Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9774/21.4T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRATOR AGRÍCOLA
LESADO
SEGURO AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE TRABALHO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS FUTUROS
DIRETIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 11/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Constitui um acidente de viação todo o acidente envolvendo veículos terrestres com capacidade de circulação autónoma, no que se inclui tractores agrícolas ou máquinas industriais desde que não sejam utilizados em funções exclusivamente agrícolas ou industriais e, no momento do acidente se encontrem a desempenhar a função de transporte.

II - O acidente em que o lesado cai da parte traseira de um veículo de recolha de resíduos sólidos urbanos integra-se no âmbito da “circulação de veículos”, desencadeando a responsabilidade prevista nos artigos 3.º parágrafo 1º da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 e 4º, nº 1 e n.º4 Regime do Sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (RSORCA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto.

III - A qualificação de um acidente de viação não contraria nem prejudica a sua qualificação também como acidente de trabalho. E sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a indemnização por perdas salariais em consequência da incapacidade laboral, fixada no processo por acidente de trabalho, não exclui o ressarcimento pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir.

IV - A quantificação da indemnização pelo dano biológico, perspectivado como diminuição somático - psíquica e funcional do lesado, com notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial.

V - O cálculo dessa indemnização pelo dano biológico, quer na vertente patrimonial quer não patrimonial, deve fazer-se com recurso à equidade, cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça o controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se esse juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.

VI - Em acidente simultaneamente de viação e de trabalho cada uma das indemnizações assenta em critérios distintos e têm funções e objectivos próprios, pelo que a indemnização fixada ao lesado a título de perda da sua capacidade de ganho, em sede laboral, não contempla a indemnização para ressarcir o dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com afectação pessoal, no âmbito da jurisdição civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I - RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., ..., intentou a presente ação declarativa com processo comum contra:

FIDELIDADE–COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede no ..., peticionando a condenação da Ré, a pagar-lhe a título de indemnização, a quantia líquida de € 144.952,77, por todos os danos sofridos em resultado do acidente que descreve, tudo acrescido de atualização e juros, bem como a suportar, no futuro, todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, fisioterapia e psiquiatria.

Em alternativa, e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados na data da petição, requer seja a sua liquidação remetida para execução de sentença.

Alegou, para tanto e em síntese, o seguinte:

No dia ... de janeiro de 2018, pelas 2:05 horas, na ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um acidente de viação, conforme participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, Divisão Policial de ....

Foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana.

O Autor, à data do acidente, encontrava-se a desempenar as funções de cantoneiro de limpeza, nomeadamente a recolha de resíduos sólidos urbanos, sob a ordem e direção da Sociedade R... ................... . ......... Para o efeito, o Autor fazia-se transportar, durante o desempenho das suas tarefas, no estribo da traseira do veículo supramencionado.

A referida viatura era propriedade da Sociedade E..., S.A. e encontrava-se segurado na FIDELIDADE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, aqui Ré, através da Apólice ...74.

O acidente ocorreu quando o referido veículo circulava na Travessa ..., em ..., Concelho de ... e Distrito ..., a fim de realizar a recolha de resíduos sólidos urbanos.

No seu interior viajava o motorista BB, colega de trabalho do aqui Autor.

No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o Autor e outro colega de trabalho, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam.

A certa altura, quando o trabalhador, aqui Autor, subia para o camião, o estribo partiu, o que fez com que aquele caísse desamparado no chão, batendo com a nuca.

Da queda resultou traumatismo crânio encefálico e demais danos daí decorrentes de natureza patrimonial e não patrimonial.


*


A Ré apresentou contestação em que pugnou pela improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido com fundamento, essencialmente, no facto de o acidente em causa ser um acidente de trabalho e o Autor já ter sido ressarcido pelos danos sofridos, no âmbito do processo de acidente de trabalho.

Decorridos todos os trâmites legais, foi proferida decisão que julgou a ação improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu a Ré do pedido.


*


Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação que veio a conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 120.000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

*


Desta vez inconformada, a Ré vem interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça formulando as seguintes conclusões:

1 - Decorre dos autos, que o acidente sub judice foi para o Autor, apenas e tão só um acidente de trabalho, tendo sido participado ao abrigo da apólice de acidentes de trabalho, tratado e regularizado como tal (Cfr. Doc. 4.1. junto com a p.i.).

2 - Tendo o Recorrido, já sido em devido tempo indemnizado, pela congénere Tranquilidade (Seguradoras Unidas, S.A.), por todos os danos que lhe advieram desse mesmo acidente laboral (Doc. 7com a p.i.).

3 - O sinistro nunca foi participado e/ou reclamado pela segurada da Recorrente ou pelo próprio Autor/Recorrido como acidente de viação, mas antes como acidente de trabalho, não cabendo, nessa medida à Recorrente qualquer obrigação de indemnizar o Autor/Recorrido.

4 - O facto de o Autor, no exercício das suas funções como cantoneiro de limpeza, fazer-se transportar no veículo seguro, não é, por si só, bastante para que daí decorra algum tipo de responsabilidade da Ré/Recorrida.

5 - Resulta da participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., do exame pericial realizado pelo INML e da avaliação do Centro de Reabilitação Profissional de ... que o acidente sofrido pelo Autor é um acidente de trabalho desconhecendo-se o que originou a sua queda, sendo a mesma absolutamente estranha à circulação do veículo.

6 - Da prova carreada para os autos, mormente documental ressalta que o acidente ficou a dever-se à queda do Autor do patim e não à quebra do patim, o que é completamente diferente, não resultando a mesma de qualquer manobra invulgar do veículo OG, que lhe tivesse dado causa!!

7 – Neste caso, tratando-se, apenas de um acidente em laboração com um trabalhador do veículo ..-OG-.. no exercício da sua atividade laboral, apenas obriga, como in casu sucedeu, à intervenção da seguradora do trabalho.

8 Assim sendo, nada poderá o Autor/Recorrido reclamar da Recorrente seja a que título for, já que o sinistro em apreço não poderá ser enquadrável como acidente de viação.

