Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
642/14.7T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ACESSÃO DA POSSE
TRANSMISSÃO DA POSSE
USUCAPIÃO
BEM IMÓVEL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
FORMA LEGAL
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
FORMALIDADES AD PROBATIONEM
FACTO CONCLUSIVO
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / FORMA – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA.
Doutrina:
-Abílio Vassalo de Abreu, A Necessidade de uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão da Posse (art.º 1256º do Código Civil) ”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Volume IV, p. 1299;
-António Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª Edição, ps. 131 a 137;
-Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, 2017, p. 331 e 335;
-José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, p. 366 e 367;
-José Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, II, p. 96;
-L. P. Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 5.ª Edição, Coimbra Editora, p. 77;
-Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 1981, p. 252 e 253;
-Oliveira Ascensão, Direito Civil/ Reais, 5.ª Edição, Coimbra Editora, p. 80;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, p. 14;
-Rui Ataíde, Sobre a Distinção Entre Posse e Detenção, separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 75, I/II – Lisboa, Jan./Jun. 2015, p. 83.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 875.º E 220.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 02-12-2014, PROCESSO N.º 94/07.8TBSCD.C1.S1;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 322/13.0TBTND.C1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 07-01-1976, IN CJ, 1976, I, P. 68.
Sumário :
I - O instituto da acessão da posse visa facilitar a aquisição de direitos reais por intermédio da usucapião.

II - Sendo a posse uma realidade normativa, a acessão na posse pressupõe a validade formal do negócio jurídico translativo da posse.

II - A exigência de escritura pública para a formalização do contrato de compra e venda de bem imóvel reporta-se à substância do próprio acto, não constituindo apenas meio de prova das declarações negociais.

III - Sendo o negócio de compra e venda invocado pelos recorrentes nulo por falta de forma legal (arts. 875.º e 220.º, ambos do CC), mostra-se equívoco e conclusivo o ponto do elenco factual em que consta que “os réus adquiriram a M. o prédio e pagaram o preço acordado”, devendo o mesmo ser interpretado como a mera entrega verbal ou transferência do imóvel solo consensus em contrapartida da quantia acordada.

IV - A acessão na posse não poderá ocorrer contra o próprio transmitente da posse para o adquirente, já que tal permitiria um intolerável aproveitamento do tempo de posse do titular do direito real que se pode ver prejudicado com a invocação da usucapião, frustrando a possibilidade de arguir em Juízo qualquer vício do acto translativo de posse de que porventura o mesmo enfreme.

V - Assim, como define, inter alia, o prof. J. Alberto Vieira, o possuidor actual apenas poderá recorrer à acessão da posse do seu transmitente caso a usucapião não venha a funcionar contra este ou seus herdeiros, porquanto estes ocupam a mesma posição do autor na herança.

Decisão Texto Integral:
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



     Relatório


    AAe marido, BB, residentes na Rua …, Lote …, 4° C, C…, vieram propor acção de processo comum contra CC e mulher DD, residentes na Avª … – …, Aguiar da Beira, pedindo:


a) Que se declare que o prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de …, Aguiar da Beira, sob o artº 3…5, faz parte integrante do acervo hereditário indiviso, aberto por óbito de EE;


b) Que, em consequência, se declare que o prédio é propriedade em comunhão dos Autores e dos restantes herdeiros de EE, (que irão ser chamados a intervir);


c) Que os Réus sejam condenados a abrirem mão do prédio entregando-o aos Autores e Chamados, livre e devoluto, nomeadamente dos eucaliptos que lá plantaram e no estado em que se encontrava antes;


d) Que os Réus sejam condenados a absterem-se de perturbar a propriedade e posse dos Autores e Chamados sobre o referido prédio, seja de que modo for;


e) Que os Réus sejam condenados a pagarem consequentemente aos Autores e Chamados, a indemnização de 12.500,00€, referente aos factos alegados nos artºs. 88º e 89° da petição;


f) Que os Réus sejam condenados a pagarem à herança da Virgínia e consequentemente aos Autores e Chamados a quantia de 40.000,00€ pelos prejuízos causados pela sua actuação com abuso de direito, sobre o prédio do art° 3412 e alegados nos artºs 84° e 85°.


      Para fundamentar tal pretensão alegaram, em suma, que na freguesia de ... e no sítio da ... existem dois prédios – inscritos na matriz rústica sob os artºs. 3…2 e 3…5 – que pertenceram a EE, falecida em 29/01/2005;

      Que, no ano de 2000, o Réu marido entrou em contacto com a referida EE pretendendo adquirir-lhe o prédio inscrito na matriz sob o art. 3…5, o que esta aceitou fazer pelo preço de 2.000.000$00;

      Que, no dia 07/12/2000, foi celebrada a respectiva escritura mas, por erro de identificação do prédio, nela ficou a constar o prédio inscrito na matriz sob o art. 3412;

       Que o prédio que a referida EE pretendeu vender e que o Réu pretendeu comprar era o pinhal do art. 3415 e não o terreno de cultura e pastagem inscrito sob o art. 3…2, prédio este que, à data, se encontrava arrendado a FF que continuou a pagar a renda à referida EE até à data da sua morte;

       Que só após a morte desta e da sua irmã, é que o Réu entrou no prédio do 3412, expulsando o rendeiro e registando a aquisição desse prédio em seu nome em 04/05/2006;

       Que, por não terem detectado o erro atempadamente, não podem propor, com êxito, acção de anulabilidade da escritura, razão pela qual aceitaram a transferência para o Réu do direito de propriedade sobre o art. 3…2 e fizeram registar a seu favor o prédio inscrito na matriz sob o art. 3…5 que agora reivindicam;

      Que o Réu, no Verão de 2004, cortou os pinheiros que existiam neste prédio, apropriando-se do respectivo valor, apropriando-se ainda dos pinheiros que existiam nesse prédio e que arderam em 2013, assistindo aos Autores (e demais herdeiros de EE) o direito de ser indemnizados pelo valor actual desses pinheiros que não seria inferior a 12.500,00€;

        Que os Réus agem com manifesto abuso de direito no exercício do direito de propriedade sobre o prédio do art. 3…2º, uma vez que, apesar de terem conhecimento do erro da escritura, sempre se negaram a proceder à sua rectificação, aproveitando-se desse erro para ficar com um prédio mais valioso do que aquele que era visado na escritura, adquirindo, dessa forma, por 10.000,00€ um prédio que tinha o valor de 50.000,00€ e lesando os Autores e demais herdeiros no valor de 40.000,00€.


       Os Autores deduziram ainda incidente de intervenção provocada, requerendo a intervenção dos demais herdeiros de EE, a seguir identificados:


- GG;

- HH;

- II;

- JJ;

- KK.


       Os Réus contestaram, alegando, em suma, terem adquirido a EE a propriedade dos dois prédios referidos pelos Autores, tendo pago o respectivo preço, exercendo sobre os aludidos prédios actos de posse desde 2000, no que toca ao art. 3…2º, e desde Março de 2001, no que toca ao art. 3…5º e tendo adquirido, por usucapião, o respectivo direito de propriedade.

        

      Impugnando os demais factos alegados, concluem pela improcedência da acção e pedem em reconvenção:

   - Que os A.A. e todos os Chamados, na invocada qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de EE, sejam condenados a reconhecer a propriedade dos RR sobre o prédio rústico, sito no Lugar …, na freguesia de …, concelho de Aguiar da Beira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3…5°, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, sob o número 2…9°;


   - Que seja proferida Sentença que substitua a vontade dos RR e todos os Chamados identificados nos autos, ordenando à Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira que descreva a favor dos RR., na qualidade de proprietários, o prédio rústico, sito no Lugar …, na freguesia de …, concelho de Aguiar da Beira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3…5° e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, sob o número 2…9°, terra de pinhal, confrontando; a Norte limite da freguesia de C…; Nascente - LL; Sul - caminho; Poente - MM.


