Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
317/15.0T8TVD.L1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
LOTEAMENTO
REGIME APLICÁVEL
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4, 639.º, N.ºS 1 E 2 E 672.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1287.º, 1376.º, N.º1 E 1377.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-03-2014, PROCESSO N.º 1394/04.4PCAMD.L1.S1;
- DE 26-01-2016, PROCESSOS N.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1;
- DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 6000/16.1T8STB.E1.S1, WWW.DGSI.PT;
- DE 02-05-2019, PROCESSO N.º 514/07.1TBGDL.E1.S1;
- DE 30-05-2019, PROCESSO N.º 916/18.8T8STB.E1.S2.
Sumário :

I. A data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse.

II. No caso dos autos, a usucapião invocada pela A. reporta-se ao início da posse, datada de 1986.

III. Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, a lei aplicável é, sem dúvidas, a vigente à data do início da posse. Será assim essa lei que indicará se pode haver fraccionamento do prédio e de o mesmo for fraccionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem. O mesmo se diga em matéria de loteamento urbano, licenças e dispensas.

IV. À luz da lei vigente em 1986 o fraccionamento não seria nulo, quando muito anulável.

V. Para ser anulável, a lei também impunha que o fraccionamento se reportasse a terrenos aptos para cultura.

VI. Ora, no caso dos autos, está claramente provado que a reivindicação do prédio em causa não está relacionada com qualquer utilização (anterior, ou futura) do mesmo relacionada com actividade agrícola, florestal ou pecuária, ou, nas palavras da lei, aptidão para cultura.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA e BB interpuseram recurso da sentença proferida na acção declarativa sob a forma de processo cumum que contra ambos foi intentada pela Associação Cultural e Desportiva CC.

2. A Associação Cultural e Desportiva CC formulou os pedidos de condenação dos Réus AA e BB que se seguem:
- O reconhecimento da aquisição da propriedade pela Autora em 1984 da área de 5.406 metros quadrados do prédio misto sito no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., da freguesia do ... e inscrito na matriz predial a parte urbana sob o artigo ... e a parte rústica sob o artigo 16 da secção A, ambos da freguesia do ..., por via da doação verbal efectuada por DD e mulher;
- Caso assim não se entenda, o reconhecimento da aquisição originária por via de usucapião, da área de 5.406 metros quadrados do prédio misto sito no Sítio ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ... da freguesia do ... e inscrito na matriz predial a parte urbana sob o artigo ... e a parte rústica sob o artigo 16, da Secção A, ambos da freguesia do ...;
- Se ordene o destaque da área de 5.406 metros quadrados do prédio misto sito no Sítio ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., da freguesia do ... e inscrito na matriz predial a parte urbana sob o artigo ... e a parte rústica sob o artigo 16 da Secção A, ambos da freguesia do ...;
- A condenação dos Réus a pagarem à Autora a quantia de 21.370,00 €, acrescidos de I.V.A. à taxa legal em vigor, a título de indemnização pelos danos causados, acrescida de juros de mora que se vencerem desde a data da citação até efectivo pagamento, bem como de sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º- A, n.º 4, do Código Civil.
Argumenta, sem suma, que:
- Adquiriu, por efeito de doação ou por usucapião, o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno do prédio misto sito no “Casal ...”, para a construção de um campo de futebol;
- É viável o destaque da referida parcela de terreno;
- Os Réus são responsáveis por danos causados à Autora aquando da ocupação da referida parcela de terreno.

3. Os Réus apresentaram contestação, pugnando pela improcedência da acção e sua consequente absolvição do pedido e deduziram pedido reconvencional contra a Autora pedindo que:
- Seja declarado o direito de propriedade do Co-Réu AA sobre o prédio misto composto por casa de habitação de rés do chão, com 5 divisões, com 74,80m2, pátio e arribanas com 97,50m2 e outro pátio com 387,7 m2, vinha, cultura arvense, eucaliptal, pinhal, mato, macieiras, oliveiras e pereiras, com a área total de 132.720m2 , no Sítio do “Casal ...”, freguesia do ..., Concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., inscrito na matriz respectiva da freguesia de ... a parte urbana no artigo ... da matriz urbana da freguesia de ... e a parte rústica no artigo 16 da Secção A da matriz cadastral da freguesia de ...;
- Se declare que a parcela de terreno com a área de 5.406 m2 a que se alude no artigo 11.º da petição inicial é parte integrante do prédio misto mencionado no parágrafo anterior;
- A condenação da Autora a reconhecer o direito de propriedade do Co-Réu FF sobre o prédio e parcela de terreno referidos nos dois parágrafos anteriores;
- A condenação da Autora a entregar imediatamente ao Co-Réu FF a parcela de terreno identificada no artigo 11.º da petição inicial, livre e desocupada de pessoas e coisas;
- A condenação da Autora a abster-se da prática de quaisquer atos que perturbem o direito de propriedade e posse do Co-Réu FF sobre o prédio e parcela de terreno identificados supra no 1.º e 2.º parágrafos do petitório reconvencional;
- A condenação da Autora a pagar ao Co-Réu FF, a título de danos materiais causados direta e necessáriamente pela ocupação da parcela de terreno identificada no artigo 11.º da petição inicial, a quantia de 625,00 € por cada mês de atraso na restituição daquela parcela de terreno a contar da notificação da reconvenção até efectiva restituição, acrescida de juros à taxa legal até efetivo pagamento.
Invocam, em suma, o direito de propriedade dos Réus sobre o prédio misto e parcela de terreno identificados, bem como os danos causados direta e necessariamente pela Autora aos Réus com a ocupação da parcela de terreno reivindicada.