9 - Do exame perícia, realizado ao Autor pelo INMLe subsequentes esclarecimentos ao relatório pericial resulta entre o mais que:

A consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 07/06/2018;

-O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 140 dias,

- O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 140 dias,

- O período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 7 dias,

- O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 7 dias,

- Défice Funcional permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 Pontos, sendo que em termos de repercussão permanente na atividade profissional tais sequelas são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços acrescidos e,

- Quantum doloris fixável no grau 4/7.

10 - As indemnizações visam compensar danos, desde que sejam consequência do evento danoso devendo os valores serem fixados com equilíbrio, razoabilidade e equidade, em função da gravidade das lesões, não permitindo, todavia, que daí possa resultar um enriquecimento ilegítimo ou injustificado para a Autora/Recorrida.

11 No caso dos autos é injustificável que tenha sido atribuído ao Autor o valor constante do douto acórdão de fls., a título de dano biológico na sua vertente patrimonial considerando que, por um lado, o mesmo já se encontra indemnizado pela seguradora de AT e,

12 - Por outro lado, o próprio Autor no seu articulado reclamou a esse título um valor três vezes inferior (€ 36.748,35, com base numa IPP bem superior à que veio a ser fixada nos presentes autos) ao que veio a ser fixado sem qualquer critério de razoabilidade, proporcionalidade ou até mesmo de justiça, no montante de € 100.000,00!

13 - Entendemos que neste caso em concreto, o valor arbitrado pelo Tribunal da Relação é com todo o respeito, para além de indevido, também ele manifestamente injusto, desproporcional e desadequado.

14 As sequelas de perturbação persistente do humor, apenas implicam ligeira repercussão na autonomia, pessoal, social e profissional, nunca tendo o Autor sido acompanhado por psicologia e/ou psiquiatria nem sequer fez qualquer tipo de terapêutica desse foro, por isso, incompreensível se torna a sua valorização!

15 - E em relação à anosmia (Sb 0501) pensamos, com a devida vénia e respeito por posição diversa, que a mesma nem sequer tem relação com o acidente em apreço, a qual pode ter causas diversas que em nada se prendem com a queda do autor.

16 No caso dos autos não se apurou a causa concreta dessa anosmia, decorrendo dos esclarecimentos da Srª perita de ORL que por esta especialidade o Autor não apresenta qualquer incapacidade para o trabalho.

17- Essa anosmia tem relação com um episódio de inalação de fumo de carro/gasóleo queimado vivenciado pelo Autor, mas em data bem posterior à data do acidente e mesmo à data fixada para a consolidação médico-legal.

18 Tendo, a Srª Perita médico-legal apenas atendido ao relato do examinado, sem qualquer outro exame complementar de diagnóstico, que a qui se impunha, quanto mais não fosse até pelo facto de antes o Autor ter trabalhado numa empresa de desumidificadores (Cfr. Avaliação do Centro de Reabilitação Profissional de ...) e à data do acidente trabalhar, como sabemos, na recolha de lixo.

Profissões, essas, que podem, por certo, ter contribuído para a perda desse olfato, e não o acidente propriamente dito!

19 O Autor/Recorrido já recebeu por AT a quantia de €31.997,85 (€ 2.642,71 + € 29355,14), vide Docs. 4.3 e 7, juntos com a p.i., mas que o acórdão recorrido ignorou por completo quando não o poderia ter feito sob pena de enriquecimento sem causa do Autor. Valor, esse, fixado por AT, tendo por base uma IPP de 24,45%, ou seja, bem superior à que aqui foi fixada.

20 À data do acidente a retribuição anual auferida pelo Autor, era de € 9.814,42, logo a decisão recorrida ao ter considerado para efeitos de cálculo o valor do salário médio nacional de € 1.294,10 x 14 (€ 18.117,40/ano), fica claro e evidente que o Tribunal recorrido, fez uma apreciação e enquadramento errados de acordo com a real situação do Autor, mostrando-se, assim, excessiva a indemnização fixada ao Autor a título de dano biológico na sua vertente patrimonial.

21 - O Autor/Recorrente já foi indemnizado por AT pelo menos em 21/10/2020 (Doc. 7 junto com a p.i.).

22 - Condenou ainda o Tribunal recorrido a Ré/Recorrente a pagar ao Autor a quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais.

23 - No entanto, esse valor também não é devido, na medida em que, no caso objeto do presente recurso o acidente em causa apenas foi para o Autor um acidente de viação e não mais que isso, não estando, assim, a Recorrente constituída na obrigação de o indemnizar.

24 Também a indemnização por danos morais (quando devida, o que não é aqui o caso) deve ser fixada com base na equidade, mas não deve confundir-se a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjetivismo do julgador, devendo a mesma traduzir “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…”. Devendo o julgador para fixar a indemnização por danos não patrimoniais, aferir a gravidade do dano atendendo a padrões objetivos e não, pelo contrário a padrões subjetivos.

25 Neste caso o Autor,

- Não ficou afetado no exercício das tarefas da vida pessoal;

- Não sofreu repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer

Nem qualquer repercussão permanente na atividade sexual.

Como também,

- Não sofreu dano estético.

Para além disso, releva ainda neste caso que o Autor: - Não sofrerá agravamento das lesões,

- Do foro de ORL não sofre de tonturas nem vertigens,

- O síndrome vertiginoso periférico decorreu de um episódio muito posterior à data do acidente, ou seja, só se verificou em 23/11/2018, não evidenciando qualquer relação com o acidente discutido nos autos,

- Não foi apurada causa concreta para a anosmia,

- Não ficou limitado no seu desempenho profissional por ORL nem por ortopedia - Não ficou provado nos autos qual a concreta causa para as supostas perturbações persistentes de humor, para que pudessem ser consideradas como decorrentes deste acidente, apesar de as mesmas se apresentarem como ligeiras,

- Não foi acompanhado por psicologia, psiquiatria nem fez terapêutica, para tratamento dessas supostas perturbações de humor,

- Foi assistido no serviço de urgência, mas não ficou internado, já que teve alta no próprio dia.

26 Como também, não resulta dos autos qualquer menção a especial sofrimento e/ou angústia do Autor pelo sucedido, apesar de ter tido oportunidade de o expor em julgamento, pelo que, o valor de € 20.000,00 arbitrado é para este caso manifestamente exagerado,

27 Salvaguardado o máximo respeito,o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido constituiria uma total denegação do princípio da equidade, do bom senso, da razoabilidade e da justiça.

