Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
79/06.1TBODM.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ENFITEUSE DE PRÉDIOS RÚSTICOS
ABOLIÇÃO
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROIBIÇÃO
USUCAPIÃO
INDEMNIZAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / ENFITEUSE.
Doutrina:
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, p. 348.
- Gomes Canotilho e Abílio Vassalo de Abreu que se estende por três números da RLJ: nºs 3967 – Março-Abril de 2011 (a primeira parte do Estudo), que finda na Revista nº3969, Julho-Agosto de 2001.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Vol. I, 2ª edição, Coimbra, 2007; vol. I, 4ª edição revista.
- Jorge Bacelar Gouveia, “A Abolição da Enfiteuse relativa a prédios rústicos à luz da Constituição da República Portuguesa de 1976”, Acessível em http://www.jorgebacelargouveia.com/enfiteuse.html
- Jorge Reis Novais, Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa, pp. 171, 178
- Menezes Cordeiro, “Da enfiteuse: extinção e sobrevivência”, O Direito, Ano 140º, 2008, II, pp. 285 a 315.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, de Vol. III, pp. 687 e a 743.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1305.º, 1491.º E SS..
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 18.º, 62.º, N.º2, 204.º.
DECRETO-LEI N.° 547/74,DE 22-10.
DECRETO-LEI N.° Nº195-A/76, DE 16-3: - ARTIGO 1.º, 2.º, 3.º
LEI N.º11/87, DE 24-6.
LEI Nº108/97, DE 16-9: - ARTIGOS 1.º, 2.º.
Sumário :
I. A enfiteuse de prédios rústicos manteve-se no Código Civil de 1967 até que foi abolida, após a Revolução de 25 de Abril de 1974, - Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16 de Março - por se considerar que fazia impender sobre os pequenos agricultores “encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais de modo de produção feudal”.

II, O traço mais inovador dessa medida [coeva de um tempo histórico de mudança social e política com extraordinárias alterações na estrutura fundiária, sobretudo na zona territorial do latifúndio, a que foi aplicada a Reforma Agrária], consistiu no facto do titular do domínio útil, o titular do gozo do prédio, passar a ser proprietário pleno do domínio directo.

III. O direito de propriedade sendo absoluto, art. 1305º do Código Civil, em termos civilísticos, conhece limitações ditadas, ou por razões de direito privado, ou fundamentos de direito público.

III. Reconhecendo a Lei Fundamental o direito à propriedade privada, procedimentos ablativos do direito de propriedade só são constitucionalmente admitidos mediante o pagamento de uma “justa indemnização”, de modo a que os princípio da igualdade, da proporcionalidade e da confiança não sejam afrontados pela extinção forçada de tal direito.

IV) O DL. 195-A/76, de 16 de Março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos e ao conferir ao titular do domínio directo o domínio útil, atribuindo ao titular deste uma indemnização desrazoável e discriminatória, uma vez que apenas foi legalmente prevista para os casos em que o titular do domínio directo fosse pessoa singular com rendimento inferior ao salário mínimo nacional – art. 2º, nº1 – e estabelecendo que essa indemnização consistiria no pagamento anual enquanto fossem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia, violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança, e violou, ainda, o direito de propriedade privada, já que o acto ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.

V) Tendo a pretensão dos AA. assentado também na aquisição do direito de propriedade por usucapião como modo de aquisição do domínio útil que se arrogaram, para depois, por via dele, se tornaram titulares do domínio útil, mesmo que não fosse de considerar a inconstitucionalidade material do diploma abolitivo da enfiteuse, este Tribunal, ao abrigo do art. 204º da Constituição da República, por considerar materialmente inconstitucional a norma do art. 1º da Lei nº108/97, de 15.9., que alterou a redacção do nº5 do DL. 175-A/96, de 16 de Março, ao admitir a constituição da enfiteuse por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim retroactivamente um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização – art. 62º, nº2, da Constituição da República – violou os princípios da igualdade (art.13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança.

VI) O facto de a Constituição de 1976 ter consagrado a extinção da enfiteuse é irrelevante, não sanando a inconstitucionalidade cometida.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            AA e BB[2] intentaram, em 31.01.2006, no Tribunal Judicial da Comarca de Odemira, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

 CC

 Pedindo:

a) A constituição a favor do autor BB, por usucapião do seu domínio útil, da enfiteuse sobre a parcela de terreno composta por cultura arvense e oliveiras com a área de 0,8750 hectares, inscrita na matriz cadastral da freguesia de Vale de Santiago, sob o artigo 24º da Secção A, confrontando a norte com “C.......”, a nascente com “F...C....”, a sul com “E........” e a poente com “C......”, a desanexar do prédio rústico denominado “C.......”, sito na freguesia de V........, concelho de Odemira, anteriormente descrito sob o nº 00000 a folhas 00 vº do Livro B-..e actualmente sob a ficha nº .............. da Conservatória do Registo Predial de Odemira;

b) A constituição a favor dos autores BB e AA, em comum e sem determinação de parte ou de direitos, por usucapião do seu domínio útil, da enfiteuse sobre a parcela de terreno composta por cultura arvense com a área de 0,7500 hectares, inscrita na matriz cadastral da freguesia de Vale de Santiago, sob o artigo 5º da Secção A, confrontando a norte com “C.......”, a nascente com “F...C....”, a sul com “E........” e a poente com “C......”, a desanexar do prédio rústico denominado “C.......”, sito na freguesia de Vale de Santiago, concelho de Odemira, anteriormente descrito sob o nº 00000 a folhas 00 vº do Livro B-..e actualmente sob a ficha nº .............. da Conservatória do Registo Predial de Odemira;

c) E o reconhecimento de que os autores são proprietários daquelas parcelas por força da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16 de Março, condenando-se a ré a reconhecer essas aquisições.

Alegaram, para tanto e em resumo, o seguinte:

- Por volta de 1938, DD deu de aforamento as parcelas referidas a duas pessoas que, por sua vez, as cederam aos autores, na década de cinquenta, sendo que desde então os autores têm utilizado tais parcelas, plantando-as, fazendo construções e reparações, agindo sempre como titulares do seu domínio útil e pagando a contrapartida pela sua utilização, sendo sempre reconhecidos pelos proprietários como foreiros das parcelas.

- Tendo-se assim constituído uma relação de enfiteuse, os autores, por força da extinção da enfiteuse, passaram a ser proprietários das parcelas em causa.

Citada, a Ré contestou e deduziu pedido reconvencional, suscitando a questão da falta de mandato judicial e defendendo-se por impugnação, alegando, em resumo, que os autores nunca exploraram as parcelas em causa e que as deixaram ao abandono, tendo vendido as ruínas da casa existente na parcela 24 a EE, sendo que, face à falta de pagamento da prestação anual do foro e à falta de exploração e conservação, o anterior proprietário vendeu à ré o prédio onde se situam as parcelas em questão, livre de quaisquer ónus, tendo a ré adquirido o prédio em 1997, o qual registou em seu nome, o que faz presumir a titularidade do direito de propriedade plena.

            Suscitou ainda a inconstitucionalidade do DL. nº195-A/76, de 16 de Março, pedindo, para além da improcedência da acção que, em sede de reconvenção, seja reconhecido o direito de propriedade total da reconvinte sobre as parcelas em causa, declarando-se os reconvindos obrigados a reconhecer o direito de propriedade da reconvinte sobre as mesmas parcelas.

