produto estupefaciente à obtenção de vantagens patrimoniais. Saliente-se que apesar da confissão do arguido, este tem antecedentes criminais da mesma natureza, pois muito recentemente (2021) foi condenado por decisão transitada em julgado em 05/11/2021, pela prática em 13/11/2020 de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 4 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova (facto provado sob o ponto 8, da matéria de facto provada), sendo que tais circunstâncias são suficientes para justificar uma ilicitude elevada e a não adequação do comportamento do arguido aos valores vigentes na comunidade em que se insere, bem como significa que o mesmo mantém uma conduta desconforme com as regras de direito vigentes. Efectivamente, a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão tão elevada imporia ao arguido o cumprimento estrito do seu plano de reinserção social e o seu afastamento de meios ligados ao tráfico de estupefacientes.
Por isso, nada há a censurar quanto à qualificação dos factos efectuada pelo tribunal de 1ª Instância que, no decurso do julgamento, livremente apreciou a prova produzida, mostrando-se a mesma bem analisada e fundamentada, e bem andou aquele tribunal ao condenar o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p. p. nos termos do art.º 21.º, do DL 15/93, de 22 de janeiro.
Com efeito, das circunstâncias factuais provadas, tudo é bastante revelador da dimensão de um tráfico que na verificação objectiva e subjectiva do tipo comum se mostra de ilicitude elevada, sobretudo se se tiver em consideração o modo como tal actividade é desenvolvida e o dano social que com a mesma actividade se atingiria, o que tem vindo a ser salientado na jurisprudência deste Supremo Tribunal “(…) na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade.” – Ac. STJ de 09/03/2017, Proc. n.º 91/14.7GBLMG.C1 .S1, em www.dgsi.pt. O crime de tráfico de estupefaciente é caracterizado como um ilícito penal que fica preenchido com um único acto conducente ao resultado previsto no tipo, sendo um crime de perigo comum, pluriofensivo, cuja punição exige a ponderação da prevenção da prática de futuros crimes – neste sentido, Ac. do STJ de 13/05/2020, Proc. n.º 168/17.7PAMDL.S1, em www.dgsi.pt.
Em suma, no acórdão recorrido considerou-se adequada a condenação do arguido, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. Nestes termos, ponderadas as circunstâncias do caso, os interesses preventivos e o nível da culpa, entende-se que uma pena graduada, próximo do limite mínimo da pena abstrata aplicada – recorde-se de 4 a 12 anos de prisão –, mostra-se adequada e satisfaz as exigências de prevenção que no caso importa salvaguardar, nada havendo a censurar ao acórdão recorrido.
Deste modo, tendo na conta o que se deixou expendido sobre os malefícios sociais que o crime de tráfico de estupefacientes importa para a sociedade, efectuando um juízo de equilíbrio e de proporcionalidade, julga-se adequado à gravidade dos factos praticados pelo arguido a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada pelo tribunal, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p.p. pelos arts.ºs 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Considerando a pena aplicada, e tendo presente o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, fica prejudicada, por impossibilidade legal, a apreciação da questão da suspensão da execução da pena.
Improcede o recurso do arguido, sendo certo que, não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pela recorrente.
III – DECISÃO Termos em que, acordando, se decide:
Lisboa, 11 de Maio de 2023 (processado e revisto pelo relator)
Leonor Furtado (Relator) Agostinho Torres (Adjunta) António João Latas (Adjunto)
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