28 O acórdão recorrido para além de fazer errada interpretação do D.L. nº 291/2007 de 21 de agosto não apreciou a prova documental junta aos autos pelo Autor/Recorrente que de forma clara e evidente prova que o acidente discutido nos presentes autos, tratou-se unicamente de um acidente de viação, não devendo ser simultaneamente tratado como acidente de viação. E, nessa conformidade, deverá a decisão recorrida ser revogada, como se espera.

29 - A decisão violou o D.L. nº 291/2007 de 21/08, com as alterações introduzidas pelo D.L. 153/2008, de 06/08, bem como as Diretivas da União Europeia sobre esta matéria, e ainda os artigos 496º, 562°, 563º, 564° e 566° do Código Civil, preceitos que assim, por errada interpretação e aplicação, se encontram violados pelo douto acórdão recorrido, e os mais que V. Exas, doutamente, vierem a considerar.

30 - Em consequência não restará outra alternativa senão alterar a decisão recorrida, absolvendo-se em consequência a Recorrente do pedido formulado pelo Autor/Recorrido.


*


O Autor apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência deste recurso, devendo manter-se o decidido no acórdão da Relação.

II - OS FACTOS

Das instâncias, vêm provados os seguintes factos:

1 - No dia ... de janeiro de 2018, pelas 02:05 horas, na Travessa ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um acidente, conforme participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, Divisão Policial de ... (doc. nº 1 da petição inicial, que se considera reproduzido);

2 - Foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana (mesmo doc.);

3 - O autor, AA, naquela data e local, encontrava-se a desempenhar as funções de ..., nomeadamente a recolha de resíduos sólidos urbanos, sob a ordem e direção da Sociedade R... ................... . ........ .., pessoa coletiva n.º ... ... .57, com sede no ...;

4 - Para o efeito, o autor fazia-se transportar, durante o desempenho das suas tarefas, no estribo da traseira do veículo supramencionado;

5 - A referida viatura era propriedade da Sociedade E..., S.A. e encontrava-se segura por contrato de seguro do ramo automóvel, na ré Fidelidade, Companhia de Seguros SA, através da apólice nº .......74 (doc. junto aos autos).

6 - Naquele momento e local, o veículo OG circulava na Travessa ..., em ..., Concelho de ... e Distrito ..., a fim de realizar a recolha de resíduos sólidos urbanos;

7 - No seu interior viajava o motorista BB, colega de trabalho do aqui autor;

8 - No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o autor e outro colega de trabalho, CC, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam;

9 - Ainda naquele momento e local, com o veículo em reinício de marcha lenta, quando o trabalhador, aqui autor, subia para o camião, o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, partiu, o que fez com que o autor caísse desamparado no chão, tendo permanecido desmaiado durante algum tempo;

10 - Acorreram ao local a PSP e um veículo de emergência médica, que transportou o autor para os serviços de urgência do Centro Hospitalar ...;

11 - Em virtude do acidente, o autor sofreu as mazelas e consequências mais bem descritas nos relatórios de perícia médico-legal juntos aos autos, que aqui se consideram reproduzidos e como parte integrante, de que se transcrevem os elementos mais pertinentes:

“Registos clínicos

24.01.2018: Acidente de trabalho a 12.01.2018-queda de camião do lixo com TCE, com perda de consciência e amnésia para o episódio. Esteve internado no Centro Hospitalar ... onde fez TC - contusões hemorrágicas corticosubcorticais frontobasais bilaterais. Alta a 19.01.2018.

Do foro ortopédico com dor no punho na tabaqueira anatómica. Radiografia sem evidência de lesão aguda. Fica com tala amovível. Revejo em duas semanas. Oriento consulta de NC.

30.01.2018: Neurocirurgia-TC com hipodensidades frontais bilaterais sequelares.

Refere anosmia e agusia cuja evolução natural deverá aguardar. Deve manter ITA e ser reobservado dentro de 4 semanas.

07.02.2018: TC com fratura distal palmar do escafóide, sem desvio (pequeno fragmento). Troca tala amovível por tala gessada. Regressa em 3 semanas.

27.02.2018: Neurocirurgia-Queixas de tonturas posicionais ocasionais. Sem sinais deficitários focais, FO normal. VC cp. Tem imobilização da mão direita por lesão do foro ortopédico. Sob o ponto de vista neurocirúrgico pode, quando o colega ortopedista achar oportuno, iniciar readaptação com ITP de 30%.

05.03.2018: Doente mantém queixas de perda de equilíbrio, tonturas e perturbação ocular com a luz. Por vezes ainda com dores no punho. Imobilização com gesso ainda inferior a 2 meses. Mantém imobilização 2 semanas. Peço TC.

19.03.2018: Fratura do escafoide direito. Retira tala. Peço TC para avaliar fratura.

26.03.2018: TC confirma fratura linear sem desvio, mas ainda sem sinais de consolidação. Imobilizo com tala gessada mais 2 semanas. Ponderar osteossíntese com parafuso percutâneo.

27.03.2018: Neurocirurgia-Mantém queixas de tonturas posicionais e anosmia.

Sem défices motores. FO normal. Vc sp. Imobilizado por lesões do foro ortopédico.

Sob o ponto de vista neurocirúrgico pode considerar-se em ITP de 20% ser reobservado um mês após o retorno ao trabalho.

09.04.2018: retira gesso. Radiografia com fratura aparentemente consolidada e sem desvio. Inicia MFR

23.04.2018: Tem 4 meses de evolução. Radiografia com fratura consolidada e sem desvio. Já iniciou MFR.

07.05.2018: Está a fazer MFR. mantém dor local e alguma rigidez. 21.05.2018: Inicia trabalho com ITP de 20%.

23.05.2018: Não tolerou retoma laboral. Mantém dor intensa com esforços.

Radiografia com aparente consolidação. Pseudartrose? Discuto caso. Solicitada novo TC.

28.05.2018: TC com consolidação da fratura. Conselhos para retoma ITP de 20%.

07.06.2018: Fez novo TC que confirma consolidação. Não tolerou trabalho até hoje pelo que confirmo ITA. Alta.

