Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1008/14.4T9BRG-AU.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: HABEAS CORPUS
EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE
EXCECIONAL COMPLEXIDADE
Data do Acordão: 03/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / REVOGAÇÃO, ALTERAÇÃO E EXTINÇÃO DAS MEDIDAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 215.º, N.º 3 E 222.º, N.º 2, ALÍNEAS B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 01-02-2007, RELATOR PEREIRA MADEIRA;
- DE 09-09-2015, RELATORA HELENA MONIZ.
Sumário :
Tendo a providência excepcional de habeas corpus como escopo teleológico e axial a reacção contra situações de manifesta ilegalidade de um estado de privação de liberdade individual, não pode vingar um pedido que tem como base, ou fundamento, a invocação de errónea e descapacitada aplicação a um procedimento de inquérito da categoria jusprocessual indicada no artigo 215º, nº 3 do Código Processo Penal – excepcional complexidade.
Decisão Texto Integral:

I.- Relatório.

Convocando as razões normativas ínsitas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código Processo Penal, o requerente, AA, requesta a concessão da providência de habeas corpus, por, em seu juízo, não estarem i) preenchidos os pressupostos para a declaração de excepcional complexidade deste processo; ii) não poder ser elevado o prazo máximo de prisão preventiva nos termos indicados nos sucessivos despachos (…) que têm revisto a manutenção dos pressupostos de tal medida coactiva – de prisão preventiva; iii) e que, por esse motivo “os prazos máximos de prisão preventiva aplicada ao arguido exponente encontram-se ultrapassados”.

Incoa pela imputação da malversação da decisão – de declaração da excepcional complexidade do inquérito – propondo ao tribunal, como objecto do procedimento que impulsa: “A) Averiguar se ocorre nulidade da decisão de se manter a prisão preventiva do arguido (na perspetiva do exponente tal decisão é ilegal e, portanto, nula por omitir a caracterização, detalhada e concreta, dos factos que justificaram a declaração de excecional complexidade e por falta de fundamentação adequada e objetiva, face à omissão de exame crítico dos factos concretos que levaram ao deferimento do requerimento do MºPº);
B) Verificar se estão preenchidos os pressupostos para a declaração de excecional complexidade do processo (na perspetiva do exponente há errada apreciação dos factos/fundamentos aludidos na decisão que declara a excecional complexidade, não podendo ser aceite como sua justificação a indicação vaga de diligências que faltarão realizar e a omissão de factos que contradizem a própria fundamentação da decisão, como sucedeu v.g. com a redução dos arguidos presos preventivos).”