Foi proferido despacho no qual os autores foram convidados ao aperfeiçoamento da petição inicial no sentido de concretizarem o valor das parcelas no estado de incultas, as datas de construção das benfeitorias e o valor destas na data da construção.

Na sequência do comprovado falecimento dos autores, foram FF e GG habilitados como sucessores daqueles, para no seu lugar prosseguirem os termos da acção.

Estes apresentaram articulado a dar cumprimento ao convite que havia sido formulado, tendo a ré respondido, impugnando os valores por aqueles indicados.

 Foi designada e teve lugar uma audiência preparatória, no âmbito da qual, fixado o valor da causa e admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador, no qual se considerou regularizada a invocada falta de mandato judicial e foram elaborados os factos assentes e a base instrutória.

            A final foi proferida sentença, julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes:

            “a) Declarando-se a constituição a favor dos Autores, por usucapião do seu domínio útil, da enfiteuse sobre a parcela de terreno composta por cultura arvense e oliveiras com a área de 0,8750 hectares, inscrita na matriz cadastral da freguesia de Vale de Santiago, sob o artigo 24º da Secção A (confrontando a norte com C......., a nascente com F...C...., a sul com E........ e a poente com C......, a desanexar do prédio rústico denominado C......., sito na freguesia de Vale de Santiago, concelho de Odemira, anteriormente descrito sob o nº 00000 a folhas 00 verso do Livro B-..e actualmente sob a ficha nº .............. da Conservatória do Registo Predial de Odemira);

b) Declarando-se que os autores são proprietários daquela parcela por força da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16 de Março e subsequentes alterações, condenando-se a Ré a reconhecer aquela aquisição;

c) E, no mais se absolvendo a ré do pedido;     

d) E declarando-se que a Ré é proprietária da parcela de terreno composta por cultura arvense com a área de 0,7500 hectares, inscrita na matriz cadastral da freguesia de Vale de Santiago, sob o artigo 5º da Secção A (confrontando a norte com C......., a nascente com F...C...., a sul com E........ e a poente com C......, a desanexar do prédio rústico denominado C......., sito na freguesia de Vale de Santiago, concelho de Odemira, anteriormente descrito sob o nº 00000 a folhas 00 verso do Livro B-..e actualmente sob a ficha nº .............. da Conservatória do Registo Predial de Odemira).”   

            Inconformados, apelaram os Autores e a Ré para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 27.92012 – fls. 353 a 364 – concedeu provimento à apelação da Ré e, negando-se provimento à apelação dos Autores, decretou:

a) Recusar, por inconstitucionalidade material, a aplicação do DL. 195-A/76, de 16 de Março;

b) Revogar a sentença recorrida na parte em que, julgando parcialmente procedente a acção, declarou a constituição a favor dos Autores, por usucapião do seu domínio útil, da enfiteuse sobre a parcela de terreno composta por cultura arvense e oliveiras com a área de 0,8750 hectares, inscrita na matriz cadastral da freguesia de Vale de Santiago, sob o artigo 24º da Secção A (confrontando a norte com C......., a nascente com F...C...., a sul com E........ e a poente com C......, a desanexar do prédio rústico denominado C......., sito na freguesia de Vale de Santiago, concelho de Odemira, anteriormente descrito sob o nº 00000 a folhas 00 verso do Livro B-..e actualmente sob a ficha nº .............. da Conservatória do Registo Predial de Odemira) e condenou a Ré a reconhecer tal aquisição;

c) E bem assim na parte em que, relativamente a tal parcela, julgou improcedente a reconvenção;

d) Julgando totalmente improcedente a acção e absolvendo a Ré dos pedidos contra ela formulados;

e) E, julgando a reconvenção totalmente procedente, em declarar que (para além do decidido relativamente à parcela inscrita sob o art. 5º da Secção A), a Ré é proprietária da parcela de terreno referida em b).”

Inconformados, os AA., recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1) - O Tribunal da Relação de Évora considerou que o DL.195-/76, de 16 de Março violou os princípios constitucionais da igualdade e propriedade privada, pelo que se encontra ferido de inconstitucionalidade material.

2) - No entender dos recorrentes os aludidos princípios não foram violados.

3) - Em primeiro lugar porque não têm uma natureza absoluta, já que permitem limitações desde que os interesses em causa sejam legítimos.

4) - Em segundo lugar porque foi a própria Constituição que impôs a abolição da enfiteuse.

5) - E, ao aboli-la, pretendeu privilegiar os cultivadores, ou seja, os titulares do domínio útil.

6) - Isto porque foram estes últimos quem desbravou as terras, quem as tornou cultiváveis, quem as melhorou, plantou e colheu, fazendo diversas benfeitorias. 

7) - Foram esses incrementos que deram valor ao prédio, pelo que esse facto aliado à perpetuidade do foro, legitimam a limitação de alguns princípios constitucionais.

8) - Não há, assim, inconstitucionalidade material.

9) - Devendo, por isso, o Tribunal da Relação pronunciar-se acerca das questões colocadas pelos recorrentes no recurso de apelação.

Termos em que deverá a douta decisão ser revogada e substituída por outra que considere o diploma constitucional e imponha a apreciação das questões levantadas pelos recorrentes no seu recurso de apelação.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) A aquisição do direito de propriedade por compra sobre o prédio rústico denominado C......., situado na freguesia de Vale de Santiago, concelho de Odemira, composto por vinte e uma parcelas de terreno inscritas na matriz predial rústica sob os artigos 3° a 24° da Secção A, precisando-se que a parcela inscrita sob o artigo 5º é composta por cultura arvense com a área de 0,7500 hectares e a parcela inscrita sob o artigo 24º é composta por cultura arvense e oliveiras com a área de 0,8750 hectares, a confrontar de norte com C......., de nascente com F...C...., de sul com E........ e de poente com C......, descrita na Conservatória do Registo Predial de Odemira sob a ficha nº .............. da freguesia de Vale de Santiago [anterior descrição nº 00000 a folhas 00 verso do Livro B 46], esta inscrita a favor da autora através da apresentação nº 000000 e anteriormente estava inscrita a favor de HH por sucessão hereditária de II através da apresentação nº 000000.

2) Os primitivos autores AA e BB viveram em comunhão de mesa, leito e habitação até à data da entrada da presente acção, partilhando entre si os rendimentos que obtinham do trabalho que exerciam e tiveram dois filhos de nome FF e GG.

3) Em 1938, DD, que foi casado com II, declarou verbalmente dar de aforamento as seguintes parcelas de terreno:

- A JJ a parcela inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 24º da Secção A com a área de 0,8750 hectares referida: e

- A KK a parcela inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 5° da Secção A com a área de 0,7500 hectares já referida.

4) Pelo menos no ano de 1952, JJ declarou vender a BB a morada de casas térreas que tinha construído na parcela inscrita sob o artigo 24° da Secção A que estão inscritas na matriz predial urbana sob o artigo 469º da actual freguesia de Bicos.

5) Por volta de 1950, JJ declarou ceder a BB a sua posição de foreiro na parcela inscrita sob o artigo 24º da Secção A.

6) Por volta de 1955, KK declarou vender a BB e AA a sua posição de foreiro na parcela inscrita sob o artigo 5° da Secção A.