TC cerebral, datado de 29.01.2018

Hipodensidades córtico-subcorticais bilaterais frontais, possivelmente em relação com sequelas contusionais cerebrais.

Foco lesional subcortical parietal esquerdo, hipodenso, de natureza sequelar, de igual modo.

Não se observam outras alterações de densidade valorizáveis do parênquima encefálico, infra ou supratentorialmente e que indiciem processos patológicos, designadamente de carácter neoformativo ou vascular (isquemia/hemorragia).

Forma e dimensões das vias de circulação do líquido cefalorraquidiano adequadas ao grupo etário em que o paciente se insere.

Charneira nervosa occipitovertebral sem anomalias, nomeadamente sem sinais de conflito de espaço.

Estudo em janela de osso sem alterações a merecer particular referência. TC do punho direito, datada de 07.02.2018

Alterações compatíveis com fratura na extremidade anterior e palmar do escafóide cárpico junto à articulação com o trapézio–a valorizar clinicamente. TC do punho direito, datada de 24.05.2018

Não há sinais de doença degenerativa nas articulações radioulnar distal ou radiocárpica.

Consolidação da fratura do escafoide, sem relevantes alterações morfológicas sequelares.

Sem alterações degenerativas na articulação entre o escafoide e o trapézio.

As interlinhas articulares e o alinhamento entre os ossos cárpicos está preservado. Não há sinais de osteonecrose.

Sem particularidades nas partes moles e remanescente apreciação (ligamentos e recessos articulares não são passiveis de adequada avaliação, nesta técnica de imagem, tal como tendões).

Registos clínicos da Unidade de Saúde Familiar de ..., datados de

20.02.2019:

O Sr. AA recorreu à minha consulta na USF ..., no dia 23 de janeiro de 2018 relatando que tinha estado internado por traumatismo craniano encefálico (TCE) por acidente de trabalho. Esteve internado no CH... de 12 a 19 de janeiro de 2018 e tinha sido emitido um certificado de incapacidade temporária pelo CH..., de 12 a 23 de janeiro de 2018.

Recorre novamente à consulta no dia 29-05-2018 afirmando que não consegue trabalhar devido a sequelas do acidente de trabalho, nomeadamente:

- Sequelas de fratura do punho direito (# escafóide) que mantinha apesar das sessões de fisioterapia.

- Tonturas, vertigens, Instabilidade postural após o acidente.

- Ansiedade reativa, medo de regressar ao trabalho. Ansiedade, irritabilidade, hipervigilância.

Foi medicado com ansiolítico/antidepressivo e foi emitida CIT de 29/05/2018 a 26/07/2018 tendo sido acompanhado na USF durante este período (3 consultas).

Dia 6 de Novembro de 2018 recorre à USF por inalação de fumo do carro/gasóleo queimado referindo um quadro de mau estar, náuseas. Esta situação de exposição acidental ocorreu por o doente ter perdido o olfato (anosmia) após o acidente. Fez tratamento sintomático e melhorou.

Dia 23 de Novembro de 2018 recorre novamente à USF e apresentou um quadro de Síndrome Vertiginoso Periférico. Atendendo aos seus antecedentes enviei ao SU (serviço de urgência), onde efetuou TAC, tendo confirmado o diagnóstico de Síndrome Vertiginoso Periférico.

Por este motivo esteve com CIT desde o dia 23 de novembro de 2018 até 9 de fevereiro de 2019.

(…)

Conclusões

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 07/06/2018.

− Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), que se terá situado entre 12/01/2018 e 31/05/2018, sendo assim fixável num período de 140 dias.

− Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 01/06/2018 e 07/06/2018, sendo assim fixável num período 7 dias.

− Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), que se terá situado entre 12/01/2018 e 31/05/2018, sendo assim fixável num período total de 140 dias.

− Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Parcial, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas atividades, ainda que com limitações), que se terá situado entre 01/06/2018 e 07/06/2018, sendo assim fixável num período total de 7 dias.

− Quantum Doloris fixável no grau 4/7.

− Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 pontos.

− As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do examinado mas considera-se que implicam a aplicação de esforços acrescidos.

− Dano Estético Permanente-não valorado por inexistência de sequelas nesta área.

− Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer-não valorado por inexistência de verbalização de queixas subjetivas.

− Repercussão permanente na Atividade Sexual-não valorado por inexistência de verbalização de queixas subjetivas.”;

12 - Toda a situação envolvente e em consequência, para além das dores e incómodos, deixava o autor melindrado, vexado e humilhado por não ser autossuficiente e depender de terceiros para alguns dos atos da vida corrente;

13 - Deixou de praticar Kickboxing, o que fazia com regularidade;

14 - Em consequência do acidente acima relatado, correu processo por acidente de trabalho na respetiva jurisdição, sob o nº 1873/18.6..., Juízo do Trabalho de ..., desta Comarca do Porto, aí tendo sido proferida sentença de condenação (doc. junto com a petição inicial);

15 - À data do acidente, o autor tinha 24 anos de idade, tendo nascido em ........1994.

III - O DIREITO

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art.º 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art.º 679º, todos do CPC).

Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

1 - Saber se o acidente dos autos deve ser qualificado como acidente de viação;

2 - Fixação do montante indemnizatório.

1 - A primeira questão a apreciar nesta revista consiste em saber se o acidente descrito nos autos se integra no âmbito da “circulação de veículos”, desencadeando a responsabilidade prevista nos artigos 3.º parágrafo 1º da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 e 4º, nº 1 e n.º4 do RSORCA regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (RSORCA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto1, ou, pelo contrário, se constitui um “acidente de laboração”, não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Dispõe o citado artigo 3.º da Directiva, com a epígrafe "Obrigação de segurar veículos":

“Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5.º, adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. [...]".

Por sua vez, estabelece o art.º 4.º n.º 1 e 4 do DL n.º 291/2007 de 21-08:

1 – Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.

(…)

4 – A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.”

A Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 procedeu à codificação das Directivas anteriores relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, designadamente a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que foi transposta para a ordem interna, através do citado D.L. n.º 291/2007 de 21-08.

Assim sendo, a interpretação dos preceitos legais constantes deste diploma não pode deixar de obedecer à interpretação que o TJUE tem efectuado quanto a esta legislação comunitária.

