Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
179/20.5T8PTG.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
POSSE
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
ANIMUS POSSIDENDI
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- Nos termos gerais dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça carece de competência para apreciar e modificar a decisão sobre matéria de facto, com as excepções previstas na lei (a eventual violação do direito probatório material ou a insuficiência da decisão de facto para servir de base suficiente à decisão de direito), que não se verificam na situação sub judice.
II- A discussão em torno da prova dos factos essenciais que sustentam as pretensões jurídicas em contraposição – mormente os que se prendem com o concreto animus dos AA. aquando da utilização ininterrupta do caminho existente no prédio da Ré - terminou através do juízo autónomo decisória emanado do Tribunal da Relação (que actuou como última e definitiva instância quanto a esta matéria).
III- Perante a fixação como provada desta factualidade, não cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça debruçar-se agora sobre as dúvidas a este respeito retomadas pela Ré quanto ao animus que terá presidido ao exercício dos poderes de facto por parte dos AA.
IV- Assim, havendo que considerar que os AA. sempre agiram como possuidores e não como meros detentores, e perante os sinais visíveis e permanentes que a revelam (artigo 1548º, nº 2, do Código Civil), cumpre reconhecer a constituição da servidão de passagem pelo caminho descrito, com base na usucapião, cujos requisitos, nesses precisos termos, se encontram inteiramente reunidos (posse pública, pacífica, na convicção do exercício do direito correspondente e sem consciência de lesar os direitos de outrem, ininterruptamente, durante um lapso de tempo não inferior a vinte anos).
V- Face à procedência da acção, impende inequivocamente sobre a Ré a obrigação de retirar, de imediato, todos os obstáculos que colocou para impedir o acesso dos AA. ao seu prédio, através do mencionado caminho, proporcionando todas as condições para que os AA. passem a dispor, em pleno, das utilidades que lhes são conferidas pela servidão de passagem, sem as perturbar ou estorvar.
VI- Embora o sistema judicial coloque à disposição do interessado meios processuais coercivos para obrigar à retirada desses obstáculos, a efectuar por terceiro (agentes de autoridade) à custa da Ré, nada obsta à fixação nestes casos da sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil, com vista a assegurar o cumprimento do judicialmente ordenado.
VII- Trata-se de uma forma prática e eficaz de demover a resistência do obrigado (denunciada através do comportamento de enérgica e musculada oposição que antes manifestou, obrigando à instauração da presente acção), reforçando a imperatividade da decisão judicial e persuadindo-o  ao seu acatamento, sendo certo que a futura abstenção da prática de actos que impeçam o gozo da servidão predial constituída, reveste a natureza de obrigação infungível, na medida em que terá que ser acatada pessoalmente pela Ré e não por outrem.
Decisão Texto Integral:



Revista nº 179/20.5T8PTG.E1.S1


 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.
Instauraram AA e mulher BB acção declarativa com processo comum contra F.J. Duarte – Projectos e Consultadoria de Construção Civil, Lda.”.
Alegaram essencialmente os factos constitutivos da servidão predial de passagem sobre o prédio da Ré., fundada em usucapião, sendo certo que esta, adquirente recente do imóvel, tem impedido o seu atravessamento através da colocação de obstáculos na via.
Concluem pedindo a condenação da R. a reconhecer o direito de propriedade dos Autores, sobre o prédio identificado; a declaração e reconhecimento da existência da aquisição do direito de servidão de passagem a pé, carro e máquinas, alfaias agrícolas, veículos ligeiros e pesados sobre o prédio da Ré a favor do prédio dos Autores, e assim, declarar que o prédio identificado nesta petição está onerado com uma servidão de passagem, a pé, carro, máquinas e alfaias agrícolas, veículos ligeiros e pesados a favor do prédio dos AA., exercida através de um caminho de terra batida, até atingir o sobredito prédio dos Autores; a condenação dos RR a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe ou impeça o exercício do direito da servidão de passagem dos Autores; a condenação dos mesmos RR a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 500,00€ por cada acto turbador ou impeditivo do direito de gozo e utilização do referido direito de passagem.
A Ré contestou negando a existência de tal servidão.
A acção foi julgada improcedente em 1ª instância.
Interposto recurso de apelação, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação ….. de 11 de Fevereiro de 2021 que julgou a apelação procedente e em consequência, reconheceu a existência da aquisição, por usucapião, do direito de servidão de passagem a pé, carro e máquinas, alfaias agrícolas, veículos ligeiros e pesados sobre o prédio da Ré a favor do prédio dos Autores, e assim, declarou que o prédio denominado “T.........” descrito na Conservatória do Registo Predial ….. com o n.º …..17, mediante a apresentação n.º ….. de 2019/11/19, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ……33º da Secção …., da União de Freguesias ….., ……. ….. está onerado com uma servidão de passagem, a pé, carro, máquinas e alfaias agrícolas, veículos ligeiros e pesados a favor do prédio rústico denominado “Ta.......”, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo …..32º da Secção …. da União de Freguesias ………… e descrito na Conservatória do Registo Predial  …. sob o n.º ……02, exercida através de um caminho de terra batida, melhor descrito supra em i) 8.e.9, condenando a Ré a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe ou impeça o uso da servidão de passagem referida e a a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 500,00€ por cada acto turbador ou impeditivo do uso da servidão referida.
Intentou a R. recurso de revista, no qual apresentaram as seguintes conclusões:
1-Toda a posse que for perspectivada como geradora de direito tem de ser o mais inequívoca possível, precisamente porque é potenciadora de direitos diferentes. A posse que se pretende ser fonte da aquisição por usucapião de uma servidão ainda tem de o ser mais porque, envolvendo contacto entre vizinhos, é, como escrevem os Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, nota 2, ao artigo 1548°, as mais das vezes difícil saber se estamos perante actos que revelam servidão ou perante "actos de mera tolerância consentidos iure familitatis que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião ".
2- No caso dos autos - em que os proprietários do prédio pretensamente dominante são arrendatários do prédio pretensamente serviente e passam, para um e outro, por um caminho já antes do arrendamento implantado no primeiro - o sentido da posse exercida pelos arrendatários fica ainda mais duvidoso.
