Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11359/20.3T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
DETENÇÃO ILEGAL
PRESCRIÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
PRISÃO ILEGAL
ABSOLVIÇÃO CRIME
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional com fundamento em detenção ilegal e absolvição do arguido segue o regime especial aplicável aos casos de privação injustificada da liberdade constante dos arts. 225.º e 226.º do CPP.

II - Tal é reconhecido pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31-12, e impede a aplicação do regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, determinado pelo art.º 12.º da mesma lei, nomeadamente em matéria de prescrição do direito à indemnização, como ocorre com os demais danos ilicitamente causados pela administração da justiça.

Decisão Texto Integral:

Recorrente: AA, autor

Recorrido: Estado Português, réu


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I – Relatório

I.1 – relatório

AA intentou recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 11 de Maio de 2023 que confirmou a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... Oeste que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida que julgara improcedente a acção, e em consequência, absolveu o réu do pedido.

O recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I. Deve ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido nos termos do artº 615 nº 1 alínea d) do C.P.P, pois que no mesmo nenhuma pronúncia efectiva clara, existe sobre a verdadeira autonomia e regime, resultante do disposto no artº 225 do C.P.P, abdicando sempre da aplicação ao caso do disposto no nº 2 do artº 13º da Lei 67/2007, face à dispensa, constante da 1ª parte do nº 1 do mesmo artigo.

II. Dão-se aqui por reproduzidas na integra as alegações de recurso para o tribunal da relação.

III. Refere o Acórdão recorrido, que no caso dos autos, estão em causa os factos dados como provados nos pontos 8 a 13, 16 e 20 a 25, o que aliás não se aceita, por si só, pois os factos alegados e provados nos autos, são muito mais, desde logo os sublinhados nas Alegações, resultantes do requerimento de 17/12/2021 – Refª. ......36 e salientados de fls 7 a 23 do mesmo corpo alegatório, o que aqui se alega para os devidos efeitos.

IV. Estão em causa assim os danos ilicitamente provocados ao A. recorrente, pela administração da justiça, e resultantes de notório erro judiciário.

V. O Direito indemnizatório reclamado não se mostra prescrito, pois o início do seu tempo reclamatório, face aos autos, iniciou-se a 10/09/2019, sendo assim tempestiva a acção apresentada em 03/09/2020, nos termos do disposto no artº 226 nº1 do C.P.P

VI. É este o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa no processo Nº 955/09.0TBTVD.L1.1, proferido em 24/12/2010, que contrariamente ao consignado no Acórdão recorrido, aborda situação idêntica à dos autos. É que,

VII. Entende a doutrina, que a vigência do exercício do direito, é medida por um prazo curto de um ano, mas que começa a correr desde a decisão definitiva do respectivo processo penal.

VIII. Donde, estando no caso dos autos, em causa uma detenção, eventualmente formalmente legal, mostra-se totalmente injustificada como os autos o vieram demonstrar na absolvição do A. recorrente, pelo que só a partir do trânsito em julgado da decisão penal, começa a correr o prazo do exercício do direito previsto no artº 226 e assim a partir de 10-09-2019.

IX. É que, o Acórdão recorrido mostra-se em manifesta contradição com a interpretação e doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal, inicialmente invocado nas alegações de recurso Proc. nº 1963/09.6TVPRT.P1.S1 da 6ª secção deste tribunal e proferido em 05-11-2013, pelo que existe fundamento para instauração do presente RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL nos termos do disposto no artº 672 nº1 alínea c) do C.P.C. E que,

X. É assim claro, que o regime do artº 225 do C.P.P constitui um regime de direito privado, autónomo não sujeito a prévia revogação da decisão danosa, e contrariamente ao decidido no Acórdão impugnado.

XI. De verdade, o Acórdão recorrido, não responde sequer, fundamentadamente, a esta afirmação e questão, contendo em si verdadeira nulidade intrínseca, apesar da sua própria omissão de pronúncia já alegada neste recurso.

XII. O tribunal cível tem competência e suficiência, e autonomia para neste processo e acção avaliar da existência dos pressupostos da ilegalidade da privação da liberdade, mesmo na detenção, em função da existência de erro grosseiro na avaliação dos pressupostos, como resulta de todo o processo crime, dos factos alegados na acção e no recurso, - sem necessidade da existência de decisão prévia de revogação da decisão danosa, como o impõe o Acórdão e a sentença impugnada.

XIII. Quer dizer-se que se vai apreciar uma questão, que é também matéria de processo penal, nesta acção tempestivamente deduzida, como é o presente processo, mas que é tramitada pelo processo civil, à luz da suficiência do mesmo Código e Processo Civil, conforme e até similarmente acontece com o disposto nos artºs 7 nº 1 do C.P.P e artº 38 nº 1 do C.P.T.A

XIV. É que o disposto no artº 13 nº 2 do RRCEE, é apenas de conjugar com a segunda parte do nº 1 deste artigo, mas nunca com primeira como defende o Acórdão recorrido.

XV. O disposto no artigo 225º do C.P.P., reconhece que tem direito a ser indemnizado pelo Estado, quem se vir injustificadamente detido, e privado da sua liberdade, conforme o impõe constitucionalmente o disposto no artigo 22º do C.R.P., e quando também, a privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependeu, e ou se comprove que o arguido não foi o agente do crime ou atuou justificadamente, como é o caso dos autos.

XVI. O A. recorrente, viu-se privado de forma injustificada da sua liberdade, por erro notório e grosseiro, reconhecido por qualquer intérprete mediamente colocado, não tendo sido agente do crime, que levou à sua detenção, até decorrente da sua absolvição final.

XVII. E não se aplica, conforme decidiu o Acórdão Fundamento, ao presente caso o disposto no artigo 13º, nº 2 do RRCEE.

XVIII. Os fundamentos do Acórdão recorrido, encontra-se em contradição com o do Acórdão Fundamento, como resulta do seu sumário, e dos seus fundamentos.

XIX. E não se diga que a situação não é similar e subsumível à situação deste Acórdão porque o é.

XX. No caso a situação constitui-se com o trânsito em julgado a decisão final ou equivalente, tempestivamente exercida – prazo de caducidade do direito, sendo a sua prescrição e, assim, extinção - só posteriormente verificável, quadro factual e temporal que não se verifica, apesar do constante do Acórdão recorrido. É que,

XXI. A situação do prescrito no artigo 225º do C.P.P. aplica-se quer ao caso de prisão, quer a detenção ilegal ou injustificada, conforme previsto nas suas alíneas a), b) e c).

XXII. É claro assim como resulta do Acórdão Fundamento, em contradição com o constante do Acórdão recorrido, a não obrigatoriedade da revogação da decisão danosa, mas sim a sua averiguação, no contexto da causa de pedir constante da petição inicial deste processo, pelo tribunal, de acordo com a sua competência e suficiência de ação em processo civil.