      Mais pediram, para o caso de improcedência dos pedidos anteriores:     

   - Que os AA. e Chamados sejam condenados, pessoal e solidariamente, a entregar aos R. R. a quantia de €19.951,92, correspondentes ao dobro da quantia paga pela aquisição desse prédio (Art.º 3…5° rústico da freguesia de …), acrescida do valor das despesas efectuadas e da mais-valia criada com as obras e árvores ali plantadas, a determinar em execução de Sentença;


   - Que os AA. e Chamados que aderirem à p. i. sejam condenados, como litigantes de má-fé, em multa de valor nunca inferior a € 2.500,00 e indemnização a favor dos RR de idêntico valor, bem como a ressarcir os RR dos valores a que a má-fé dos AA obrigou a despender, aqui se incluindo os honorários dos seus mandatários, a determinar no final dos presentes autos;


  - Que o Tribunal considere existir no comportamento dos AA. e demais Chamados que aderirem aos argumentos infundados, falsos, ilegais e ilegítimos alegados na p.i, integram abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium, nos termos e para os efeitos do art. 334° do Código Civil.


      Posteriormente, por força do óbito de JJ, veio a ser habilitado como seu sucessor KK.


      Após a legal tramitação, procedeu-se ao julgamento da causa com observância das formalidades legais e foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

  - Julgar a ação improcedente e, em consequência, absolver os Réus CC e mulher DD dos pedidos contra si formulados nos autos pelos Autores AAe BB e demais chamados.

- Julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

a) condenar os referidos Autores e todos os chamados, na invocada qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de EE, a reconhecer a propriedade dos Réus CC e mulher DD sobre o prédio rústico, sito no Lugar …, na freguesia de …, concelho de Aguiar da Beira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3…5º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, sob o número 2…9º;


b) comunicar, após trânsito em julgado, à  Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira o teor do ora decidido;


c) absolver, no mais, os Autores e demais chamados do contra si peticionado em sede reconvencional.


    Inconformados com tal decisão, os Autores interpuseram Apelação da mesma para o Tribunal da Relação de … que concedeu parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidiu:

A) - Julgar procedentes os pedidos formulados pelos Autores, sob as alíneas a) e b), declarando-se que o prédio em questão – inscrito na matriz sob o art.º 3…5 – faz parte integrante do acervo hereditário indiviso, aberto por óbito de EE, pertencendo, em comunhão, aos Autores e Chamados (herdeiros de EE);

B) - Declarar a nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre EE e o Réu e que teve por objecto o prédio inscrito na matriz sob o art. 3…5;

C) - Decretar, ao abrigo do disposto no art. 289º do CC, a restituição de tudo o que foi prestado com esse negócio e em consequência:

i) Condenar-se os Réus a abrirem mão do prédio entregando-o aos Autores e Chamados, livre e devoluto e a absterem-se de perturbar a propriedade e posse dos Autores e Chamados sobre o aludido prédio – procedendo, deste modo e com fundamento na declaração de nulidade, o pedido dos Autores formulado sob a alínea c) e d);

ii) Condenar-se os Autores e Chamados a pagar ao Réu a quantia de 9.975,96€ (correspondente ao preço que este pagou pelo referido prédio) – procedendo parcialmente e com fundamento na declaração de nulidade, o pedido formulado em d) da reconvenção;

iii) Condenar-se os Réus a pagar aos Autores e Chamados (herdeiros de EE) a quantia de 6.050,00€ (correspondente ao valor dos pinheiros que existiam no prédio) – procedendo parcialmente e com fundamento na declaração de nulidade, o pedido dos Autores formulado sob a alínea e);

D) Em tudo o mais, improcedeu a acção e a reconvenção, absolvendo-se os Autores, os Chamados e os Réus de todos os demais pedidos contra eles formulados.

        

     Os Réus, não se conformando com tal acórdão, vieram interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:


        CONCLUSÕES


1.   Os RR., ora Recorrentes, compraram à falecida D. EE o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art. 3…5°.


2.     Que pelo menos desde 2004 passaram a utilizar o referido prédio e utilizaram-no de forma plena, efectiva e publicamente e sem oposição de quem quer que seja.


3.     Que, independentemente da eventual invalidade formal do negócio da transmissão do direito de propriedade, a posse foi legalmente transmitida aos RR., ora Recorrentes.


4.    Decidiu o Acórdão dar provimento parcial ao Recurso interposto pelos AA com base na invalidade formal do negócio e por se encontrar vedada aos RR. a possibilidade de acederem na posse da transmitente, uma vez que a posse por eles exercida não teve tempo suficiente para permitir a aquisição do referido prédio por usucapião.


5.     É esta a pedra angular que fundamenta o raciocínio dos Senhores juízes Desembargadores e com a qual a ora Recorrente não pode concordar.

 

6.     Não se conforma a Recorrente com o entendimento de acordo com o qual não podem os recorrentes somarem à sua posse a posse detida por EE, transmitente da mesma.


7.      Dúvidas não existem de que a transmissão da posse não exige qualquer título formal, bastando-se com a traditio da coisa, ainda que a transmissão do direito de propriedade esteja viciada e não possa produzir os seus efeitos.


8.      Porém, entende o Tribunal recorrido que os RR não poderão servir da posse quando invocada contra o próprio antecessor para efeitos de aquisição do direito de propriedade, quando esse direito também seja reclamado pelo transmissor.


9.     O Tribunal a quo parece fazer uma tremenda confusão e que levou a que a decisão proferida e que deu procedência parcial ao Recurso interposto pelos Autores.


10.    Entende, pois, o Tribunal recorrido, mal, em nosso ver, que nos presentes autos não se pode dar a acessão na posse a favor dos RR pois estes estão a invocar essa posse - da transmitente - contra ela mesma, existindo assim conflito de interesses, pendente a favor dos AA., e que veda a possibilidade aos RR de aceder à posse da D. EE.


11.    Contudo, o transmitente (tanto da posse como da propriedade) foi a D. EE e não os seus herdeiros, pelo que os RR não estão a invocar a posse para efeitos de aquisição do direito de propriedade por usucapião contra a transmitente dessa posse.


12.   São, antes, os herdeiros, que vêm reclamar para si a propriedade do já identificado prédio rústico, sendo que estes, além de não terem tido qualquer intervenção no negócio celebrado entre os RR e a D. EE, até confirmam que o negócio existiu.

 

13. Estamos aqui perante jurídicas distintas- a transmitente da posse / herdeiros da transmitente-, sendo que os AA intervêm nestes autos não na qualidade de habilitados, mas sim em nome próprio.


14. Não pode, pois, o Tribunal considerar que a posse estar a ser invocada por quem a transmitiu pois quem a transmitiu faleceu há mais de 10 anos e a presente acção deu entrada há cerca de 2 anos...


15. Não está, pois, aqui em discussão o direito de propriedade entre quem transmitiu a posse e que quem a adquiriu.


16.      A posse foi transmitida aos Réus em data em que a transmitente - a D. EE - era ainda viva, tendo sido exercida enquanto esta ainda era viva, sem que esta tenha mostrado oposição por qualquer forma.


17.     Pelo que entender-se que se está a invocar a posse contra o próprio transmitente viola as mais elementares regras do Direito, confundindo-se para este efeito pessoas com personalidades distintas, indo, inclusive, contra a vontade do próprio transmitente!


18. Não há aqui qualquer conflito de interesses nos termos que o Acórdão refere.


19. Este conflito existiria se, pelo contrário, a própria transmitente, i.e., a D. EE viesse reclamar para si o direito de propriedade.