Em abono do pretendido, congrega a sequente factualidade:    
- Os factos em investigação – no que ao arguido exponente interessa - integram o crime de associação criminosa, burla qualificada e falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 299º, nºs. 1, 2 e 3, 217º, nº 1, 218º, nºs. 1 e 2, als. a) e b), 109º e 111º, em concurso aparente com o crime de receptação, 256º, n.º 1, als. a), b), e) e f), conjugados com os arts. 255º, al. a), 109º e 111º, nºs. 2 e 4, todos do Código Penal;
- Tendo presente o número de indivíduos involucrados na actividade criminosa em investigação e o tipo de organização em que estavam engolfados, o Ministério Público requereu a declaração de excepcional complexidade;
- Adrega de que decorrido mais de um ano da respectiva detenção, não se tornam pertinentes e/ou exigíveis, do seu ponto de vista, mais diligências de prova do que aquelas que foram efectuadas até ao momento (v. g. intercepções telefónicas, vigilâncias, detenções e apreensões);
- à data da detenção dos arguidos, já tinham decorrido vários meses de recolha de indícios da prática de ilícitos e que foram compilados depoimentos de testemunhas e intercepções telefónicas acompanhadas de vigilâncias que culminaram nas detenções e apreensões;
- A decisão de declaração de especial complexidade do processo (que conduz à elevação do prazo de prisão preventiva quando o procedimento for cumulativamente por um dos crimes referidos no nº 2 do art.º 215º do CPP) depende da verificação de determinados pressupostos, indicados na lei de forma exemplificativa (e não taxativa);
- A opção pela indicação exemplificativa desses critérios (e não outros) revela que o legislador teve em atenção o quotidiano dos tribunais da 1ª instância, apercebendo-se que muitas vezes a excepcional complexidade pode dever-se (para além da gravidade do crime em investigação), ao “número de arguidos ou de ofendidos” ou ao “carácter altamente organizado do crime.”
- Porém, também admitiu que, mesmo verificando-se formalmente aquelas circunstâncias pode, ainda assim, não haver justificação para aquela declaração.
- Isso mesmo decorre da circunstância da declaração de excepcional complexidade não funcionar ope legis, mas antes depender da mediação/intervenção de um juiz (assim se garantindo os direitos fundamentais das pessoas e melhor salvaguardando o direito à liberdade e segurança, consagrado constitucionalmente no art.º 27º, nº 1, da CRP, o qual apenas pode ser restringido, tendo presente o princípio da proporcionalidade e o disposto no artigo 18º, nºs 2 e 3 da CRP) e, de mesmo a “criminalidade altamente organizada” (definida nos termos do artigo 1-m) do CPP), entre outros tipos de criminalidade (indicados no artigo 215º, nº 2, do CPP) poder não assumir essa excepcional complexidade.
- Logo por aí se vê que é exigida a prévia análise do caso concreto e logicamente uma decisão fundamentada, sob pena de irregularidade (o vício é da irregularidade, a arguir nos termos do artigo 123º do CPP, uma vez que a lei não comina a falta de fundamentação deste tipo de decisão com nulidade, nem aquele despacho é equiparado a sentença, para além de não se verificar qualquer das hipóteses previstas nos artigos 119º e 120º do CPP).
- Nessa avaliação haverá que olhar para a imagem global do caso submetido a apreciação, ponderar todas as circunstâncias relevantes que permitam a formulação de um juízo de prognose antecipado e prudente que habilite o juiz a decidir sobre se é caso ou não de declarar a “excepcional complexidade” do processo.
- Importa não esquecer que o processo penal, não podendo ser instrumentalizado ou subvertido, terá que ser justo e equitativo, decidido em prazo razoável (prazo adequado para cumprir eficazmente os seus objectivos), o que significa que terão de ser combatidos os abusos (excessos) quer do poder estadual, quer da defesa ou de qualquer outro sujeito processual.
- A utilização da expressão “excepcional complexidade” mostra que não basta a mera dificuldade do procedimento para a sua declaração, exigindo-se, ainda, que seja ultrapassada de forma relevante (extraordinária diríamos) as normais dificuldades que em geral andam associadas à investigação, o que pressupõe uma análise casuística.
- Aliás, como já se disse, decorre do artigo 215º, nº 2, do CPP, em contraponto com o nº 3 do mesmo dispositivo legal, que poderá estar a ser investigada criminalidade altamente organizada e nem por isso o procedimento assumir excepcional complexidade.
- Para além dos critérios apontados no artigo 215º, nº 3, do CPP (que não são de verificação cumulativa), outros podem ser adoptados, desde que devidamente fundamentados, tudo dependendo de cada caso concreto, tendo em vista a eficácia do procedimento penal e a descoberta da verdade.
- Em suma, apontam-se no artigo 215º, nº 3, do CPP alguns critérios que terão de ressaltar objectivamente do andamento do inquérito, exigindo-se que o juiz de instrução, de forma fundamentada, avalie racionalmente as diligências existentes nos autos em articulação com os factos que se investigam.
- Entendeu o legislador que, apesar de poderem estar em causa as medidas de coação mais graves (proibição e imposição de condutas, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação) previstas na lei (artigos 200º a 203º do CPP), justificava-se em situações especiais a elevação do prazo máximo da sua duração (artigos 215º e 218º, nº 2 e 3 do CPP), em determinados momentos processuais (estando aqui em causa a fase do inquérito antes da dedução da acusação e a medida de coacção de prisão preventiva a que o recorrente se encontra sujeito desde Novembro de 2015).
- Na opção que fez, quanto à elevação do prazo da prisão preventiva em fase de inquérito antes da dedução da acusação, deu prevalência ao interesse público da eficácia da investigação e do procedimento penal, sabido que a acusação depende da recolha, durante o inquérito, de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (art.º 283º do CPP, mormente seu nº 1).
- E o mesmo raciocínio se aplica à elevação do prazo da prisão preventiva até ser proferida decisão instrutória.
- Na ponderação dos interesses em conflito, o legislador, apesar da prevalência que deu ao interesse público, tendo em vista a boa administração da justiça, a descoberta da verdade e o próprio restabelecimento da paz jurídica abalada pela prática do crime, fixou um prazo máximo de duração da prisão preventiva (mesmo quando fosse declarada a excepcional complexidade do processo), precisamente para que a restrição do direito à liberdade do arguido detido (neste caso preso preventivamente) fosse proporcional e adequada atentos os interesses em jogo, acautelando dessa forma a protecção de direitos fundamentais das pessoas (v.g. o direito à liberdade e à segurança – art.º 27 nº 1 da CRP, sempre tendo em atenção o disposto no art.º 18 nºs 2 e 3 da CRP).
Porque era necessário articular os diferentes interesses em jogo e evitar qualquer tipo de dilação que redundasse numa excessiva restrição do direito à liberdade, exigiu a intervenção de um juiz.
Daí que, a decisão judicial que declare a excepcional complexidade de determinado processo não pode ser entendida como uma forma de ganhar tempo ou de manter “artificialmente” uma prisão preventiva.
- A decisão do juiz não é meramente formal, antes “materialmente jurisdicional”, traduzindo uma forma de “administrar a justiça” (tarefa dos tribunais – art.º 202 nº 1 e 2 da CRP), tanto mais que estão em causa actos que, particularmente quando há arguidos presos preventivamente, se prendem com direitos fundamentais e que conduzem a maiores restrições desses mesmos direitos.
- Nessa medida, o juiz terá também de avaliar em cada caso concreto submetido à sua apreciação até que ponto o respectivo procedimento assume objectivamente aquela excepcional complexidade que justifique a manutenção da restrição do direito à liberdade de arguido preso preventivamente (que é o caso que estamos aqui a analisar), tanto mais que essa sua decisão implicará o aumento do prazo daquela medida de coacção.
- Está, por isso, também em causa a salvaguarda dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso.
- E, obviamente, não poderá esquecer os mecanismos alternativos previstos na lei, nomeadamente os relacionados com a separação de processos (artigo 30º, nº1, al. b), do CPP), quando houver um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva.
- O que tudo se concilia ainda com o direito a uma decisão em prazo razoável e com a própria eficácia do processo penal e das finalidades que lhe estão subjacentes.
- Tendo o processo penal português uma “estrutura acusatória” mitigada (não vigorando o sistema acusatório puro), compreende-se melhor a sempre necessária salvaguarda do princípio da garantia judiciária, no sentido de prever a intervenção do juiz nos diferentes momentos que assim o exigem, ainda que na mesma fase processual.
- Por isso, era necessária a intervenção de uma entidade imparcial e independente, diferente do investigador.
- A independência, imparcialidade e autonomia da actuação judicial passa pela análise de cada caso concreto e pela avaliação do conteúdo do processo em causa: só assim o juiz conseguirá alcançar um juízo prudencial, objectivo e livre de qualquer arbítrio.
- Obviamente que ao juiz não incumbe “controlar o exercício da acção penal”, quer por não ser superior hierárquico do Ministério Público, quer por a sua actuação não ser a de juiz/investigador).
- Sendo independente e autónoma a actuação de cada uma das Magistraturas nas sucessivas fases do processo, não pode o juiz arrogar-se poderes que não tem, como se ainda vigorasse o sistema inquisitório.
- Na fase de inquérito e na fase de instrução estão claramente definidos os papéis de cada uma das magistraturas, não podendo o juiz de instrução sequer pretender “usurpar” os poderes do Ministério Público (titular do inquérito), pois tal violaria o princípio do acusatório.
- O Juiz de Instrução na fase de inquérito é o garante dos direitos fundamentais da pessoa, incumbindo-lhe ponderar os interesses e/ou direitos em conflito em cada caso concreto, de modo a encontrar um ponto ótimo de equilíbrio e a compatibilizar os interesses e/ou direitos em conflito.
- Nessa perspectiva, sempre se poderá detectar alguma incoerência normativa, quando por um lado se atribui ao juiz de instrução, na fase de inquérito, o papel do chamado “juiz das liberdades” e, por outro lado, permite-se que oficiosamente declare a excepcional complexidade, o que pode conduzir a alguma ingerência nos poderes do Ministério Público, enquanto titular do inquérito, para além de poder haver o risco do juiz de instrução actuar como investigador, interferindo na estratégia da investigação traçada pelo Magistrado que dirige o inquérito.
- Claro que sempre se pode contrapor (como se faz no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 555/2008[6]) que, ainda assim, porque está em causa a prisão preventiva, “medida que se prende directamente com o direito fundamental da liberdade” que é de “reserva constitucional do juiz”, a declaração de excepcional complexidade pode “ser declarada oficiosamente sem requerimento do Ministério Público”, como expressamente indica o artigo 215º, nº 4, do CPP, não havendo qualquer ofensa do artigo 32.º, nºs 4 e 5 da Constituição.