7) DD concordou com estas cedências.

8) Os sucessores de DD sempre reconheceram estas cedências e passaram aos primitivos autores os recibos de quitação correspondentes.

9) Ao longo dos anos e até pelo menos 1977, BB e AA sempre pagaram aos proprietários das referidas parcelas, no dia 15 de Agosto de cada ano, cem litros de trigo.

10) Desde as datas das cedências referidas, os primitivos autores passaram a efectuar sementeiras e plantações nas parcelas indicadas, retirando delas alimento para o gado que possuíam e produtos agrícolas que destinavam à sua à sua própria alimentação e à dos filhos.

11) Na parcela inscrita sob o artigo 24º da Secção A os primitivos autores efectuaram reparações nas casas, a última das quais em Dezembro de 2004, e pagaram as respectivas contribuições.

12) Na parcela inscrita sob o artigo 5° da Secção A os primitivos autores construíram um poço e plantaram oliveiras, videiras e um sobreiro.

13) Em todos esses actos os primitivos autores actuaram sempre na convicção de que eram titulares do domínio útil sobre as parcelas referidas.

14) Pelo menos até 1977 os proprietários lhe emitiram e entregaram os recibos de quitação do foro anual.

15) A parcela de terreno inscrita no artigo 5° da Secção A tem actualmente, no estado de inculta, um valor de € 9.375 e um valor de € 532,53 no momento em que foram feitas as construções.

16) A parcela de terreno inscrita no artigo 24º da Secção A tem actualmente, no estado de inculta, um valor de € 18.638,56 e um valor de € 621,29 no momento em que foram feitas as construções.

17) As sementeiras e plantações feitas desde 1950 tinham na altura um valor equivalente a € 54,17.

18) As reparações efectuadas no prédio inscrito sob o artigo 469° foram feitas em 1970 com um custo de € 1.658,59 e em Dezembro de 2004 com um custo de € 22.381, 24.

19) O poço construído por volta de 1962 custou o equivalente a € 316,88.

20) As árvores plantadas pelos autores em 1972 tiveram um custo de € 58,69.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o DL. Nº195-A/76, de 16 de Março, que extinguiu a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos, enferma de inconstitucional material por violar os princípios da igualdade e da propriedade privada.

Como consta do processo, os AA. demandaram os RR. invocando terem adquirido por usucapião o domínio útil das propriedades e, por isso, tornaram-se proprietários da propriedade perfeita, nos termos do diploma legal citado.

Da sentença apelaram os AA. e a Ré, tendo a Relação, no seu Acórdão, identificado como questões decidendas as seguintes:

 Apelação dos autores:

            - anulação da decisão relativa à improcedência da acção e à procedência da reconvenção, no que se refere à parcela inscrita no art. 5º, Secção A;

            - data a atender relativamente ao valor da parcela do art. 5º e das benfeitorias;

- total procedência da acção;

            Apelação da ré:

            - impugnação da matéria de facto;

            - inconstitucionalidade do DL. 195-A/76.

Começando por apreciar a questão da inconstitucionalidade, o Acórdão concluiu pela sua inconstitucionalidade material.

O Acórdão depois de argumentar com os princípios constitucionais convocados – arts. 13º e 62º da lei Fundamental afirmou – “ […] Nestes termos, haveremos de concluir no sentido da inconstitucionalidade material do DL. 195-A/76 de 16 de Março, na parte em que determinou a transferiu o domínio directo dos prédios rústicos para os titulares do domínio útil sem assegurar o pagamento de indemnização a todo e qualquer titular do domínio directo […]”.

 No preâmbulo do DL. 195-A/76, de 16 de Março, pode ler-se:

“Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal.

Com efeito, encontram-se ainda hoje extremamente generalizados os foros, podendo referir-se que só o Estado, segundo estimativas feitas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública, é titular de domínios directos que atingem cerca de 400 000, ultrapassando o seu valor 1 milhão de contos. Uma política agrária orientada para o apoio e a libertação dos pequenos agricultores não pode deixar de integrar a liquidação radical de tais relações subsistentes no campo.

Previu-se, no entanto, a particularidade de situação dos pequenos senhorios, tendo-se adoptado uma solução que permitirá ao Estado identificar rapidamente tais situações.”

“Artigo 1.—1. É abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio directo deles para o titular do domínio útil.

 2. Nos contratos de subenfiteuse de pretérito a propriedade plena radica-se no subenfiteuta.

3. Serão oficiosamente efectuadas as correspondentes operações de registo”.

“Art. 2.°—1. O Estado, através do Ministério da Agricultura, indemnizará o titular do domínio directo quando este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional.

2. A indemnização consistirá no pagamento anual, enquanto forem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia.”

Art. 3.°—1. O pedido de indemnização será dirigido ao tribunal da comarca da situação do prédio, devendo o requerimento identificar o titular do domínio útil e ser instruído com a prova documental e a indicação de testemunhas que o requerente pretenda produzir e indicar, até ao número de cinco.

 O requerente terá de instruir o seu requerimento com certidão de todos os impostos e contribuições pagos ao Estado nos últimos cinco anos, com indicação das respectivas fontes.”

A Lei 11/87, de 24.6 aditou ao art. 1º do DL. de 1976 o seguinte:

“4 — No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial.

5 — Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:

 a) Que em 16 de Março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil;

b) Que pagava uma prestação anual ao senhorio;

c) Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer direito próprio como enfiteuta;

 d) Que as benfeitorias, à data da interposição da acção, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas.”

O art. 2.°  estatuiu – “O artigo 5.° do Decreto-Lei nº195-A/76,de 16 de Março, passa a ter a seguinte redacção:

Art. 5º. A acção a que se refere o artigo 3º deverá ser intentada no prazo de seis meses a contar do registo a que se refere o n.° 3 do artigo 1.°”.

Finalmente, o quadro legislativo substancial concernente à extinção da enfiteuse ficou completo com a Lei nº108/97, de 16. 9, que no seu art. 1º consignou:

“O n.°5 do artigo 1.° do Decreto-lei n.°195-A/76,de 16 de Março, passa a ter a seguinte redacção:

 “5 — Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:

a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;

b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976,mesmo que depois de 16 de Março de 1976,do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.»

Artigo 2.° É aditado ao artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 195-A/76, de 16 de Março, um novo número, com a seguinte redacção:

“6. Pode pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião quem tenha sucedido ao cultivador inicial por morte ou por negócio entre vivos, mesmo que sem título, desde que as sucessões hajam sido acompanhadas das correspondentes transmissões da posse.”

Artigo 3° Para os efeitos do disposto no Decreto-Lei n.° 547/74,de 22 de Outubro, presume-se que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato se não houver contrato escrito ou ele for omisso quanto ao estado de terras e o arrendamento subsistir há mais 50 anos.”

Sobre a origem da enfiteuse, citamos o texto extraído da internet[3]:

“A enfiteuse tem origem na Grécia, no século V A.C.

No Império Romano, era o direito de usar e gozar, por tempo ilimitado, de um terreno alheio, para cultivo, contra o pagamento de um foro anual ao proprietário do terreno.