3- É verdade que, desde que compraram o prédio, em 25 de Setembro de 1998, só durante os primeiros 5 anos - concretamente 5 anos e 5 dias - passaram pelo prédio da Ré sendo deles arrendatários (o arrendamento terminou em 1 de Outubro de 2003); e que a partir daí, nos 17 anos que se seguiram até à data da propositura da acção, continuaram a passar já não sendo arrendatários.
4- Mas se a passagem daqueles primeiros 5 anos era absolutamente equívoca (passava a que título?, pergunta-se), a que se sucedeu não é menos, porque, não se tendo alegado a inversão de titulo, o que há que concluir é que continuaram a passar, como que por inércia, só porque já vinham passando, sobre a complacência de quem estava no prédio da Ré.
5- Tudo isto para dizer que a posse sobre o prédio da Ré, fosse de mera tolerância, fosse precária por exercida em nome alheio, fosse de utilização abusiva do direito de arrendatário, nasceu confusa e nunca deixou de o ser, impondo que legitimamente fique no ar a pergunta: será que é possível concluir, como concluiu o douto acórdão recorrido, que os Autores passaram pelo prédio da Ré durante mais de 20 anos sempre com intenção de sobre ele exercerem um direito próprio de aquisição de servidão de passagem?
6- Não pode, com o devido respeito pelo decidido no douto acórdão. A equivocidade é tanta que, como referem os Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, na obra e local citados, nunca saberemos se a posse foi abusiva, por meramente tolerada, tudo indicando que nunca passou de precária como sustentou, justa e justificadamente a Meritíssima Juiz.
7- Se a situação possessória é em si confusa quanto ao sentido da posse, os Autores, com o seu comportamento no processo, encarregaram-se de a tornar ainda mais confusa ao utilizar, em paralelo, outro acesso ao seu prédio, por outro caminho, sobre prédio de que eram/são arrendatários, durante mais de 30 anos, que tentaram esconder do conhecimento do tribunal. Porque quiseram esconder esse caminho? Certamente porque sabiam que ele punha às claras a sua insegurança quanto ao direito de passar sobre o prédio da Ré. Porque mantiveram os dois, nunca optando só por um? Pressente-se que porque não tinham a segurança de nenhum.
8- É verdade, não se contesta, que o seu prédio tem de ter um caminho de acesso. Mas que não seja por simpatia de um vizinho ou por outro, que lhe cabe o direito de escolher. Eles terão de propor a acção de constituição forçada de servidão de passagem onde demonstrem qual dos prédios sofre menor prejuízo (art° 1553° do C. Civil).
9- Dar aqui, nesta acção, como assente o nascimento da servidão, tomando como boa uma posse que não se sabe se existiu como posse de servidão ou como posse de tolerância ou precária, e deixando-os, sem primeiro definir qual dos prédios dever ser onerado, continuar a usar os dois prédios é que não poderá ser.
10- Sabendo-se pelos factos provados que há dois caminhos que dão acesso ao prédio dos Autores tal impõe por si que o tribunal hesite em dar deste já como feita a escolha que eles teriam de fazer se estivessem perante uma acção de constituição forçada de passagem.
11- Sabendo-se que é tão duvidosa a posse dos Autores sobre o prédio da Ré, não se sabendo mesmo se alguma vez houve posse de servidão, a dúvida tem de levar à improcedência da acção. Como acentuaram os Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, na obra e local citados, não pode aceitar-se que a servidão se constitua sobre uma "equivocidade congénita dos actos reguladores do exercício da servidão".
12- Julgando procedente a acção, apesar dessa equivocidade, o tribunal violou o disposto no artigo 1253° do C. Civil ao aceitar como actos de posse dirigidos à servidão, actos exercidos, pelo menos na aparência, em nome alheio (do senhorio), que apenas significam detenção sem que previamente tenha ocorrido a inversão do título (artigo 1265° do C. Civil).
13- Porque validou como posse de usucapião os 5 anos em que os Autores passaram, sendo arrendatários do prédio da Ré - esses indiscutivelmente equívocos e não atendíveis para a contagem, violou até o artigo 1296° do C. Civil que, havendo má fé, como é o caso, exige que tenham decorrido pelo menos 20 anos de posse limpa.
14- Tendo de cair a pretensão de ver declarada a aquisição da servidão, cai naturalmente a condenação da Ré no pagamento da sanção pecuniária compulsória porque ela depende da primeira.
15- Mas mesmo que procedesse essa primeira condenação sempre a referente à sanção compulsória teria de improceder porque no caso se não aplica o artigo 829°-A do C. Civil. Essa norma só vale para condenação em acto infungível.
16- Ora, a condenação da Ré no dever de se abster é condenação em acto fungível porque o respeito por aquele dever pode ser cumprido pela acção directa dos Autores ou por recurso a acção judicial que reponha o direito no estado anterior à custa do património da Ré.
17- Tenha-se presente a distinção que, com a clareza habitual, fizeram os Profs Pires de Lima e Antunes Varela na sua obra clássica já referida, distinguindo entre acto fungível e acto não fungível.
18- Uma última palavra para estranhar a imposição, pela Relação, do quantum a pagar pela Ré. Não pode o sentimento de indignação do juiz (aqui injustificado, como já se disse) ser medida de qualquer valor.
19- Enquanto se socorreu da norma do artigo 829°-A do C. Civil para impor uma sanção pecuniária compulsória, o douto acórdão violou esse mesmo preceito.  
Contra-alegaram os AA. apresentando as seguintes conclusões:
1 - Com a materialidade fáctica provada, bem andou o Tribunal da Relação ao confirmar a existência da posse dos Autores ora Recorridos sobre a dita faixa de terreno em termos correspondentes ao direito real de servidão (de passagem).
2 - Neste sentido o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência de 14/05/1996, publicado no D.R. nº 114, de 24/06/1996.
3 - A posse exercida pelos Autores ora Recorridos na dita faixa de terreno, nos termos, nas circunstâncias de tempo e de modo, tal qual ficou provado, tem-se por uma posse pública, pacifica, aparente, clara, inequívoca, evidente, segura, e de boa-fé, ou seja, BOA para a constituição do direito real de servidão (de passagem).