20.   Nem pode colher o argumento segundo o qual "a admitir-se que a acessão da posse pudesse funcionar nessas situações, tornar-se-iam inúteis as exigências formais a que a lei submete os negócios jurídicos referentes a imóveis, porquanto, no dia seguinte à transmissão da posse subsequente a um contrato de compra e venda verbal - nulo por inobservância da forma legalmente prescrita - o adquirente poderia, na maioria dos casos, invocar aposse do seu antecessor. "


21.     Pois se assim fosse, permitir-se-ia que os herdeiros que, querendo para si a propriedade, viessem a posteriori (leia-se, após o falecimento do transmitente) colocar em causa a validade de um determinado negócio, opondo-se à acessão na posse por parte do legítimo adquirente, e, tal levaria a que que assim que o transmitente dessa posse - e propriedade -falecesse (como foi o caso nos presentes autos), opondo-se a essa transmissão por não ter ainda decorrido o prazo suficiente para que por si só a posse do adquirente seja suficiente para adquirir a propriedade por usucapião, fosse o negócio considerado nulo.


22.     Compactuar-se com este tipo de actuação, além de iri contra a vontade das partes, violando assim o estatuído no art. 405° do Código Civil, seria ainda uma clara violação do princípio da segurança jurídica e do estatuído no art. 2o da nossa Constituição.


23. Nos presentes autos, em momento algum o transmitente pôs em causa o negócio celebrado, tendo vivido ainda largos anos enquanto os RR punham e dispunham do prédio em questão como bem entendessem.


24. Permitir-se que, volvidos quase 15 anos, os herdeiros da transmitente venham pôr em causa esse negócio constituiria ainda um claro abuso de Direito, ao abrigo do disposto no art. 334° do código Civil, quando, inclusive, confessam e consentem com o negócio celebrado.


25. Conformando-se a Recorrente com a nulidade do negócio - transmissão da propriedade - por falta de forma legal, conforme já adiantámos e confirmado pelo Acórdão recorrido, tal invalidade não tem qualquer efeito sobre a transmissão da posse, que foi efectuada de forma válida e de acordo com a vontade da transmitente e não dos seus herdeiros.

Sendo que estes afirmam apenas terem posto o negócio em causa por lhes estar vedada a possibilidade de anular a escritura do prédio inscrito na matriz predial com o art. 3412°.


26. Na verdade, ao ler-se o Acórdão recorrido e a fundamentação para este entendimento, parece que a fundamentação nem tão pouco vai de encontro à decisão tomada.

 

27. Isto é, em todos os momentos, o Acórdão refere sempre "o transmitente da posse".


28. O Acórdão recorrido, inclusivamente, especifica quem considera para os devidos efeitos o transmitente afirmando que « ( ...) é no âmbito da relação jurídica que se estabeleceu entre o transmitente da posse (a referida EE) e o respectivo adquirente (O Réu)...»


29.     Se ao longo da sua fundamentação, o Tribunal considerou sempre a D. EE como sendo a transmitente da posse, a que título e com que fundamento legal, considera o Tribunal recorrido não ser possível os R. acederem à posse da D. EE pois invocada contra esse?


30.    Compulsados os autos, não consta como parte a referida D. EE...


31.     Pelo que, à luz do Direito, cabia ao Tribunal fundamentar qual a razão para dar procedência ao pedido dos AA., quando em momento algum são estes considerados "transmitentes da posse".

 

32. O que não fez.

 

33.    Violou assim o douto Acórdão recorrido o disposto no art. 615 n.° 1 al. c) do C.P.C., uma vez que toda a fundamentação parece apontar em sentido diametralmente oposto à decisão tomada.


34.   Ora, nada haveria a opor a este argumento se, no decorrer de uma acção interposta pela referida EE contra os aqui Réus onde esta reivindicasse para si a propriedade do imóvel e falecesse no decorrer da ação habilitando-se os herdeiros para por ela prosseguir com os termos da causa.


35.    Mas não é o caso nos presentes autos.


36.     Os Autores agem na qualidade de herdeiros, mas em nome próprio, tendo interposto a presente acção mais de 10 anos após a morte da (efectiva) transmitente!


37.     Pelo que jamais se poderia considerar os AA como os transmitentes da posse para efeitos de acessão da mesma a favor dos RR., razão pela qual não pode proceder o estribado no Acórdão recorrido e que impunha a confirmação da decisão proferida em 1ª Instância.


38. O Acórdão recorrido violou assim o disposto nos art. 405° e 334° do Código Civil.


39. Violou ainda o disposto no art. 615° n.° 1 al c) do C.P.C, e o art. 2º da Constituição da República Portuguesa.

           

   Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V.Exªs certamente suprirão, deve o presente Recurso ser considerado totalmente procedente, por provado, e em consequência:

  a) Serem os AA., ora Recorridos, condenados a reconhecer a propriedades dos Réus sobre prédio rústico, sito no Lugar …, na freguesia de …, concelho de Aguiar da Beira, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 3…5°, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira, sob o número 2…9°.

 

b) Absolver os RR., de todos os pedidos formulados pelos AA.



     Foram apresentadas contra-alegações pelos Recorridos, pugnando pela manutenção do julgado.

 

Cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 635º do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

                                                                                                 

FUNDAMENTOS


    Das instâncias, vem dada como definitivamente provada a seguinte factualidade, após a decisão da 2ª Instância que, em sede de impugnação na Apelação, alterou parte da matéria que vinha fixada do tribunal a quo:


1. Na freguesia de D… e no sítio da … existem dois prédios que na matriz rústica da mesma freguesia têm a seguinte descrição:


A) Terreno de batata, centeio e pinhal, pastagem, videiras e fruteiras, a confrontar do norte com o limite da freguesia de C…, do sul com o Dr. NN, do nascente com o limite da mesma freguesia e poente com Dr. NN, com a área total de 3,5775 hectares, inscrito na referida matriz sob o art.º 3…2 (doc. de fls. 28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);


B) Terreno de pinhal, a confrontar do norte com o limite da freguesia da C…, sul com o caminho, nascente com LL e poente com MM, com a área de 1,5525 hectares e inscrito na referida matriz sob o artº 3…5 (doc. de fls. 29, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).


2. Tais prédios foram propriedade de EE, que foi também residente no lugar e freguesia de D….


3. Por si e antecessores de quem os houve, a mesma deu-os de arrendamento e recebendo as respectivas rendas, extraindo deles todas as utilidades, que eram susceptíveis de proporcionar e suportando os respectivos encargos.


4. Tudo continuadamente por mais de 30 anos. 


5. À vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, com a consciência de não lesar direitos de outras pessoas e a convicção de exercer um direito de proprietária. 


6. EE faleceu em 29 de Janeiro de 2005, com a idade de 86 anos. 


7. Faleceu no estado de solteira, sem ascendentes nem descendentes, deixando como únicos herdeiros os constantes da escritura de habilitação de herdeiros celebrada no dia 12 de Setembro de 2005, no Cartório Notarial de C…, aqui dada por reproduzida. (documento de fls. 31 a 33)


8. Consta da referida escritura, foram herdeiros da dita EE, os seus irmãos germanos: a) OO, solteira; b) PP, viúva; c) QQ, casado com JJ e ainda os sobrinhos: d) GG, viúva; e) HH, casado com RR, no regime da separação de bens e f) II, casado com SS, também no regime da separação de bens. 