 Na Roma antiga, o instituto da enfiteuse foi utilizado como instrumento jurídico capaz de tornar produtivas grandes extensões de terra e de fixar populações nessas regiões. A princípio, era feito o arrendamento por prazo longo (por 100 anos ou mais) ou perpétuo de terras públicas a particulares, contra o pagamento de uma taxa anual denominada de vectigal – daí o nome do instituto – ius in agro vectigali ou ager vectigalis. Na parte oriental do Império Romano, eram arrendadas aos particulares vastas áreas de terras incultas.

 Havia duas espécies de arrendamento:

 Ius emphyteuticum, que, embora fosse por prazo longo, era temporário;

 Ius Perpeturim, quando o arrendamento era perpétuo.

 Separadamente e bem distinto dos agri vectigales, a partir do século III d.C., os imperadores romanos passaram a conceder a particulares, mediante pagamento de um foro anual (cânon), terras incultas pertencentes à família imperial (não ao Estado, embora frequentemente houvesse certa confusão entre bens do Estado e da família imperial), para cultivo. A origem de tal concessão de terras é grega, copiada pelos romanos no Egipto e em Cartago, e chamava-se emphyteusis. Esse arrendamento mediante o pagamento do cânon pelo enfiteuta ao senhor directo do imóvel aforado, tinha a finalidade de solucionar o problema do plantio e do cultivo de imensas glebas de terras (latifundia).

 Os latifundiários também passaram a arrendar suas propriedades, ampliando-se dessa forma a ocupação e do cultivo das terras particulares, nos mesmos moldes dos arrendamentos feitos pelo Estado.

A partir do século IV D.C. (depois de Cristo), os dois institutos, o ager vectigales e a emphyteusis (o ius emphyteuticon), fundiram-se e assim apareceu o novo instituto, sob o nome do último, no Código de Justiniano. Esta fusão aconteceu na Era Justiniana, com a finalidade de prender o lavrador à terra de um terceiro, de modo que os arrendatários não podiam ser obrigados a deixar a terra, enquanto pagassem a renda convencionada. […]

 O instituto passou do Direito Justiniano para os títulos 78, 79 e 80, do Quarto Livro das Ordenações Afonsinas, e destes para os títulos 63, 64 e 65, do Quarto Livro das Ordenações Manuelinas, e daí para os títulos 36 a 40, do Quarto Livro das Ordenações Filipinas. […]”

Na definição do art.1653º do Código de Seabra – “Dá-se o contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, quando o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou cânon”.

A enfiteuse manteve-se no Código Civil de 1967 até que foi abolida, após a Revolução de 25 de Abril de 1974, por se considerar que fazia impender sobre os pequenos agricultores “encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais de modo de produção feudal”.

A Constituição da República de 1976 constitucionalizou a proibição da enfiteuse.

 O traço mais inovador dessa medida [coeva de um tempo histórico de mudança social e política com extraordinárias alterações na estrutura fundiária, sobretudo na zona territorial do latifúndio, a que foi aplicada a Reforma Agrária], o titular do domínio útil, o titular do gozo do prédio, passou a ser proprietário pleno.

Foi prevista uma indemnização apenas quando o senhorio directo fosse pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional, que seria paga pelo Estado.

Tanto quanto se sabe não existe qualquer decisão do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade da abolição da enfiteuse, sobretudo quanto à indemnização prevista na lei pela ablação do direito de propriedade do titular do domínio directo, que se viu desapossado desse direito ope legis passando esse direito, ao menos na versão do diploma legal de 1976, automaticamente para o enfiteuta ou foreiro – art. nº1, do DL.195-A/76 de 16 de Março.

Não obstante os largos anos passados sobre a decisão – o processo legislativo de abolição da enfiteuse rural prolongou-se desde 1976 a 1997.

Recentemente, a figura da enfiteuse mereceu a atenção de três reputados Juristas.

Primeiro, o Professor Menezes Cordeiro, no artigo doutrinal publicado na Revista “O Direito”, Ano 140º, 2008, II, págs. 285 a 315, sob o título “Da enfiteuse: extinção e sobrevivência”.

Cremos que se pode entrever a renovada actualidade do tema quando o Autor do Estudo escreve, pág. 286:

 “O Direito proíbe a enfiteuse. Mas não impede – nem pode impedir – que, no terreno, se reconstituam as situações de facto que, historicamente, lhe deram corpo. O presente escrito visa surpreender esse curiosíssimo fenómeno. E explicita o regime então aplicável, isto é: estuda as regras aplicáveis a situações de enfiteuse que sobrevivam ou que renasçam, mesmo sob o regime abolicionista imposto pela própria Constituição.

Tais regras, de resto, tenderão a reconduzir o enfiteuta à propriedade plena. Operação delicada, que exige muita sensibilidade prática e técnica.”.

No “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. III, págs. 687 e a 743, apesar da abolição da enfiteuse, consta em apêndice, o extinto regime jurídico da enfiteuse e anotações aos preceitos que o caracterizavam.

O art. 1491º do Código Civil definia:

1. Tem o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil.

2º. O prédio sujeito ao regime enfitêutico pode ser rústico ou urbano e tem o nome de prazo.

3. Ao titular do domínio directo dá-se o nome de senhorio; ao titular do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta.”

 A enfiteuse era perpétua sem prejuízo do direito de remição – art. 1492º: o prazo era indivisível – 1493º; a enfiteuse poderia constituir-se por contrato, testamento ou usucapião – art. 1497º; o senhorio directo tinha direito a receber anualmente o foro – art. 1499º, a), estes alguns dos traços normativos do regime jurídico da figura.

Outro estudo, este acessível na Internet, é da autoria do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, intitulado “A Abolição da Enfiteuse relativa a prédios rústicos à luz da Constituição da República Portuguesa de 1976[4], datado de 18.11.2011 e, finalmente, o Estudo em co-autoria de Gomes Canotilho e Abílio Vassalo de Abreu que se estende por três números da RLJ: nºs 3967 – Março-Abril de 2011 (a primeira parte do Estudo), que finda na Revista nº3969, Julho-Agosto de 2001 – denominado “Enfiteuse sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito normativo do instituto enfitêutico”.

Este estudo “grosso modo” repudia a tese do Professor Menezes Cordeiro que analisa com muito pormenor.

É pertinente no recurso, tendo em conta o seu objecto, saber se a lei que aboliu a enfiteuse é ou não materialmente inconstitucional.

Por isso começaremos por dar conta das posições assumidas pelos Ilustres Juristas, autores dos doutos Estudos.

Menezes Cordeiro, parco em considerações sobre a constitucionalidade, afirma:

“As soluções do Decreto-Lei n.°195-A/76, de 16 de Março, seriam, hoje, de duvidosa constitucionalidade.

  De todo o modo, a própria Constituição da República de 25 de Abril de 1976, no seu artigo 101.°/2, veio dispor: “Serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime da parceria agrícola.” A redacção desse preceito, que hoje surge com o artigo  96.°/2, resultou da revisão constitucional de 1982, sendo a seguinte: “São proibidos os regimes de aforamento e  colonia e serão criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime de parceria agrícola”.

Ficou assim sancionada a extinção da enfiteuse. Explicam os comentadores que a Constituição[5] repudiou a consagração de regimes perpétuos de divisão da terra em dois domínios.