- De resto, como se acrescenta no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional, “o alargamento dos prazos de prisão preventiva em virtude da declaração de excepcional complexidade não viola o art.º 28. ° n.º 4 da CRP que concede ao legislador uma margem de liberdade de conformação suficiente, observado o princípio da proporcionalidade, para diferenciar os ditos prazos em função da gravidade objetiva dos crimes e da complexidade dos processos.”
- De qualquer modo, neste caso, não existe decisão que fundamente a manutenção da declaração da excepcional complexidade do processo.
- Como acima já se disse, na nossa perspectiva, a decisão instrutória é ilegal e, portanto, nula por omitir a caracterização, detalhada e concreta, dos factos que justificaram a declaração de excepcional complexidade e por falta de fundamentação adequada e objectiva, face à omissão de exame crítico dos factos concretos que levaram ao deferimento do requerimento do MºPº.
- Em resumo o arguido prestou toda a colaboração quando foi submetido a primeiro interrogatório judicial bem como após em declarações que prestou voluntariamente (apesar do Sr. Juiz de Instrução não ter acreditado na sua versão) e que a fundamentação apresentada para justificar a declaração de excepcional complexidade revela que a Sra. Juiz de Instrução decidiu, esquecendo o seu papel na fase de inquérito (vocacionado para proteger direitos, liberdades e garantias), procurando assegurar as necessidades da investigação, não obstante ser o MºPº o titular do inquérito e, por outro lado, baseou-se em meras conjecturas e considerações genéricas, referindo diligências vagas que faltariam realizar, desse modo banalizando a declaração em causa (excepcional complexidade).
- O tipo de decisão em causa (que não pode ser comparada a uma sentença) não exige uma caracterização detalhada dos factos em investigação, apesar do arguido já os conhecer por lhe terem sido comunicados aquando do seu primeiro interrogatório judicial.
- De resto, estando o inquérito em segredo de justiça, como esteve, compreende-se que não fossem fornecidos dados particulares que pudessem colocar em causa qualquer estratégia da investigação.
- O que verdadeiramente interessa no caso aqui em análise, é conhecer a avaliação feita pelo Sr. Juiz de Instrução para se perceber qual o tipo de juízo que formulou e que o levou a concluir pela declaração de excepcional complexidade.
- E, esse raciocínio percebe-se lendo a decisão instrutória, o que basta para se concluir que a decisão não se mostra fundamentada.
- Claro que a Sra. Juiz de Instrução aduziu, na fundamentação da sua decisão, argumentos que não foram invocados pelo Ministério Público quando requereu que fosse declarada a excepcional complexidade do processo (conferir a respectiva promoção/requerimento onde apenas apela, de forma genérica, ao tipo de crime em investigação, ao número de indivíduos envolvidos e arguidos constituídos, medidas de coacção aplicadas a cinco deles e “modo altamente organizado como trabalhavam, que muito dificultou a investigação”, como decorria do despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva).
- Porém, isso aparentemente não significará que a Sra. Juiz estaria a usurpar as funções do titular do inquérito.
- Antes talvez revele a preocupação da Sra. Juiz em fundamentar de facto a sua decisão, preenchendo o conceito de “excepcional complexidade” do processo com recurso aos elementos que indicou, os quais entendeu serem pertinentes para a conclusão a que chegou (diferente é a questão de saber – o que oportunamente será apreciado – se tais elementos que enunciou permitiam chegar à decisão que proferiu).
- Também não se pode concluir que houve omissão de exame crítico dos factos porque, como já se referiu, a decisão de declaração de excepcional complexidade não é equiparada a uma sentença e a análise casuística a fazer (a que acima nos referimos, para verificar se está preenchido o conceito de excepcional complexidade do procedimento) não pressupõe a indicação dos factos indiciados.
- De qualquer modo, ainda que ocorresse falta de fundamentação, verificava-se tão só uma irregularidade (artigos 118º, nº 1 e 2 e 123º do CPP) e não nulidade (não está prevista como tal no artigo 215º do CPP, nem tão pouco integra qualquer das nulidades referidas nos artigos 119º e 120º do CPP e muito menos se pode considerar como nulidade relativa a sentença).
- Convém lembrar que o recurso para o tribunal superior não é o meio próprio para, neste caso, arguir qualquer irregularidade, quando esta (não sendo de conhecimento oficioso e não sendo nulidade relativa a sentença) não foi suscitada perante o tribunal da 1ª instância.
- O recurso é interposto do despacho que conhece de irregularidades arguidas e, só nessa medida, é que o tribunal superior aprecia a existência ou não do vício conhecido pela 1ª instância.
- Na nossa perspectiva há errada apreciação dos factos/fundamentos aludidos na decisão que declara a excepcional complexidade do processo, não podendo ser aceite como sua justificação a indicação vaga de diligências que faltarão realizar e a omissão de factos que contradizem a própria fundamentação da decisão, como sucedeu v.g. com a redução dos arguidos presos preventivos ao longo do inquérito e a diminuição de arguidos com a decisão instrutória.
- É certo que no inquérito se investiga um dos crimes que se enquadra na chamada “criminalidade altamente organizada”, tal como definida no artigo 1º, al. m), do CPP.
- Todavia, como já vimos, apesar do crime em investigação se enquadrar na “criminalidade altamente organizada” (o que naturalmente tem subjacente tratar-se de crime que o legislador considera “altamente organizado”), tal não significa automaticamente que o procedimento também assume excepcional complexidade, tal como definido no artigo 215º, nº 3 do CPP (caso contrário o interprete estaria a substituir o legislador de 2007 e a ultrapassar a opção deste quando decidiu revogar o art.º 54º do citado DL nº 15/93).
- Aceita-se que os presentes autos terão bastantes arguidos constituídos (que têm laços familiares ou equiparados), sendo certo que, apesar de, cinco dos arguidos terem ficado em prisão preventiva, a verdade é que três deles viram as suas medidas de coacção (prisão preventiva) alteradas para obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e proibição de contactos, por qualquer meio, com os demais arguidos, certamente por se terem atenuado as exigências cautelares.
- Mas, não é apenas olhando ao tipo de crime em investigação, aos fortes indícios existentes, ao número de arguidos e ao número dos que se encontram em prisão preventiva, que se poderá concluir pela verificação dos pressupostos materiais subjacentes à declaração de excepcional complexidade do processo.
- Relativamente às transcrições das conversações e comunicações provenientes de escutas telefónicas, incumbirá lembrar que, tendo as mesmas ocorrido em princípio até à data da detenção dos arguidos, seguem o formalismo indicado no artigo 188º do CPP, após a reforma de 2007 (o que afasta eventuais atrasos nas transcrições).
- De resto, todas elas já constavam do inquérito aquando do primeiro interrogatório judicial dos arguidos detidos.
- Ao longo do inquérito foram sendo determinadas, à medida que assim foi entendido como pertinente, a transcrição e junção aos autos do conteúdo de diferentes sessões (relativas a conversações telefónicas).
- De tal sorte que as transcrições que ao arguido aqui exponente dizem respeito (apenso H dos presentes autos que corresponde às transcrições alegadamente interceptadas ao arguido), aparecem em duplicado, algumas em triplicado, outras em quadruplicado e uma transcrição aparece repetida até 5 vezes!
- A proceder desta forma, engrossando em volumes e mais volumes de papel, fácil parece ficar demonstrada a excepcional complexidade do processo.
- Logicamente que após a detenção dos arguidos e com a apreensão de telemóveis, não deverão ter continuado as escutas telefónicas.
- Quanto ao modus operandi dos arguidos, sua organização e forma como desenvolviam o(s) crime(s) que lhes é(são) imputado(s) (sendo certo que a sua actuação acaba por estar circunscrita a determinada área, não se podendo falar em dispersão no espaço), não se vê que as dificuldades na investigação tivessem prosseguido depois da sua detenção.
- Para além disso, como resulta dos autos, até à detenção dos arguidos, foram recolhidos diferentes elementos de prova, nomeadamente, foram gravadas e ordenadas transcrições de intercepções telefónicas e de SMS, existem autos de vigilâncias, registos fotográficos, registos vídeo, relatos de diligências externas, informações de serviço, autos de buscas e de apreensões, documentação (v.g. recolhida em fase de investigação e apreendida em buscas), e depoimentos de testemunhas inquiridas.
- E, como é natural, durante os subsequentes 6 meses que decorreram após a detenção dos arguidos (tanto mais que alguns deles estavam em prisão preventiva), terão prosseguido as investigações, v.g. com inquirições de testemunhas e/ou eventual recolha de informações bancárias e fiscais (não obstante parte dos arguidos indicar estar desempregado), caso assim tenha sido entendido pelo titular do inquérito.
- De resto, o relevo e importância das provas recolhidas antes da detenção dos arguidos é que permitiu que, na altura em que foram sujeitos a primeiro interrogatório judicial, lhes fossem comunicados os factos que lhes eram imputados.
- O que mostra que praticamente até à sua detenção foram recolhidas quase todas as provas relacionadas com a investigação do(s) crime(s) que lhes veio(vieram) a ser imputado(s).
- Também não poderá ser à custa da elevação do prazo de prisão preventiva dos arguidos que estejam sujeitos a tal medida de coacção, que se poderão ultrapassar eventuais atrasos da investigação que não são da sua responsabilidade (como sucede, v.g. com a falta de remessa atempada de relatórios periciais ou de análise documental, caso tal efectivamente ocorra, o que se desconhece).
- São todos os elementos de prova recolhidos que poderão sustentar a acusação, verificando-se os pressupostos apontados no artigo 183º, nº 1 e 2 do CPP.
- De resto, lendo os factos que foram dados como fortemente indiciados no despacho proferido, após primeiro interrogatório judicial dos arguidos detidos, deles não resulta que houvesse “dispersão no espaço” quanto ao modo como era desenvolvido o crime em investigação ou que a forma como os arguidos estavam organizados ultrapassasse o que é habitual em casos semelhantes que, todavia, não são considerados de excepcional complexidade.
- Para além disso, não pode a Sra. Juiz de Instrução (que é o chamado juiz das liberdades) dar instruções ou orientações ao Ministério Público, v.g. quanto à sua estratégia na investigação, porque esse tipo de actuação é da competência dos respectivos superiores hierárquicos do titular do inquérito.” [[1]]