4. A Autora replicou relativamente à matéria do pedido reconvencional contra si deduzido, pugnando pela total improcedência do mesmo, peticionando ainda a ampliação do pedido no sentido da entrega a si da posse definitiva da parcela de terreno mencionada no artigo 11.º da petição inicial.

5. Após arbitramento oficiosamente determinado, fixou-se o valor da causa em 292 120,00 € e remeteram-se os autos à secção Cível da Instância Central de Loures da Comarca de Lisboa Norte.

6. Foi designada data para a realização de audiência prévia e nela foi elaborado despacho saneador, bem como identificado o objeto do litigio e enunciados os temas de prova nos seguintes termos:
«A) Objeto do Litígio:
- A aquisição, pela Autora, por efeito de doação ou por usucapião, do direito de propriedade sobre uma parcela de terreno do prédio misto sito no “Casal ...”, freguesia do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º 464 da referida freguesia e inscrito na matriz predial sob os artigos 439 (parte urbana) e 16, da secção A (parte rústica), ambos da freguesia do ...;
- A viabilidade do destaque da referida parcela de terreno;
- A responsabilidade dos Réus por danos causados à Autora aquando da ocupação da referida parcela de terreno;
- O reconhecimento do direito de propriedade dos Réus sobre o prédio misto e parcela de terreno supra identificados;
- A condenação da Autora na restituição aos Réus da referida parcela de terreno;
- A responsabilidade da Autora por danos causados direta e necessariamente aos Réus com a ocupação da parcela de terreno reivindicada.
B) Constituem Temas da Prova a apurar:
i)  Quando e a que título a Autora passou a ocupar a parcela de terreno em disputa nos autos;
ii) Área, composição e confrontações da referida parcela de terreno;
iii)                  Atuação (material e estados subjetivos) da Autora sobre a mesma parcela de terreno, desde a sua constituição, em 1986, até 4 de Agosto de 2014;
iv) Se até esta data, a Autora sempre foi reconhecida por todos, designadamente pelos Réus, como dona e legítima possuidora da parcela de terreno em disputa nos autos;
v)  O custo da reconstrução do Campo de Futebol e das infra-estruturas existentes na parcela de terreno em causa, que foram destruídos pelos Réus;
vi) O prejuízo que a ocupação, pela Autora, da parcela de terreno em disputa nos autos tem causado direta e necessariamente aos Réus, desde Março de 2015».

7. Produziu-se prova pericial e realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença em que a acção e a reconvenção foram julgadas parcialmente procedentes e, em consequência, se decidiu:
a) Absolver os Réus do pedido de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade pela Autora, por via de doação verbal efectuada por DD e mulher em 1984, da área de 5.406 metros quadrados do prédio misto denominado “Sítio ...” situado no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., da freguesia do ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 439 (parte urbana) e sob o artigo 16, da secção A, (parte rústica), ambos da freguesia do ...;
b) Condenar os Réus no reconhecimento da aquisição originária do direito de propriedade pela Autora, por via de usucapião, da parcela de terreno de 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos), metros quadrados, onde foi erigido um campo de futebol, que confronta pelo Norte, Sul, Nascente e Poente com AA, integrante do prédio misto denominado “Sítio ...”, situado no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., da freguesia do ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ... ( parte urbana ) e sob o artigo 16, da secção A (parte rústica), ambos da freguesia do ...;
c) Determinar que se proceda ao fracionamento/destaque da parcela referida em b), com a área de 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos), metros quadrados do prédio misto denominado “Sítio ...”, situado no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial sob o artigo ... (parte urbana) e sob o artigo 16, da Secção A (parte rústica), ambos da freguesia do ...;
d) Condenar os Réus a pagar à Autora a título de indemnização pelos danos causados pelos mesmos a esta última resultantes da intervenção da retroescavadora no campo de futebol construído na parcela de terreno referida supra em b) e c), na data de 4.8.2014, a quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros), acrescida de juros à taxa legal em vigor vencidos desde a citação até integral pagamento e da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 4 , do Código Civil;
e) Absolver a Autora-Reconvinda do pedido de entrega ao Co-Réu-Reconvinte FF da parcela de terreno onde foi construído o campo de futebol devidamente identificada acima em b) e c);
f) Absolver a Autora-Reconvinda da condenação no pagamento ao Co-Réu FF de indemnização por danos materiais resultantes da ocupação da parcela de terreno onde foi construído o campo de futebol devidamente identificada acima em b) e c);
g) Condenar a Autora-Reconvinda a reconhecer que o Co-Réu FF é titular do direito de propriedade sobre o prédio misto denominado “Sítio ...”, situado no ..., devidamente identificado acima em a), b) e c), com exceção da parcela de terreno com 5.400m2, integrante desse prédio misto, onde foi erigido o campo de futebol, devidamente identificada acima em b) e c), bem como a abster-se da prática de quaisquer actos que perturbem o direito de propriedade e posse do dito Co-Réu Reconvinte sobre o sobredito prédio misto com exceção da sobredita parcela de 5.400m2;
h) Condenar a Autora-Reconvinda e os Réus-Reconvintes nas custas processuais devidas na proporção de 25% para a primeira e de 75% para os segundos;
i) Determinar que após trânsito em julgado da sentença se comunique à competente Conservatória do Registo Predial a fim de se proceder aos necessários cancelamentos e inscrições de acordo com o supra decidido.”