4 - Os Autores ora Recorridos adquiriram o prédio vulgo conhecido “Tap......” a 25/09/1998, e a partir desta data, para aceder ao seu prédio, percorreram a dita faixa de terreno/caminho, no prédio da Ré ora Recorrente, fazendo-o exclusivamente na qualidade de proprietários da dita “Tap...... “, sempre na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem.
5 - De resto, o acesso à dita tapada, foi por aí feito há mais de 100 anos.
6 - É verdade que os Autores ora Recorridos foram rendeiros do prédio da Ré ora Recorrente até 2003, é igualmente verdade que a partir de 25/09/1998 até 2003 (5 anos), quando e sempre que percorriam a dita faixa de terreno/caminho, com destino exclusivamente à entrada/acesso à dita “Tap......”, faziam-no na qualidade de proprietários e legítimos donos do aludido prédio, para onde se dirigiam, ou seja, como donos do caminho (em nome próprio) e não como rendeiros.
7 - Por seu turno, os Autores ora Recorridos não são nem nunca foram rendeiros do prédio da “Tap......”, e antes da sua aquisição, nunca se serviram do caminho para aceder a ao aludido prédio.
8 – Assim, não há dúvida de que ao fazê-lo, tal qual ficou provado, exerceram o poder de facto com a intenção de agir como beneficiários do direito (direito real de servidão de passagem).
9 - O facto de entre 1998 e 2003, os Autores ora Recorridos serem ao mesmo tempo rendeiros do prédio da Ré ora Recorrente e donos da “Tap......” é pura coincidência, absolutamente irrelevante para o caso.
10 - Não há dúvidas que os Autores ora Recorridos iniciaram a posse do caminho a partir de 25/09/1998, como proprietários do terreno “Tap……”, precisamente após a sua aquisição, para aceder ao seu prédio.
11 - Este lapso de tempo – 5 anos - é uma não questão, porquanto não releva para a contagem do prazo de usucapião que é, no caso, de 20 anos, lapso temporal que se completou em 2018.
12 - Os Autores ora Recorridos exerceram a posse sobre a dita faixa de terreno em nome próprio, pelo que não tem cabimento algum, neste caso, a aplicação do disposto no artigo 1253º do C.C.
13 - Sem prejuízo do atrás mencionado, com base nos factos provados pelo Douto Acórdão, nomeadamente o facto: “O acesso dos Autores ao seu prédio através do caminho supra descrito existente no prédio da foi sempre feito na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem”, chegaríamos à conclusão da boa-fé na posse dos Autores ora Recorridos.
14 – Com o reconhecimento da servidão de passagem a onerar o prédio da Ré ora Recorrente, só esta fica vinculada à obrigação de não praticar qualquer acto que estorve, perturbe ou impeça o uso da servidão.
15 - Tal obrigação omissiva, recai em exclusivo no dono do prédio serviente e não pode ser realizada por terceiro em sua substituição.
16 - Daí que a obrigação de não estorvar e ou perturbar o exercício da servidão é uma obrigação infungível, com cabimento no disposto no artigo 829º-A, nº 1 do C.C.
17- Bem andou o Tribunal da Relação na aplicação de tal sanção, cuja finalidade é a de servir de reforço da decisão judicial (do Acórdão), contribuindo para o respeito dessa decisão judicial e para o inerente prestígio da justiça, que se impunha face à atitude prepotente da Ré ora Recorrente.


II – FACTOS PROVADOS.
Foi considerado provado:  
1. Os Autores, AA e BB, são donos de um prédio rústico denominado “Ta.......”, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ……32º da Secção ….. da União de Freguesias ….…., composto de olival e cultura arvense, e descrito na Conservatória do Registo Predial …… sob o n.º …..02, com a aquisição registada a favor dos AA., mediante a apresentação n.º …… de 2005/10/17.
2. O aludido prédio rústico confronta a norte com CC e DD; Sul e poente com CC, actualmente o prédio rústico da Ré; e a nascente com DD.
3. Os AA. compraram o seu prédio a EE, mediante escritura de compra e venda outorgada a 25/09/1998, no Cartório Notarial …...
4. A partir dessa data, há mais de 20 anos, os Autores passaram a entrar naquele prédio, vigiando-o, reconstruindo e fazendo várias obras e melhoramentos nas suas edificações (dependências agrícolas e estábulos de animais), cultivando-o, colhendo os frutos e aí também, criando gado bovino.
5. Os Autores fizeram-no à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, e sem que alguém, alguma vez que fosse, a tal se tenha oposto ou levantado qualquer dúvida ou reparo, e de forma ininterrupta no tempo.
6. Encontra-se registado a favor da Ré, “F.J. Duarte – Projectos e Consultadoria de Construção Civil, Lda.”, a propriedade sobre o prédio sito ou denominado “T.........”, na Conservatória do Registo Predial do ….. com o n.º ……17, mediante a apresentação n.º ….. de 2019/11/19, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …..33º da Secção ….., da União de Freguesias …….., tendo celebrado a escritura pública de compra e venda lavrada a 19 de Dezembro de 2019, na Conservatória do Registo Predial …….
7. O prédio rústico da Ré, composto de cultura arvense, oliveiras, sobreiros e prado natural, que confronta a Norte com FF; a Sul com Caminho Público, a Nascente com EE (actualmente o prédio dos Autores).
8. Desde há mais de 20 anos que o acesso ao prédio dos Autores se tem feito através de um caminho no prédio da Ré, em terra batida, diferenciado dos terrenos marginais, pela passagem de veículos, com uma largura variável entre o mínimo de 4,5 metros e o máximo de 6 metros, e com um comprimento de aproximadamente de 600 metros.