Com efeito, “visando estas Directivas a consagração dos princípios da livre circulação de pessoas e igualdade de tratamento de todos os cidadãos no espaço da União Europeia, é imperioso que a sua interpretação seja tendencialmente uniforme entre os Estados membros, pelo que as decisões do TJUE são a forma primacial de garantir a referida harmonização e, como tal, assegurar o cumprimento dos princípios que as referidas Directivas visam.”2

Ora, o conceito de circulação de veículos constante do art.º 4.º do D.L. 291/2007 que, no essencial, é conforme à definição do art.º 3 n.º 1 da Directiva 2009/163/CE – tem sido objecto da Jurisprudência do TJUE, destacando-se os seguintes acórdãos:

Acórdão Vnuk (reenvio prejudicial por um Tribunal Esloveno), de 04-09-2014, proc. n.º C-162/133, que estabeleceu que o art. 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-04-1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Contudo, no caso concreto que nos ocupa, nem sequer sofre discussão que o veículo pesado com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana-recolha de resíduos sólidos urbanos, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no art.º 4.º, nº 1 do D.L. 291/2007, sujeito, assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel, seguro esse que, aliás, se encontrava formalizado, conforme resulta do ponto n.º 5 dos factos provados.

Assim, a divergência radica apenas na questão de saber se o acidente resultou dos riscos próprios da circulação do referido veículo, como é defendido pelo Autor ou se esse acidente resultou apenas da utilização do veículo na sua função industrial que o mesmo desempenha, tese da Ré. Assim, segundo o primeiro entendimento, os danos sofridos pelo Autor estão cobertos pelo seguro obrigatório de circulação automóvel. Na tese da Ré, esses danos encontrar-se-iam excluídos por força do disposto no art.º 4.º n.º 4 do D.L. 291/2007.

Portanto, tal como bem se observa no acórdão recorrido, o que neste momento releva, de acordo com a Jurisprudência do TJUE citada e que tem vindo a ser seguida neste STJ4 é apurar qual a principal utilização do veículo causador do acidente no momento do acidente, ou como meio de transporte (caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de “circulação de veículos”) ou como máquina de trabalho industrial (caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este conceito).

Ora, vejamos a factualidade pertinente para apurar tal matéria:

“- No dia ... de janeiro de 2018, pelas 02:05 horas, na Travessa ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um acidente;

- Foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana;

- O autor, AA, naquela data e local, encontrava-se a desempenar as funções de cantoneiro de limpeza, nomeadamente a recolha de resíduos sólidos urbanos, sob a ordem e direção da Sociedade R... ................... . ........ .., pessoa coletiva n.º ... ... .57, com sede no ...;

- Para o efeito, o autor fazia-se transportar, durante o desempenho das suas tarefas, no estribo da traseira do veículo supramencionado;

- Naquele momento e local, o veículo OG circulava na Travessa ..., em ... Concelho de ... e Distrito ..., a fim de realizar a recolha de resíduos sólidos urbanos;

- No seu interior viajava o motorista BB, colega de trabalho do aqui autor;

- No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o autor e outro colega de trabalho, CC, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam;

- Ainda naquele momento e local, com o veículo em reinício de marcha lenta, quando o trabalhador, aqui autor, subia para o camião, o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, partiu, o que fez com que o autor caísse desamparado no chão, tendo permanecido desmaiado durante algum tempo”5 .

Perante esta factualidade, acompanhamos, sem dúvida, o acórdão recorrido ao verificar que, no momento em que o sinistro ocorreu, “o veículo em causa estava a desempenhar a sua função principal a que estava destinado, isto é, à realização da higiene urbana-recolha de resíduos sólidos urbanos. Mas também é verdade que, no momento do acidente, o veículo destinado à realização da referida função, servia também como meio de transporte ao apelante”.

Parece-nos óbvio que sendo embora certo que o veículo em causa estava, no momento do acidente, a desempenhar a sua função principal a que estava destinado-recolha dos resíduos sólidos urbano-essa sua função alternava também com a de transporte dos trabalhadores (cantoneiros) que o auxiliavam nessa tarefa e nos moldes acima referidos, ou seja, existe uma alternância de funcionalidade do veículo em questão, como máquina de recolha do lixo e como transporte dos trabalhadores, ou seja, a laboração do veículo envolve sempre o transporte a partir do momento em que o cantoneiro se apoia no estribo.”

É foi nestas circunstâncias que, ao terminar as actividades inerentes ao trabalho que estava a desenvolver, o Autor subiu de novo para o veículo, e este já estava “em marcha lenta”, é que se partiu “o estribo ou alguma peça integrante do mesmo”, “o que fez com que o autor caísse desamparado no chão.”

Não há dúvida de que o acidente descrito não se deve aos riscos próprios da laboração industrial do veículo. Não foi em consequência do manuseamento do equipamento afecto à recolha dos resíduos que o mesmo ocorreu.

Claramente, o acidente aconteceu devido aos riscos próprios do veículo, enquanto o Autor estava a ser transportado ou para novo local de recolha de lixo ou para o local de recolha do veículo, não sabemos, mas é irrelevante para o caso.

Repare-se que ficou provado que “se partiu6 o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, pelo que não é exacto o que a recorrente refere na sua conclusão 6.ª.

Concluímos, assim, tal como concluiu o acórdão recorrido que:

“Diante do exposto os danos sofridos pelo apelante não foram causados pelo veículo em questão no cumprimento específico e estrito dessa funcionalidade industrial de recolha do lixo, ou seja, não são de imputar diretamente à laboração deste, à atividade que lhe é própria, antes são danos advindos no decurso de um ato de circulação automóvel, razão pela qual, o sinistro em causa resultou dos riscos próprios e inerentes à circulação do automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., pelo que é de qualificar o sinistro ocorrido como acidente de viação e, por isso, sujeito às regras do seguro obrigatório.”

Por conseguinte, a Ré é responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo Autor, cobertos pela respectivo contrato de seguro, nos termos do disposto nos artigos 503.º n.º 1 e 504.º do Código Civil.

A identificação dos danos a ressarcir e o respectivo quantum indemnizatório será matéria tratada seguidamente.