8. Inconformados com o assim decidido, os Réus interpuseram recurso de apelação da sentença, conhecida por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 7 de Março de 2019, que confirmou a decisão recorrida.

9. Novamente inconformados, os RR interpuseram recurso de revista excepcional, atento o obstáculo à revista pela via normal, “dupla-conforme”.

10. A revista foi admitida por via excepcional, por acórdão da formação a que se reporta o art.º 672.º, que decidiu apenas dever ser conhecida a 1ª questão suscitada na revista.

11. Nas conclusões da revista a 1ª questão vem enunciada a partir das seguintes indicações (transcrição):

“1ª Questão suscitada: Decidir sobre a interpretação e a aplicação do disposto nos art.°s 286°, 289°, 294°, 1287°, 1376° e 1377° do Cód. Civil, na Portaria n° 202/70, e, ainda, o disposto nos art.°s 1º e 27° do Dec. Lei 289/73 de 06 de Junho, questão que não está tratada em termos indiscutíveis na jurisprudência, recomendando aprofundada análise pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo em vista a consecução da sua tarefa uniformizadora, sendo, com esse fundamento, que os Recorrentes requerem a admissão do presente recurso, nos termos da alínea a) do n° 1 do art.° 672° do C.P.C..

1.        O douto acórdão recorrido considerou que, com a construção do campo de futebol, a parcela de terreno se destinava a um fim que não a cultura agrícola e que era possível o fracionamento nos termos da alínea a) do art.º 1377º do Cód. Civil.

2.        Os Réus permitem-se, respeitosamente, discordar, pois um campo de futebol, neste caso, uma parcela de terreno em terra batida destinado a recinto de jogo, é obviamente incompatível com a existência (note-se, “dentro das quatro linhas”) de qualquer edifício, o que se constata no caso dos autos.

3. No caso dos autos, a parcela de terreno terraplanada em terra batida, limpa de ervas e destinada a campo de futebol, com duas balizas e por proteção de dois lados do campo, não é, nem pode ser qualificado, como edifício.

4. É por falta de incorporação (ligação fixa, material e permanente ao solo, de tal modo que dele não possa separar-se sem destruição ou danificação do respetivo objeto) que as estruturas desmontáveis (como no caso em questão, proteção em ferro sustentadas em manilhas) não constituem prédios urbanos; a incorporação faz nascer uma unidade entre o solo e a obra nele implantada, constituída por materiais de construção (cimento, tijolos, placas, telhas, pedras, areia, canalizações, fios de eletricidade, etc.) que antes tinham individualidade própria e autonomia económica e jurídica, devidamente combinados e justapostos pelo trabalho humano, em termos de, uma vez incorporados, não mais possam ser separados sem destruição dessa unidade.

5. Das obras referidas no nº 10 dos fatos provados, apenas serão qualificáveis como construção os dois bancos de suplentes, em tijolo, cimento, com cerca de 1,30m de largura e de 1,5m de altura.

6. Todavia, não são decisivos para a qualificação da parcela de terreno como urbana, dada a sua ausência de autonomia económica; e isto porque a noção de prédio rústico não exclui a existência de construções desprovidas de autonomia económica.

7. E permanecendo rústica estava proibido o fracionamento, nos termos do art.º 1376º, nº 1, do Cód. Civil, que dispõe: “Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país”.

8. A parcela de terreno em discussão nos autos faz parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz cadastral da freguesia do ... sob o artigo 16 Secção A, que pertence ao Réu FF, pelo que, nos termos do art.º 1376º do Cód. Civil, não é permitido o fracionamento da referida parcela de terreno em virtude de ter área inferior à unidade de cultura fixada para a zona, concelho de... que era de 40.000m2, nos termos da portaria 202/70 que fixava para os terrenos de sequeiro, nas regiões de Lisboa e Santarém a área de 4 hectares. Unidade de Cultura que atualmente é de 80.000m2, nos termos da Portaria n.º 219/2016 de 9 de Agosto.

9. Pelo que, física e legalmente, a parcela de terreno em discussão nos autos não é apropriável juridicamente pela A., o que significa que sobre ela, como parte do prédio rústico inscrito na matriz cadastral da freguesia do ... sob o artigo 16 Secção A, que pertence ao Réu FF, não pode constituir-se uma relação jurídica com a individualidade própria de usucapião, sem que previamente seja efetuada a sua autonomização jurídica, o seu destaque, o seu fracionamento, que não é permitido, por força do disposto no art.º 1376º do Cód. Civil.

10.      Antes de ter decidido pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito de usucapião, o douto acórdão recorrido deveria ter-se certificado, e não se certificou, de que não se iria consolidar uma situação desconforme com as regras que condicionam o destaque, uma vez que estas são de interesse e ordem pública, não podendo ser ignoradas pelos Tribunais.

11. O douto acórdão recorrido considerou que com a construção de campo de futebol a parcela de terreno se destinava a um fim que não a cultura agrícola, e deveria ter ponderado que nesse caso o fracionamento constituía operação de loteamento e como tal só poderá efetuar-se depois de obtido o respetivo alvará de loteamento (…) (art.º 27º nº 1 do D: nº 289/73 de 6 de Junho) ou de certidão camarária, autorizando o destaque e dispensando o alvará, nos termos da legislação respetiva.