9. Caminho esse, cuja trajectória se inicia junto ao caminho público, com uma entrada sita na parcela 4, onde existe uma cancela fechada a cadeado, e que continua atravessando a parcela 4, a descrever uma ligeira curva à direita e, continuando a percorrer já sobre a parcela n.º 3, tudo no prédio da Ré, até atingir o prédio dos Autores, onde aí se localiza uma entrada, na qual existe um portão em ferro, seguro por dois mourões, que assinalam a entrada do prédio dos Autores, no exacto sítio onde hoje existem dois muros e um portão dentro da propriedade dos Autores.
10. Nos últimos 20 anos, os Autores sempre utilizaram o referido caminho, nele passando e nele fazendo passar carros, tractores, camionetas, máquinas agrícolas, grades e reboques, sempre que se mostrou necessário para proceder ao transporte de pessoas, animais e materiais de construção e outros bens.
11. Caminho este usado por quem se dirigia ao prédio dos Autores, para a entrada e saída do mesmo para a via pública.
12. No prédio identificado em 1º e 2º, os Autores sempre se dedicaram à criação de gado bovino e também à exploração de olival.
13. A ligação do prédio dos Autores com a via pública foi, por ali, realizada para o transporte de palhas, para alimentação do gado bovino e, todo o transporte de gado bovino foi igualmente por ali assegurado, por camionetas de pelo menos, 6 mil quilos.
14. E bem assim, foi por ali realizado o transporte de material de construção para o prédio dos Autores, para a realização de obras, benfeitorias e melhoramentos, quer nas dependências agrícolas, quer nos estábulos das vacas ali existentes, e também na colocação de postes de alta tensão eléctrica, para distribuição de energia eléctrica, que os Autores foram realizando ao longo desse tempo.
15. O que os Autores fizeram à vista e com conhecimento de toda a gente.
16. O que tudo fizeram de modo pacífico, público, contínuo no tempo e sem que alguém, alguma vez que fosse, a tal se tenha oposto ou sobre isso manifestasse qualquer dúvida ou reparo.
17. O referido caminho, nos últimos 20 anos, sempre esteve perfeitamente delimitado dos terrenos que o ladeiam, em terra batida e com sulcos vários, resultantes de passagem regular de pessoas, carros, tractores, máquinas agrícolas e camionetas.
18. E no local onde o mesmo caminho entra no prédio dos Autores sempre existiu nos últimos 20 anos, uma abertura de cerca de 3,5 metros, a evidenciar e a atestar essa mesma entrada.
19. Todos estes sinais sempre existiram nos últimos 20 anos de modo visível por qualquer interessado, e com carácter estável e, por isso, permanente, atestando de modo facilmente perceptível a qualquer pessoa ou interessado, a existência de um caminho.
20. O Autor marido explorou o prédio da Ré, mediante um acordo de arrendamento rural com os anteriores donos, com início a 1 de Outubro de 1988, e aí esteve nessa qualidade durante 15 anos.
21. Após o termo do aludido acordo de arrendamento, os Autores continuaram a passar pelo prédio da Ré para aceder ao seu prédio.
22. Os anteriores donos do prédio da Ré exploraram directamente o prédio entre 1 de Outubro de 2003 e 2009.
23. Entre 2009 e 2019, as pastagens do terreno da Ré foram cedidas a GG.
24. E aquele GG colocou uma cancela na entrada do prédio da ora Ré, que fechou a cadeado.
25. Após o que aquele entregou aos Autores uma chave, com a qual estes passaram a abrir e fechar o referido cadeado, sempre que se dirigiam e ou regressavam do seu prédio.
26. Também entregou uma chave aos caçadores.
27. No dia 27 de Novembro de 2019, o representante legal da Ré, HH, atravessou um jeep no aludido caminho e, desse modo, impediu um trabalhador do Autor de percorrer o referido caminho, quando ali circulava com um tractor em direcção, e com destino ao prédio dos Autores.
28. No dia 28 de Novembro de 2019, a Ré mudou o cadeado da aludida cancela da entrada do seu prédio.
29. Mais tarde, a 12 de Janeiro de 2020 a Ré entaipou com pedra e vedou com arame farpado, a abertura que se encontra na parte final do referido caminho, por onde os Autores acediam ao seu terreno.
30. Desde modo, os Autores ficaram impedidos de percorrer o referido caminho para aceder ao seu prédio.
31. Acresce que o prédio dos Autores não tem acesso directo a caminho público, porquanto se encontra ladeado de todos os seus lados por outros prédios rústicos que não lhe pertencem.
32. Os Autores não ficaram impedidos de entrar e sair do seu terreno, porque o Autor marido, desde há 30 anos, tomou a utilização do prédio rústico inscrito sob o artigo ….29º da secção ….. da União de Freguesias ….…….
33. O aludido prédio rústico, denominado “Q.......”, tem acesso directo à via pública, e confina a sul com o prédio rústico dos Autores.
34. Os Autores exploram no seu prédio um olival regado, e colocaram à entrada do aludido prédio rústico, denominado “Q.......”, ao lado do portão de entrada deste, uma placa publicitária da empresa R.......
35. O acesso ao terreno dos Autores, por meio deste prédio, a partir da via pública faz-se por um caminho de cerca de 620,58m, de terra batida, de piso consolidado, com grande largura, com vestígios de passagem regular de pessoas, e veículos ligeiros e pesados.
36. No trajecto deste caminho existem algumas porteiras.
37. O referido caminho encontra-se mais perto da povoação …….
38 - O acesso dos Autores ao seu prédio através do caminho descrito em 8. e 9, já existente no prédio da Ré, foi sempre feito na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem (este último facto foi aditado pelo acórdão recorrido na sequência da procedência da impugnação de facto apresentada pelos AA.).


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 - Constituição da servidão de passagem em favor dos AA. Prova do animus possidendi dos AA. durante todo o período em que teve lugar o exercício dos poderes de facto (corpus) inerente à utilização do caminho em causa, situado na propriedade da Ré. Alteração no elenco dos factos provados ordenada pelo Tribunal da Relação ….., actuando como última instância em matéria de facto.
2 – Fixação de sanção pecuniária compulsória. Obrigações fungíveis e infungíveis. Fundamento e aplicação concreta do instituto.