2 - Importa clarificar, antes de mais, que o facto de o acidente em análise dever ser qualificado como um acidente de viação não contraria nem prejudica a sua qualificação também como acidente de trabalho. E sendo o acidente, simultaneamente, de viação e de trabalho, a indemnização por perdas salariais em consequência da incapacidade laboral, fixada no processo por acidente de trabalho, não exclui o ressarcimento pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir. 7

A Ré refere na sua 2.ª conclusão que o Autor já foi indemnizado pela sua congénere Tranquilidade Seguradoras Unidas SA, por todos os danos que lhe advieram desse mesmo acidente laboral.

Ora, conforme se retira do ponto 14.º dos factos provados que remete para a sentença de condenação proferida no processo por acidente de trabalho n.º 1873/18.6..., Juízo do Trabalho de ..., verifica-se que tal afirmação está longe de corresponder à realidade.

Com efeito, no âmbito daquele processo, a Seguradora apenas foi condenada a pagar ao Autor, nos termos do disposto nos artigos 48.º n.º3 c) e 75.º n.º1 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro, com base numa IPP de 24,45%, o capital de remição correspondente a uma pensão anual de €1.679,74, com início em 08.06.2018, além das quantias de €105,33 e de €15,00, esta a título de despesas de transportes.

Verifica-se, pois, que a indemnização fixada, no âmbito do processo por acidente de trabalho, apenas prevê o ressarcimento dos danos resultantes da perda da capacidade de ganho, mas não o dano biológico e os danos não patrimoniais.

a. Do dano biológico

A jurisprudência do STJ, tem vindo a reconhecer o dano biológico, que envolve uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado, como dano patrimonial futuro, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e mesmo que dela não resulte perda de vencimento, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço no exercício da atividade profissional e nas restantes atividades diárias do lesado.8

O dano biológico consubstancia um “dano de esforço”, na medida em que o lesado para desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de uma maior actividade e esforço suplementar.9

O dano biológico assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais ou sociais10.

Já se vê que o impacto nas várias facetas da vida do lesado, produzido por este “dano biológico”, extravasa, em muito, da simples indemnização pela perda da capacidade de ganho, pela qual o Autor já foi indemnizado em sede de processo por acidente de trabalho.

Por outro lado, tem dado oportunidade à divergência de entendimento, quer na Doutrina, quer na Jurisprudência, sobre se o dano biológico deve ser encarado como um dano de natureza patrimonial, não patrimonial ou eventualmente um tercium genus como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado”.

Ora, “mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta- pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.

Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.

Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.

E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.

Ora , tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessáriamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.

Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.11

A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.

E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”12

Parece-nos, pois, evidente a coexistência desta dupla vertente patrimonial e não patrimonial no dano biológico, sendo certo que a perda das funcionalidades gerais do lesado repercutidas nas mais diversas dimensões da vida deste, é sem dúvida um dano indemnizável e que não pode considerar-se já abrangido pela indemnização já auferida pelo Autor, conforme já referido.

b) Do quantum indemnizatório devido pelo dano biológico

Na fixação do valor indemnizatório, há a considerar vários parâmetros, destacando-se a idade da vítima, a esperança média de vida e o grau de défice funcional permanente.

Com efeito, e no que à esperança de vida concerne, “como tem vindo a salientar a jurisprudência, finda a vida ativa do lesado por incapacidade permanente não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades. É que, atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum. Ora, o que está em causa é não só o maior esforço despendido na atividade laboral, enquanto trabalhador, mas também a atividade do lesado como pessoa, afectado por uma incapacidade funcional. Por conseguinte, mantendo-se este dano na saúde para além da vida ativa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida.”13

Importa, pois atentar no quadro factual relevante:

À data do acidente, o autor tinha 24 anos de idade, tendo nascido em ........1994;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 pontos;

- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do examinado, mas considera-se que implicam a aplicação de esforços acrescidos.”14

Estamos perante uma situação em que “o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado–embora não determinem perda de rendimento laboral-envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente15.

Ponderando o referido quadro factual, e considerando especialmente que “as sequelas sofridas pelo apelante embora compatíveis com o exercício da atividade habitual, implicam esforços suplementares” fixou o Tribunal da Relação, para ressarcir tais danos, o montante de €100.00,000”.

A Recorrente entende que este valor foi fixado “sem qualquer critério de razoabilidade, proporcionalidade ou até mesmo de justiça”.

Não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, deve a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exato valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no art.º 566°, n.º 3, do C.C.16

E foi precisamente com base na equidade que o Tribunal da Relação fixou o supra referido montante indemnizatório.

Pode colocar-se a questão de saber se está dentro dos poderes do Supremo reapreciar tal decisão, proferida segundo critérios e equidade.

Ora, como este Supremo Tribunal de Justiça já observou em diversas ocasiões, “o julgamento de acordo com a equidade envolve um juízo de justiça concreta e não um juízo de justiça normativa, razão por que a determinação do quantum indemnizatório não traduz, em rigor, a resolução de uma questão de direito.

Neste contexto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos.

A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”. 17

Ou, dito de outro modo:

Tratando-se de uma indemnização fixada segundo a equidade, mais do que discutir a aplicação de puros juízos de equidade que, em rigor, não se traduzem na resolução de uma “questão de direito”, importa, essencialmente, num recurso de revista, verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis”.18

É, assim, visto este enquadramento e considerando tais limites que este Tribunal irá apreciar a questão.

A quantificação de um dano desta natureza revela-se complexa, porquanto não é possível avaliá-lo em termos concretos. De todo o modo, o dano biológico perspectivado como diminuição somático - psíquica e funcional do lesado, com notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial.

No caso concreto, a afectação das capacidades funcionais do Autor, embora não represente uma incapacidade para o exercício da profissão habitual, representa esforços suplementares no exercício da mesma, penalizando-o certamente em futura progressão da carreira, sendo previsível o agravamento das sequelas, as quais se prolongarão por longo tempo, dada a sua idade, à data do acidente (24 anos).

Vejamos então se, no cotejo com indemnizações fixadas em casos análogos, a indemnização fixada se harmoniza ou não com os critérios seguidos pela Jurisprudência, em casos próximos do que está sob análise:

Para um lesado que tinha apenas 14 anos de idade, frequentava ainda a escolaridade obrigatória, não tinha, por isso, profissão, nem qualquer habilitação profissional ou académica, tinha ficado com um défice funcional permanente de 22 pontos, o Supremo fixou, em equidade, uma indemnização de € 85.000,00 pelos danos patrimoniais futuros19.