9. TT foi irmão germano da autora da herança e pré-falecido àquela.


10. Em 30 de Março de 2006 faleceu PP, no estado de viúva, sem testamento, tendo deixado como única herdeira a aqui autora AA, casada com o autor BB, como consta da escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 21 de Abril de 2006, no Cartório Notarial de C…, que aqui se dá por integralmente reproduzida. (doc. de fls. 34 e 35)

11. OO faleceu no estado de solteira, sem ascendentes nem descendentes, no dia 2 de Outubro de 2006, sem deixar testamento, sucedendo-lhe como seus únicos herdeiros os indicados no procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, celebrado em 23 de Maio de 2012, na Conservatória do Registo Civil de C…, cujo conteúdo aqui se dá por inteiramente reproduzido. (doc. de fls. 36 e 37)

12. No dia 18 de Dezembro de 2006 faleceu QQ, sendo que por escritura de habilitação de herdeiros de 11 de Julho de 2007, celebrada no Cartório Notarial de L…, foram declarados como herdeiros do referido QQ o seu cônjuge sobrevivo JJ e o filho do falecido KK, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (doc. de fls. 38 a 41)

13. No prédio inscrito na matriz sob o art.º 3…2 encontram-se depósitos de água, água essa que foi cedida em tempos recuados à Câmara Municipal de Aguiar da Beira, para abastecimento da povoação de D….

14. A Câmara Municipal fez a sua exploração e canalizou-a para abastecimento da respectiva população e como contrapartida os doadores da água ficavam com as respectivas sobras e com água gratuita para abastecimento doméstico. 


15. No dia 7 de Dezembro de 2000, no Cartório de Aguiar da Beira, foi celebrada escritura pública de compra e venda onde o Réu CC declarou comprar a EE – e esta declarou vender - o prédio rústico, sito no lugar …, na freguesia de …, concelho de Aguiar da Beira, inscrito na matriz sob o artigo 3…2° e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira sob o número 1..3/04…0, que aqui se dá por inteiramente reproduzida. (doc. de fls. 48 e 49)


16. Consta de um apontamento particular, existente no caderno de "apontamentos" de D. EE, o seguinte: "vendi na … o pinhal grande ao CC pela quantia de 2 milhões 2 mil contos. Já está pago."


17. O terreno de cultura e pastagem inscrito na matriz sob o art. 3…2 esteve arrendado a FF, agricultor, residente em … Aguiar da Beira, o qual pagava uma renda de 16 medidas. 


18. No livro de anotações de EE e da sua irmã OO, as quais eram solteiras e viviam juntas, onde faziam a anotação das rendas dos prédios que traziam arrendados, constam os seguintes dizeres: "FF em 14-3-2006 pagou a renda da vinha … e da …, vinha … 15000$00, 16 medidas da … 125 € PAGO", esta inscrição está no fundo de uma página em cujo cabeçalho consta depois de algo ilegível a alusão a 2005, sendo que nas páginas antecedentes tituladas "Ano de 2004" não consta qualquer referência a FF. 


19. O prédio referido em 15 encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Aguiar da Beira sob o n° 1…3/200…04, com inscrição a favor de CC (casado com DD), com causa "compra" a EE, desde 4.05.2006, beneficiando aí de uma área de 35775 m2. (documento de fls. 50 (verso) a 52, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)


20. Ainda em vida de EE o réu entrou no prédio de pinhal inscrito na matriz sob o artº 3…5 e em meados do Verão de 2004, mandou cortar os pinheiros lá existentes, que vendeu, apropriando-se do respectivo valor.


21. O Réu terminantemente negou-se a rectificar erro na escritura e alegou que havia comprado ambos os prédios.


22. O Réu vendeu os pinheiros que cortou no prédio inscrito na matriz sob o artº 3…5 pela quantia de 6.050,00 Euros.


23. No Verão de 2013 lavrou um incêndio no prédio do artº 3…5, em que arderam os pinheiros que não haviam sido cortados pelo réu em 2004 (pinheiros então de pequeno porte e que entretanto haviam crescido). 


24. Ante a impossibilidade de proceder à anulabilidade da escritura celebrada em 7 de Dezembro de 2000, devido ao facto dos Réus terem feito registar o prédio do artº 3…2 em seu nome em 2006, os Autores e os restantes herdeiros de EE intentaram retomar a "posse" do prédio inscrito na matriz sob o artº 3…5. 


25. No referido prédio os Réus estavam a proceder a uma plantação de eucaliptos.


26. Em princípios de Janeiro de 2014 os autores participaram o referido em 25 à G.N.R. de Aguiar da Beira, cujo teor de fls. 52 verso e 53 aqui se dá por integralmente reproduzido.


27. Os Autores fizeram registar a seu favor e dos restantes herdeiros de EE, sem determinação de parte ou de direito, o prédio inscrito na matriz sob o artº 3…5, conforme se alcança de fls. 54 verso e 55, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


28. O Réu conhecia ambos os prédios, tinha conhecimento das respectivas confrontações e suas áreas, sabendo que aquele prédio de cultura e pastagens tem mais do dobro da área do que o terreno de pinhal. 


29. E sabia também, que no prédio do art ° 3…2 havia uma exploração de águas que em tempos foi cedida à Câmara Municipal de Aguiar da Beira para abastecimento de ….


30. Os antecessores dos Réus no prédio inscrito sob o art.º 3…2 ° celebraram em 6 de Fevereiro de 1959 uma "Escritura de Acordo e Cedência", na qual ficaram com o direito de, na sua casa, poderem usar a água sem qualquer pagamento, situação que todos os posteriores executivos municipais sempre respeitaram, pelo que ainda hoje se mantém.

31. … (eliminado)


32. Os RR entregaram à vendedora, EE, a quantia de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) por ter sido esse o valor acordado e na escritura foi declarada a quantia de 1.000.000$00 (um milhão de escudos) por ser o preço real e efectivamente pago.


33. A partir de 2002, o Réu apresentava-se – designadamente perante o Município – como proprietário do prédio inscrito na matriz sob o art. 3…2º e, pelo menos a partir de 2004, exerceu actos sobre o aludido prédio, directamente ou através de terceiros que contratava, que agiam sob suas ordens, orientações e a quem pagava os preços devidos, procedendo à limpeza do referido terreno e construindo muros e poços.


34. Tais actos foram realizados à luz do dia, de forma pública e sem oposição de terceiros, sendo que alguns deles foram praticados ainda em vida da referida Sra. EE.   


35. Os RR adquiriram a EE o prédio descrito na matriz rústica da freguesia de …, sob o n° 3…5° e pagaram o preço acordado de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos).


36. Pelo menos a partir de 2004, os RR passaram a utilizar o referido prédio, que se encontrava em estado de completo abandono, coberto de intenso matagal e repleto de silvas.


37. Do "livro de rendas" não consta qualquer pagamento de FF em 2004 e 2005.

38. A última inscrição apresentada no "livro de rendas" não foi lavrada pelo punho da Sr.ª EE, não tendo sido ali aposta pela anterior proprietária mas elaborada por terceiros, em data posterior à morte daquela. 


39. FF nada pagou porque sabia que os RR eram já os proprietários daquele prédio inscrito na matriz competente sob o n° 3…2. 

40. Já foram os RR que, no ano de 2002, já por serem proprietários e estando na disposição real e efectiva desse prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de … sob o n° 3…2°, autorizaram a Câmara Municipal de Aguiar da Beira a fazer a ligação da nascente para um novo poço que foi construído nessa data, momento em que foi demolida uma presa existente. 


41. Já foram os RR que, em 2004, em vida da Sr.ª EE, fizeram vários muros e terraplanagem nesse prédio, pagando do seu bolso todas essas obras. 


42. Nesse mesmo ano de 2004 os RR fizeram dois poços nesse prédio.


43. … (eliminado).


44. Os RR ordenaram que os pinheiros fossem cortados, mas fizeram-no porque os pinheiros que constituíam essa mata (art.º 3…5°) estavam afectados por grave doença.