Passemos à sua análise:   
1 - Constituição da servidão de passagem em favor dos AA. Prova do animus possidendi dos AA. durante todo o período em que teve lugar o exercício dos poderes de facto (corpus) inerente à utilização do caminho em causa, situado na propriedade da Ré. Alteração no elenco dos factos provados ordenada pelo Tribunal da Relação ……, actuando como última instância em matéria de facto.
Nos termos do artigo 1543º do Código Civil: “Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.
Na situação sub judice, a constituição do pretendido direito real de passagem assenta no instituto da usucapião, tal como foi invocado pelos AA., tendo por fundamento o regime definido nos artigos 1547º (“as servidões prediais podem ser constituídas por (...) usucapião (...)” e 1548º (“as servidões não aparentes podem ser constituídas por usucapião” e “consideram-se não aparentes as servidões que não por sinais visíveis e permanentes”), do Código Civil.
Nos termos gerais do artigo 1287º do Código Civil: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício correspondente a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
Como refere Luís Carvalho Fernandes in “Lições de Direitos Reais”, Quid juris, 1996, páginas 383 e 392: “O direito de servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício das utilidades do primeiro (...) Em relação à constituição negocial ou por usucapião não há particularidades significativas a assinalar, para além da referência (...) à inviabilidade de, pelo último meio, se adquirirem servidões não aparentes (nº 1 do artigo 1548º)”.
No presente recurso de revista a recorrente invoca, com vista a contrariar a decisão de reconhecimento da constituição da servidão de passagem por usucapião, negada no tribunal de 1ª instância mas reconhecida pelo acórdão recorrido do Tribunal da Relação ……, as seguintes questões essenciais:
1º - A existência de um outro caminho ao dispor dos AA. que lhes permite aceder ao seu prédio, fazendo ligação com a via pública;
2º - A fundada dúvida quanto ao “animus” dos AA. na utilização do caminho situado na propriedade da Ré, quando o A. assumiu a qualidade de inquilino do terreno em que o mesmo se situa (de 1998 a 2003), qualificando-o apenas como mera detenção, insusceptível de conduzir à aquisição desse direito real de gozo (servidão predial) por usucapião, nos termos do artigo 1253º do Código Civil.
Vejamos:
Quanto à primeira questão, o argumentário esgrimido pela Ré não pode, por sua natureza, relevar, na medida em que a existência de outro caminho à disposição do proprietário do prédio dominante, só importará nos casos de constituição da servidão aparente fundada no encravamento de prédios, tal como se encontra previsto no artigo 1550º do Código Civil.
Ao invés, tal circunstância não interfere com a aquisição do direito real de passagem com fundamento no instituto da usucapião, assente na posse exercida durante o lapso de tempo exigido pela lei para a aquisição originária do direito real de gozo em apreço, desde que provados todos os requisitos legais de que necessariamente depende.
Pelo que não assiste razão à Ré, neste tocante, sendo certo que a respectiva invocação relacionava-se principalmente com a alegada postura processual de má fé que, no seu entender, foi assumida pelos AA. nos presentes autos.
A segunda questão tem a ver com a análise do conjunto dos factos dados como provados e, mais concretamente, com a materialidade que se reporta à concreta convicção de possuidores em nome de outrem que teria presidido à utilização da passagem em causa entre os anos de 1998 e 2003, o que impediria os AA., nos termos do artigo 1253º do Código Civil, de adquirir o direito real de passagem por usucapião (impossibilitando-os de perfazer o prazo de vinte anos necessário para o efeito).
Ou seja, a decisão jurídica propugnada pela recorrente dependia intrinsecamente da concreta análise da prova produzida no processo, quanto à real e efectiva convicção dos AA. no exercício dos poderes de facto sobre aquela faixa de terreno, situada no prédio da Ré (serviente), e que constituía o caminho para acederem ao seu prédio (dominante).
 Importava apurar, portanto, se, no plano estritamente factual, durante o período temporal apontado (entre 1998 e 2003), os AA. sabiam que tal caminho era alheio e que, nessa medida, a sua utilização se devia apenas e só à sua qualidade de inquilino, exercendo dessa forma a sua posse em nome de outrem, por mera tolerância do seu legítimo proprietário.
Ou se, pelo contrário, e não obstante tal qualidade jurídica, os AA. actuaram convictos de que atravessavam o caminho por direito próprio, enquanto verdadeiros possuidores, sem ofender os direitos de outrem.
Trata-se, por conseguinte, do apuramento de um determinado juízo psicológico – a concreta convicção pessoal subjacente a assunção de determinada conduta relacionada com o uso de um determino espaço físico (caminho) que dava acesso à sua propriedade – que constitui em si matéria de facto e que, nessa medida, teria que ser necessariamente objecto da inerente instrução probatória.
Em 1ª instância, o juiz a quo considerou que o exercício dos poderes de facto, durante o citado período, não era acompanhado de animus possidendi, mas simples animus detinendi, em conformidade com o que se dispõe no artigo 1253º do Código Civil, não havendo os AA. agido com intenção de beneficiários do direito (jus in re), tendo assim que ser necessariamente considerados apenas como meros detentores ou possuidores precários.
Esta conclusão jurídica originou que tivessem sido dados como não provados os seguintes factos essenciais:
- que os AA. (durante todo o tempo necessário para a aquisição da servidão através da usucapião) agissem na convicção de estarem a exercer um direito próprio, sem lesar direitos e interesses de ninguém;
- que os AA. estivessem convencidos de que tinham o direito de passagem, a pé e de carro, em benefício do seu prédio e onerando o prédio da Ré.
Trata-se de uma posição que se conjuga, de forma aparentemente coerente, com a circunstância de o A. utilizar já há anos aquele prédio (antes de haver adquirido o seu), apenas como rendeiro (inquilino), com plena consciência de que não lhe pertencia e que poderia legitimamente atravessá-lo atenta tal qualidade jurídica e não outra.
Porém, havendo os AA. impugnado a decisão de facto quanto a estes pontos essenciais, nos termos e com observância do disposto do artigo 640º do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação …., depois de ter procedido à audição da prova registada por gravação, concedeu-lhes inteira razão e alterou por completo o elenco e sentido dos factos provados e não provados.