XXIII. De verdade, é similar terminar um procedimento com a sentença-Acórdão do processo de “Habeas Corpus” ou com a sentença de absolvição do processo penal no caso do A. recorrente, e para os efeitos do previsto no artigo 226º, nº 1 do C.P.P..

XXIV. Nos autos demonstra-se como decorre dos factos alegados, dos documentos juntos, do processo crime anexo, que a privação da liberdade do recorrente, para além do ato ilícito da Administração da Justiça, se fica a dever a “erro judiciário”, grosseiro, na apreciação do pressuposto de facto.

XXV. A similitude da situação é clara, estando em causa em um e outro Acórdão, os efeitos do disposto nos artigos 225º e 226º do C.P.C., e inaplicabilidade do disposto no artigo 13º, nº 2 do R.R.C.E.E., junto do disposto da 1ª parte do mesmo artigo.

XXVI. O entendimento do Acórdão recorrido mostra-se em contradição com o entendimento do Acórdão Fundamento, devendo ser substituído por outro que declare a procedência do Recurso, com as consequências legais, e que assim mande prosseguir os autos e os mande baixar do Tribunal da Relação, para conhecimento dos mais factos alegados não conhecidos, e se necessário, julgando-se procedente a primeira Apelação, após ampliação da matéria de facto conforme requerido, mandando-se também os autos baixar à primeira instância, para devido julgamento final, se tal se mostrar necessário, face à competência de cada uma das instâncias, considerando a matéria alegada e o pedido dos autos.

XXVII. Devem as contradições enunciadas, serem declaradas, nos precisos termos do disposto no artº 615 nº 1 alínea c) do C.P.C e artº 674 nº 1 alínea c) ambos do C.P.C.

XXVIII. E assim caso tal nulidade do acórdão, não seja conhecida nesta instância, devem os autos ser remetidos a esta relação a fim de o mesmo tribunal se pronunciar sobre a mesma, caso tal se mostre necessário e devido enquadramento.

Ainda assim e sempre,

29. As questões em apreço são de direito, devendo ser conhecidas nestes autos e instância e por este tribunal.

30. Assim o aliás douto acórdão violou além do mais o disposto nos artº 615 do C.P.C alínea d) e os artigos 225 nº1 e 226 nº 1 do CP.P e o artigo 13 nº 1 e 2 da Lei 67/2007.

Termos em que face ao exposto, admitido o presente recurso, deve declarar-se a contradição do acórdão de que se recorre com o acórdão invocado já decidido em 05-11-2013 – Proc. nº 1963/09.6TVPRT.P1.S1. deste Supremo Tribunal de Justiça, com trânsito em julgado, e ordenando-se a prolação de novo acórdão, que julgue procedente o recurso instaurado, ou declare a nulidade do acórdão recorrido na 2ª instância, por oposição entre os fundamentos e a decisão, e ainda falta de pronúncia, tudo com as legais consequências, e se mande baixar os autos à 2ª instância para devida pronúncia sobre a matéria alegada e se determine o prosseguimento dos autos, na 1ª instância para necessário julgamento final caso tal se mostre necessário, pois assim se mostra ser de JUSTIÇA e de DIREITO

O recorrido, do Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I. No presente recurso argui o recorrente a nulidade do Acórdão recorrido nos termos do artº 615 nº 1 alínea d) do C.P.C, em virtude de entender ocorrer omissão de pronuncia – argumentando que nenhuma pronúncia efectiva clara, existe sobre a verdadeira autonomia e regime, resultante do disposto no artº 225 do C.P.P, abdicando sempre da aplicação ao caso do disposto no nº 2 do artº 13º da Lei 67/2007, face à dispensa, constante da 1ª parte do nº 1 do mesmo artigo.

II. São duas as causas de pedir nos presentes autos, concretamente:

a. A actuação dos agentes do Estado, no caso os inspectores da Policia judiciária e da Magistrada do Ministério Publico, actuação esta subsumível ao artigo 12º da lei n.º 67/2007 de 31.12 relativamente à qual foi em sede sentença de primeira instância reconhecida a sua prescrição;

b. A analise da verificação da ocorrência de erro judiciário por verificação de detenção ilegal subsumível ao artigo 13 da lei 67/2007 de 31.12 e artigo 225 do CPP.

III. Em termos processuais verifica-se o vicio processual de omissão de pronuncia quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões suscitadas de que devia conhecer, nomeadamente aquelas que são de conhecimento oficioso.

IV. Ao Tribunal da Relação, em sede recursiva, compete conhecer de todas as questões jurídicas relevantes para o objecto dos autos sobre recurso suscitadas, conforme disposto nas disposições conjugadas dos artigos 608 n.º 2, 635 n.º 4, 639 n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

V. Ora conforme se constata do acórdão ora recorrido este pronunciou-se sobre o objeto que lhe estava submetido, a saber:

a. Da prescrição do direito indemnizatório quanto à actuação da Polícia Judiciária e do Ministério Publico;

b. Da necessidade de prévia revogação da decisão judicial danosa;

c. Da detenção ilegal em razão da decisão judicial proferida com erro grosseiro; (vide pag 7 do acórdão recorrido)

VI. Conforme se constata pelo teor de pag. 29 a 30 da decisão ora recorrida o Tribunal da Relação apreciou a primeira questão, tendo confirmado a decisão recorrida;

VII. Na conclusão 6 – deixa o recorrente relativamente à questão da ocorrência do prazo prescricional uma referência ao Acórdão proferido no processo 955/09.0tbtvd.L1.1 pelo Tribunal da Relação de Lisboa relativamente ao qual invoca que a solução então encontrada pelo Tribunal da Relação estaria em contradição com aquela em causa nestes autos: fá-lo sem arguir qualquer identidade de questão nem discordância concreta como exigido pela previsão do artigo 672 n.º 1 al. d) do CPP.

VIII. Relativamente à segunda e terceira questões, que o acórdão recorrido identifica a pag. 30 como “no que respeita à responsabilidade por erro judiciário” está abordada a pag 30 a 33 da decisão recorrida.

IX. Na sua arrumação teleológica o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, efectuou uma apresentação jurídica – dogmática das questões suscitadas, concretizando de seguida cada uma das questões colocadas pelo recorrente;

X. Concluiu pela necessidade de relativamente às situações enquadráveis no âmbito da previsão do artigo 13º da lei n.º 67/2007, de 31.12 – se dever entender que “o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis”, com argumentação jurídica adequada à questão.

XI. Referencia ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.2013, proferido no processo n.º 1963/09.6TVPRT.P1.S1, invocado pelo recorrente nas suas alegações de recurso da decisão de primeira instância, concluindo que a situação abordada não apresenta similitude com aquela em causa no recurso em apreciação.

XII. O tribunal recorrido pronunciou-se sobre todas as questões objecto do recurso, o que ocorre é que o ora recorrente não concorda com a solução jurídica apresentada, porém tal discordância não constitui uma omissão de pronuncia nos termos previstos no artº 615 nº 1 alínea d) do C.P.C.