No tocante ao futuro, a Constituição veio, neste ponto, restringir “… a faculdade de disposição da propriedade fundiária”. Resta acrescentar que a proibição constitucional, dirigida à enfiteuse de prédios rústicos, se mantém plenamente eficaz. Não se torna possível, perante tal dispositivo, deixar consolidar, por inércia, situações de enfiteuse anteriores.”

Com o devido respeito, parece assim que a proibição da figura no texto constitucional não valida a “duvidosa constitucionalidade” da extinção (feita em tempo pré-constitucional) sendo que nada se diz sobre a indemnização que o diploma abolidor previa, apenas para pessoas singulares que não tivessem salário superior ao mínimo nacional, sendo certo que, não obstante as ulteriores alterações, a indemnização se manteve standard, mesmo quando, quase dez anos volvidos uma nova lei veio admitir a aquisição do domínio útil pela invocação da usucapião. – art. 2º, da Lei nº108/97, de 16.9, que aditou ao art. 1º do DL. 195-A/76, de 16.3 um novo número (o sexto).

No Estudo publicado na RLJ, os seus Autores defendem a inconstitucionalidade material daquela Lei 108/97, e, na pág. 208, § 3. “A Lei nº108/97, de 16 de Setembro destrói o próprio fundamento constitucional de enfiteuse.”, afirmam:

“Em termos formais, o jogo de sucessão de leis no tempo é o seguinte: (i) o Decreto-Lei n. °195-A/76, de 16 de Março, extinguiu a enfiteuse; (ii) a Constituição de 1976, em sintonia com este acto legislativo preconstitucional, proibiu a enfiteuse; (iii) a Lei nº 28/87, de 24 de Junho, definiu os meios de prova da existência de um regime jurídico de enfiteuse; (iiii) a Lei n. °108/97, de 16 de Setembro, alarga o âmbito normativo da enfiteuse a outras situações que nele não cabiam nos termos do Decreto-Lei n. °195-A/76 e da Constituição da República.

Em rigor, poderia, dizer-se que a sucessão de leis no tempo se fez sem qualquer mácula formal e procedimental: a lei preconstitucional é alterada por outros instrumentos legislativos, em termos formais, orgânicos e procedimentalmente regulares. Sob o manto, porém, da legalidade formal, alguma coisa se alterou, de forma radical, sob o ponto de vista material.

A Lei n.°108/97(i) vem ditar imperativa e positivisticamente que é enfiteuse aquilo que não é; (ii) que a nova disciplina legal ainda pertence à “marcha emancipatória” da proibição constitucional; (iii) que a recauchutagem enfitêutica ainda é uma recomposição dos velhos odres normativos do Decreto-Lei n.º 195-A/76 e da Constituição da República” - (pág. 208, Revista nº3967). (destaque e sublinhados nossos, como são todos os que constam nas citações)

Em suma, é afirmada por Gomes Canotilho e Vassalo Abreu, claramente, a inconstitucionalidade da Lei nº 108/97, como resulta do seguinte excerto:

Na pág. 212 e segs., no item:

 “§ 7. A inconstitucionalidade da Lei nº 108/97: A “expropriação” ou confisco sem indemnização.

“Além de proceder, de forma inconstitucional, ao alargamento do âmbito objectivo subjectivo da enfiteuse, a Lei n.°108/79 suscita também o problema de saber se ela não transporta no seu bojo um “confisco” ou, se se preferir, uma “expropriação sem indemnização” para fins particulares.

Perante a versão inicial da Constituição levantámos a questão do silêncio constitucional quanto aos esquemas indemnizatórios, sugerindo a existência de um confisco porque não se previa qualquer tipo de indemnização do foreiro ao senhorio [Gomes Canotilho/Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 2ª edição, Coimbra, 2007, p. 453].

 Ora, o que a Lei n.°108/97 — primo conspectu pelo menos, tendo presente a interpretação que dela faz António Menezes Cordeiro — vem dizer é que, afinal, quis extinguir também formas de exploração de terra alheia, como são, por exemplo, os regimes de arrendamento de longa duração. […]”.

“ […] Depois da Revisão Constitucional de 1989, que procedeu a uma reconstrução profunda da Constituição económica, qualquer interpretação das normas constitucionais deverá ter em conta que a dimensão emancipatória inicial se confronta hoje com os parâmetros de juridicidade constitucional.

Qualquer interpretação legitimadora da transferência de propriedade ou, se se preferir, de medidas ingerentes no direito de propriedade com efeitos translativos de domínio, sem previsão das regras indemnizatórias, será, a nosso ver, uma interpretação em desconformidade com a Constituição.

 Note-se que, mesmo perante o texto da versão originária do Decreto-Lei n°195-A/76, não deixou de colocar-se a questão de responsabilidade do Estado por exercício da função legislativa pela extinção, sem indemnização, do domínio directo no âmbito da relação jurídica enfitêutica.

 Com efeito, no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, [de que foi relator o Juiz Conselheiro Noronha do Nascimento][6], sugere-se que: “O artigo 2°do DL. 195-A/76, de 16 de Março, poderá enfermar de inconstitucionalidade material por contrário aos artigos 13.° e 62.° da Constituição Política de 1976, na medida em que extingue, por lei, uma modalidade de propriedade sem que preveja, para todas as hipóteses, o respectivo direito de indemnização, e na medida em que impõe a alguns cidadãos um sacrifício que, em concreto, pode ser desmesurado relativamente aos demais, a quem nenhum sacrifício é exigido”.

 Se a inconstitucionalidade era já esgrimida perante a versão originária do Decreto-Lei n°195-A/76, de 16 de Março […] o desvalor constitucional será ainda mais inequívoco perante a sucessiva “desconstrução” e alargamento ope legis do “domínio normativo” da enfiteuse.

 A instabilidade jurídico-normativa do instituto terá começado com a Lei n.°22/78, de 24 de Junho…”.

No Estudo de Bacelar Gouveia, que seguiremos de perto, por abordar sob várias perspectivas a questão que nos ocupa, depois de considerar – pág. 33 – “…Que o efeito extintivo da propriedade só pode dar-se se verificados os seguintes três princípios: - o princípio da utilidade pública; - o princípio da indemnização; e o princípio da legalidade”, escreve:

“ Isso fica por demais evidente, no caso da enfiteuse rural, pelo facto de a abolição da enfiteuse fazer do enfiteuta o novo proprietário pleno sem que ao antigo titular do domínio direto seja atribuída qualquer significativa compensação pecuniária pelo efeito de extinção do seu limitado direito de propriedade.

Tal apenas sucede marginalmente quando o titular do domínio direto é uma pessoa singular e apenas tem um rendimento equivalente ao salário mínimo...

Ora, estão aqui reunidos os pressupostos de uma violação de um direito real de propriedade, onerado pelo direito de enfiteuse, constitucionalmente intolerável à luz da garantia do direito de propriedade:

- por um lado, o efeito ablativo do direito, ou seja, a extinção do direito de propriedade, que consistia na titularidade do domínio direto;

- por outro lado, a ausência de qualquer contrapartida por parte de quem ficou avantajado com esse desaparecimento, o antigo enfiteuta e novo proprietário pleno, nem sequer se descortinando um interesse público relevante.

 Uma vez que o efeito da violação do direito de propriedade privada deriva do próprio ato legislativo, promanado pelo Estado Português, é-lhe diretamente assacável a inconstitucionalidade material, na medida em que a desapropriação do direito de propriedade não vem acompanhada de qualquer indemnização e essa consequência é perpetrada pelo ato legislativo em causa.