Assinalou que “a circunstância de, durante um curto período de tempo, o A. ter sido também inquilino do prédio serviente não tem qualquer relevância para a questão decidenda, já que, como decorre dos factos provados, o caminho em causa estabelece a ligação entre a via pública e o prédio do Autor – pelos menos adquirido em 1998 -, sendo inevitável que, desde então, por esse motivo, o passasse também a usar”.
Neste mesmo sentido, o Tribunal da Relação …. ordenou que se aditasse ao elenco dos factos provados que:
“O acesso dos Autores ao seu prédio através do caminho descrito em 8. (que está aqui em causa), já existente no prédio da Ré, foi sempre feito na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem”. 
Ora, nos termos gerais dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça carece de competência para apreciar e modificar a decisão sobre matéria de facto, discutida nas instâncias inferiores, com as excepções que a lei prevê, e que manifestamente não se verificam na situação sub judice (a eventual violação do direito probatório material ou a insuficiência da decisão de facto para servir de base suficiente à decisão de direito).
Nenhuma questão se suscita (nem foi levantada), em relação ao eventualmente incorrecto exercício dos poderes de facto pelo Tribunal da Relação ….., aquando da sindicância do juízo emitido nessa matéria pelo juiz a quo, nos termos gerais do artigo 662º do Código de Processo Civil.
A discussão em torno da prova dos factos essenciais que sustentam as pretensões jurídicas em contraposição – mormente os que se prendem com o concreto animus dos AA. aquando da utilização ininterrupta do caminho existente no prédio da Ré - terminou no seu juízo decisório autónomo emitido pelo Tribunal da Relação ….. (que actuou como última e definitiva instância quanto a esta matéria).
Assim sendo, e independentemente do mérito ou demérito da solução prevalecente (a do Tribunal da Relação …..), há que tomar apenas em consideração o elenco dos factos dados assentes definitivamente provados, onde assume especial relevo a referida modificação introduzida pelo Tribunal da Relação ….., na sequência da impugnação da decisão de facto apresentado pelos apelantes.
Logo, encontra-se dado como provado que:
Desde há mais de 20 anos que o acesso ao prédio dos Autores se tem feito através de um caminho no prédio da Ré, em terra batida, diferenciado dos terrenos marginais, pela passagem de veículos, com uma largura variável entre o mínimo de 4,5 metros e o máximo de 6 metros, e com um comprimento de aproximadamente de 600 metros.
 Caminho esse, cuja trajectória se inicia junto ao caminho público, com uma entrada sita na parcela 4, onde existe uma cancela fechada a cadeado, e que continua atravessando a parcela 4, a descrever uma ligeira curva à direita e, continuando a percorrer já sobre a parcela n.º 3, tudo no prédio da Ré, até atingir o prédio dos Autores, onde aí se localiza uma entrada, na qual existe um portão em ferro, seguro por dois mourões, que assinalam a entrada do prédio dos Autores, no exacto sítio onde hoje existem dois muros e um portão dentro da propriedade dos Autores.
 Nos últimos 20 anos, os Autores sempre utilizaram o referido caminho, nele passando e nele fazendo passar carros, tractores, camionetas, máquinas agrícolas, grades e reboques, sempre que se mostrou necessário para proceder ao transporte de pessoas, animais e materiais de construção e outros bens.
Caminho este usado por quem se dirigia ao prédio dos Autores, para a entrada e saída do mesmo para a via pública.
No prédio identificado em 1º e 2º, os Autores sempre se dedicaram à criação de gado bovino e também à exploração de olival.
 A ligação do prédio dos Autores com a via pública foi, por ali, realizada para o transporte de palhas, para alimentação do gado bovino e, todo o transporte de gado bovino foi igualmente por ali assegurado, por camionetas de pelo menos, 6 mil quilos.
 E bem assim, foi por ali realizado o transporte de material de construção para o prédio dos Autores, para a realização de obras, benfeitorias e melhoramentos, quer nas dependências agrícolas, quer nos estábulos das vacas ali existentes, e também na colocação de postes de alta tensão eléctrica, para distribuição de energia eléctrica, que os Autores foram realizando ao longo desse tempo.
O que os Autores fizeram à vista e com conhecimento de toda a gente.
 O que tudo fizeram de modo pacífico, público, contínuo no tempo e sem que alguém, alguma vez que fosse, a tal se tenha oposto ou sobre isso manifestasse qualquer dúvida ou reparo.
O referido caminho, nos últimos 20 anos, sempre esteve perfeitamente delimitado dos terrenos que o ladeiam, em terra batida e com sulcos vários, resultantes de passagem regular de pessoas, carros, tractores, máquinas agrícolas e camionetas.
E no local onde o mesmo caminho entra no prédio dos Autores sempre existiu nos últimos 20 anos, uma abertura de cerca de 3,5 metros, a evidenciar e a atestar essa mesma entrada.
Todos estes sinais sempre existiram nos últimos 20 anos de modo visível por qualquer interessado, e com carácter estável e, por isso, permanente, atestando de modo facilmente perceptível a qualquer pessoa ou interessado, a existência de um caminho.
 O Autor marido explorou o prédio da Ré, mediante um acordo de arrendamento rural com os anteriores donos, com início a 1 de Outubro de 1988, e aí esteve nessa qualidade durante 15 anos.
Após o termo do aludido acordo de arrendamento, os Autores continuaram a passar pelo prédio da Ré para aceder ao seu prédio.
Os anteriores donos do prédio da Ré exploraram directamente o prédio entre 1 de Outubro de 2003 e 2009.
Entre 2009 e 2019, as pastagens do terreno da Ré foram cedidas a GG, que colocou uma cancela na entrada do prédio da ora Ré, que fechou a cadeado.
 Após o que aquele entregou aos Autores uma chave, com a qual estes passaram a abrir e fechar o referido cadeado, sempre que se dirigiam e ou regressavam do seu prédio.
 Acresce que o prédio dos Autores não tem acesso directo a caminho público, porquanto se encontra ladeado de todos os seus lados por outros prédios rústicos que não lhe pertencem.