XIII. Consequentemente e porque não se verifica a invocada nulidade do acórdão recorrido não merece neste particular o recurso provimento.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista excepcional foi admitido por acórdão da Formação a que se refere o art.º 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil proferido em 22 de Novembro de 2023.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

I. Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

II. Insuficiência da matéria de facto.

III. Prescrição do direito indemnizatório reclamado.


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

I. O autor AA é advogado de profissão e exerce a respectiva actividade na ex-comarca de ..., hoje comarca de ..., onde reside, e onde mantém o seu escritório profissional;

II. Em 12.01.2012 foi instaurado nos serviços do Ministério Público de ... o processo de inquérito n.º 257/12.4..., na sequência de uma queixa-crime apresentada por BB contra CC e incertos (fls. 2 e ss. do processo-crime);

III. Nesse processo esteve em causa a investigação de factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes de extorsão agravada e rapto, na forma tentada, p.p., respectivamente, pelos arts. 223.º n.ºs 1 e 3, a), com referência aos arts. 204.º, n.º 1, al. a), e 161.º, n.º 1, 22.º e 23.º, do CP (fls. 23 e ss. do processo-crime);

IV. O autor patrocinou nesse processo o queixoso BB, residente em Av. ... n.º 1438 -Loja 4, ... ... (fls. 6 do processo-crime);

V. No âmbito da investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária foram efectuadas várias diligências, nomeadamente, intercepções telefónicas, vigilâncias, inquirição de testemunhas, para além de diversas inquirições do queixoso (cfr. fase de inquérito do processo-crime);

VI. Nas declarações prestadas no dia 12.02.2012, o queixoso confirmou os factos denunciados, relatando os acontecimentos ocorridos nos dias 26.12.2011 e 13.01.2012, quando foi abordado, ameaçado e agredido pelo denunciado CC e DD (fls. 20 e ss. e 32 e ss. e do processo-crime);

VII. Em 14.03.3012, o Ministério Público requereu a realização de intercepções telefónicas, nos termos dos art.º 187.º, n.º 1, al. a), e n.º 4, al. a), 189.º, n.º 2, 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal (CPP), as quais foram ordenadas por despacho da M.ª Juiz de Instrução Criminal proferido no dia 21.03.2012 (fls. 161 e ss. e 169 do processo-crime);

VIII. No dia 10.04.2012 o queixoso foi de novo inquirido, referindo ter aceite a sugestão do seu advogado, o ora autor, de efectuar um “acordo” de pagamento com os seus extorsores, no valor de €100,000,00, por forma a cessar as ameaças e tentativas de rapto, sendo essa quantia paga de forma faseada (fls. 281 e ss. do processo-crime);

IX. Mais referiu ter pago até esse momento a quantia de € 50.000,00, em duas vezes, que entregou ao ora autor, tendo este ficado encarregue de, posteriormente, fazer a entrega dessa quantia a EE, filho do suspeito CC (fls. 282 do processo-crime);

X. Referiu ainda não ter qualquer dívida para com CC ou família deste, tendo aceite o acordo como forma de fazer cessar as ameaças e tentativa de rapto de que era alvo (fls. 283 do processo-crime);

XI. Em 16.04.2012, a Polícia Judiciária elabora um relatório da investigação onde dá conta das diligências efectuadas e refere:

Conforme resulta do teor das intercepções telefónicas supra indicadas constata-se que a actuação do Dr.º AA, enquanto advogado de BB, vítima dos factos, é bastante duvidosa, transparecendo uma cumplicidade suspeita com os autores dos factos, nomeadamente CC e EE, filho deste (…)

Tanto mais que o Dr.º AA afirma ter na sua posse um documento (Produto n.º 88, assinado por CC, EE e FF, no qual estes assumem a inexistência de qualquer dívida e que só os prejudicaria perante a PJ (…)

Só posteriormente é que o Dr.º AA vai entregando, de forma faseada, quer através de cheque em dinheiro, montantes monetários a EE, ficando com parte do dinheiro extorquido na sua posse, tal como se verifica no decorrer das intercepções telefónicas (Alvo 50553M) (…)

Mais grave ainda, é quando o Dr.º AA, refere que vai falar com EE e não com CC, em virtude deste poder ter o telefone sob escuta, colocando, em causa a investigação e a resolução de um crime do qual o seu constituinte foi e continua ser vítima, vindo aqui ao de cima, eventualmente interesses obscuros por parte do Dr.º AA (…)

Mais adiante e, após EE ter-se deslocado ao escritório do Dr.º AA , seu primo, contacta telefonicamente o pai, CC, a quem diz para não ligar mais ao primo, (Dr.º AA) que depois falam, referindo, no entanto que é por causa de um problema de ..., do GG, numa clara alusão a PJ (…) Posteriormente, em nova conversa entre CC e EE, este último informa o pai que vai ao Banco depositar o cheque do Dr.º AA, referente às contas do avô, retorquindo CC que no sábado iria estar com o Dr.º AA pois este tem lá mais cheques para lhe entregar.” (fls. 351 e ss., em especial 368 e ss. do processo-crime);

12. Apresentados os autos ao Ministério Público, por despacho de 16.04.2012, foi requerida a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito relativamente aos vários suspeitos, incluindo o autor, ao abrigo do disposto no art. 257.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP (fls. 420 e ss. do processo-crime);

13. Nesse despacho e no que respeita ao autor, refere-se:

Finalmente, quanto a AA, não obstante o mesmo ser advogado da vítima, certo é que o mesmo se encontra a servir, se não mais, pelo menos de intermediário num processo de extorsão ao seu próprio constituinte, bem como decorre das intercepções telefónicas realizadas nestes autos e dos respectivos excertos que terá sido através deste que os imputados autores dos factos tiveram conhecimento da existência de tais intercepções, assim comprometendo o sucesso da investigação e, dessa forma revelando um perigo de perturbação do presente inquérito”. (fls. 422 do processo-crime);

14. Por despacho da M.ª Juiz de Instrução Criminal de 17.04.2012 foi ordenada a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito relativamente ao autor, ao abrigo do disposto no art. 257.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP (fls. 429 e ss. do processo-crime);

15. É do seguinte teor esse despacho:

Relativamente ao Dr.º AA, advogado, existem fortes indícios nos autos de que o mesmo se tem comunicado com os demais suspeitos, interferindo directamente no decurso do inquérito, nomeadamente no que respeita à aquisição e conservação da prova.