Trata-se de uma exigência da defesa constitucional da propriedade privada, pois que todo e qualquer ato ablativo da propriedade — seja pública, seja privada — tem de ser acompanhado não apenas pelos fundamentos justificativos como por uma contemporânea e justa indemnização.

Nem uma coisa nem outra aqui encontramos:

- não há fundamentos de interesse público, uma vez que a existência de aforamentos não constituía qualquer impedimento ao livre desenvolvimento da atividade económica, eles existindo noutros países desenvolvidos;

- não há indemnização porque a mesma não é simultaneamente prevista, com uma significativa dimensão, no efeito extintivo da propriedade que ocorre na conversão do antigo enfiteuta na nova posição de proprietário pleno.

 Só podemos concordar, portanto, com a opinião que tem sido expendida na doutrina portuguesa sobre esta situação deveras insólita e absolutamente injusta, sendo interessante invocar mestres com formações jurídicas e ideológicas bem diferenciadas, com isso se comprovando o acerto total das suas afirmações do ponto de vista do consenso que devem gerar.

A opinião mais antiga, e produzida por um dos maiores especialistas em Direitos Reais, é a de PIRES DE LIMA, que não se coíbe de qualificar esta solução legislativa como sendo de um verdadeiro confisco, nos seguintes termos: “O Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março, sem a realização prévia de nenhum estudo económico-social sobre a relação de aforamento (...), aboliu a enfiteuse sobre prédios rústicos, impondo um verdadeiro confisco a muitos dos titulares do domínio direto”.

Mais recentemente, cumpre assinalar a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que na sua última edição da conhecida “Constituição da República Portuguesa Anotada” (a 4ª edição) vão um pouco mais longe na anotação ao art. 99º, n° 2, da CRP, referindo o seguinte [Acrescentando algo que nunca tinham dito em edições anteriores, ainda que tivessem antes referido o facto de a abolição da enfiteuse rural não ter sido acompanhada da qualquer compensação.]:

Note-se que, no caso da extinção dos aforamentos de prédios rústicos, não se previu qualquer tipo de indemnização do foreiro ao senhorio, tendo havido portanto um verdadeiro confisco do direito deste”.

A mesma opinião veio a ser defendida ultimamente por Rui Medeiros: “Em contrapartida, em face do atual estatuto do direito de propriedade no texto constitucional em vigor, o sacrifício lícito do direito do proprietário em favor daqueles que exploram diretamente a terra dificilmente pode ser feito sem o pagamento de justa indemnização.

Com efeito, sem entrar agora no problema da aplicação da lei constitucional no tempo (…) o artigo 62°, n° 1, da Constituição está consagrado com alcance geral, abrangendo, igualmente, os próprios meios de produção e a propriedade fundiária”.

E o autor conclui: “Numa palavra, independentemente do modo como se apresenta o sacrifício do direito de propriedade, a garantia constitucional da propriedade postula, em caso de expropriação, ainda que por utilidade particular, o pagamento de uma justa indemnização […] – RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 96º II, p. 179.].”

O Constitucionalista sustenta que o facto de a Constituição de 1976 ter consagrado a extinção da enfiteuse é irrelevante, não sanando a inconstitucionalidade cometida.

 Assim a fls. 41, afirma:

“I. Igualmente não parece possível o exercício de pensar que com a constitucionalização da abolição da enfiteuse, juntamente com a consagração na nova Constituição da garantia da propriedade privada, se evitaria a sua inconstitucionalidade material com base no raciocínio de que aquela proteção só teria acontecido a partir da entrada em vigor da CRP em 25 de Abril de 1976, logo sempre depois de o efeito extintivo ter ocorrido, ainda em Março de 1976.

São vários os motivos para concluir pelo absurdo desta conclusão:

- em primeiro lugar, o período anterior à vigência da ordem constitucional não era um período “vazio” no tocante à proteção dos direitos fundamentais, nele naturalmente se incluindo o direito de propriedade privada, sendo vários os diplomas legais revolucionários que remetiam para a proteção de direitos fundamentais;

- em segundo lugar, o texto da Constituição de 1933, nesse período revolucionário, conservou-se em vigor como legislação ordinária provisória na parte que não fosse contrariada pelos princípios revolucionários, sendo essa parte precisamente aquela que respeitava à proteção dos direitos fundamentais, incluindo o direito de propriedade privada;

- em terceiro lugar, a Revolução de 25 de Abril de 1974, e a legislação posterior que a concretizaria em sucessivas fases, sempre se reivindicou de um legado humanista e personalista, em cujo núcleo central estava a proteção dos direitos fundamentais, pelo que não faria sentido que o poder legislativo revolucionário os pudesse simplesmente ignorar;- em quarto lugar, em múltiplas outras ocasiões de intervenção legislativa na propriedade fundiária, o legislador cuidou dos aspectos pertinentes à indemnização dos sacrifícios causados, pelo que analogicamente essa consequência teria sempre de ser aqui admitida.”

Depois de fundamentar a inconstitucionalidade também à luz do princípio do estado de direito – fls. 00 e segs. – o autor versa o tema já abordado no Estudo de Gomes Canotilho e Valadas Abreu, sustentando a inconstitucionalidade material da legislação que modificou o regime da usucapião da enfiteuse rural em razão da sua aplicação retroativa

A propósito, afirma, pág. 60 e segs, sob o título – 14. “A inconstitucionalidade material da legislação que modificou o regime da usucapião da enfiteuse rural em razão da sua aplicação retroativa.

 “Uma segunda situação de inconstitucionalidade material que igualmente se verifica nesta legislação que aboliu a enfiteuse relativa a prédios rústicos diz respeito à violação do princípio constitucional da proteção da confiança, inserto no princípio do Estado de Direito. 

Este princípio constitucional implica que da parte do legislador – como de qualquer poder público – se assinale um comportamento gerador de confiança, sem mudanças abruptas e sem que as mudanças que seja necessário fazer não deixem de se fundar numa justificação material forte, não aparecendo como desrazoáveis ou caprichosas.

Uma das mais as consequências deste princípio é o da oroibição de mudanças legislativas com eficácia retroativa que venham a prejudicar interesses e posições atendíveis e que nada faria supor que viessem a ser postos em causa.

Ora, é exatamente isso o que aconteceu com as intervenções legislativas que foram feitas depois de tomada a primeira decisão legislativa de abolir a enfiteuse relativa a prédios rústicos.

Recorde-se que, num evidente ineditismo legislativo, foram publicadas duas leis da Assembleia da República em que, repetidamente, se modificou o regime da usucapião do direito real de enfiteuse, com o objetivo, em cada momento, de facilitar a sua aquisição em favor do enfiteuta, a fim de colocar na posição de novo proprietário pleno do prédio rústico.

Não é possível olhar para estas alterações legislativas – aprovadas dez e vinte anos depois da abolição da enfiteuse relativa a prédios rústicos, em que já se previa a aquisição deste direito real por enfiteuse, como desde sempre – sem um olhar de espanto e de incredulidade perante os efeitos nefastos produzidos sobre situações consolidadas longínquo.

Qual a razão de ser da inconstitucionalidade material deste efeito retroativo?