 O acesso dos Autores ao seu prédio através do caminho descrito, já existente no prédio da Ré, foi sempre feito na convicção de que lhes assistia tal direito de passagem (facto foi aditado pelo acórdão recorrido na sequência da procedência da impugnação de facto apresentada pelos AA.).
Vejamos:
Perante a fixação como provada de toda esta extensa factualidade (assente definitivamente em 2ª instância), não cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça debruçar-se agora sobre as dúvidas a este respeito retomadas pela Ré quanto ao animus que presidiu ao exercício dos poderes de facto por parte dos AA. (por mais fundadas que possam eventualmente parecer).
Como se salientou, tal discussão, no plano factual, encerrou-se com a prolação do acórdão do Tribunal da Relação …., que não é sindicável quanto ao acerto da decisão tomada relativamente ao mérito da impugnação de facto.
 Assim, havendo que considerar que os AA. sempre agiram como possuidores e não como meros detentores, cumpre reconhecer a constituição da servidão de passagem pelo caminho descrito, com base na usucapião, cujos requisitos, nesses precisos termos, se encontram inteiramente reunidos (posse pública, pacífica, na convicção do exercício do direito correspondente e sem consciência de lesar os direitos de outrem, ininterruptamente, durante um lapso de tempo não inferior a vinte anos).
Nenhum reparo há a fazer, portanto, ao acórdão recorrido quanto ao reconhecimento da constituição da servidão de passagem, revelado, em termos inequívocos, por sinais visíveis e permanentes, nos termos supra descritos, conforme exige do artigo 1548º, nº 2, do Código Civil.
Nega-se, portanto, a revista neste tocante.
2 – Fixação de sanção pecuniária compulsória. Fundamento legal.
Entende a Ré não existir fundamento legal para a imposição de sanção pecuniária compulsória, face à fungibilidade da obrigação que sobre si impende.
De todo o modo, a decidir-se diferentemente, pugna pela diminuição do seu montante diário.
Apreciando:
Nos termos do artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil:
“Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar no pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for conveniente às circunstâncias do caso”.
A questão jurídica que se coloca é a de saber se a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil, que pressupõe a infungibilidade no cumprimento da prestação, será aplicável na situação sub judice, quando o pedido dos AA. tem a ver com a condenação da Ré na abstenção de qualquer acto que consubstancie oposição ou perturbação do gozo da servidão de passagem de que aqueles beneficiam e que foi constituída por usucapião e que abrange a retirada dos obstáculos físicos que opôs à passagem pelo local, nos termos supra descritos.
Vejamos: 
A sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829º-A, nº 1, do Código de Processo Civil, constitui basicamente um expediente técnico-jurídico que tende a funcionar como de meio de coerção, destinando-se a compelir o devedor a assumir a conduta a que, em termos pessoais, está obrigado através de decisão judicial condenatória.
Refere João Calvão da Silva in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Almedina, 1987, a página 502:
“Meio de constrangimento sobre o obrigado para o induzir a cumprir a obrigação a que está adstrito, a sanção pecuniária compulsória tem o domínio de aplicação confinado às obrigações infungíveis, não susceptíveis de execução in natura.
Esta técnica coercitiva está consagrada para funcionar subsidiariamente, isto é, onde a execução específica não possa ter lugar, pondo à disposição do credor um mecanismo que, graças à pressão que exerce sobre o devedor rebelde, lhe permita obter o cumprimento a que tem direito, sem ter que resignar-se, à partida, a receber uma simples indemnização”.
No mesmo sentido, refere Luís Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Volume II, Almedina, 7ª edição, Março de 2010, a fls. 289:
“(...) o legislador admite a sanção pecuniária compulsória em termos extremamente limitados, já que esta não pode ser decretada oficiosamente pelo tribunal, exigindo-se o requerimento do credor, e só é permitida em relação a obrigações de facto infungível, positivo ou negativo”.
Outrossim, Mário Júlio Almeida e Costa salienta o carácter muito limitado do referido instituto quando refere no “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora 1984, 4ª edição, a página 748: “o legislador admite o instituto em termos muito limitados. Na verdade, só pode funcionar em obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo”, salientando o mesmo autor, em nota de rodapé (1) na mesma página: “Para as prestações de facto fungível e de facto negativo importa atentar nos remédios, respectivamente, dos artigos 828º e 829º”.
Por outro lado, advertem Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 1986, a página 106 que: “Nas situações do tipo previsto no artigo 829º (obrigação da prestação de facto negativo, violada pelo devedor), nada obstará mesmo a que o credor, em vez de exigir a demolição (por terceiro ou pelo próprio devedor) à custa do devedor, requeira a condenação na multa diária a que a lei se refere, até que, por si mesmo, promova a demolição da obra”. (sublinhado nosso).
 O instituto da sanção pecuniária compulsória previsto no artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil reveste, portanto, um campo de aplicação limitado.
Encontra-se reservado para as situações de prestação de facto infungível (comportando ainda a especial ressalva constante do nº 1 do artigo 829º-A do Código Civil), quando o que está em causa é a necessidade de compelir o devedor, pessoalmente, a prática de um determinado acto que se impõe que prossiga ou à sua abstenção de certa conduta ilícita que desse modo se visa persuasivamente evitar.