Assim sendo, mostra-se relevante para a investigação e para a descoberta da verdade, a sua presença neste tribunal, razão pela qual se determina também a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, relativamente a este suspeito, ao abrigo do disposto no art. 257.º, n.º 1, al. b), do CPP.” (fls. 431 do processo-crime);

16. Os mandados de detenção foram emitidos em 18.04.2012 e cumpridos pela Polícia Judiciária que procedeu à detenção do autor, pelas 14h15 do dia 21.04.2012 e à constituição de arguido e prestação de TIR (fls. 444, 615 e 615 vs., 616 e 617 do processo-crime);

17. Por despacho proferido em 23.04.2012, o Ministério Público validou a constituição de arguido do autor, ao abrigo do disposto no art. 58.º do CPP e requereu a apresentação do mesmo para primeiro interrogatório judicial, nos termos do art. 141.º do CPP (fls. 646 e ss. do processo-crime);

18. Nesse despacho o Ministério Público faz a descrição da factualidade apurada, a sua subsunção jurídico-penal à prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art. 370.º, n.º 1, do CP, apresenta os elementos probatórios que a sustentam, e propõe medida de coacção para além da já aplicada de TIR (fls. 647 a 651 e ss. do processo-crime);

19. Aí se refere, no que respeita ao autor:

Em momento não concretamente apurado, mas próximo desta data, o arguido AA, advogado de profissão e familiar dos arguidos CC e EE, foi mandatado pelo ofendido para apresentar uma queixa crime pelos factos ocorridos.

Ao ter conhecimento da referida factualidade, AA contactou com CC, tendo ambos acordado que aquele mediaria os contactos entre as partes envolvidas, convencendo o ofendido a entregar quantias monetárias aos arguidos através do seu mandatário, ficando AA com parte daquelas que faria suas (…)

Não obstante, os arguidos CC, EE, DD e AA, mantiveram os seus intentos de obter quantias monetárias do ofendido, que sabiam não lhes serem devidas.

Assim, AA convenceu o ofendido de que deveria proceder a entregas de dinheiro àqueles, contra entrega de declarações escritas assumindo que as mesmas não eram devidas, a que BB assentiu, por temer pela sua vida e integridade física e pelas dos seus familiares.

Neste seguimento, no dia 21.01.2012, o arguido EE, na presença de AA e de BB emitiu uma declaração nos termos da qual aceitava o pagamento de € 107.500,00, a fim de evitar qualquer processo judicial. (…)

Perante a subscrição de tais declarações e visando a todo o custo preservar a sua vida e integridade física, BB acordou então entregar a quantia de € 107.000,00 àqueles, que, posteriormente repartiriam entre si e DD, mediante pagamentos faseados e por intermédio do seu mandatário, o arguido AA.

Assim e por modo e em datas não concretamente apuradas, o ofendido entregou a AA a quantia de € 50.000,00, tendo este entregue a EE e EE a quantia de € 35.000,00, retendo o remanescente para si próprio”. (fls. 648 a 650 do processo-crime);

20. O autor foi presente para primeiro interrogatório judicial nesse dia 23.04.2012 (fls. 653 e ss. do processo-crime);

21. Terminado o interrogatório judicial, foi proferido, nesse mesmo dia, despacho pela M.ª Juiz de Instrução Criminal que validou a detenção do autor ao abrigo do disposto no art. 257.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP e considerou cumprido o prazo de apresentação previsto nos arts. 141.º e 254.º, n.º 1, al. a), do CPP (fls. 661 e 662 do processo-crime);

22. No mesmo despacho foi acolhida a promoção do Ministério Público, no que se refere à factualidade apurada e respectiva subsunção jurídica, considerando-se o autor indiciado pela prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art. 370.º, n.º 1, do CP;

23. Tendo sido aplicada ao autor a medida de coacção de proibição de contactar com o ofendido, implicando tal necessariamente que deixe de representar profissional o ofendido no processo (fls. 662 do processo-crime);

24. Por requerimento de 11.05.2012, o autor, através do seu mandatário requereu autorização para consulta dos autos, nos termos do art. 90.º, n.º 1, do CPP, o que foi deferido por despacho do Ministério Público de 15.05.2012 (fls. 780 e ss. do processo-crime);

25. O autor, então arguido, não interpôs recurso do despacho que validou a detenção, o qual transitou em julgado, tendo, em 15.05.2012, interposto recurso do despacho anterior proferido em 17.04.2012 que ordenou a sua detenção, através da emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito. (fls. 790 e ss. do processo-crime);

26. Por decisão singular da Desembargadora-Relatora da Relação de Lisboa proferida em 20.09.2013, foi rejeitado por manifesta improcedência o recurso apresentado pelo arguido;

27. Por acórdão de 06.11.2013 da Relação de Lisboa foi rejeitada a reclamação para a conferência apresentada pelo arguido dessa decisão singular;

28. Entretanto, em 05.06.2013, o Ministério Público deduziu acusação contra o autor, imputando-lhe a prática de dois crimes de coacção, p.p. pelo art. 154.º, n.º 2, do CP, e um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art. 370.º, n.º 1 e 2, do mesmo Código (fls. 1429 e ss. do processo-crime);

29. Em 02.09.2013, o autor requereu a abertura de instrução (fls. 1457 e ss. do processo-crime);

30. Em 18.02.2014, procedeu-se a debate instrutório, findo o qual foi decidido não pronunciar o mesmo pelos crimes que lhe vinham imputados. (fls. 1572 e ss. do processo-crime);

31. O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão (fls. 1578 e ss. do processo-crime);

32. Por acórdão do tribunal da Relação de Lisboa proferido em 06-11-2014, foi revogada a decisão instrutória, pronunciando-se o autor pela prática dos crimes pelos quais vinha acusado aí se referindo:

De facto, olhando para estes elementos temos de concluir que se tratam de facto, de indícios constantes dos autos quanto aos crimes imputados ao arguido, ora recorrido, e relativamente aos quais, o Tribunal recorrido não tomou em consideração a actividade de apreciação crítica exigível. (…)

Ora, sendo este advogado de profissão com larga experiência profissional, ao ter praticado tais actos, não podia deixar de querer beneficiar EE e CC, cujos interesses eram contrapostos com os da causa que lhe estava confiada, facto que decorre das regras de experiência comum.” (fls. 1655 e ss., em especial, fls. 1661 e 1662, do processo-crime);

33. Realizado o julgamento, por sentença proferida em 01.09.2017, foi o autor absolvido da prática do crime de prevaricação de advogado e condenado como autor de dois crimes de coacção, p.p. pelo art. 154.º, n.º 1, do CP, na pena de 100 dias de multa, por cada crime, em cúmulo jurídico, na pena única de 125 dias de multa à taxa diária de € 30,00 (fls. 1963 e ss. do processo-crime);

34. Por acórdão proferido em 12.02.2019, pela Relação de Lisboa foi negado o recurso interposto pelo ora autor dessa sentença e confirmada integralmente a decisão recorrida (fls. 2080 e ss. do processo-crime);

35. Apresentada reclamação desse acórdão, por decisão da Relação de Lisboa de 25.07.2019, foram indeferidas as nulidades arguidas pelo autor, aí arguido (fls. 2116 e ss. do processo-crime).