Na resposta ao impetrado , o Magistrado Judicial adrede, estimou que (sic): “Nos presentes autos com o nº 1008/14.4T9BRG-AU o requerente AA, veio suscitar a providência de Habeas corpus em razão de prisão ilegal.

Considera o requerente que não estão preenchidos os pressupostos para a declaração de excepcional complexidade do processo e consequentemente, não pode ser elevado o prazo máximo de prisão preventiva nos termos indicados nos sucessivos despachos que têm revisto a manutenção dos pressupostos de tal medida coactiva ao arguido (prazo que seria também aplicável v.g. aos arguidos sujeitos a obrigação de permanência na habitação e proibições de contactos por força do disposto no artº 218º nº2 e 3 do C.P.P.

Nos termos do artº 222º nº1 do C.P.P. “A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”.

De acordo com o nº2 do citado diploma legal “A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de :

al a). Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

al. b). Ser motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou;

al. c). Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Ora, tendo em conta a factualidade alegada e os argumentos invocados pelo requerente, insere-se o seu argumento na alínea c) do nº 2 do artº 222º do C.P.P. “manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

O arguido, começa no seu requerimento por sindicar a decisão do Tribunal que decretou a excepcional complexidade do processo dizendo a fls.5, 3º parágrafo, que veio o M.P. promover a excepcional complexidade, sugerindo que só agora tal aconteceu, sendo certo que a excepcional complexidade já foi declarada nos autos em……, decisão esta sobre a qual, (ou caiu recurso ou não foi sindicada).

Até fls. 14 do seu requerimento, é esse apenas o assunto que aborda, sendo que no último parágrafo de fls.14 diz que “ A decisão instrutória é ilegal e, portanto, nula por omitir a caracterização, detalhada e concreta, dos factos que justificaram a declaração de excepcional complexidade”.

Compulsados os autos, cumpre antes de mais referir que este arguido não foi requerente da instrução, não sendo abrangido pela decisão instrutória como expressamente se consigna a fls. 16948. Por outro lado, e versando a decisão instrutória apenas sobre a matéria constante dos requerimentos instrutórios apresentados, não são ali tecidas considerações sobre a excepcional complexidade dos autos.
A fls. 16 refere vícios da decisão instrutória, concretamente, falta de fundamentação, continuando aliás a fls.17, 4º paragrafo a dizer que “há errada apreciação dos factos na decisão que declara a excepcional complexidade do processo”, não conseguindo o Tribunal descortinar se o requerente está a final a questionar a decisão instrutória, ou o despacho que declarou a excepcional complexidade dos autos.

Com esforço, consegue-se perceber que o requerente pretende com o presente pedido, ver revogado o seu estatuto coactivo por excesso de prazo de prisão preventiva, por não concordar agora que os autos tenham sido caracterizados como excepcionalmente complexos, sem que tenha para o efeito utilizado os meios legais adequados, designadamente o recurso.

Finalmente cumpre referir que o arguido foi ouvido em primeiro interrogatório tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, em 08/11/2015, não se mostrando esgotado o prazo de prisão preventiva, que terminaria em 08/03/17, caso não tivesse sido proferida decisão instrutória mas que ocorreu em 02/03/17.

Perante o exposto, consideramos não assistir razão ao requerente, por falta de fundamento legal, devendo consequentemente e nos termos do artº 223º, nº1 do C.P.P.  manter-se a medida de prisão preventiva.

Pelo exposto, improcede o pedido de habeas corpus.

Remeta expediente ao Supremo Tribunal de Justiça que deverá conter para além do requerimento de habeas corpus e documentos juntos com o mesmo, certidão do primeiro interrogatório do arguido e decisão que decretou a medida de prisão preventiva, dos sucessivos despachos de reexame da medida de coacção relativamente ao requerente, promoção do M.P. que ao abrigo do disposto no artº 215º, nº 4 do C.P.P. requereu a excepcional complexidade, decisão que determinou a excepcional complexidade, decisão instrutória e despacho de fls.16948.”

I.b). – Questão a merecer apreciação.

A questão axial por que cabe indagar na apreciação que vier a ser ponderada é a de saber se a declaração de especial complexidade atribuída ao procedimento de inquérito comporta, ou conleva, um factor de violação do direito à liberdade do arguido /recorrente e se é passível de influir ilegalmente na manutenção do estado coactivo em que se encontra. 

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – ELEMENTOS DOCUMENTADOS A CONSIDERAR.

- O arguido/requerente foi presente a primeiro (1º) interrogatório no dia 5 de Novembro de 2015, tendo-se recusado a prestar declarações – cfr. fls. 30 (deste procedimento com serão todas as que se referirem sem outra menção);

- Por decisão datada de 8 de Novembro de 2015, foi estimado estar suficientemente indiciado ter o arguido AA incorrido na prática de três (3) crimes de burla qualificada, na forma consumada e quatro (4) crimes de receptação, tendo-lhe pelas razões expostas a fls. 129 e 130 sido imposta a medida coactiva de prisão preventiva (artigos 191º, 192º, 193.º, 195.º, 196.º 202.º, n.º 1, alínea a) e 204.º, alíneas a), b) e c), todos do Código Processo Penal. [[2]/[3]]

- Conforme promoção constante de fls. 139, o Ministério Público foi de parecer dever ser conferido ao presente processo carácter de especial complexidade e, em conformidade, ser elevado para um ano o prazo de duração máxima da medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos BB, CC, DD, EE, FF e GG; [[4]]

- Por decisão prolatada a 10 de Dezembro de 2015, foi decidido (sic): “O Ministério Público veio promover se confira ao presente processo especial complexidade e em conformidade se eleve para um ano o prazo de duração máxima da medida de coação de prisão preventiva aplicada aos arguidos BB, CC, DD, EE, FF e GG.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no artigo 107º/6 do Código de Processo Penal quando o processo se revelar de excecional complexidade, nos termos do artigo 215º/1 e 3 o juiz, a requerimento do Ministério Público, pode prorrogar o prazo previsto no artigo 215º, nº 1 CPP.

O artigo 215.º, n.º 3 dispõe: "Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao caráter altamente organizado do crime”.

No caso em apreço estão em questão entre outros crimes, os de burla qualificada, prevista na alínea a) e b) do nº 2 e nº 1 do artigo 218º do CPP.

Em face do supra referido, importa considerar, como se refere na promoção dos autos, o decurso da longa investigação que fez carrear para os autos um manancial de informação incluindo objetos apreendidos aos arguidos que importa sujeitar a análises periciais, o elevado número de ofendidos que importa inquirir e sujeitar à diligência de reconhecimento presencial dos arguidos, bem como ao elevado número de arguidos envolvidos, a grande dispersão territorial da sua atuação e o elevado nível de organização atingido para permitir pôr em execução o complexo esquema das suas atividades criminosas.