12. Assim, e por efeito do disposto nos art.ºs 294.º e 295.º, ambos do Código Civil, o ato de fracionamento declarado e o destaque/desanexação determinados pela primeira instância e confirmados pelo douto acórdão recorrido padecem de nulidade, não produzindo, consequentemente, quaisquer efeitos jurídicos, nulidade que os Recorrentes invocam e que requerem seja declarada.

13.  Foi identificado como objeto do litígio apurar da viabilidade legal do destaque da parcela de terreno do prédio misto pertencente ao Réu FF e da possibilidade de aquisição por via da usucapião do direito de propriedade sobre a mesma.

14.  Incumbia à A., por se tratar de facto constitutivo da pretendida usucapião, provar a viabilidade do destaque da parcela de terreno em causa, para poder adquirir autonomia jurídica. A A. não fez essa prova, aliás, foi o Réu FF que fez prova da inviabilidade do destaque daquela parcela de terreno.

15.  O Réu FF juntou aos autos de certidão emitida pela Câmara Municipal do ... - Divisão de Ordenamento do Território Apoio Administrativo, em 11 de Agosto de 2017, que certificou a inviabilidade do destaque da parcela de terreno em discussão nos autos, por se tratar de área do prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo 16, da Secção A, da freguesia do ..., incluída em Reserva Agrícola Nacional (RAN), que se define como conjunto de terras que, em virtude das suas características, em termos agroclimáticos, geomorfológicos e pedológicos, apresentam maior aptidão para a atividade agrícola.

16.  Assim, não pode deixar de se concluir que a parcela de terreno em causa,
que a sentença de primeira instância e o douto acórdão recorrido consideraram ter a área de 5.400m2, não adquiriu autonomia jurídica, continuou a fazer parte integrante do prédio rústico inscrito na matriz cadastral da freguesia do ... no artigo 16 Seção A, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...da freguesia do ....

17.  Perante a invalidade do fracionamento da parcela de terreno em discussão nos autos, naturalmente, só pode estar excluída a aquisição por usucapião, sendo indiferente que a A., desde 1986, a venha utilizando, retirando utilidades, fruindo e explorando, de forma pública e pacífica.

18.  Com efeito, continuando a parcela integrada no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº... da freguesia do ..., não há uma situação de posse, mas apenas de detenção, emergente dos atos materiais praticados pela A..

19. [rectifica-se o 18, por repetido] O douto acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente ao caso sub judice o disposto nos art.ºs 1376º e 1377º ambos do Cód. Civil e o disposto nos art.ºs 1º do Dec. Lei nº 289/73, de 6/6, 1º e 2º do Dec. Lei nº 400/84 de 31/12, 1º, 3º, al. a), e 5º, do Dec. Lei nº 448/91, de 29/11, e 2º al. i), 4º e 6º do Dec. Lei nº 555/99, de 16/12, que deveriam ser interpretados e aplicados ao caso dos autos, no sentido de se decidir pela inviabilidade do destaque da indicada parcela de terreno, e, consequentemente, pela improcedência da aquisição pela A. do direito de propriedade sobre tal parcela de terreno, com fundamento na usucapião.

20. Contrariamente ao que o douto acórdão recorrido decidiu, o antepossuidor DD não se demitiu da qualidade de proprietário, pois transmitiu a propriedade da parcela de terreno à compradora GG e, por sua vez, o Réu FF adquiriu a propriedade daquela parcela de terreno que integra o prédio que adquiriu, por compra e por reconhecimento do exercício do direito de preferência (fatos 17, 18, 19 e 20 considerados provados).

21. A decisão de primeira instância e o douto Acórdão recorrido utilizaram na factualidade provada a expressão “doação verbal”, que constitui conceito de direito, decidindo contra a factualidade provada, constante dos factos 17, 18, 19, 20 e 21, provada por documento.

22. Não podendo afirmar-se ou presumir-se que tivesse sido essa a vontade do antepossuidor DD, atenta a factualidade provada por documentos constante dos factos 17, 18, 19 e 20 dos fatos provados, que comprova que DD nunca se demitiu da propriedade da parcela de terreno em causa.

23. Na verdade, em 19/04/1991 DD requereu a retificação da área da parcela urbana do artigo 439 para a harmonizar com a matriz cadastral do artigo 16, Secção A e daí ficar a constar a área de 560m2, tendo, então, indicado que a área total do prédio misto era 132.720m2, sem destacar nem desanexar daquele seu prédio a parcela de terreno de que, apenas, cedeu a utilização ao Grupo Desportivo CC, sem se demitir da qualidade de proprietário da parcela de terreno em questão (fato 17).

24. Posteriormente, por escritura pública celebrada em 20/02/1992, DD e mulher HH venderam a GG, casada com II, o prédio misto no sítio do “Casal ...“, sito na freguesia do ..., concelho do ..., com a área total de 132.720m2 (cento e trinta e dois mil, setecentos e vinte metros quadrados), descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob a descrição nº 464 da freguesia de ..., inscrito na matriz predial a parte urbana no artigo 439 e a parte rústica na matriz cadastral no artigo 16, Secção A, ambos da freguesia do ... (fato 18).