***

II – Fundamentação

I. Omissão de pronúncia

O recorrente considera que o acórdão recorrido está ferido de nulidade por ter omitido pronúncia sobre a verdadeira autonomia e regime, resultante do disposto no artº 225 do C.P.P, abdicando sempre da aplicação ao caso do disposto no nº 2 do artº 13º da Lei 67/2007, face à dispensa, constante da 1ª parte do nº 1 do mesmo artigo.

Como consta do acórdão recorrido proferido em conferência, e, tomando conhecimento das nulidades que o recorrente imputa ao acórdão recorrido, a pronúncia sobre o alegado pelo recorrente em sede de recurso de apelação concerne ao disposto nos art.ºs 225.º e 226.º do Código de Processo Penal ficou prejudicada pela decisão final dada pelo acórdão recorrido que claramente o indica:

” (…) É certo que na respetiva fundamentação de direito o acórdão nada refere quanto ao disposto nos artigos 225.º e 226.º do CPPenal.

Contudo, tal configurou-se prejudicado face à posição sufragada na respetiva fundamentação de direito, tendo na matéria sido considerado o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPCivil, conforme expressamente se refere no ponto 2.5. da respetiva fundamentação de direito.”.

Como decorre do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável à apelação por força do disposto no art.º 663, n.º 2 do mesmo diploma, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, o que significa não ocorrer, no caso concreto, qualquer omissão de pronúncia.

2. Alteração da matéria de facto

Na conclusão 3 insurge-se o recorrente contra a amplitude do probatório referindo:

Refere o Acórdão recorrido, que no caso dos autos, estão em causa os factos dados como provados nos pontos 8 a 13, 16 e 20 a 25, o que aliás não se aceita, por si só, pois os factos alegados e provados nos autos, são muito mais, desde logo os sublinhados nas Alegações, resultantes do requerimento de 17/12/2021 – Refª. ......36 e salientados de fls 7 a 23 do mesmo corpo alegatório, o que aqui se alega para os devidos efeitos”.

Na apelação efectivamente o recorrente considerava que vários factos não tidos por provados pelo Tribunal de 1.ª instância se deveriam considerar provados, não tendo a alteração da matéria de facto sido considerada como uma questão a resolver na apelação, nem sobre ela existindo qualquer pronúncia do Tribunal recorrido.

A pedida ampliação da matéria de facto era uma questão a conhecer antes da decisão de direito que veio a ser proferida, pelo que o seu não conhecimento não fica coberto pelo disposto nos termos do art.º 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Porém o recorrente não arguiu tal omissão de pronúncia, que não pode ser oficiosamente conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, nem a matéria de facto pode, em sede de revista, ser alterada visto não estar em causa qualquer das situações previstas no disposto no art.º 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, nestes autos, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, nos termos do disposto no art.º 682.º do Código de Processo Civil, pelo que improcede este fundamento da revista.

3. Prescrição do direito indemnizatório

Considera o recorrente que o prazo para a propositura desta acção se iniciou em 10/09/2019 – data do trânsito em julgado da decisão penal -, pelo que, tendo instaurado a presente acção em 03/09/2020, entre uma e outra data ainda não havia decorrido o prazo de um ano mencionado no art.º 226.º do Código de Processo Penal.

O acórdão recorrido sobre esta questão referiu o seguinte:

“(…)1.10.

No que respeita à prescrição do direito indemnizatório em causa.

Nos termos do artigo 5.º do RRCEE, «[o] direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição».

O apontado preceito remete o regime prescricional em causa para o artigo 498.º do CCivil, assim como para o disposto neste «Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição».

Ora, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do CCivil, «[o] direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso».

Do apontado regime legal decorre, assim, que o direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas prescreve no prazo de três a contar da altura em que o lesado teve conhecimento dos pressupostos daquele direito, não se exigindo para o efeito o conhecimento da pessoa responsável e a extensão integral dos danos, sem prejuízo de suspensão do prazo prescricional por motivo de força maior ou dolo do obrigado e, em todo o caso, do prazo prescricional de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do CCivil.

(…) Ou seja, o pedido indemnizatório do A. decorre de alegados «danos decorrentes do exercício da função judicial».

Estão em causa condutas, por um lado, de agentes da Polícia Judiciária, bem como do Ministério Público e, por outro lado, de Juiz de Direito.

Relativamente àquela primeira situação os danos em causa decorrem alegadamente da «administração da justiça», conforme artigo 12.º do RRCEE, ao passo que na última situação estão em causa danos reportados a uma decisão judicial causadora de «responsabilidade por erro judiciário», conforme artigos 13.º do RRCEE.

2.3.

A prescrição suscitada no presente recurso respeita tão-só àquela primeira situação, delimitada que está pelos artigos 8.º a 22.º da contestação, em conformidade com o disposto no artigo 303.º do CCivil, devidamente considerada na decisão recorrida, conforme decorre das suas páginas 10 a 13.

Ora, em matéria prescricional relevam os factos dados como provados com os n.ºs 8 a 13, 16 e 20 a 25.

Daquela factualidade resulta que no âmbito do processo n.º 257/12.4...:

 Em 10.04.2012 o queixoso BB foi ouvido na Judiciária sem a presença do aqui A., então seu mandatário judicial,

 Em 16.04.2012 a Polícia Judiciária elaborou um relatório de investigação;

 Em 17.04.2012 o Ministério Público promoveu a emissão de mandatos de detenção fora de flagrante delito relativamente ao aqui A.

 Em 15.05.2012 foi deferida ao aqui A. a consulta do referido processo.

A presente ação foi interposta em 04.09.2020.

Ou seja, entre a data em que o aqui A. teve conhecimento do direito indemnizatório ora em causa, maio de 2012, e a propositura da presente ação, em setembro de 2020, decorreram mais de oito anos, pelo que nos termos supra indicados dos artigos 5.º do RRCEE e 498.º, n.º 1, do CCivil, importa considerar prescrito o direito indemnizatório invocado pelo A. na presente ação como decorrente de alegados «danos ilicitamente causados pela administração a justiça», conforme artigo 12.º do RRCEE.

(…) Improcede, pois, nesta parte o recurso.

2.4.

No que respeita à responsabilidade por erro judiciário.

Estão ora em causa decisões proferidas por Juiz de Direito.

Nomeadamente, a decisão do Juiz de Instrução Criminal de 17.04.2012, que determinou a detenção fora de flagrante delito do aqui A., e de 23.04.2012 que validou a sua detenção entretanto ocorrida.

Tal factualidade foi dada como provada, conforme factos apurados com os n.ºs 14, 15 e 21.