Em face de todo o exposto, nos termos do disposto no artigo 215º, nº 2 a 4 do Código de Processo Penal declaro o presente processo com o caráter de especial complexidade, e em consequência, os prazos previstos no nº 1 do artigo 215º são elevados para os correspondentes prazos do nº 3 do mesmo artigo.

- Em 18 de Fevereiro de 2016 – cfr. fls. 144 – foi decidido, porque se estimou manterem-se inalterados os fundamentos de facto e de direito que ditaram a declaração de prisão de preventiva aos arguidos, determinar que os arguidos se mantivessem “a aguardar os ulteriores termos do processo na situação coactiva em que se encontram”;
- Em 21 de Abril de 2016, foi prolatado o despacho a declarar a inalterabilidade da situação de prisão preventiva em que os arguidos se encontravam – cfr. fls. 146 a 148;
- Em 21 de Julho de 2016, foi prolatado despacho  para reexame dos pressupostos da medida coactiva de prisão preventiva em que foi considerado que se mantinham inalterados os pressupostos que haviam determinado a aplicação da medida, o que induziu a decisão de manutenção dos arguidos na situação em que vinham sendo mantidos – cfr. fls. 150 e 151;

- Em 21 de Outubro de 2016, foi prolatado o despacho em que se procedeu ao reexame dos pressupostos da medida coactiva imposta ao arguido – prisão preventiva – tendo sido ponderado que se mantinham as condicionantes que haviam determinado a aplicação da medida, o que conduziu, em desinência, que o arguido permanecesse na situação em que se encontrava – cfr. fls. 155 e 156.  

- Em 25 de Janeiro de 2017, foi requerida a instrução por determinados arguidos, tendo o arguido, AA requestado a alteração das medidas de coacção a que havia estado sujeito desde o primeiro interrogatório, com o fundamento que: i) tinha sido deduzida acusação e dos autos poder-se-ia deduzir que não havia perigo de fuga, sendo que o perigo de continuação de actividade criminosa se poderia estancar com a obrigação de permanência na habitação; ii) que a situação em que se encontrava é perturbador para o seu agregado familiar;

- Em decisão de 26 de Janeiro de 2017, foi a sua pretensão indeferida, por i) essa pretensão já ter sido objecto de apreciação pelo Tribunal da Relação de Guimarães tendo-a rejeitado; ii) por se manterem os pressupostos que ditaram a imposição da medida foi determinado que os arguidos se mantivessem na situação em que se se encontravam 

- Em 1 de Março de 2017, foi prolatada decisão instrutória relativamente aos arguidos requerentes, HH e II, JJ, LL e MM, tendo os arguidos HH e II sido pronunciados nos termos constantes da acusação e quanto aos demais ordenado o arquivamento.               

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Pressupostos da providência de Habeas Corpus.

Aquele que se encontre privado de liberdade – existência de uma situação de prisão – por razão ou motivo que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente – abuso de poder da entidade indutora da situação de prisão – pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O instituto de habeas corpus configura-se, a um tempo, como um direito fundamental e uma garantia. Qual Janus o instituto mostra-se a um tempo um direito, na medida em que a lei, maxime a Constituição, o confirma como um valor e um estado subjectivo activo incrustado na substancialidade individual que radica, directa e imediatamente, na esfera jurídica de qualquer cidadão no gozo pleno dos seus direitos cívicos, e ao mesmo tempo uma garantia na medida em que permite a qualquer cidadão reagir contra uma situação que repute abusiva e violadora de um direito – a liberdade física – inscrito como inderrogável no amplexo de direitos fundamentais do individuo.  

Consagrado e inerido no capítulo destacado para o estabelecimento dos direitos fundamentais, o instituto de habeas corpus surge, assim, como uma factor de garantia de qualquer cidadão contra os abusos que possam ser cometidos por entidades congraçadas na aplicação de medidas coactivas em nome da lei e do Estado. Invadeável para o seu surgimento é que i) ocorra uma situação abuso de poder, revertível em, ou pela, adopção de medidas de privação de liberdade que não devam ser plicadas a determinados factos ou se revele ter ultrapassado os limites temporais que a lei comina; ii) que a prisão se mostre mantida contra a normação que rege para a sua aplicação (nos casos e situações previstas na lei); iii) e, finalmente, que a situação de prisão seja actual e efectiva.

Legitimamente e por direito o pedido pode ser impulsionado por qualquer cidadão (“no gozo dos seus direitos políticos”) e deve ser apresentado à autoridade à ordem da qual o cidadão se encontra preso.

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, [[5]] o peticionante pode convocar uma das sequentes situações: a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão; b) ter a prisão uma razão ou substrato factual arredada do quadro legal estabelecido; e c) ser a prisão mantida para além do prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. 

O requerente encontra-se preso preventivamente, actual e efectivamente, à ordem do tribunal competente pelo que a sua legitimidade para requerer a providência de habeas corpus se mostra confirmada.

Assegurada a legitimidade importa averiguar se os condicionalismos estabelecidos na lei como passíveis de se poderem constituir como violadores do direito de liberdade física se mostram preenchidos.

II.b.2. – Prisão Preventiva. Excepcional Complexidade do procedimento de inquérito.  

Recenseando a factualidade adrede, i) o arguido/requerente, AA, foi-lhe imposta, pela indiciação de três (3) crimes de burla qualificada e quatro (4) crimes de receptação, a medida coactiva de prisão preventiva, por decisão de 8 de Novembro de 2015; ii) por decisão de 10 de Dezembro de 2015, o procedimento de inquérito foi qualificado como sendo de especial complexidade; iii) a medida coactiva do arguido/requerente foi, desde o seu decretamento, sendo sucessivamente reapreciada e reavaliada, com confirmação dos condicionalismos factuais e jurídicos que ditaram a primeva resolução; iv) o arguido requerente foi, em 27 de Outubro de 2016, acusado pela prática, em autoria material de um (1) crime de associação criminosa p. e p. pelo artigo 299º, nºs 1,2 e 3; nove (9) crimes de burla qualificada p. e punidos pelos artigos 217º, 218º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b); e treze (13) crimes de falsificação de documento p. e punidos pelos artigos 256, nº 1, alíneas a), b), e) e p) e nº 3, conjugado com os artigos 255º, alínea a), 109º, 111º, nºs 2 e 4, todos do Código Penal.          

Clama o arguido pela liberdade por, em seu juízo, o processo, neste momento, não urgir de novas diligências probatórias – as que foram estimadas pertinentes foram realizadas antes do decretamento da medida coactiva a que se encontra sujeito e até ter sido produzida a acusação – e, pour cause, a manutenção da qualificação fornecida ao procedimento é excessiva e deslocada o que induz um juízo de desconformidade legal entre a necessidade e exigências da realização de diligências probatórias do procedimento de inquérito e as exigências de manutenção das medidas coactivas em vigor.

Como se extrai do pórtico enunciativo do requerimento inicial, o arguido/requerente pede, i) que se averigúe “se ocorre nulidade da decisão de se manter a prisão preventiva do arguido (na perspetiva do exponente tal decisão é ilegal e, portanto, nula por omitir a caracterização, detalhada e concreta, dos factos que justificaram a declaração de excecional complexidade e por falta de fundamentação adequada e objetiva, face à omissão de exame crítico dos factos concretos que levaram ao deferimento do requerimento do MºPº); e ii) “se estão preenchidos os pressupostos para a declaração de excecional complexidade do processo (na perspetiva do exponente há errada apreciação dos factos/fundamentos aludidos na decisão que declara a excecional complexidade, não podendo ser aceite como sua justificação a indicação vaga de diligências que faltarão realizar e a omissão de factos que contradizem a própria fundamentação da decisão, como sucedeu v.g. com a redução dos arguidos presos preventivos.”  