45. Esse pinhal foi alvo de um grave incêndio e, se ainda ali se mantivesse esse pinhal, o seu valor estava reduzido a cinzas e nenhum valor comercial teria. 


46. Os RR ordenaram que fosse executada no prédio que compraram e pagaram o respectivo preço (artº 3…5º) a plantação de eucaliptos.


47. … (eliminado).


48. Antes do falecimento da vendedora, foi utilizada uma máquina capinadeira, para alinhar os pinheiros que entretanto foram plantados pelos RR., no prédio inscrito na matriz sob o art. 3…5, sob sua ordem, à luz do dia e sem oposição de terceiros.


49. Assim foi porque a vendedora tinha consciência de que tinha vendido esse prédio (art. 3…5) e que tinha recebido o respectivo valor.


50. A vendedora celebrou a escritura pública referida no ponto 15. no pleno uso das suas faculdades mentais.


51. … (eliminado).


52. Os RR informaram FF que pretendiam usufruir de forma plena o seu prédio, e aquele, sabendo e tendo conhecimento que os RR eram de facto os proprietários e porque já não apascentava o seu gado no local, devido a uma plantação de Choupos efectuada em 2012 pelos RR., publicamente e sem oposição de ninguém, não mais utilizou aquele prédio.

53. …(eliminado).


54. … (eliminado). 


55. De imediato – após a negociação e pagamento do preço do prédio inscrito na matriz sob o art. 3…5º - directamente ou por interpostas pessoas agindo sob seu interesse e orientação, passaram os RR. a utilizar essa propriedade, passando a comportar-se como proprietários, praticando os factos acima descritos. 


56. EE nunca tomou qualquer comportamento com o propósito de não permitir que os RR utilizassem os referidos prédios.


57. Depois dela, e até ao referido em 26, os demais herdeiros também nunca colocaram formalmente em causa os direitos dos RR sobre os referenciados prédios.


58. … (eliminado).


59. Os Réus utilizaram plena, efectiva, publicamente e sem oposição de quem quer que seja (até ao momento referido em 26), o prédio rústico descrito sob o n° 3…5° da freguesia de ….


60. O último escrito do documento n° 11, junto com a p.i. ("livro de rendas"), foi efectuado pela mãe da autora, PP, irmã da Dª EE. 


     NOTA: As partes destacadas a negrito (bold), no acervo factual transcrito, são as que correspondem às alterações efectuadas pela Relação, como consta expressamente do respectivo acórdão.


         Perante este quadro factual fixado, é tempo de apreciar e decidir.


       Não há dúvida de que no presente recurso se equacionam duas questões que importa decidir:

   a) Saber se os Réus podem adicionar, ao abrigo do artº 1256º do C. Civil, à sua posse, a posse de D. EE, que foi dona do prédio rústico com o artigo matricial nº 3…5 e que o entregou aos ora Réus a titulo de venda, sem ser por escritura pública, recebendo o preço de € 2000,00 (dois mil euros), estando estes na sua posse pelo menos desde 2004.


    b) Saber se podem, os ora Réus, opor essa agregação de posses, técnico-juridicamente designada por «acessão da posse», contra os herdeiros da referida D. EE, para efeitos de beneficiar da usucapião, com fundamento não só na sua própria posse, mas também na posse daquela antiga proprietária do referido prédio, a quem os Autores sucederam como herdeiros.


Para cabal decisão das questões equacionadas, torna-se absolutamente necessário relembrar o que consta do douto Acórdão recorrido relativamente às mesmas!


Relativamente à aquisição do direito de propriedade invocado pelos Réus sobre o referido prédio inscrito na matriz sob o nº 3…5 – este prédio é o que unicamente nos importa no presente recurso – lê-se no citado acórdão:


«Em face da matéria de facto provada, parece-nos que, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, não é possivel reconhecer aos Réus o direito de propriedade sobre o aludido imóvel.


Vejamos porquê.

        

    Segundo dispõe o art. 1316º do Código Civil[1], o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.

       Não estamos, no caso, perante uma aquisição por contrato, uma vez que a compra e venda efectuada terá sido meramente verbal e, portanto, será nula por inobservância da forma legalmente prescrita – cfr. art. 220º -, não correspondendo, por isso, a um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade.

       Assim, porque – manifestamente – não se configura nenhum dos outros modos de aquisição de direito (tão pouco foram invocados), os Réus apenas poderiam ter adquirido o direito de propriedade por usucapião.

           

        Como decorre do disposto no art. 1287º, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa-fé ou má-fé).          

A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art. 1297º do C.C., os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo o disposto no art. 1251º, ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real) e não uma detenção ou posse precária.

     Sendo indiscutível que a posse dos Réus é uma posse não titulada e não registada, a usucapião só poderia dar-se ao fim de quinze anos, se a posse fosse de boa-fé, e de vinte anos, se fosse de má-fé (cfr. art. 1296º do CC.

      Mas a verdade é que a posse dos Réus – contabilizada desde que a adquiriram (momento que eles próprios situam em 2001) até à citação efectuada na presente acção (momento em que se interrompe o prazo da usucapião que estava em curso – cfr. art. 323º e 1292º) – não foi exercida pelos períodos supra referidos e, portanto, não é suficiente para a aquisição do direito por usucapião.

    Assim sendo, os Réus apenas poderiam ter adquirido por usucapião por via da acessão da posse – cfr. art. 1256º –, juntando à sua posse a posse da antecessora (a referida EE).

    Dizem, todavia, os Apelantes que tal não é possível, na medida em que a acessão na posse pressupõe uma transmissão da posse por acto formalmente válido, o que aqui não acontece, na medida em que o negócio aqui em causa foi uma compra e venda verbal.

Parece-nos, de facto, que os Réus não podem juntar à sua a posse da antecessora, mas não pelas razões invocadas pelos Apelantes.

           

            Vejamos.


     É verdade que a nossa doutrina e jurisprudência entendiam, maioritariamente, que a acessão da posse pressupunha que o acto translativo da posse correspondesse a uma relação jurídica formalmente válida. Assim o entendiam Pires de Lima e Antunes Varela quando diziam[2] que “…é necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores…Há-de tratar-se, por outro lado, de uma relação jurídica formalmente válida, o que não acontece, por exemplo, na venda de imóveis por mero acordo verbal…”. Idêntica posição era adoptada por Manuel Rodrigues[3], quando dizia que a acessão da posse pressupunha um vínculo jurídico válido entre o novo e o antigo possuidor, dizendo: “Se o acto de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do jus possidendi que aqui é a causa do jus possessionis…”.

           

    Contra esse entendimento pronunciou-se António Menezes Cordeiro[4], dizendo que não tem base na lei, não tem apoio na evolução histórica e iria impedir a usucapião nos casos de falta de título e de boa-fé. Com efeito – diz – embora a acessão na posse pressuponha um acto de transmissão da posse, a verdade é que a transmissão da posse prescinde de qualquer contrato válido, bastando “…a tradição ou o constituto, um e outro ínsitos (eventualmente) num qualquer esquema abstractamente idóneo para transmitir direitos, ainda que, concretamente, o não sejam”. No mesmo sentido se pronuncia Abílio Vassalo de Abreu[5], dizendo, designadamente, que a exigência de uma relação jurídica formalmente válida para efeitos de acessão na posse carece de base legal e concluindo que tal acessão “…depende apenas de uma condição não só necessária, mas também suficiente: a de que o actual possuidor (accipiens) tenha adquirido derivadamente a sua posse do antecessor (tradens) através da entrega ou tradição (traditio) da coisa, em qualquer uma das suas possíveis modalidades; pressupondo, como é óbvio e se frisou a seu tempo, que as posses em jogo são relevantes (ou, como também se diz, «úteis» ou «boas») para efeitos de usucapião”.