Apurou-se ainda que:

«25. O autor, então arguido, não interpôs recurso do despacho que validou a detenção, o qual transitou em julgado, tendo, em 15.05.2012, interposto recurso do despacho anterior proferido em 17.04.2012 que ordenou a sua detenção, através da emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito. (fls. 790 e ss. do processo-crime);

26. Por decisão singular da Desembargadora-Relatora da Relação de Lisboa proferida em 20.09.2013, foi rejeitado por manifesta improcedência o recurso apresentado pelo arguido;

27. Por acórdão de 06.11.2013 da Relação de Lisboa foi rejeitada a reclamação para a conferência apresentada pelo arguido dessa decisão singular».

Isto é, in casu a invocada responsabilidade por erro judiciário não se mostra fundada «na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», conforme referido artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, pois, por um lado, a referida decisão judicial de 23.04.2012 que validou a detenção do aqui A. não foi objeto de recurso e, por outro lado, o recurso da decisão judicial de 17.04.2012 que determinou a detenção do mesmo foi rejeitado por manifesta improcedência.

Nestes termos e em função do supra exposto, uma vez que o pedido indemnizatório por erro judiciário não se mostra no caso vertente fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, conforme exigência do indicado artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, enquanto pressuposto do direito indemnizatório em causa, improcede também a pretensão do A./Recorrente quanto ao erro judiciário e, pois, também nessa parte o recurso em causa.

A seu favor o Recorrente invoca o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.2013, processo n.º 1963/09.6TVPRT.P1.S1.

Contudo, o presente caso não é de todo em todo subsumível à situação a que se refere tal acórdão, já que o mesmo respeita a uma situação em que foi deferido um pedido habeas corpus em virtude de prisão ilegal, situação que não se verificou in casu.

Tal como já deixámos dito, em casos como aquele a que se refere o referido acórdão de 05.11.2013, com o deferimento do habeas corpus e a imediata libertação do preso, o Supremo Tribunal de Justiça revoga a decisão judicial que determinou a respetiva prisão, pelo que com tal acórdão relativo ao pedido de habeas corpus mostra-se cumprido o requisito a que se refere o n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE.

(…) Ora, na situação em apreço, considerando a prescrição do direito indemnizatório por alegados danos ilicitamente causados pela administração da justiça e não procedendo a responsabilidade do Estado por erro judiciário, por a mesma não se fundar na prévia revogação da decisão alegadamente danosa, conforme exposto, mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas pelo Recorrente, nomeadamente o pretendido aditamento de factualidade que considera provada, bem como a apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, nomeadamente o invocado erro grosseiro da sua detenção.

Improcede, assim, o recurso.”

O acórdão recorrido considerou que, tendo em conta o pedido e a causa de pedir haveria dois prazos de prescrição do direito de indemnização invocado pelo recorrente a considerar: um relativo aos alegados danos ilicitamente causados pela administração da justiça e outro relativo ao invocado erro judiciário. O primeiro estava, no entender do acórdão, há muito terminado dado que entre a detenção alegadamente ilícita e a propositura da acção terem decorrido mais de 3 anos previstos nos “artigos 5.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e 498.º, n.º 1, do CCivil”. O segundo relativo ao erro judiciário deixou de ser analisado como um prazo de prescrição e quanto a ele passou a ser considerado exclusivamente o requisito de prévia revogação da decisão alegadamente danosa, que, por não verificado, conduziu à improcedência da apelação e da acção.

Na petição inicial o autor formulou apenas um pedido indemnizatório de condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 100 000,00€ a título de danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos pelo A. com o processo identificado nos autos acrescida dos juros legais vencidos calculados à taxa legal desde a citação do Réu até integral e efectivo pagamento.

A causa de pedir funda-se na alegada detenção ilegal do recorrente, num processo-crime, que ele alega ter sido determinada por uma investigação criminal mal desenvolvida pelos órgãos de polícia criminal e pelo Ministério Público, actuação que teve o acordo do juiz de instrução criminal, mas que veio a conduzir à sua posterior absolvição, tal como evidenciado, nomeadamente nos artigos 51 a 91 da petição inicial. Não invocou ter sido detido pela Polícia Judiciária sem mandado judicial, nem formulou qualquer pedido autónomo de indemnização por danos decorrentes exclusivamente pelos actuação dos órgãos de polícia criminal no processo. As vicissitudes da investigação criminal apresentam-se na petição inicial como meros antecedentes lógicos da emissão de mandado judicial para a sua detenção, fora de flagrante delito, para primeiro interrogatório pelo juiz de instrução criminal.

Como alegado e provado nos autos o recorrente foi detido para ser presente a interrogatório do juiz de instrução criminal ao abrigo do disposto nos artigos 254.º e seguintes do Código de Processo Penal. Trata-se de uma medida cautelar, como todas as medidas de coacção aplicadas em processo-crime, reguladas no Capítulo III - Da detenção – do Título I - Disposições gerais - do Livro VI - Das fases preliminares - da Parte II do Código de Processo Penal.

Os órgãos de polícia criminal que procederem a diligências de investigação criminal elaboraram um relatório onde mencionaram as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição dos factos apurados e as provas recolhidas. Com base nesse relatório solicitaram a emissão de mandados de detenção do recorrente ao abrigo do disposto no art.º 257.º do Código de Processo Penal, que foram emitidos e cumpridos, sendo ele presente ao juiz de instrução criminal para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção.

Na sequência do primeiro interrogatório do recorrente pelo juiz de instrução criminal foi validada a detenção ao abrigo do disposto no art. 257.º, n.º 1, al. a) e b), do Código de Processo Penal, foi considerado que o recorrente estava indiciado pela prática de um crime de prevaricação de advogado, p.p. pelo art. 370.º, n.º 1, do Código Penal, sendo-lhe aplicada a medida de coacção de proibição de contactar com o ofendido, sendo o recorrente restituído à liberdade. O recorrente não recorreu desta decisão. Interpôs recurso do despacho judicial anterior de 17.04.2012 que ordenara a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito que veio a ser julgado improcedente.

A detenção fora de flagrante delito é uma medida cautelar que visa permitir o desenvolvimento, sem constrangimentos, para a investigação criminal e, ou, para a vítima. Como medida cautelar ela foi validada pelo juiz de instrução criminal na sequência do primeiro interrogatório de arguido e pelo Tribunal da Relação em sede de recurso da decisão que determinou a emissão dos mandados de detenção. Não há qualquer decisão revogatória da decisão judicial de detenção fora de flagrante delito. Todavia pelo menos a necessidade de tal medida de coacção, requisito essencial para a sua aplicação ao abrigo do disposto no art.º 20.º do Código de Processo Penal, haverá de sofrer uma reanálise posterior que pode ocorrer em dois momentos: dedução de acusação e decisão final em sede de julgamento. Se não forem reunidos elementos necessários que permitam a dedução de acusação contra o arguido, ou se tendo ela sido deduzida haja sido afastada em sede de instrução criminal pelo despacho de não pronúncia pelos crimes de que se entendera antes existirem indícios suficientes da sua prática pelo arguido, então só poderá concluir-se que erradamente em momento anterior fora determinada a sua detenção para averiguação da existência de um crime que veio a concluir-se não ter existido. Do mesmo modo se o arguido vier a ser absolvido dos crimes pelos quais se encontrava acusado/pronunciado por sentença penal absolutória com trânsito em julgado, a sua detenção na fase inicial do processo-crime não poderá deixar de ser tida por injustificada, funcionando esta decisão como revogatória daquela inicial, de natureza cautelar, assente exclusivamente em indícios de prática criminosa que se não logrou demonstrar existirem.