O arguido, em síntese apertada, concita: a) a nulidade da decisão por falta de fundamentação (omissão de caracterização, concretização detalhada e concreta dos factos que terão justificado a declaração de excepcional complexidade; e b) que o tribunal escrutine, nesta sede – estima-se que nesta sede, de apreciação do pedido de habeas corpus – se estão preenchidos os pressupostos que permitissem ao tribunal decretar a excepcional complexidade do procedimento.   

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007,  relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

Uma providência extraordinária, como se deve configurar a requesta de um habeas corpus, não pode convocar argumentos dissídio opinativos ou de acepção jurídico-argumentativos relativamente à bondade da avaliação de uma situação concreta, v. g. ponderando da existência, ou não, de indícios que configurem a plausibilidade da prática de um determinado ilícito típico por parte do imputado, a verificação ou não, no caso concreto dos pressupostos estatuídos para a aplicação da medida de coacção, antes deve centrar-se em imputar à decisão uma ostensiva e abusiva violação de disposições legais impeditivas de no caso aplicar, manter ou conservar uma situação de prisão preventiva. No caso que nos ocupa, o arguido não assaca e/ou exproba a privação de liberdade de ilegal ou ditada por motivos factuais ilegais, antes ensaca uma cópia de argumentos que, em seu juízo, propinam a falta de fundamentos de qualificação do procedimento de inquérito como revestindo uma excepcional complexidade e, ade, que o tribunal indague da bondade dos pressupostos da declaração dessa excepcionalidade.

A questão da excepcional complexidade congraçada com a excessividade da prisão preventiva já teve pronúncia – embora não em contornos similares aos que recortam o caso que nos ocupa – neste Supremo Tribunal (cfr. acórdãos de 9 de Setembro de 2015, relatado pela Conselheira Helena Moniz,  onde se escreveu, concernentemente com o caso aí apreciado que (sic): “(…)perante tudo o exposto, ainda que se afirme que na apreciação do requerimento de habeas corpus não caiba a apreciação das nulidades ou irregularidades processuais existentes, dado que existem meios recursórios próprios para as resolver, certo é que esta providência “tem por objectivo verificar se a prisão é ostensivamente ilegal”, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça  deve averiguar  se se vislumbra ou não que os direitos da defesa tenham sido comprimidos ao ponto de se inviabilizarem, e se aqueles direitos podiam ter sido exercidos em tempo, assim se se respeitando os arts. 18.º, 20.º, n.ºs 4 e 5 e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.

Ou seja, dos autos tem que ser claro que o arguido teve possibilidade de exercer os seus direitos de defesa, ainda que o prazo estabelecido por despacho tenha sido inferior a 10 dias. Ora, no presente caso verifica-se que o arguido/requerente apenas teve oportunidade de vir a 25.08.2015 e antes do final do prazo, mas já depois de ter sido prolatado o despacho que declarou a especial complexidade, de 24.08.2015; ou seja, foi proferido sem que o arguido pudesse exercer o seu direito de audição, e sem que o prazo para o fazer tivesse expirado.

Na verdade, ainda que tenha já havido decisão a declarar que não há qualquer irregularidade (cf. fls. 150 e ss, destes autos) e não cabendo em sede de habeas corpus uma apreciação daquela decisão, cabe, no entanto, a este Tribunal apreciar se há ou não uma prisão “ostensivamente ilegal”.

Resulta claro para este Supremo Tribunal de Justiça que «Tendo sido proferido o despacho antes de corrido o prazo de audição, constata-se que não foi concedida aos ora requerentes a oportunidade de se pronunciarem sobre o requerimento do MP; por outras palavras, foi-lhes negado o direito de audição de que beneficiavam, nos termos do n.º 4 do art. 215.º do CPP.
O despacho que declarou a especial complexidade assentou, pois, na negação aos peticionantes desse direito de audição, que constitui uma garantia fundamental da defesa do arguido (art. 32.º, n.º 1 da Constituição), abrangendo todas as decisões que possam pessoalmente afectá-lo, e que assume especial relevância naquela situação, uma vez que a declaração de especial complexidade determina a prorrogação do prazo de prisão preventiva.

A negação do direito de audição, violando o núcleo das garantias de defesa do arguido, constitui um abuso de poder, que invalida o despacho que declarou a especial complexidade do processo.» (acórdão do STJ, de 12.nov.2009, proc. n.º 45/08.2JELSB-I.S1, relator: Cons. Maia Costa, in www.dgsi.pt).

Por outras palavras, “1. A legalidade formal do despacho que decretou a especial complexidade, pode ser apreciado em “habeas corpus” face aos efeitos do mesmo decorrentes para a privação da liberdade, atenta aliás a ratio do n.º 2 do art. 219.º do CPP (após revisão de 2007) e o teor do n.º 4 do art. 215.º do CPP. 2. A inobservância do prazo de audição durante o qual é possível ser exercido o direito de audição, configura-se como omissão de garantia de defesa, nos termos do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que torna inconstitucional a interpretação do art. 215.º, n.º 4, do CPP, da forma em que foi interpretado na produção do dito despacho”).» (declaração do Senhor Juiz Conselheiro adjunto no mesmo processo).

Ora, sabendo que o despacho a declarar a especial complexidade é de 24.08.2015, e o prazo máximo de prisão preventiva, de acordo com o estipulado no art. 215.º, n.ºs 1 a 3, no presente caso, seria de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, e sabendo que o primeiro dia de privação da liberdade do requerente ocorreu a 26.02.2015, se se tivesse respeitado o prazo de 4 dias que foi concedido ao arguido para exercer o seu direito de audição (acrescido dos 3 dias úteis, terminando a 26.08.2015) o despacho do juiz poderia ter sido prolatado no dia imediatamente a seguir ao fim do prazo, o que não determinaria a extinção da medida de coacção.

Na verdade, e tendo por base o que o Tribunal Constitucional declarou no acórdão n.º 13/2004 — «Julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental, as normas constantes dos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, ambos do Código de Processo Penal, uma dimensão interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excepcional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no nº 2 daquele artº 215º, prolação essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida de coacção”.» — a prolação do despacho a declarar a especial complexidade do processo no dia a seguir ao último dia do prazo máximo de prisão preventiva não teria determinado a extinção da medida de coação.” [[6]]

No caso que nos ocupa o arguido /recorrente não comina qualquer irregularidade formal à prolação do despacho/decisão que decretou a excepcional mas sim ao mérito dos fundamentos em que o tribunal se baseou para qualificar o procedimento como de excepcional complexidade. Inclusive, parece-nos, o arguido pretende que, neste procedimento o tribunal – quiçá substituindo a um tribunal de instância, por ser competente para em  primeira linha conhecer das decisões proferidas em primeira (1ª) instância – conheça da bondade dos fundamentos da decisão que decretou a excepcional complexidade, não referidos ao momento em que a decisão foi proferida mas ao momento actual. Isto é, o arguido pretende, com a argumentação que desenvolve, que o habeas corpus sirva para aquilatar da munificência fundamentadora do despacho/decisão proferido com os pressupostos de Dezembro de 2015 com os factos da actualidade. Explicitando, o arguido esgrime com a realidade actual para contravir à fundamentação que cevou a decisão de Dezembro de 2015. Um recurso diferido no tempo, com factualidade repassada e não discutida, na altura.                      

Resumindo, i) o arguido/requerente pede, em providência cautelar de habeas corpus que o tribunal aprecie a fundamentação que ditou a declaração de excepcional complexidade; ii) que se pronuncie sobre a verificação dos pressupostos da qualificação do procedimento como de excepcional complexidade.