(Vide a seguinte jurisprudência: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2012 (relator Gregório de Jesus), processo nº 6628/04.2TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que: “Com a sanção pecuniária compulsória pretende-se obter um meio que simultaneamente assegure o cumprimento das obrigações e o respeito das decisões judiciais, a favor do prestígio da justiça, pois que contribui para uma melhor, mais célere e eficaz administração desta, com dispensa quase sempre do processo executivo, por natureza, longo, dispendioso e, muitas vezes, ineficaz”; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Março de 2019 (relator Oliveira Abreu), processo nº 225/13.9YHLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, em que se salienta: “a sanção pecuniária compulsória tem por objectivo não propriamente indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora, antes o de impelir o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição, da sua displicência ou mesmo negligência. Na fixação do seu quantum, deve ser tomada em consideração a capacidade económica e financeira do obrigado e a pressão psicológica que a expectativa do agravamento da sanção é susceptível de exercer”; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 2019 (relator Olindo Geraldes), processo nº 69/12.5TBPRL.E2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se conclui que: “A prestação é fungível, quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor. É infungível se o devedor não puder ser substituído no cumprimento por terceiro (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2000, pág. 97)”; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Julho de 2011 (relator Filipe Caroço), processo nº 667/10.1TVPRT.P1 publicado in www.dgsi.pt, onde se salientou que: “O instituto da sanção pecuniária compulsória, inspirado nas astreintes do modelo francês, está previsto no art.º 829º-A do Código Civil, do qual releva aqui o respectivo nº 1 (a chamada sanção pecuniária compulsória judicial). Trata-se de uma forma de coacção ou intimidação do devedor ao cumprimento da prestação devida, um meio preventivo imposto ex ante, visando primeiramente, compelir o obrigado ao cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, evitando o não cumprimento violador da ordem jurídica. Além de favorecer o interesse do credor, numa perspectiva de moralização e de eficácia, tal instituto dá substância ao prestígio da justiça e ao respeito pelas decisões dos tribunais enquanto órgãos de soberania. Daí que não vise compensar prejuízos futuros, nem funcione como indemnização e, por isso, é dela independente e com ela cumulável, mesmo que fixada por cláusula penal, antes funcionando como seu reforço (cf. nº 2 do mesmo artigo), no sentido de garantir eficácia ao direito do credor. A adopção deste instituto visou suprir as insuficiências e inaptidão das figuras da execução específica e sub-rogatória, para obter eficazmente o cumprimento das obrigações infungíveis a que o credor tem direito”).
Face à procedência do pedido principal formulado nesta acção, com o reconhecimento da constituição, por usucapião, da servidão de passagem sobre o prédio da Ré, impende sobre esta a obrigação de retirar, de imediato,  os obstáculos que aí colocou para impedir o acesso dos AA. ao seu prédio, através do mencionado caminho, proporcionando todas as condições para que passem a dispor, em pleno, das utilidades que lhes são conferidas pela servidão de passagem, sem as perturbar ou estorvar minimamente.
Deverá assim fazê-lo em estreita obediência à presente decisão judicial, de carácter injuntivo e definitivo.
Embora o sistema judicial preveja meios processuais coercivos para obrigar à retirado desses mesmos obstáculos, a efectuar por terceiro (agentes de autoridade), à custa da Ré, caso esta opte por não dar o cumprimento ao decidido, nada obsta, nestas circunstâncias, à imposição da sanção pecuniária compulsória requerida pelos AA. (neste mesmo sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada supra).
Com efeito, trata-se de uma forma prática e eficaz de demover a possível resistência do obrigado (denunciada, em particular, através do comportamento enérgico e musculado que expressa a firme e inabalável oposição que desde sempre manifestou ao reconhecimento do direito de passagem dos AA.), reforçando-se desse modo a imperatividade da decisão judicial e persuadindo fortemente ao seu pronto acatamento, sem mais delongas ou hesitações.
Na situação sub judice, a futura abstenção da prática de actos que impeçam o gozo da servidão predial constituída, reveste a natureza de obrigação infungível, na medida em que só poderá ser acatada pessoalmente pela Ré.
É ela – e não qualquer outro sujeito – a quem, enquanto proprietária do prédio serviente, compete, com base na decisão judicial proferida, permitir o gozo de determinadas utilidades (associadas à servidão predial constituída) que oneram o imóvel, sendo a única pessoa jurídica que deverá, através do seu legal representante, adoptar a postura omissiva propiciadora da plena efectivação do direito de passagem reconhecido aos AA.
Por outro lado, a aplicação da sanção pecuniária compulsória pressupõe o prévio incumprimento da obrigação em causa por parte do sujeito que lhe opõe ilícita resistência, que o instituto visa coercivamente demover, convencendo-o, desse modo, a realizar o que, por sua exclusiva e livre vontade, não estaria à partida disposto a aceitar.
Na situação sub judice, a Ré, adquirente recente do imóvel sobre o qual incide a servidão de passagem tentou, em termos de facto consumado, com atravessamento de um jipe no local e construção de variados obstáculos físicos à passagem pelo dito caminho, evitar a todo o custo a sua utilização pelos AA., violando assim o direito que lhes assistia.
Embora, os AA. pudessem socorrer-se da execução relativa à violação da obrigação que tem por objecto um facto negativo, prevista no artigo 876º, do Código de Processo Civil, onde lhes seria lícito a pedir o pagamento de quantia devida a título de sanção pecuniário compulsória, nada obsta, em termos legais, à imediata fixação da sanção pecuniária compulsória, justificada e que adequada ao incumprimento do dever de permitir aos AA. o gozo da servidão de passagem ora indiscutivelmente reconhecida.
Quanto ao respectivo montante, atendendo às particularidades da situação sub judice, afigura-se-nos ajustada a fixação do montante diário de € 200,00 (duzentos euros), devidos por cada dia em que a Ré, por algum meio, impeça, perturbe ou estorve, o pleno gozo dos direitos que a servidão de passagem constituída por usucapião, sempre sem prejuízo de outros direitos indemnizatórios a atribuir aos AA., noutra sede, em caso de futuro incumprimento por parte da Ré.
Procede parcialmente a revista neste ponto.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder provimento parcial à revista, com a alteração do montante diário da sanção pecuniária compulsória que passará a fixar-se em € 200,00 (duzentos euros) por cada dia em que a Ré impeça, perturbe ou estorve, o pleno gozo dos direitos que a servidão de passagem constituída por usucapião, confirmando-se o acórdão recorrido na parte sobrante.
Custas pela recorrente e pelos recorridos, na proporção de 4/5 (quatro quintos) para a primeira e 1/5 (um quinto) para os segundos, atento o respectivo decaimento.


Lisboa, 22 de Junho de 2021.


Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

(Tem o voto de conformidade dos Exmºs Adjuntos Conselheiros Ana Paula Boularot e Fernando Pinto de Almeida, que compõem este colectivo, nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março).


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.