25. Após a cedência verbal da utilização da parcela de terreno em discussão nos autos, DD e mulher continuaram na posse do prédio misto que venderam a GG, a quem transmitiram a posse e a propriedade do referido prédio misto, com a área total de 132.720m2, que abrange e de que faz parte integrante a parcela de terreno em discussão nos autos. Portanto, por mero efeito da escritura de compra e venda, transmitiu-se para a compradora GG a posse do prédio misto que abrange a parcela de terreno em discussão nos autos, por constituto possessório, nos termos do artigo 1264 do Código Civil.

26. Posteriormente, por compra e por reconhecimento do exercício do direito de preferência na aquisição da propriedade do prédio com a área de 132.720m2, transmitiu-se a posse para o Réu AA, por efeito constituto possessório, também, nos termos do artigo 1264 do Código Civil. O facto de a A. deter a utilização daquela parcela de terreno para campo de futebol, não impede nem prejudica a posse do Réu AA, porque a A. nunca teve relativamente ao Réu AA qualquer ato de oposição ao direito de propriedade nem à posse do Réu FF sobre a parcela de terreno em questão.

27. Da factualidade considerada provada nos fatos 17, 18, 19, 20 e 21, resulta que, contrariamente ao que a douta sentença de primeira instância decidiu e o douto acórdão recorrido confirmou, DD cedeu gratuitamente à Comissão de Festas CC e ao Grupo Desportivo CC uma parcela de terreno destinada à construção de um campo de um campo de futebol para o fim - prática de futebol.

28. A partir da data da sua constituição, em 22 de Abril de 1986 (data da constituição da A.), DD continuou a permitir a utilização pela A. daquela parcela de terreno para o referido fim - prática de futebol -, daí a colocação pela A. da placa a que alude o fato 27, em agradecimento ao referido casal pela cedência de utilização daquele parcela de terreno.

29. E após ter adquirido o identificado prédio misto, o Réu FF continuou a autorizar que a A. utilizasse a referida parcela de terreno para a prática do futebol, daí a realização pela A. de um jantar de homenagem à pessoa do Réu FF, e a colocação pela A. da placa, jantar e placa aludidos no fato 28, em agradecimento ao Réu por continuar a autorizar a cedência de utilização daquela parcela de terreno para a prática do futebol.

30. O Réu permitiu que a A. continuasse a utilizar gratuitamente aquela parcela de terreno para campo de futebol, o Réu nunca manifestou vontade de transmitir a propriedade da parcela de terreno em discussão nos autos para a A..

31. Sempre se dirá que estando registada, a favor do Réu, a aquisição do direito de propriedade do prédio do qual faz parte integrante a parcela de terreno identificada no nº 5 dos fatos provados, de harmonia com a regra do art.º 7º do CR. Predial, o Réu registante beneficia da presunção de que o direito de propriedade existe na sua titularidade, nos exatos termos em que o registo o define.

32. O douto Acórdão recorrido não podia ter confirmado a decisão de primeira instância, nem ter ordenado o fracionamento/destaque da área de 5.400m2, do prédio misto, no sítio de “casal ...”, descrito na Conservatória de Registo Predial do ... sob o nº 464 da freguesia do ..., com a área total de 132.760m2, composto por uma parte rústica inscrita na matriz cadastral sob o artigo 16, Secção A, com a área de 132.160m2 e por uma parte urbana com a área de 560m2, inscrito na matriz predial sob o artigo 439 (a parte urbana) ambas da freguesia do ..., sem se ter certificado de que não iria consolidar-se uma situação desconforme com as regras que limitam o fracionamento de prédios rústicos, bem como com as que regulam as operações de fracionamento para fins urbanísticos, sem que a A. tivesse comprovado nos autos o licenciamento do destaque/desanexação ou a dispensa de licenciamento para o destaque/desanexação a certificar pela Câmara Municipal de ....

33.       A usucapião não pode ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre a norma imperativa de proibição de fracionamento quer a contida no art.º 1376º nº 1 do Cód. Civil, quer a contida nos art.ºs 1º e 27º do Decreto-Lei 289/73 de 06 de Junho.

34. Dispondo o art.º 1287° do Código Civil, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art.º 1376° do Código Civil, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

35. Ao alterar a redação do disposto no art.º 1379º, nº 1, do Código Civil, passando a impor a sanção de nulidade para os atos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei nº 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no art.º 1376º do Código Civil e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento.

36. O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei nº 111/2015, que pretendeu intervir “através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias”.

37.       Aliás, parece que perante as divergências na doutrina e na jurisprudência, o legislador quis efetuar a clarificação da lei que surgiu no quadro de uma controvérsia jurisprudencial não resolvida definitivamente, afigurando-se que a Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto tem natureza de lei interpretativa, conforme dispõe o art.º 13º nº 1 do Cód. Civil.

38. Do exposto deve concluir-se que, para além de não estarem reunidos os requisitos da usucapião, também, não estavam reunidos os requisitos legais para o Tribunal determinar que se procedesse ao fracionamento/destaque da parcela com 5.400m2 do prédio rústico inscrito na matriz cadastral da freguesia de ... no artigo 16 Seção A, sendo nulo tal fracionamento nos termos dos art.ºs 1 e 27 do Decreto-Lei 289/73 de 06 de Junho. Por efeito do disposto nos art.ºs 294º e 295º, ambos do Cód. Civil, o ato de fracionamento padece de nulidade, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos.

39. Ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente ao caso sub judice, o disposto nos art.ºs 864º, 1263º, 1264º, 1376º e 1377º todos do Cód. Civil, nos art.ºs 1 e 27 do Decreto-Lei 289/73 de 06 de Junho e por efeito do disposto nos art.ºs 294º e 295º, ambos do Cód. Civil, que deveriam ter sido interpretados e aplicados ao caso sub judice, julgando que não se encontravam preenchidos os requisitos para a aquisição pela A. do direito de propriedade sobre a indicada parcela de terreno, por usucapião.

40. Pelo que o douto acórdão recorrido deve ser revogado, sendo substituído por douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça que julgue a ação improcedente e não provada, que absolva os Réus do pedido, e que julgue procedente e provado o pedido reconvencional deduzido pelo Réu FF, e que, consequentemente, declare o direito de propriedade do Réu AA sobre o prédio misto composto por casa de habitação de rés do chão, com 5 divisões, com 74,80m2, pátio e arribanas com 97,50m2 e outro pátio com 387,7 m2, vinha, cultura arvense, eucaliptal, pinhal, mato, macieiras, oliveiras e pereiras, com a área total de 132.720m2, no Sítio do “Casal ...“, freguesia do ..., Concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o nº 464/19910503, inscrito na matriz respetiva da freguesia de ... a parte urbana no artigo 439 da matriz e a parte rústica no artigo 16 da Secção A da matriz cadastral, ambas da freguesia de ..., que declare que a parcela de terreno em discussão nos autos faz parte integrante do referido prédio misto e que a A. não tem qualquer direito oponível ao do Réu FF .

41. Condenando a A. a reconhecer o direito de propriedade do Réu FF sobre o referido prédio e sobre a parcela de terreno em discussão nos autos, que dele faz parte integrante.

42. Condenando, ainda, a A. a entregar imediatamente ao Réu FF a parcela de terreno em discussão nos autos livre e desocupada de pessoas e coisas, abstendo-se da prática de quaisquer atos que perturbem o direito de propriedade e a posse do Réu FF sobre o prédio e parcela de terreno referidos.

12. A recorrida apresentou contra-alegações (transcrição das conclusões apenas na parte relativa à 1ª questão da revista):
I. A primeira questão suscitada pelos Recorrentes no presente Recurso consiste em saber se o acórdão recorrido enferma de erro de direito, ao concluir que é possível proceder ao destaque da parcela de terreno com a área de 5.400 metros quadrados do prédio misto no Sítio ..., no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º 464, da freguesia do ... e inscrito na matriz predial, a parte urbana sob o artigo 439 e a parte rústica sob o artigo 16 da secção A, ambos da freguesia do ....
II. Os recorrentes entendem que o acórdão recorrido deveria ter ponderado que o fracionamento do prédio constitui uma operação de loteamento e, como tal, só poderá efetuar-se depois de emitida a correspondente licença de loteamento, o que não sucedeu, sendo, portanto, ilegal.
III. A Recorrida por sua vez acompanha o entendimento das decisões recorridas, no sentido de não ser concebível que a falta de emissão de um alvará seja suscetível de impedir a aquisição da propriedade por parte da Recorrida.
IV. No caso dos presentes autos a parcela de terreno em causa, com a área de 5400m2, foi transformada num campo de futebol em 1986, tendo sofrido todas as alterações necessárias e adequadas a esse efeito.
V. Encontra-se então preenchido o pressuposto estabelecido na al. a) do n.º 1 do artigo 1377.º do Código Civil, pois está em causa uma parcela de terreno para fim diverso da cultura e, por esse motivo, suscetível de fracionamento.
VI. Este tem vindo a ser o entendimento jurisprudencial predominante, como se retira dos acórdão do STJ de 07.04.2011, que estabelece que a proibição da divisão cessa a partir do momento em que o destino do terreno passe a ser outro que não o a cultura.
VII.  A portaria n.º 202/70 invocada pelos Recorrentes, não é sequer aplicável nos
presentes autos, uma vez que apenas tem aplicação nos casos em que os prédios se
destinem a agricultura, que não é o caso de um campo de futebol.

VIII. Conforme os próprios Recorrentes referem, a parcela de terreno, mesmo com o campo de futebol ali instalado, permaneceu rústica, não tendo alterado a sua natureza para urbana,
IX. No entanto, isso não significa que se tenha mantido apta para cultura.
X. A letra da al. a) do n.º 1 do artigo 1377.º do CC, engloba os casos em que, mesmo permanecendo rústico, o terreno se destine a um fim que não seja a cultura, sendo que esse facto resulta evidente até da utilização do elemento que exprime alternativa: “ou”.
XI. Foi precisamente esta a consideração do Tribunal da Relação aqui recorrido, que, após discorrer amplamente sobre o tema, escreveu que a limitação relativa ao fracionamento dos prédios rústicos diz respeito somente aos terrenos aptos para cultura, já não se aplicando essa proibição nos casos em que o fim seja diverso do que a cultura,
XII. Sendo certo que resultou provado que a Recorrida pretendia e pretende o destaque da parcela para nela (re)edificar um campo de futebol.
XIII.Os próprios Recorrentes defendem a ideia de que o terreno se mantém rústico, não sendo a construção de um campo de futebol apto a torná-lo urbano, pelo que, para que procedesse a pretensão dos Recorrentes os mesmos tinham que provar que, para além de permanecer rústico, o destino dado ao terreno pelos Recorridos (ou à parcela em causa) continua(va) a ser a da cultura.
XIV. Os Recorrentes não lograram fazer essa prova.
XV. Por outro lado é facto evidente, ponto assente e reconhecido por ambas as partes nestes autos que aquela parcela de terreno foi ao invés convertida num campo de futebol, o que implicou até introdução de outras terras e areias no terreno.
XVI. Pelo que andaram bem as decisões Recorridas, no sentido de considerar aplicável ao caso dos presentes autos a exceção à proibição do fracionamento introduzida pela al. a) do n.º 1 do artigo 1377.º do CC.
XVII.     Ainda que não se acompanhe este entendimento em concreto daqueles Tribunais,
sempre se deve considerar que o destaque é também possível por força da usucapião que se encontra provada, judicialmente reconhecida e que nesta sede não foi sequer contestada pelos Recorrentes.