O pedido formulado exorbita e descompassa do pedido de habeas corpus, i) por não se fundar na alegação/existência de uma situação de abuso de poder; b) outrossim, de prática de acto judicial violador da normação processual penal; iii) e/ou de ausência observância de normação que devesse ser observada para o decretamento da prisão preventiva ou da declaração de excepcional complexidade do procedimento de inquérito.      

Embora não tendo sido alegado, importará vincar que não se mostra excedido nenhum dos prazos referidos no nº 3 do artigo 215º do Código Processo Penal.   

III. – DECISÃO.

Na defluência, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em.

- Indeferir o pedido formulado pelo arguido, por manifestamente infundado.

- Condenar o requerente nas custas do procedimento, com taxa de justiça de três unidades de conta, nos termos do artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais. 

 Lisboa, 22 de Março de 2017

Gabriel Catarino (Relator)

Manuel Augusto de Matos

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[1] A transcrição corresponde à fundamentação inerida no requerimento inicial (com a correcção da ortografia).
[2] Queda extractado o tramo do despacho referente ao arguido AA.
O arguido AA (de alcunha ouriço) vem indiciado pela prática de 3 crimes de burla qualificada na forma consumada (apensos AI, AU e n.º 28 da promoção de sujeição a primeiro interrogatório) e 4 crimes de recetação p e p pelo artigo 231º, nº 1 do CP.
Já sofreu seis condenações por crime de emissão de cheque sem provisão, uma condenação por crime de resistência e coação a funcionário, um crime de falsidade de depoimento, duas por crime de falsificação de documento e uma pela prática de crime de burla simples, estas últimas há apenas cinco anos. Mas de nada lhe serviram para emendar o seu comportamento.

Acresce que da prova constante dos autos, nomeadamente das interceções, é percetível o elevado grau de envolvimento do arguido AA na organização dos esquemas das burlas, bem como dos arguidos BB, CC, DD, EE e GG, quer apurando da existência de veículos obtidos por força das burlas para vender a terceiros, quer tentando encontrar compradores e negociando com os mesmos, quer apurando a divisão dos lucros obtidos na sequência desses negócios.

Resulta ainda dos autos que lhe foi apreendido muito material necessário à concretização dos crimes imputados o que concretiza de forma aguda o elevado perigo de continuação da atividade criminosa.

Manifesta-se ainda o perigo de perturbação do inquérito dado o ascendente destes arguidos sobre terceiros, utilizados para irem ao encontro dos burlados, utilização de telemóveis com cartões pré-pagos utilizados apenas uma vez para evitar serem identificados pela polícia através dos seus aparelhos de telemóvel e das chamadas realizadas, o que perturbou já a aquisição da prova e demonstra o seu grau de "profissionalismo" e empenhamento criminal.

Importa ainda considerar a gravidade dos ilícitos criminais indiciados e a respetiva moldura penal abstrata, que, em conjunto com os seus antecedentes criminais e a personalidade neles espelhada, permitem inferir que nenhuma outra medida de coação é suficiente para responder às exigências cautelares que no caso concreto se fazem sentir se não a de prisão preventiva.

As medidas de coação a aplicar devem ser necessárias e suficientes para prevenir os perigos verificados em concreto na situação dos autos e proporcionais à gravidade dos crimes indiciados e à previsível pena que aos arguidos venha a ser aplicada.

Assim, e considerando ainda a gravidade dos ilícitos indiciados e as respetivas molduras penais abstratas, entendemos aplicar aos arguidos BB, CC, DD, EE, FF e GG a medida de coação de prisão preventiva, por ser a única adequada, necessária e proporcional às exigências cautelares concretamente verificadas nos autos, de forma eficaz, nomeadamente, os referidos perigos de fuga, continuação da atividade criminosa e perturbação do inquérito, nos termos do disposto nos artigos 191°, 192°, 193°, 195°, 196°, 202°, nº 1, alínea a) e 204°, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.”
[3] O arguido foi, entretanto, acusado, no dia 27 de Outubro de 2016, “Pelos factos descritos na acusação, incluindo nos pontos I.1, I.2, 1.2, 1.3, 16, 19, 20, 22, 23, 25, 28 e 38, cometeu o arguido, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso:
- 1 crime de associação criminosa, pp pelo art. 299º, nºs 1, 2 e 3, do CP (factos descritos nos pontos I.1, I.2, 1.2, 1.3, 16, 19, 20, 22, 23, 25, 28 e 38 da acusação);
- 9 crimes de burla qualificada, pp pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, als. a) e b), conjugados com os arts. 202º, als. a) e b), 109º e 111º, nºs 2 e 4, todos do CP, encontrando-se os 4 crimes de burla dos pontos 1.2, 19, 20 e 22 da acusação em concurso aparente com 4 crimes de receptação, pp pelo art. 231º, nº 1, do CP (factos descritos nos pontos 1.2, 1.3, 16, 19, 20, 22, 23, 25 e 28 da acusação);
- 13 crimes de falsificação de documento, pp pelos arts. 256º, nº 1, als. a), b), e) e f) e nº 3, conjugados com os arts. 255º, al. a), 109º e 111º, nºs 2 e 4, todos do CP (factos descritos nos pontos 1.2, 1.3, 16, 19, 20, 22, 23, 25 e 28 da acusação).
[4] Queda transcrita a promoção do Ministério Público.

Apresente os autos ao Mm.º JIC para apreciação do promoção que se seque:

Encontra-se em investigação nos presentes autos a prática pelos vários arguidos arguido II de diversos crimes de: Burla Qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 217° e 218°, n° 2, alíneas a) e b), do Código Penal;

1. Burla Qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22°, 217º e 218°, n° 2, alíneas a) e b), do Código Penal;

2. Falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256°, nºs 1, alínea d) e 3, do Código Penal;

3. Receptação, p. e p. pelo artigo 231°, do Código Penal;

4. Uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261°, n° 1, do Código Penal;

5. Abuso de Confiança, p. e p. pelo artigo 205°, nºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal;

6. Extorsão, p. e p. pelo artigo 223°, n° 1, do Código Penal;

Das diligências investigatórias realizadas até ao momento da sua detenção e apresentação a primeiro interrogatório judicial de 25 arguidos detidos, dos quais resultou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a seis deles, conforme auto de interrogatório judicial de fls. 7178 e seguintes.

Em conformidade, e por se considerarem verificados os demais requisitos gerais do artigo 204.° do Código de Processo Penal, no dia 8 de Novembro de 2015, foram os arguidos BB, CC, DD, EE, FF e GG sujeitos a medida de coacção de prisão preventiva (cfr. despacho de fls. 7178 e ss).

Ora, como já se antevia à data da prisão dos arguidos e dos demais arguidos também detidos, em face de todo o acervo probatório encontrado na sua posse, designadamente, de natureza informática, bem como os veículos automóveis (na posse do arguido JJ), e de natureza documental, e cuja análise global não foi de imediato possível, muitos outros crimes, de natureza e contornos semelhantes aos que já se encontravam fortemente indiciados e tendo por objecto outras vítimas menores, poderiam estar em causa.

Resulta ainda que, no presente inquérito, para além dos 25 arguidos detidos a apresentados a primeiro interrogatório judicial, há outros indivíduos já constituídos como arguidos, prevendo-se ainda ser outros tantos constituídos como tal.

Acresce ainda relembrar que o presente inquérito, para além do processo-base, composto já por 20 volumes, tem o mesmo, neste momento, 48 apensos, e 41 ofendidos já identificados.