Para outro que tinha 16 anos e que ficou a padecer de uma IPG (incapacidade permanente geral) de 16%, o Supremo aceitou uma indemnização de € 60.00020 . Já para uma lesada que ficou afectada do joelho esquerdo e ficou com um défice funcional de 8,95 pontos, atribuiu uma indemnização de € 80.00021.

Por sua vez, o acórdão do STJ de 14-09-202322, confirmou a decisão de atribuir a indemnização de € 30.000,00 por dano biológico relativamente a lesada de 22 anos, mas com um défice funcional permanente de 5 pontos que é substancialmente inferior ao que apresenta o Autor.

Também o acórdão deste STJ de 04-06-201523, fixa em € 55.000,00 a indemnização por dano biológico a lesada, com 17 anos de idade e défice funcional de 16,9 pontos.

Ora, elaborando um juízo comparativo salvaguardando um critério de igualdade possível, ressalta, desde logo, que o valor fixado pela Relação situa-se acima daqueles valores que têm vindo a ser aplicados em casos análogos, quer atenta a idade dos lesados – são bastante jovens, quer o facto de não estar em causa o cálculo da perda de capacidade de ganho dado que, naqueles primeiros dois casos, as vítimas ainda nem sequer exerciam uma actividade profissional.

Porém, importa frisar que o facto de o Autor ter reclamado a este título uma indemnização no valor de € 36.748,35 não constitui obstáculo a que o Tribunal fixe um valor superior, uma vez que o valor global peticionado pelo Autor atinge o montante de € 144.649,74, distribuído pelas seguintes rubricas:

a) Dano biológico- € 36.748,35

b) “Quantum doloris” - €3.200,00;

c) Repercussão na vida laboral €25.650,00

d) Repercussão na vida desportiva €7.500,00

SUB-TOTAL: €73.978,35

e) Incapacidade permanente para o trabalho - €100.206,55

- €29.355,14 (recebido no âmbito do processo por acidente de trabalho)

SUB-TOTAL €70.851,39

TOTAL………………………………..€ 144.649,74.

E conforme tem sido entendido, o limite da condenação, imposto pelo art.º 609.º, nº 1 do C. Civil, reporta-se ao valor global do pedido formulado e não ao valor de pedidos parcelares. 24

O Autor formula, pois, o pedido de indemnização, tendo em conta apenas a vertente não patrimonial do “dano biológico”.

Por sua vez, o Tribunal da Relação procedeu a um cálculo do “dano biológico” recorrendo a fórmulas que habitualmente são utilizadas nos casos em que aos lesados apenas é arbitrada uma indemnização por dano sofrido em acidente de viação que não é simultaneamente acidente de trabalho.

Assim, lê-se no acórdão recorrido como fundamento da fixação do valor de € 100.000,00 a título de indemnização por dano biológico:

“A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2021 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 1.294,10.

Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 24 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 19 pontos em 100.

Como assim, tendo por referência um rendimento anual de € 18.117,40 (€ 1.294,10 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.

De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 19 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a € 3.442,30 [(€ 1.294,10 x 14) x 19%], o que permitiria alcançar, ao fim de 54 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 24 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de € 185.884,52, apurando-se um valor de € 139.413,10 após se operar o apontado desconto de ¼. (…)

Como assim, sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo apelante embora compatíveis com o exercício da atividade habitual, implicam esforços suplementares, afigura-se-nos justo e equilibrado para ressarcir este dano o montante de €100.00,000 (cem mil euros).”

Assim sendo, embora referindo que, não obstante as lesões serem compatíveis com a sua actividade profissional habitual, a verdade é que o resultado do cálculo realizado consubstancia uma duplicação, pois o Autor já foi indemnizado pela perda da capacidade de ganho, durante a vida activa. Assim, o valor encontrado deverá ser aplicado proporcionalmente na parte ainda não abrangida pela indemnização já arbitrada e que corresponderá a €30.972,00 (139.413,10€:54 anos x12 anos. Ou seja, o valor indemnizatório correspondente aos anos de vida entre a idade da reforma e a esperança média de vida. Até porque “como tem vindo a salientar a jurisprudência, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com ela todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum. Ora, o que está em causa é não só o maior esforço despendido na actividade laboral, enquanto trabalhador, mas também a actividade do lesado como pessoa, afectado por uma incapacidade funcional. Por conseguinte, mantendo-se este dano na saúde para além da vida activa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida25.

Mas este valor tem apenas em vista a componente patrimonial do dano biológico, na medida em que de acordo com o que já foi referido, não obstante a compatibilidade das sequelas sofridas pelo lesado, com o exercício da actividade profissional, considerando que mesmo após o período legal de vida activa o lesado tem direito a desenvolver actividades que tenham expressão económica, há a considerar esta implicação de alcance económico, no cômputo da indemnização por dano biológico.

Porém, há ainda que ter em conta que este dano biológico tem uma dimensão não patrimonial, visando a respectiva indemnização compensar o maior esforço despendido pelo lesado, em todas as dimensões da sua vida pessoal, considerando o défice funcional da integridade físico-psíquica de que ficou a padecer, fixada em 19 pontos. Realça-se neste défice a anosmia permanente de que ficou a padecer o lesado em consequência do acidente, conforme relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil.26

A Recorrente conclui no ponto 15.º que “no caso dos autos, não se apurou a causa concreta dessa anosmia” e no ponto 16.º que “por esta especialidade o Autor não apresenta qualquer incapacidade para o trabalho”.

Ora, importa rebater estas afirmações porque as mesmas não são exactas:

Em primeiro lugar, de acordo com o esclarecimento constante do mencionado relatório pericial, a causa da anosmia deve-se a “lesão do nervo olfactivo decorrente do acidente em apreço.”

E, além de constar do relatório pericial que existe “risco pessoal e laboral inerente à anosmia”, tal facto é notório, resultante dos dados da experiência comum.