XVIII.   Conforme resulta da Sentença proferida em primeira instância, tratando-se de
uma posse não titulada, mas de boa fé, a aquisição por usucapião da parcela de
terreno onde foi construído o campo de futebol deu-se ao final de 15 anos a contar
desde o início da posse em 1986, consideração que veio a ser confirmada pelo
Tribunal da Relação, pese embora os Recorrentes tenham – sem sucesso - tentado
alterar essa convicção.

XIX. Assim, não merece discussão que a posse pela Autora sobre a parcela em litígio já se consolidou por decurso do tempo, pelo que não pode deixar de ser reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma.
XX. Desde 1984 (data em que os Senhores DD e a mulher JJ, doaram, de forma verbal à Autora) até 04.08.2014, a parcela estava a ser utilizada como um Campo de Futebol pela Autora, e foram eles mesmos que delimitaram o parcela de terreno doada com pilares de ferro.
XXI. Assim, pode afirmar-se que o destaque daquela parcela operou-se prima facie por via da colocação dos pilares de ferro, o que aconteceu há mais de trinta anos.
XXII. Destaque esse que a decisão judicial veio “legalizar”.
XXIII. Desde essa data que o terreno em causa é utilizado somente como um campo de futebol, nunca mais tendo sido utilizado para qualquer fim relacionado com a cultura.
XXIV. Tal destaque não constituiu nem constitui, como alegam os Recorrentes, uma operação de loteamento urbano.
XXV. Nesta senda, é de assinalar o preceituado no art. 2.º, alínea i), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 dezembro (RJUE), artigo esse que define «operações de loteamento urbano» e de cuja leitura resulta evidente que a parcela em litígio nos presentes autos não foi, nem é destinada à edificação (urbana), nem imediata nem subsequentemente.
XXVI. Pois, conforme sufraga o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de setembro de 2012, disponível em www.dgsi.p (1696/08.0TBFAR.E1.S2), face à noção legal de prédio rústica contida no art. 204.º do CC, um campo de futebol não reúne as características por ser considerado prédio urbano.
XXVII. Considerando que a parcela em litígio não é um prédio urbano, a mesma não pode ser configurada como resultado de uma operação de loteamento urbano.
XXVIII. Do mesmo modo, o destaque da parcela não foi, nem é, um ato proibido por normas imperativas do loteamento urbano, não sendo necessário qualquer procedimento administrativo, nem tão pouco a emissão de uma alvará, para sua concretização.
XXIX. Considerando que a parcela em causa nos presentes autos é um prédio rústico, quanto muito poderia se suscitar uma questão relativa a um fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos ilegal, sem que, no entanto, se intrometa qualquer questão de natureza urbanística.
XXX. Contudo, o destaque da parcela não constitui um fracionamento ilegal de um prédio rústico, como se viu supra.
XXXI. Ainda que assim fosse, sempre se dirá que a aquisição da propriedade por usucapião prevalece sobre a proibição de atos de fracionamento de prédio rústico que são ab initio contrários à lei.
XXXII. Tem vindo a ser entendido, de forma unânime, pelos Tribunais Superiores que, operada a divisão ilegal de um prédio rústico e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no art. 1376.º, n.º 1 do Código Civil, não se podendo ser invocada a nulidade prevista no art. 1379.º do Código Civil. –
XXXIII. Veja-se acórdão Do TRE de 08.06.2017, o acórdão TRL de 15 de outubro de 2015, e o acórdão STJ de 04 de fevereiro de 2014, todos eles mencionados supra, dos quais resulta que o instituto jurídico da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento dos prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima, por estar em causa a constituição de um direito ex novo.
XXXIV. Por outras palavras, as regras da usucapião prevalecem sobre as regras de fracionamento de prédios rústicos, pelo que o destaque não é impeditivo ao reconhecimento do direito de propriedade da Recorrida.
XXXV. Acresce que a expressão “disposição em contrário” prevista no art. 1287º do Código Civil, relativo a noção de usucapião, não abrange a situação prevista no art. 1376.º do Código Civil.
XXXVI. Não existe qualquer norma, que seria excecional, que estabeleça que a posse por mais de 20 anos mantida sobre uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura de um prédio rústico não pode conduzir à usucapião.
XXXVII.  A eventual nulidade do ato de fracionamento do prédio rústico não pode afetar os atos de posse praticados pela Recorrida sobre a parcela de terreno equivalente ao campo de futebol e, consequentemente, obstar à sua consolidação por usucapião.
XXXVIII. Só assim não poderia suceder se alguma norma especial viesse impedir a
possibilidade a invocação da usucapião sobre o destaque resultante de
fracionamento ilegal de prédio rústico.