À semelhança do que já reflectiam os autos relativamente às primeiras vítimas conhecidas, também no que concerne às menores agora identificadas a sua localização por pontos variados do País é manifesta, acentuando a elevada dispersão territorial da actuação dos arguidos, sendo que há vítimas inclusivamente do Algarve. Por outro lado, atenta a dedicação dos arguidos à actividade criminosa com uma frequência diário, durante um período de largos meses, e o já complexo esquema da actividade delituosa e o nível de organização a que se dedicavam, com uma informal distribuição de competências e condutas, que utilizou e repetiu com um elevado número de vítimas menores (muitas vezes contemporaneamente), mais se reforça a convicção do carácter compulsivo das suas actuações e do já considerável grau de organização imprimido à mesma (que compatibilizava com a exteriorização de uma imagem de cidadão socialmente inserido).

Desta feita, atento o já muito elevado número de ofendidos (todas ainda a inquirir novamente para identificação dos arguidos e a consequente diligência de reconhecimento presencial); a vasta dispersão territorial das mesmas; e ainda o enorme acervo de material apreendido aos arguidos (cuja análise pericial foi já iniciada, mas ainda não foi possível concluir, atento, mais uma vez, o elevado número de vítimas envolvidas), é seguro considerar que o prosseguimento da presente investigação assume um carácter extremamente complexo e moroso, ademais incompatível com o prazo máximo de prisão preventiva do arguido contido no n.º 1 do artigo 215.° do Código de Processo Penal.

Ao exposto acresce ainda a particular natureza dos factos em investigação nos presentes autos, que não podem deixar de considerar-se abrangidos pela redacção do n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal, na medida em que consubstanciam a prática de crimes já suficientemente indiciados punidos com pena superior a cinco anos (chegando a pena de prisão aplicável por cada um dos crimes de burla qualificada agravada, p. e p. pelos artigos 217.°, n.º 1 e 218.°, n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, a atingir um máximo de 8 anos de prisão). assim se enquadrando no actual conceito legal de criminalidade violenta (cfr. aliena j) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto).
Da conjugação de todos estes elementos, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 a 4 do artigo 215º, do Código de Processos Penal, afigura-se-nos dever ser conferido ao presente processo carácter de especial complexidade e, em conformidade, ser elevado para um ano o prazo de duração máxima da medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos BB. CC, DD, EE, FF e Adelino da Silva.”

[5] Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007,  relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira.

A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.
Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal:

a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”(3).

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º [do Código de Processo Penal] podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.

A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.

Assim sendo, há que ver se a situação concreta se submete à previsão da invocada hipótese legal de habeas corpus.

A resposta – adianta-se já – é negativa.

Por um lado, a situação de facto está longe de devidamente estabilizada.

Com efeito, se o recurso da decisão final tiver como destino o tribunal da relação, (como o tiveram já, como se viu, os do despacho que ordenou a prisão preventiva), a esta compete conhecer de facto e de direito – art.º 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – pelo que os factos a considerar ainda são provisórios e não devidamente estabilizados. E, acaso tal recurso seja dirigido directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, também aqui, por via dos mecanismos previstos nos artigos 410.º, n.ºs 1 e 2, e 426.º, do mesmo Código, a matéria de facto pode ter de vir a ser reapreciada.

Entretanto, importa ter em conta que, como também ficou relatado, e consta da informação prestada, havendo sido requerida instrução, o arguido foi objecto de despacho de pronúncia, ainda que, como se apurou agora, não transitado em julgado, é certo, mas havendo o recurso sido admitido com efeito meramente devolutivo, não suspendeu os efeitos do despacho em causa, ou seja a pronúncia do arguido pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal, e um crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal. Tanto mais, que o recorrente não se insurge ali – como não podia insurgir-se, de resto – contra a qualificação dos factos, mas, tão só, contra a alegada inobservância de formalidades processais.

O que significa que, até trânsito em julgado da decisão final que sobre o mérito da acusação houver de ser proferida, ou, pelo menos, da decisão do recurso do despacho em causa, que se lhe sobreponha, mantém-se de pé a força atribuída aos indícios coligidos naquele despacho do juiz instrutor e respectiva qualificação, pois, como se sabe, «no momento da decisão instrutória o que o tribunal decide é que há elementos que indiciam a responsabilidade do arguido» (7), ou que «no despacho de pronúncia o tribunal […] decide sobre a existência de indícios de que se verifiquem os pressupostos da aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e que o processo está em condições de prosseguir para a fase de julgamento», embora não decida sobre a efectiva verificação dos pressupostos da punibilidade, o que só acontecerá em sede de decisão final do caso.

Ora, como é de lei, não é necessário para efeito de fundar a prisão, que haja a certeza de o arguido haver cometido um crime a que corresponda prisão preventiva.

Basta, segundo o disposto no artigo 202.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, (e descurando agora os demais pressupostos da prisão preventiva que não vêm ao caso), a existência de «fortes indícios» da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos». Condição esta a que o despacho judicial de pronúncia continua a dar cobertura até que o futuro trânsito em julgado, quer da decisão do recurso que o tem como objecto, quer da decisão final, por ora ainda inexistente, processualmente, se lhe sobreponha.

Por outro lado, e tenha ou não cabimento em sede de habeas corpus a indagação do acerto sobre a qualificação jurídica dos factos em causa, o certo é que, pelos motivos apontados, essa qualificação a que haja de chegar-se por tal via, há-se ser segura, indiscutível, sem margem para dúvidas, e desse modo, se for o caso, levar à decisão de libertação imediata do preso.

Só que, no caso sub judice, a incriminação, para além do que fica dito sobre a actual transitoriedade do quadro de facto a que importará atender, será, decerto, no mínimo, pouco pacífica, nomeadamente quanto à questão de saber se os factos revelam aptidão para que possa concluir-se pela prática de um crime de sequestro. Basta atentar na circunstância, de, ainda recentemente – Acórdão de 01-02-2006, proc. n.º 3127/05, 3.ª Secção – este mesmo Alto Tribunal ter tido como tal um quadro de facto muito semelhante).

Questão largamente controvertida, assim, a da qualificação dos factos ora em causa, a ter o seu lugar próprio de discussão e decisão alargada e devidamente ponderada, em sede de recurso ordinário, porventura por este mesmo Alto Tribunal, mas não, no âmbito de numa providência que requer decisão expedita e necessariamente sumária, como esta.

Sendo certo que, como afirmam os requerentes, «a providência de habeas corpus é uma providência excepcional, com vista a garantir a defesa da liberdade», já não é certo que possa ser chamada para tal fim «sempre que haja prisão ilegal», pois como se viu, nem todos os casos de prisão ilegal aqui logram encontrar remédio adequado.

E se também é certo, como afirmam, que «há prisão ilegal se o bem jurídico acautelado pelo tipo que permite a prisão não foi violado, não se verificando os elementos constitutivos do crime», também o é que, nem sempre o Supremo Tribunal de Justiça, como acontece no caso, tem condições processuais necessárias para afirmar num juízo seguro, consciente, devidamente esclarecido e fundamentado, a ilegalidade da prisão, enfim, o juízo que vem pedido nesta concreta providência.

Finalmente, se também pode aceitar-se, em geral, ou pelo menos para alguns casos, a tese dos requerentes segundo a qual «se o arguido é incriminado por uma previsão legal, que os factos que praticou não consentem, verifica-se a motivação imprópria referida na alínea b), do artigo 222.º do CPP», também tem de levar-se em conta, conforme o exposto, que é prematuro concluir em definitivo que in casu os factos «não consentem» a qualificação por eles tida como imprópria e em que assentou o despacho que ordenou a prisão preventiva, mantendo-se entretanto de pé, como se viu, a valia do despacho de pronúncia que, com o valor processual actual que lhe está associado, confere transitória força legal à qualificação ali operada.”
[6] Disponível em www.dgsi.pt.