      E a verdade é que a nossa jurisprudência mais recente tem vindo a afastar-se da posição tradicional dominante (que exigia um vínculo jurídico válido entre o actual e o anterior possuidor), passando a considerar que a acessão da posse não exige que a transferência da posse se baseie em acto formalmente válido, como resulta, designadamente, dos Acórdãos do STJ de 02/12/2014 (proc. nº 94/07.8TBSCD.C1.S1) e de 29/11/2016 (proc. nº 322/13.0TBTND.C1.S1)[6].

      De facto, a letra da lei não aponta minimamente para a exigência de uma relação jurídica válida; o que a lei exige – no citado art. 1256º - é apenas que alguém suceda na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte e a sucessão na posse – própria da aquisição derivada da posse – não pressupõe a existência de uma relação jurídica válida, podendo efectuar-se – como resulta do disposto no art. 1263º - por mera tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor, independentemente da validade do acto jurídico que tenha estado subjacente à transmissão da posse; a validade do acto jurídico releva para efeitos de transmissão do direito, mas não para efeitos de transmissão da posse, sendo que, conforme afirma Abílio Vassalo de Abreu[7], “…urge não confundir transmissão do direito e transferência da posse, pois esta opera independentemente daquela, de acordo com uma «lógica de circulação» própria do poder factual ou empírico, que caracteriza o instituto possessório, distinta da do poder jurídico (ou tão-só formal-jurídico), que é típico do direito”.


         Mais adiante, a Relação prossegue:


    «Mas, tal como dissemos supra, ainda que a acessão da posse não pressuponha um acto jurídico formalmente válido – razão pela qual a sua invocação não seria, em abstracto, impossibilitada pela circunstância de a transmissão da posse ter na sua base um contrato de compra e venda verbal –, tal acessão não pode ser invocada, no caso sub judice, para efeitos de permitir a aquisição do direito por usucapião por parte dos Réus.

     E não pode porque, na nossa perspectiva, os Réus não poderão servir-se dessa posse para o efeito de invocar, contra o próprio antecessor, a aquisição do direito de propriedade por usucapião, quando o antecessor também reclama esse direito».


Não merece censura o Acórdão recorrido, adiante-se já!


Como é sabido, o instituto da acessão da posse previsto no art. 1256° do CC destina-se a facilitar a aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo, por usucapião.


Com efeito, alguns acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça têm vindo a entender que não se torna necessário que a alienação de um imóvel se faça por escritura pública de compra e venda para que ocorra a transmissão da posse do alienante para o adquirente, como é o caso, v.g., do douto Acórdão de 29-11-2016, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Nuno Cameira, onde assim se lê nos items I e II do seu sumário:

I - A existência ou não de título da posse, bem como a boa ou a má-fé, influem apenas na determinação do prazo necessário à usucapião, mas não impedem a sua verificação.

II - Deste modo, e atenta a sua finalidade, a acessão da posse não exige a validade do título justificativo da transmissão da posse.

       Em todo o caso, temos como mais defensável a orientação ou tese clássica (tradicional) que vinha sendo perfilhada por uma larga maioria da nossa doutrina civilística, através de expoentes de alto gabarito, conhecidos jurisconsultos a quem tanto deve o nosso património juscivilístico, como se pode verificar pelo recenseamento doutamente elaborado pela Relação, no acórdão ora recorrido, e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, por se nos afigurar tecnicamente mais convincente, salvaguardado sempre o maior respeito pelos defensores da tese adversa, que entendem que não importa a validade formal do negócio jurídico translativo do direito de propriedade, para possa haver lugar à transmissão válida da posse do alienante para o adquirente e, consequentemente, a possibilidade legal de aquisição do imóvel por acessão na posse.


      A este respeito, escreveu o saudoso Professor de Lisboa, Doutor José Dias Marques, o seguinte:

«À acessão de posses é indispensável a existência de um vínculo jurídico, por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida ao que actualmente a invoca. Daí, portanto, que a sua transmissão, não possa senão utilizar-se por um acto que validamente a prorrogue.

«Quando se dê o caso que o sujeito haja sido investido na sua posse por um negócio inválido, pode ele invocar a sua própria posse, mas não também a do seu antecessor, por lhe faltar o nexo de transmissão que é indispensável à iden­tidade e continuidade das posses em causa»[8] 


    Esta passagem da obra do eminente Civilista de Lisboa foi também transcrita no Acórdão de 7 de Janeiro de 1976, da Relação do Porto (Relator, Exmº Desembargador Alberto Senra Malgueiro), com o seguinte sumário[9]:

«I - Acessão de posses é a junção da posse própria à dos antecessores, nas transmissões a título singular.


II - A acessão de posses pressupõe e exige a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regu­larmente transmitida ao que actualmente a invoca.


III - Transmitida a posse por mera tradição verbal, acto nulo como modo legítimo de aquisição de propriedade imobiliária, apenas pode ser invocada a posse exercida pes­soalmente e não a posse dos antepossuidores»

    

    Com efeito, a exigência legal de escritura pública ou documento particular autenticado para a compra e venda de bens imóveis (artº 875º do C.Civil) implica que a falta de forma prescrita na lei torne nulo o negócio celebrado, por omissão de uma formalidade ad substantiam e não meramente ad probationem.

     A expressão ad substantiam significa para a substância do acto praticado, é dizer, para a performação da própria figura contratual e não apenas como meio ou instrumento de prova.

    Efectivamente, dispõe o artº 220º do nosso diploma legal substantivo fundamental que «a declaração negocial que careça de forma legal é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei».

      Ora, como é sabido, o que é nulo não produz efeitos jurídicos (quod nullum est, nullum producit effectum) pelo que uma venda nula não pode transmitir qualquer direito, maxime o direito de propriedade, por isso que é um negócio jurídico inválido.


     Assim, claudica desde logo a 1ª conclusão da minuta recursória onde consta que «os RR., ora Recorrentes, compraram à falecida D. EE o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art. 3415°», a menos que o termo verbal «compraram» assuma uma significância puramente fáctica desta palavra na linguagem vulgar.


       O que os Réus efectuaram com a D. EE foi um negócio verbal nulo por falta de forma legal, de aquisição do direito de propriedade sobre o aludido prédio inscrito na matriz sob o artº 3…5º.

        

     É neste sentido que deve ser interpretado o «facto» nº 35º que reza o seguinte:


     Os RR adquiriram a EE o prédio descrito na matriz rústica da freguesia de …, sob o n° 3…5° e pagaram o preço acordado de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos).


      Este “facto” que, afinal, é meramente conclusivo, mostra-se equívoco, pois não vale na nossa ordem jurídica a aquisição da propriedade de um imóvel (aquisição translativa derivada) por simples negócio verbal, como se deixou demonstrado, por força das disposições combinadas dos artºs 875º e 220º, ambos do Código Civil.

     Para que compra e venda válida de imóvel, no sentido técnico-jurídico do termo, tivesse ocorrido, necessário seria que tal negócio não estivesse mortalmente inquinado da nulidade referida, pois a compra e venda tem como objecto a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa vendida, o que, no caso dos imóveis obedece à forma legalmente exigida (escritura pública ou documento particular autenticado) que in casu nunca existiu. 

        

     Não existindo escritura pública nem documento particular autenticado que consubstancie a compra e venda do imóvel, inexiste negócio jurídico válido, mas antes simples entrega verbal ou transferência do imóvel solo consensus tendo, como contrapartida, a entrega da importância convencionada, ainda que indevidamente denominada pelos intervenientes como compra e venda de tal propriedade.