A sentença penal absolutória não terá em todos os casos a consequência de ferir de ilegalidade as decisões anteriores proferidas no processo de privação da liberdade do arguido. Tais decisões de natureza cautelar podem ter sido e continuar a ser legais, mas com a absolvição pela prática de todos os crimes indiciados tal detenção pretérita será fundamento de obrigação de indemnização a cargo do Estado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados ao abrigo do disposto no art.º 225.º, n.º 1, c) do Código de Processo Penal.

O exercício da acção penal através dos órgãos competentes de polícia criminal e judiciais actua ao longo das várias fases do processo criminal impondo medidas cautelares aos cidadãos, indiciados de prática criminosa, mas assegura aos cidadãos, injustificadamente lesados por tal exercício, a indemnização, a cargo do Estado, pelos danos que lhe forem causados pelo desenvolvimento de uma acção penal que não conduziu a uma condenação.

O Estado terá, depois direito de regresso, nas situações previstas na lei, contra os concretos agentes que desenvolveram a dita acção penal que com a absolvição se veio a concluir nunca dever ter sido desenvolvida e aí poderá ocorrer a divisão operada no acórdão recorrido entre a responsabilidade pretensamente imputável aos órgãos de polícia criminal ou a erro judiciário. Em todo o caso, o lesado terá direito a uma única indemnização do Estado pelos dados que comprovadamente haja sofrido com a detenção caso seja comprovado que não foi agente do crime.

Assim, saber se está prescrito o direito de o recorrente obter indemnização do estado pelos danos alegadamente causados pela sua detenção em tal processo-crime nada tem a ver com o mérito da acção, com a existência/inexistência de requisitos de procedência da acção, nem há que averiguar separadamente se existiu detenção ilegal e erro grosseiro.

Nesta acção há-de definir-se se sim ou não a detenção do requerente foi ilegal ou injustificada, e, se o tiver sido, se lhe causou danos, que concretos danos causou, e, em quanto deverão estes ser avaliados, o que diz respeito ao mérito da acção. Como a sua absolvição foi parcial terá ainda de ser analisado se a sua detenção se fundou na existência de indícios dos crimes pelos quais foi condenado e se os respectivos indícios podiam fundamentar tal detenção para estabelecer a existência do peticionado direito de indemnização.

Quer a sentença de 1.ª instância quer o acórdão recorrido quer mesmo o recorrente consideram que está em causa o prazo de prescrição do direito a indemnização, tido este por completado, pelas instâncias, e, em curso, à data da propositura da acção, pelo recorrente.

O art.º 225.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe – Modalidades -, ínsito no Capítulo V- Da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada – do Título II - Das medidas da coacção – do Livro IV - Das medidas de coacção e de garantia patrimonial – da Parte I das Disposições preliminares e gerais do Código de Processo Penal declara o direito de indemnização pelos danos sofridos por quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação estabelecendo as diversas situações em que tal direito surge:

“a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;

b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou

c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente; ou

d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”.

Estabelece igualmente que tal direito cessa, quando estiver em causa a privação da liberdade ilegal e, ou o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a privação da liberdade se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.

A Lei n.º 67/2007 de 31/12/2007 aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas e é aplicável, por força do seu art.º 1.º, a todas as acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.

O Capítulo III - Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional – dessa lei estabelece no art.º 12.º que, com excepção do regulado nos artigos seguintes, aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça é aplicável o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.

O art.º 13.º da Lei n.º 67/2007 de 31/12/2007, na versão consolidada, sob a epígrafe – responsabilidade por erro judiciário - determina que:

1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Estamos numa acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, estando em causa, apenas actos praticados por magistrados. Há um regime especial para a acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional quando esteja em causa a privação injustificada da liberdade, ressalvado pelo art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, que, como tal, prevalece sobre o regime normal estabelecido nesta lei, que remete, nas demais situações para o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, aplicado pelo acórdão recorrido. Tal regime especial consta dos artigos 225.º e 226.º do Código de Processo Penal que a este propósito refere que o “pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respectivo”.

Este regime especial, constante dos artigos 225.º e 226.º do Código de Processo Penal, aplicável às situações de detenção ilegal/injustificada em que se veio a demonstrar que o arguido não foi agente do crime é um regime completo a que se não aplica o disposto no n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro dada a sua exclusão constante do n.º 1 do mesmo preceito.

Tal como entendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 1 de Março de 2007 no processo 06B4207, acessível em www.dgsi.pt, sem que se haja verificado entretanto qualquer alteração do texto do art.º 226.º do Código de Processo Penal e porque tal regime especial constante do Código de Processo Penal não foi, como antes analisamos, revogado ou alterado pelo art.º 13.º da Lei n.º 67/2007 de 31/12/2007, sendo por ele ressalvado, que funciona sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, consideramos não estar perante um prazo de prescrição, mas um prazo de caducidade, pelas razões constantes do dito acórdão a que aderimos inteiramente e passamos a transcrever pela simplicidade e clareza de argumentação, inteiramente transponível para os presentes autos:

“(…) 2.

Atentemos agora na natureza do prazo previsto no artigo 498º, nº 1, do Código Civil.

Expressa o referido normativo que, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso, o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos.

Trata-se um prazo de prescrição do direito de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual, ou seja, integra-se num instituto de direito substantivo, de que lhe advém idêntica natureza.

O conhecimento por parte do lesado do seu direito equivale à consciência dos pressupostos condicionantes da responsabilidade civil e do seu direito a ser indemnizado com base nela.

Não se trata do conhecimento jurídico por parte do lesado, mas do conhecimento dos factos constitutivos do direito, ou seja, que foram praticados por outrem e que dessa prática lhe resultaram danos.

Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao seu exercício (artigo 304º, nº 1, do Código Civil).

Dir-se-á, por isso, que o não exercício do direito de crédito durante o referido lapso de tempo, invocada a prescrição, implica que não mais possa ser judicialmente exigida a prestação, ou seja, na prática, a sua extinção.

O prazo de prescrição começa a correr quando o direito possa ser exercido, suspende-se nos casos previstos nos artigos 318º a 322º, e interrompe-se nas situações previstas nos artigos 323º a 325º, todos do Código Civil.

Um dos casos de suspensão da prescrição ocorre durante o tempo em que o titular estiver impedido de exercer o direito por motivo de força maior ou de o não exercício decorrer do dolo do devedor, mas apenas no decurso dos últimos três meses do prazo (artigo 321º do Código Civil).