Ela radica em três razões:

- em primeiro lugar, cada nova intervenção veio alargar os pressupostos que permitiam aceder à usucapião, o que tem de ser visto, simetricamente, como a desvalorização da posição do proprietário;

- em segundo lugar, feita a constitucionalização da abolição da enfiteuse, rural e urbana, a partir de 25 de Abril de 1976, data da entrada em vigor da CRP, deixou de ser possível ao poder legislativo ordinário intervir num domínio que passou a estar proscrito do ponto de vista constitucional;

- em terceiro lugar, sendo intervenções legislativas restritivas de um direito de propriedade, que foi mais facilmente extinto por ação do prolongamento do exercício de um direito de indemnização em favor do enfiteuta novo proprietário pleno, elas estão abrangidas pelo art. 18º da CRP, segundo a qual as restrições legislativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ter um efeito retroativo, sendo o direito de propriedade um direito análogo, em matéria de regime, aos direitos, liberdades e garantias.”

Finalmente, pág. 63 e segs., afirma-se a inconstitucionalidade da extinção da enfiteuse rural, por violação do princípio da igualdade – art. 13º da CR – a fls. 67:

 “A inconstitucionalidade material da legislação que extingue a enfiteuse rural por tratar com desigualdade os proprietários no plano indemnizatório.”

“1. Terceira justificação para se considerar a legislação que extinguiu a enfiteuse como ferida de inconstitucionalidade material radica na violação do princípio da igualdade, previsto especificamente no art. 13º da Constituição, mas sendo ele um princípio geral de Direito Constitucional e até de Direito.

Essa é uma conclusão que radica na verificação de que há um conjunto de cidadãos que são objeto de uma legislação extintiva do seu direito de propriedade que não penaliza outros mesmos cidadãos nesse efeito, uma vez que o pagamento da indemnização não é feito a todos por igual, mas apenas em beneficio de uma ínfima parte dos proprietários, que agora vêm a sua propriedade extinta em favor dos enfiteutas como novos proprietários.

De resto, esta conclusão de violação do princípio constitucional da igualdade é bem manifesta se atentarmos no regime da extinção da enfiteuse relativa a prédios urbanos, regime em que a indemnização estabelecida em favor daquele que vai deixar de ser proprietário não distingue qualquer condição temporal ou económica.

II. É seguro que o legislador levou por diante uma intenção de compensação pecuniária mínima, sobretudo em relação aos proprietários singulares e com um rendimento baixo.

Todavia, por aí se quedou, não considerando a atribuição de indemnizações no caso de o proprietário ser uma pessoa coletiva e, sendo pessoa jurídica singular ou coletiva, tenha um rendimento superior ao máximo permitido por aquela legislativa para vir a receber a indemnização.

Eis uma solução gritantemente inconstitucional à luz deste princípio constitucional da igualdade, juízo que se pode exercer sobre todas as soluções que se contêm naquela legislação.

III. Desde logo, cumpre mencionar a circunstância de a abolição da enfiteuse, convertendo o enfiteuta em proprietário pleno, não poder ser em nada influenciada pela qualidade do titular do domínio direto do bem em causa.

Estando em causa um direito real de gozo, a consistência do mesmo direito, para efeitos de avaliabilidade pecuniária no caso de ser extinto, apresenta-se imune a quaisquer considerações que extravasem dessa natureza objetiva, sendo impertinentes as qualidades do titular, pessoa singular ou coletiva.

De resto, este é um domínio em que nem sequer faz sentido operar qualquer distinção por força da aplicação do princípio da universalidade, o qual equipara em direitos — mesmo estando em causa direitos fundamentais, sendo os direitos reais abrangidos pelo global direito de propriedade privada — as pessoas singulares às pessoas coletivas, visto não haver aqui qualquer solução diferenciada que seja ditada pela diversidade das suas naturezas.

É exatamente isso o que se estabelece na CRP: “As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”.

IV. Noutra perspetiva, não se mostra materialmente justificada a diferenciação que se opera entre a extinção da enfiteuse rural que dá direito a indemnização e aquela que não dá apenas em função do rendimento do proprietário.

A origem das propriedades gravadas com a enfiteuse são remotas e não se considera apropriado que a compensação pela eliminação legislativa de um direito seja ditada por considerações exteriores ao conteúdo dos direitos reais em apreço.

Este é um pensamento que enferma de uma enorme distorção na observação da realidade, dado que o prejuízo com a eliminação da posição do proprietário não fica melhor compensado quando o mesmo tem rendimentos inferiores, podendo receber uma indemnização.

Essas são considerações irrelevantes em relação ao que está em causa com a abolição da enfiteuse, que é simplesmente o enfiteuta passar a ser proprietário, pela titularidade que passa a ter do domínio direto, que assim passa a coincidir com aquele que detinha o domínio útil.”

O douto Estudo remata com as seguintes conclusões – págs. 71 e 72:

“Do exposto, é possível apresentar as seguintes conclusões, que sustentam um juízo geral de inconstitucionalidade material da legislação ordinária que aboliu a enfiteuse relativa a prédios rústicos, apenas conferindo indemnizações simbólicas a um grupo restritíssimo de proprietários, na medida em que essa legislação:

a) É materialmente inconstitucional por violar a garantia constitucional da propriedade privada, ao determinar um efeito extintivo do domínio direto do senhorio desacompanhado de uma justa indemnização, nem sequer se percebendo os interesses gerais que pudessem justificar tal drástica opção;

b) É materialmente inconstitucional mesmo considerando que, a posteriori, a nova Constituição Portuguesa solidificou a opção legislativa ordinária de abolir a enfiteuse porque tanto o período constitucional provisório como o período constitucional definitivo correspondem a ordens jurídico-constitucionais em que vigoram direitos fundamentais, deles não se excluindo o próprio direito de propriedade, à semelhança do que sucedeu noutros casos paralelos;

c) É materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da proteção da confiança, por essa legislação ter sido aplicada retroativamente na determinação do efeito extintivo do domínio direto através da manipulação ex post facto dos requisitos da aquisição do direito de enfiteuse por via da usucapião, pondo em crise a regra constitucional segundo a qual as restrições dos direitos, liberdades e garantias — no caso, o direito de propriedade como um direito, liberdade e garantia análogo — não podem aplicar-se retroativamente;

d) É materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da igualdade, porque não se vislumbra a razão de ser de a enfiteuse rural não merecer uma justa indemnização, ao mesmo tempo que na abolição da enfiteuse urbana se admitiu essa possibilidade.”

A abolição da enfiteuse, por opção legislativa atribuiu o domínio directo, o direito de propriedade de um prédio rústico emprazado ao seu enfiteuta, implicou, assim, a abolição do direito de disposição da propriedade pelo seu titular, o que apenas poderia ser feito por justificadas, razoáveis e pertinentes razões de utilidade pública ou social.

O direito de propriedade sendo absoluto – art. 1305º do Código Civil – em termos civilísticos, conhece limitações ditadas, ou por razões de direito privado, ou fundamentos de direito público.

 Sob o prisma constitucional, pode ser alvo de restrições desde que sejam respeitados os princípios da utilidade pública o principio da igualdade, da proporcionalidade e da confiança, não podendo ser postergada a atribuição de justa indemnização, que visa ressarcir o titular do direito que se é desapossado, indemnizando por equivalente o titular tendo em conta o valor real e corrente desses bens – art. 62º da Constituição da República.