     Quanto à invocada transmissão da posse, há que ter atenção, antes do mais, que embora incidindo sobre a coisa corpórea, a posse é uma realidade normativa como expõe o Professor Rui Ataíde, de Lisboa, no seu estudo «Sobre a Distinção entre a Posse e Detenção»[10]: «em termos prototípicos a posse radica na existência de corpus, conceito normativo construído pela dogmática jurídica que exprime o senhorio fáctico sobre uma coisa corpórea, dispensando-se, porém, qualquer ligação física efectiva entre o sujeito e a coisa, uma vez que aquele poder fáctico pode ser exercido por outrem sob a sua direcção».

     De igual modo se pronuncia o emérito civilista Professor Oliveira Ascensão no seu conhecido manual de Direitos Reais, em que assim escreve relativamente à questão de saber se a posse é um facto ou um direito:

     «A posse é uma realidade jurídica, que tem como pressuposto uma realidade ou situação de facto, mas que na sua existência tem autonomia em relação a ela».[11]


      O ilustre Catedrático da Universidade Clássica de Lisboa, que vimos de citar, assim afirma ainda:

        

     «A demonstração de que pode haver posse dissociada da situação de facto e objecto autónomo de transmissão dá-nos a confirmação decisiva; só uma situação jurídica é compatível com este regime»[12].


      Em abono da citada tese clássica, indicaremos, inter alia, alguns dos seus mais conceituados defensores, tais como, Pires de Lima e Antunes Varela que, no seu Código Civil anotado, escrevem: «há-de tratar-se de uma relação jurídica formalmente válida, o que não acontece, por exemplo, na venda de imóveis por mero acordo verbal».[13]


     Igualmente, L. P. Moitinho de Almeida que, no seu conhecido estudo Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, assim se pronuncia:

     «Importa salientar que a acessão de posses se não dá em todas as circunstâncias, sendo indispensável a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida a quem actualmente a invoca. Daí, portanto, que a sua transmissão não possa utilizar-se senão por um acto que validamente a provoque. Quando se dê o caso de o sujeito ter sido investido na sua posse por um negócio jurídico inválido, pode ele invocar a sua própria posse, mas não também a do seu antecessor, por lhe faltar o nexo de transmissão que é indispensável à identidade e continuidade das posses em causa. É o caso de o antigo possuidor ter transmitido um prédio ao actual possuidor por simples tradição ver­bal, o que o torna nulo por falta de forma»[14].


      Nesta linha orientadora, assim decidiu o aresto da Relação do Porto, de 7-01-1976, supra mencionado: «transmitida a posse por mera tradição verbal, acto nulo como modo legítimo de aquisição de propriedade imobiliária, apenas pode ser invocada a posse exercida pes­soalmente e não a posse dos antepossuidores» (destaque a negrito nosso).

        

   Outras obras doutrinais e decisões jurisprudenciais se poderiam indicar, mas, no caso sub judicio, esta questão – como mais adiante melhor se evidenciará – sendo de inegável interesse, não apresenta relevo fundamental para a decisão do presente recurso e do próprio pleito, pelo que não iremos deter-nos mais demoradamente na sua dissecação.


     No que tange à posição adversa, isto é, à que defende que a acessão da posse não exige a validade do título fundamentador da transmissão da posse (não obviamente da transmissão do direito de propriedade) indicaremos desde logo, o já supra referido Acórdão deste Supremo Tribunal, de 29-11-2016 (Relator, Exmº Cons. Nuno Cameira) e o Acórdão da Relação do Porto, de 26-01-2012 (Relator, o Exmº Desembargador Pinto de Almeida, actualmente Ilustre Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal), assim como a posição do Ilustre Professor Menezes Cordeiro (A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais, pgs. 132/133) e dos Ilustres Professores, José Alberto Vieira (Direitos Reais, Almedina, pg.366, onde o ilustre autor afirma: «a inexistência de título não preclude a acessio possessionis» e Henrique Sousa Antunes (Direitos Reais, 2017), em que este Professor da Universidade Católica Portuguesa também segue esta posição quanto à desnecessidade de validade do título.

 

     Exposta, assim, a panorâmica relativa a esta primeira questão, é tempo de se passar à segunda questão decidenda e supra equacionada, que estando intimamente relacionada com a anterior, todavia com ela não se confunde, e que consiste em saber se podem, os ora Réus, opor essa agregação de posses, técnico-juridicamente designada por «acessão da posse», aos herdeiros da referida D. EE, os ora Autores, para efeitos de beneficiar da usucapião, com fundamento não só na própria posse dos RR, mas somada esta com a da antiga proprietária do referido prédio, a quem os Autores sucederam como herdeiros.


      Com efeito, como ficou dito, a acessão na posse é um instituto, proveniente do direito romano (acessio possessionis) de modo «a permitir ao beneficiário receber o proveito de uma posse alheia em ordem a conseguir o efeito principal da posse, a aquisição do direito correspondente ao seu exercício por usucapião» (Prof. Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, cit, 331)

        

      Tal acontece in casu porque os Réus da presente acção, ora Recorrentes, não tiveram posse do terreno objecto do presente litígio (o prédio inscrito na matriz sob o artº 3415º) pelo tempo necessário para a usucapião.

        

     Para melhor entendimento do que vimos de dizer será, de todo, conveniente transcrever aqui um breve excerto da decisão recorrida:


     Segundo dispõe o art. 1316º do Código Civil[15], o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.

           

      Não estamos, no caso, perante uma aquisição por contrato, uma vez que a compra e venda efectuada terá sido meramente verbal e, portanto, será nula por inobservância da forma legalmente prescrita – cfr. art. 220º -, não correspondendo, por isso, a um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade.

           

       Assim, porque – manifestamente – não se configura nenhum dos outros modos de aquisição de direito (tão pouco foram invocados), os Réus apenas poderiam ter adquirido o direito de propriedade por usucapião.

           

     Como decorre do disposto no art. 1287º, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa-fé ou má-fé).          

        A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art. 1297º do C.C., os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo o disposto no art. 1251º, ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real) e não uma detenção ou posse precária.

      Sendo indiscutível que a posse dos Réus é uma posse não titulada e não registada, a usucapião só poderia dar-se ao fim de quinze anos, se a posse fosse de boa-fé, e de vinte anos, se fosse de má-fé (cfr. art. 1296º do CC.

           

      Mas a verdade é que a posse dos Réus – contabilizada desde que a adquiriram (momento que eles próprios situam em 2001) até à citação efectuada na presente acção (momento em que se interrompe o prazo da usucapião que estava em curso – cfr. art. 323º e 1292º) – não foi exercida pelos períodos supra referidos e, portanto, não é suficiente para a aquisição do direito por usucapião.

           

     Assim sendo, os Réus apenas poderiam ter adquirido por usucapião por via da acessão da posse – cfr. art. 1256º –, juntando à sua posse a posse da antecessora (a referida EE)».


     Por isso, pretendem os Réus CC e Mulher, ora Recorrentes, lançar mão da acessão na posse, somando à sua própria posse, a posse daquela que foi a anterior dona de tal prédio, a ora falecida EE.


     Tal, porém, não é admissível no nosso ordenamento jurídico como bem salientam conceituados civilistas.

        

     Assim, desde logo, o Professor José Alberto Vieira expressamente afirma:

  «A acessão da posse está centrada na usucapião, permitindo ao possuidor beneficiar do tempo de posse dos seus antecessores para o cômputo do prazo de posse respectivo. Este instituto tem, porém, um limite natural de aplicação, que nunca vem explicitado pela doutrina: a acessão não pode ocorrer mediante a junção da posse daquele contra o qual a usucapião funciona.

    Na sua origem, a accessio possessionis permitia a um comprador a non domino invocar a usucapião contra o proprietário. Quer dizer, o possuidor actual podia juntar o seu tempo de posse ao do seu transmitente invocando a usucapião contra o proprietário.