3.

Vejamos agora a natureza do prazo previsto no artigo 226º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Estabelece o referido normativo que o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser formulado depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o respectivo processo penal.

Este normativo está directamente conexionado com o que se prescreve no artigo que lhe está imediatamente a montante, no qual se prevêem duas situações de privação de liberdade geradoras de indemnização, ou seja, a derivada de danos por detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal, ou de prisão preventiva legal que venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (artigo 225º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

A prisão preventiva consubstancia-se na privação da liberdade derivada de decisão judicial interlocutória, e a detenção nessa privação por via da captura e até à sua validação subsequente.

Os referidos artigos da lei ordinária estão conexionados com o que se prescreve na lei fundamental, ou seja, que ninguém pode ser, total ou parcialmente, privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória ou, excepcionalmente, por exemplo, em caso de prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, sob pena de o Estado se constituir no dever de indemnizar o lesado (artigo 27º, nºs 1, 2, 3, alínea b) e 5, da Constituição).

O artigo 226º, nº 1, do Código de Processo Penal em análise prevê o prazo de formulação em juízo do pedido de indemnização com base nos factos previstos no artigo 225º do mesmo diploma, e estatui a proibição dessa formulação decorrido que seja um ano sobre a libertação do sujeito detido ou preso ou sobre a decisão definitiva do caso.

No caso de o fundamento do pedido ser a prisão preventiva ou a detenção ilegal, o referido prazo de propositura da acção conta-se desde o momento em que o detido ou o preso foi restituído à liberdade; se esse fundamento for a prisão preventiva legal que se revelou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos de facto, aquele prazo conta-se desde a decisão definitiva do caso.

O recorrente e as instâncias consideram que o referido prazo era de prescrição, mas essa qualificação não vincula, como é natural, este Tribunal (artigos 664º e 729º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Dada a redacção da lei, importa determinar se o mencionado prazo se integra realmente no instituto substantivo da caducidade ou no instituto substantivo da prescrição a que acima se fez referência.

A dúvida sobre esta questão tem de ser resolvida por via da interpretação do referido normativo da lei de processo, segundo os critérios a que se reporta o artigo 9º do Código Civil.

Importa, porém, ter em linha de conta que quando por força da lei um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei expressamente se refira à prescrição (artigo 298º, nº 2, do Código Civil).

Considerando a expressão do referido normativo – o pedido de indemnização não pode ser proposto – sem qualquer referência à prescrição, bem como o que se prescreve no nº 2 do artigo 298º do Código Civil, a conclusão é no sentido de que se trata de um prazo de caducidade.

4.

Atentemos agora na enunciada questão de saber se prescreveu ou não o direito de indemnização invocado pelo recorrente ou se caducou ou não o seu direito de acção.

O recorrente alegou não ter demandado o Estado Português investido no seu ius imperium relativamente à sua função jurisdicional, mas os recorridos por no exercício das suas funções técnicas gozarem de independência e autonomia técnico-científica e serem responsáveis pelos pareceres por si efectuados.

Não obstante o recorrente não haver accionado o Estado, mas um Instituto Público e dois dos seus agentes, a causa de pedir que invocou na acção inscreve-se na previsão normativa do artigo 225º do Código de Processo Penal relativa a danos derivados da privação da liberdade por força de decisão jurisdicional.

A concessão do direito à indemnização por virtude da privação da liberdade em execução de decisões judiciais decorre do referido artigo, independentemente de a acção ser intentada contra o Estado, como titular da administração da justiça, ou contra algum Instituto Público e seus agentes.

Conforme acima se referiu, o prazo a que se reporta o artigo 226º, nº 1, do Código de Processo Penal não se integra no instituto da prescrição, porque se integra no instituto da caducidade.

Por isso, a primeira conclusão a extrair nesta sede é a de que não se verifica a excepção peremptória extintiva que é a prescrição.

O prazo de caducidade apenas se suspende ou interrompe nos caos legalmente determinados (artigo 328º do Código Civil).

Se a lei não fixar outra data, o referido prazo começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido (artigo 329º do Código Civil).

Só impede a caducidade, além do mais que aqui não releva, a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei atribua efeito impeditivo (artigo 331º, nº 1, do Código Civil).

Resulta do nº 1 do artigo 226º, nº 1, do Código de Processo Penal que o prazo de um ano a que se reporta começa no momento em que o lesado foi libertado ou em que o caso foi definitivamente decidido.

Trata-se de um prazo que se não suspende nem interrompe, e só a instauração da acção impede o funcionamento da excepção peremptória da caducidade.

Considera-se proposta a acção ou intentada ou pendente logo que a petição inicial seja recebida na secretaria (artigo 267º, nº 1, do Código de Processo Civil).”

O pedido de indemnização formulado pelo recorrente contra o Estado funda-se numa situação de detenção para primeiro interrogatório que o recorrente considera ilegal e injustificada, tendo ocorrido a sua absolvição de parte dos crimes pelos quais se encontrava acusado. Não há, pois, que analisar o regime jurídico da prescrição do direito de indemnização aplicável aos factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, por legalmente inaplicável à presente situação.

Como alegado pelo recorrente não decorreu um ano entre a data de trânsito em julgado do processo-crime e a data de propositura da acção. Tal como evidencia o probatório, pontos 33 a 35:

33. Realizado o julgamento, por sentença proferida em 01.09.2017, foi o autor absolvido da prática do crime de prevaricação de advogado e condenado como autor de dois crimes de coacção, p.p. pelo art. 154.º, n.º 1, do CP, na pena de 100 dias de multa, por cada crime, em cúmulo jurídico, na pena única de 125 dias de multa à taxa diária de € 30,00;

34. Por acórdão proferido em 12.02.2019, pela Relação de Lisboa foi negado o recurso interposto pelo ora autor dessa sentença e confirmada integralmente a decisão recorrida;

35. Apresentada reclamação desse acórdão, por decisão da Relação de Lisboa de 5.07.2019, foram indeferidas as nulidades arguidas pelo autor, aí arguido.

A presente acção de indemnização foi instaurada em 4 de Setembro de 2020, antes, pois, de completado um ano sobre o trânsito em julgado da sentença parcialmente absolutória, parcialmente condenatória, o que impede o conhecimento da acção em fase de saneador com fundamento em prescrição do direito à requerida indemnização.

Procede, pois, a revista, com a revogação quer do acórdão recorrido quer do despacho saneador-sentença proferido em 1.ª instância, devendo os autos retomar o seu processamento na fase em que se encontravam quando foi proferido tal despacho e seguindo os seus trâmites normais, se a tal nada mais obstar.


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III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em conceder a revista e revogar o acórdão recorrido e a decisão final proferida em 1.ª instância a quem deverão ser remetidos os autos para posterior processamento.

Custas pelo recorrido.


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Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Maria Graça Trigo

Isabel Salgado