Reconhecendo a Lei Fundamental, o direito à propriedade privada, procedimentos ablativos do direito de propriedade só são constitucionalmente admitidos mediante o pagamento de uma “justa indemnização”, de modo a que os princípio da igualdade, da proporcionalidade e da confiança não sejam afrontados pela extinção forçada de tal direito.

Discorrendo acerca do princípio da democracia social, que não consideramos alheio à complexa problemática do recurso, cabem as considerações do Professor Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 6ª edição, pág. 348:

 “Para além da dimensão subjectiva do princípio da democracia social, implícita no reconhecimento de numerosos direitos sociais (direitos subjectivos públicos), o princípio da democracia social, como princípio objectivo, pode derivar-se ainda de outras disposições constitucionais. Desde logo, a dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1°) é considerada noutros países como um princípio objectivo e uma “via de derivação” política de direitos sociais.

 Do princípio da igualdade (dignidade social, art. 13°), deriva-se a imposição, sobretudo dirigida ao legislador, no sentido de criar condições sociais (cfr., também, art. 9º/d que assegurem uma igual dignidade social em todos os aspectos (cfr. por ex., arts. 81. °/a, b e d e 93°/c).

 Do conjunto de princípios referentes à organização económica (cfr. arts. citados) deduz-se que a transformação das estruturas económicas visa também uma igualdade social.

 Neste sentido, o princípio de democracia social não se reduz a um esquema de segurança, previdência e assistência social, antes abrange um conjunto de tarefas conformadoras, tendentes a assegurar uma verdadeira “dignidade social” ao cidadão e uma igualdade real entre os portugueses (art.9º/d)”.

A Constituição da República, para lá dos princípios a que se aludiu, consagra os da indispensabilidade, da proibição do excesso e da proporcionalidade.

Como ensina Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171:

 “Ainda que, por vezes, venham confundidos, há que distinguir entre o princípio da proibição do excesso e o princípio da necessidade ou da indispensabilidade.

Enquanto que o primeiro, mais lato, proíbe que a restrição vá mais além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo — o que envolve as diferentes exigências que estamos a considerar — o princípio da necessidade, enquanto sub princípio ou elemento constitutivo daquele, impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista.” 

E acerca do princípio da proporcionalidade:

 “…Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.

Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador, Administração e juiz.” (pág. 178)

A garantia constitucional do direito de propriedade privada, definida no art. 62º da Lei Magna da República, estatui:

“1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.

J.J. Canotilho Gomes e Vital Moreira na “Constituição da República Anotada” – vol. I, 4ª edição revista, em comentário ao citado normativo, escrevem, pág. 802:

 “I. Teoricamente, o âmbito do direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes:

(a) a liberdade de adquirir bens; (b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) a liberdade de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles.

Talvez se possa acrescentar uma quinta dimensão: o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém direito de propriedade (ex.: cláusula de resgate de propriedade na venda de bens móveis duradouros. Cfr. Directiva 2000/35/CE). Aparentemente, só o segundo aspecto não está contemplado de forma explícita neste preceito constitucional.

Revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos “direitos, liberdades e garantias”, compartilhando por isso do respectivo regime específico (cfr. art. 17°), nomeadamente para do regime de restrições. […] Mais adiante – pág. 805 – ensinam – “Um elemento essencial deste direito consiste no direito de não se ser privado da propriedade (nem do seu uso).

Ele não goza, porém, de protecção constitucional em termos absolutos, estando garantido antes como um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação.

Com efeito, a Constituição prevê várias figuras de desapropriação forçada por acto de autoridade pública, desde a expropriação por utilidade pública em geral (n° 2), passando pela expropriação de solos urbanos para efeitos urbanísticos (cfr. art. 65°-4), até à nacionalização de empresas e meios de produção em geral (cfr. art. 83°).

É possível entender-se que estas figuras não esgotam as formas de privação forçada da propriedade nomeadamente as que sejam feitas a favor de terceiros (e não do Estado), mas a falta de uma explícita credencial constitucional não deixa de levantar dificuldades a algumas figuras, correntes do direito civil, de perda ou transmissão forçada de figuras correntes ao direito civil, de perda ou transmissão forçada do direito de propriedade. Incluindo a acessão (industrial) (cfr. Ac. TC nº205/00), a remição de colónia (cfr. Acs. TC nºs 404/87 e 327/92) e a usucapião (cfr. AcTC nº205/00) …”.

                 

Pelo quanto dissemos, o DL. 195-A/76, de 16 de Março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos, e ao conferir ao titular do domínio directo o domínio útil, atribuindo ao titular deste uma indemnização desrazoável e discriminatória, uma vez que apenas foi legalmente prevista para os casos em que o titular do domínio directo fosse pessoa singular com rendimento inferior ao salário mínimo nacional – art. 2º, nº1 – e estabelecendo que essa indemnização consistiria no pagamento anual enquanto fossem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia, violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança, e violou, ainda, o direito de propriedade privada já que o acto ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.

Por outro lado, e por ter atinência com a decisão, uma vez que a pretensão dos AA. assentou, também, na usucapião como modo de aquisição do domínio útil que se arrogaram, para depois, por via dele, se tornaram titulares do domínio útil, mesmo que não fosse de considerar a inconstitucionalidade material do diploma abolitivo da enfiteuse, este Tribunal ao abrigo do art. 204º da Constituição da República[7], por considerar materialmente inconstitucional a norma do art. 1º da Lei nº108/97, de 15.9. que alterou a redacção do nº5 do DL. 175-A/96, de 16 de Março, ao admitir a constituição da enfiteuse por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim retroactivamente um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização – art. 62º, nº2, da Constituição da República – violou os princípios da igualdade (art.13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança.

Decisão:

Nestes termos, nega-se a revista, confirmando o Acórdão recorrido, decidindo-se desaplicar, por materialmente inconstitucional o regime normativo constante do n. °5, alíneas a) e b), do art. 1. ° do Decreto-Lei nº195-A/76, de 16.03, na redacção dada pela Lei nº108/97, de 16.09, por admitir a constituição da enfiteuse, por usucapião, quando o direito já tinha sido abolido, estabelecendo assim, retroactivamente, um meio de aquisição do direito, sem atribuição de qualquer indemnização, no que resulta a violação do art. 62º, nº2, da Constituição da República, e dos princípios da igualdade (art. 13º da CR), da proporcionalidade e do Estado de Direito, na vertente da protecção da confiança.

            Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Abril de 2013

Fonseca Ramos (Relator)
Salazar Casanova
Fernandes do Vale

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[2] Por na pendência da acção terem falecido os AA., foram por decisão de 2.12.2009 – fls. 166 a 169 –, transitada julgado, habilitados os seus herdeiros FF e GG, filhos dos AA.
[3] Acessível no endereço http://pt.wikipedia.org/wiki/Enfiteuse 
[4] Acessível, in http://www.jorgebacelargouveia.com/enfiteuse.html
[5] O art. 101.º/2 da Constituição de 1976 estabelecia: “Serão extintos os regimes de aforamento e colonia e criadas condições aos cultivadores para efectiva abolição do regime de parceria agrícola”.
[6] Apenas o Sumário deste Acórdão está publicado in www.dgsi.pt 
[7]Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.