      No entanto, admitindo-se a acessão sem o limite indicado, vai-se permitir usucapião actue mesmo em prejuízo daquele que transmitiu a posse ao possuidor actual, abrindo-se a porta a um intolerável aproveitamento do tempo de posse do titular do direito real que vai ser prejudicado com a invocada da usucapião.

      Assim, o possuidor actual apenas poderá recorrer à acessão da posse do seu transmitente caso a usucapião não venha a funcionar contra ele» (J.A. Vieira, Direitos Reais, cit. pg. 367).


     Também neste mesmo sentido, escreve o Prof. Henrique S. Antunes:

         «O adquirente não pode invocar a acessão da posse contra o transmitente.   Suponhamos que B ameaçou A da prática de actos de violência sobre ele ou sobre a sua família se este não lhe vendesse certo terreno de que era proprietário e se, após a venda, reagisse judicialmente a esse acto. Imaginemos agora que, tendo a venda ocorrido, cinco anos mais tarde, B falece. Cessa a violência, circunstância que impedia a aquisição por usucapião.    Os sucessores possuem por mais seis meses e, agora, para beneficiarem do regime da usucapião pretendem juntar à sua a posse de A. Essa faculdade está, naturalmente, vedada» (Henrique S. Antunes, op. cit, pg. 335).


     Finalmente, também o Acórdão da Relação do Porto, de 26-01-2012 (doutamente relatado pelo Exmº Desembargador Pinto de Almeida, hoje Ilustre Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal), supra citado, decidiu neste sentido, como se colhe do respectivo texto, especialmente da parte final, onde se considerou que «não parece aceitável que a autora possa valer-se da posse da 1ª Ré contra esta mesma Ré», rematando com as seguintes palavras lapidares: «portanto, mesmo na tese defendida pela Recorrente, a posse invocada por esta não poderia acrescer à posse da anterior possuidora, a 1ª ré, para efeito de reconhecimento, contra esta, da pretensão exercida nesta acção, de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis por usucapião».


      No caso sub judicio, os Réus pretendem fazer valer a faculdade de acessão na posse contra os herdeiros da falecida EE que, portanto, ocupam a mesma posição que pertencia à autora da herança de cujo acervo faz parte o prédio em referência.


    Há, pois, que reconhecer razão ao douto Acórdão, ora recorrido, quando tece as seguintes considerações sobre a apontada limitação à faculdade da acessão da posse:


      Aliás, a admitir-se que a acessão da posse pudesse funcionar nessas situações, tornar-se-iam praticamente inúteis as exigências formais a que a lei submete os negócios jurídicos referentes a imóveis, porquanto, no dia seguinte à transmissão da posse subsequente a um contrato de compra e venda verbal – nulo por inobservância da forma legalmente prescrita – o adquirente poderia, na maioria dos casos, invocar a posse do seu antecessor – mesmo contra este – para efeitos de consumar, na sua esfera jurídica, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade, inviabilizando e impedindo a possibilidade de o transmitente invocar a nulidade do negócio – por vícios de natureza formal ou de outra natureza – porquanto a aquisição do direito já se havia consumado na esfera do adquirente.


     Parece-nos, portanto, que, nessas situações, não poderá funcionar a acessão da posse e, portanto, é no âmbito da relação jurídica que se estabeleceu entre o transmitente da posse e o respectivo adquirente – atendendo à sua validade, eficácia, efeitos e vicissitudes várias – que se encontrará a resposta à questão de saber se, além da posse, também foi transferido o respectivo direito.

      Ora, aplicando essas considerações ao caso sub judice, parece-nos claro que não pode ser reconhecido aos Réus o direito de propriedade sobre o aludido prédio.


       Sabemos que o prédio aqui em questão era propriedade de EE, uma vez que o havia adquirido por usucapião, como decorre claramente dos pontos 2 a 5 da matéria de facto provada e sabemos que a mesma vendeu esse prédio ao Réu, o que terá feito verbalmente (como alegam os próprios Réus) uma vez que não foi alegada a existência de qualquer documento que tivesse formalizado esse negócio. É seguro concluir – em face da matéria de provada – que, por efeito desse negócio, a referida EE transmitiu ao Réu a posse do imóvel em questão – mediante tradição material ou simbólica nos termos do art. 1263º, al. b) – e que, a partir de então, o Réu passou a exercer a posse correspondente ao direito de propriedade. Mas, tal como referimos, a posse que o Réu exerceu a partir desse momento, é, só por si, insuficiente para a aquisição, por usucapião, do respectivo direito de propriedade, porquanto não foi exercida pelo tempo exigido por lei. E, como decorre das considerações supra efectuadas, o Réu não pode invocar a posse da sua antecessora para, por via da acessão da posse, completar o prazo necessário para consumar a aquisição daquele direito por usucapião, na medida em que, ao fazê-lo, estaria a invocar contra quem lhe transmitiu a posse (sendo que, para estes efeitos, os herdeiros ocupam a mesma posição que pertencia ao autor da herança) a posse que por este foi exercida para o efeito de fazer valer, perante o próprio transmitente, a aquisição do direito de propriedade, o que, como vimos, não é admissível.


     Assim, tal como referimos, é no âmbito da relação jurídica que se estabeleceu entre o transmitente da posse (a referida EE) e o respectivo adquirente (o Réu) que se encontrará a resposta à questão de saber se, além da posse, também foi transferido o respectivo direito.

     E a verdade é que não foi, já que, apesar de lhe ter transmitido a posse (como vimos), a referida EE não transmitiu ao Réu o respectivo direito de propriedade, na medida em que o acto pelo qual se pretendeu efectuar essa transferência, é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita e, como tal, não tinha idoneidade para operar a transferência daquele direito.

Significa isso, portanto, que esse direito de propriedade não saiu da esfera patrimonial da referida EE e, portanto, continua a integrar o respectivo acervo hereditário.

      O Réu adquiriu, efectivamente, a posse, mas não adquiriu o direito de propriedade e, como tal, não lhe poderá ser reconhecido esse direito».

     Dizendo mais concretamente, o Réu adquiriu a posse do prédio, mas tal posse, no caso sub judicio, não acresce à posse da antepossuidora em termos de acessão de posse, pelas razões expostas.


*****


   São despiciendas mais considerações para se concluir pela improcedência do presente recurso, por força da claudicação das conclusões relevantes da minuta recursória em face de quanto longamente exposto se deixou.


DECISÃO


Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista, confirmando-se a decisão recorrida com, também, a presente fundamentação.


Custas pelos Recorrentes.


Processado e revisto pelo Relator.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Fevereiro de 2018


Álvaro Rodrigues (Relator)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

______


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Revista e Actualizada (Reimpressão), pág. 14.
[3] A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 1981, págs. 252 e 253.
[4] A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed. Actualizada, págs. 131 a 137.
[5] A Necessidade de uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão da Posse (art.º 1256º do Código Civil) ”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Vol. IV.
[6] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Ob. cit., pág. 1299.
[8] DIAS MARQUES, Prescrição Aquisitiva, II, pg.96.
[9] Col. Jur, 1976, I, pg. 68.
[10] RUI ATAÍDE, Sobre a Distinção Entre Posse e Detenção, separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano 75, I/II – Lisboa, Jan./Jun. 2015, pg. 83
[11] OLIVEIRA ASCENSÃO, DIREITO CIVIL/REAIS, 5ª edição, Coimbra Editora, pg. 80.
[12] Idem, ibidem
[13] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, III, 2ª ed. anotação ao artº 1256º.
[14] [14] L.P. MOITINHO DE ALMEIDA, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 5ª edição, Coimbra Editora, pg. 77
[15] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.