E é este risco, quer pessoal quer laboral, a que o Autor irá estar sujeito durante toda a vida, para além do desgosto e desconforto que do mesmo resulta para si, que não pode deixar de ser compensado em termos de dano biológico, na sua vertente não patrimonial.

Não podemos deixar de ter em consideração que “há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de modo a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se, assim, um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua dignidade e liberdade, correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, com consequências extrapatrimoniais. Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”27.

Para a quantificação do dano biológico, designadamente nesta vertente não patrimonial, são convocadas as normas dos arts.564.º e 566.º n.º3 do CC, donde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.º 4 do CC). “Neste contexto, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, (…)28. E assim, considerando os parâmetros expostos, àquele valor já fixado de 30.972,00, deverá adicionar-se um valor de €29.000,00, julgado adequado para o fim em vista, com o que se atingirá um valor global a título de indemnização pelo dano biológico de €59.972,00.

Considera-se, assim, que o cálculo elaborado pela Relação no que respeita à indemnização pelo dano biológico, chegou a um resultado excessivo tendo em conta o facto de parte do dano – maxime na vertente patrimonial do dano futuro - já dever considerar-se compensada pela indemnização paga no âmbito do processo por acidente de trabalho.

Procedem, assim, parcialmente, as conclusões da Recorrente, a este respeito.

c) Dos danos não patrimoniais

Conforme decorre do disposto no art.º 496.º n.º 1 do Código Civil, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, em decorrência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.

Considerando o quadro factual supra descrito em que sobressai, como consequências do acidente: traumatismo crâneo- encefálico e fractura do punho direito, o que demandou um período de internamento hospitalar, de cerca de uma semana. Como é notório, o Autor sofreu dores em consequência de tais lesões. Sofreu tonturas posicionais e anosmia e instabilidade postural após o acidente. Sofreu de ansiedade, medo de regressar ao trabalho e irritabilidade. Toda a situação envolvente e em consequência do acidente, para além das dores e incómodos, deixava o autor melindrado, vexado e humilhado por não ser auto-suficiente e depender de terceiros para alguns dos atos da vida corrente. Deixou de praticar Kickboxing, o que fazia com regularidade.

Estes danos de natureza não patrimonial não estão abrangidos pelo supra analisado dano biológico, mesmo considerando a sua vertente não patrimonial que tem em vista como se referiu, a compensação pelo “dano de esforço”, a afectação da potencialidade física, psíquica ou intelectual, do lesado, para além do agravamento natural resultante da idade.

O que está em causa nesta rubrica é a compensação pelos danos morais consubstanciados nas dores, desgostos, angústias e sofrimento gerado pela produção do acidente e considerando o período em que o Autor esteve hospitalizado e em convalescença, ou seja, durante o período de incapacidade temporária.

Não é, assim, relevante o que consta da conclusão n.º 25.º, pois não são os factos ali mencionados que são os visados na fixação deste montante indemnizatório.

Tudo ponderado, entendemos que a quantia de €20.000,00 fixada pelo Tribunal da Relação, mostra-se adequada e em linha com os valores que têm vindo a ser aplicados por este Tribunal em casos análogos, pelo que não se vê fundamento nem fáctico nem legal para o alterar.

IV - DECISÃO

Face ao exposto, acordamos na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, altera-se o valor da indemnização a pagar pela Ré ao Autor que se fixa na quantia global de €79.972,00.

No mais, mantém-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Autor e Ré na proporção de 1/3 para o primeiro e 2/3 para a segunda.

Lisboa, 27 de novembro de 2024

Maria de Deus Correia (relatora)

Rui Machado Moura

António Oliveira Abreu

______


1. Este diploma resulta da transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio,

2. Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-03-2023, Processo 5130/20.0T8VIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt

3. Texto disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT

4. Vide a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de 17-12-2015, Processo 312/11, disponível em www.dgsi.pt

5. Vide factos provados n.º 1.º a 4.º e 6.º a 9.º.

6. Vide ponto 9.º dos factos provados.

7. Vide, a título exemplificativo o recente acórdão deste STJ de 12-04-2024, Processo 34/14.8T8PNF-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

8. Vide acórdão do STJ de 09-05-2023, Processo n.º 7509/19.0T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt

9. Vide a título exemplificativo, Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 16/6/2016 (proc. nº 1364/06), 5/12/2017 ( proc. nº 505/15), 22/2/2022 ( proc nº 1082/19), 21/4/2022 ( proc. nº 96/18), disponíveis em www dgsi.pt.

10. Acórdão o STJ de 19-05-2009, Processo 298/06.OTBSJM.S.1

11. Sublinhado nosso.

12. Acórdão do STJ de 27-10-2009, Processo 560/09.0YFLSB, disponível em www.dgsi.pt

13. Acórdão do STJ de 16-01-2024, Processo 3527/18, disponível em www.dgsi.pt

14. Ponto 11.º dos factos provados.

15.Vide Acórdão do STJ de 11-07-2019, Processo 1456/15.2T8FNC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

16. Acórdão do STJ de 19-09-2019, Processo 2706/17.6T8BRGG, disponível em www.dgsi.pt.

17. Acórdão do STJ de 14-12-2017, Processo 589/13.4TBFLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt

18. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-09-2023, Processo 1974/21.3T8PNF.P1.S1,(desta mesma secção e cujo Relator é Adjunto neste acórdão) disponível em www.dgsi.pt,

19. Acórdão do STJ de 22-06-2017, Processo n.º104/10,1TBCBC.G1.S1

20. Acórdão do STJ de 30-05-2019, Processo 576/14.5TBBGC.G1,S1, disponível em www.dgsi.pt.

21. Acórdão do STJ de 28.3.2019, disponível em www.dgsi.

22. Já identificado na nota 17.

23. Processo 1166/10.7TBVCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt

24. Acórdãos do STJ de 29-03-2007, Processo 06B3261, e de 25-03-2010, Processo 1052/05.2TTMTS.S1,disponíveis em www.dgsi.pt

25. Acórdão do STJ de 09-05-2023, Processo 7509/19, disponível em www.dgsi.pt

26. Vide ponto 11.º dos factos provados que deu como reproduzidos os relatórios de perícia médico legal juntos aos autos.

27. Acórdão do STJ de 09-05-2023, Processo 7509/19, disponível em www.dgsi.pt

28. Idem.