XXXIX. Se as regras de loteamento e sobre o fracionamento de terrenos aptos para
cultura são determinadas por razões de interesse público, por outro lado é certo que a usucapião também visa satisfazer o interesse público, sendo entendimento do STJ (in acórdão de 05.05.2016) que no confronto entre ambos estes interesses deve prevalecer a usucapião, sendo imputável à administração o facto de não ter atuado de forma preventiva, de modo a impedir a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território.

XL. Assim, a usucapião não está dependente de qualquer circunstância jurídica relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo, porque o decurso do tempo necessário à sua conformação tem como efeito o “desaparecimento” de todas as ilegalidades que possam interferir na sua constituição.
XLI. Deve, pois, deve improceder a pretensão dos Recorrentes no âmbito da primeira questão suscitada, devendo as decisões recorridas manter-se nos exatos termos proferidos, não merecendo qualquer reparo e/ou alteração.”

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação
13. São os seguintes os factos considerados provados nas instâncias:
1. Correu termos pelo Juiz 2 da Secção Cível da Instância Local de ... desta Comarca de Lisboa Norte o procedimento cautelar de restituição provisória de posse que se encontra apensado a esta acção instaurado pela ora Autora contra os ora Réus, tendo nela sido proferida em 16.10.2014 sentença que julgou procedente o procedimento ordenando à ora Autora a «imediata restituição da posse da parcela de terreno com a área de 5.406 metros quadrados a destacar do prédio misto denominado “Sítio ...”, no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob os artigos 439 urbano e 16 rústico da secção A, ambos da freguesia do ..., a confrontar a Norte com Estrada Pública, a sul com AA, a nascente com Estrada Pública e a poente com AA, na qual se encontra implantado um campo de futebol» e condenou os ora Réus a «facultarem à ora Autora o acesso à parcela de terreno” acima referida e a “desocuparem a mesma de pessoas e bens».
2. A referida sentença foi mantida por acórdão proferido no TRL de 19 de Março de 2015, que transitou em julgado.
3. A Autora é uma Associação constituída em 22 de Abril de 1986, no Cartório Notarial do ..., com sede no lugar CC, que tem por fim a promoção cultural dos sócios, através da educação física e desportiva e acção recreativa e intelectual, visando a sua formação humana integral.
4. A constituição da Autora foi publicada na II Série do Diário da República de 01-07-1986.
5. Em data indeterminada do ano de 1984, aquando do início do processo para constituição da Autora encetado pela Comissão de Festas CC, DD e mulher HH Januário declararam verbalmente doar à futura Associação, ora Autora, uma parcela de terreno com uma área de 5.400,00 m2, a destacar do prédio misto sito no “Sítio ...”, ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o nº 464 da freguesia do ... e inscrito na matriz predial, a parte urbana sob o artigo 439 e a parte rústica sob o artigo 16, da Secção A, ambos da freguesia do ....
6. O referido acto de doação foi efectuado perante futuros membros da direcção da Autora, concretamente MM e NN.
7. A parcela de terreno referida em 5. destinou-se à construção de um campo de futebol.
8. A referida parcela de terreno confronta pelo Norte, Sul, Nascente e Poente com FF.
9. Em data não apurada posterior ao ato de doação referido em 5. e 6., DD marcou e delimitou o espaço para se construir o campo de futebol.
10. No ano de 1986, em data não concretamente apurada, a Autora procedeu à construção do campo de futebol tendo terraplanado o terreno do campo, procedido a marcações, colocado duas balizas, construído dois bancos de suplentes e nos seus limites colocado umas protecções à volta do campo em ferro sustentadas por manilhas para que o público assistente dos jogos não fosse para dentro do campo.
11. A partir da época desportiva de 1986, a Autora passou a utilizar o campo de futebol em beneficio dos seus associados realizando frequentes torneios de futebol de cariz social, não federado, tais como os realizados em 17.7.1994, 24.7.1994, 31.7.1994, 27.11.1994 e 7.7.1996, bem como disponibilizando o mesmo para a realização de outros eventos lúdicos como almoços e festas (“Dia Mundial da Criança”) e para a realização de torneios de futebol promovidos e organizados pela Câmara Municipal do ..., tal como o realizado em 13.4.1997.
12. Os torneios referidos em 11. realizaram-se com regularidade até seguramente à época desportiva de 2000-2001, tendo a partir desse ano e até ao ano de 2014 a Autora utilizado o campo de futebol pelo menos uma vez por ano, no mês de maio, para a realização de um jogo de futebol social entre associados seus (entre “solteiros e casados”) por ocasião da “Festa da Espiga”.
13. No ano de 2007, a Autora disponibilizou o campo de futebol no dia 1 de Junho para a realização de um evento envolvendo crianças de um estabelecimento de ensino (Escola EB 1 e Jardim de Infância de Figueiros), comemorativo do “Dia Mundial da Criança”.
14. A Autora nunca pediu autorização a quem quer que fosse para a utilização e disponibilização do campo de futebol para a realização dos torneios e eventos referidos em 11., 12. e 13., que decorreram com o conhecimento e sempre à vista de toda a gente sem qualquer manifestação de oposição a tal.
15. Em 31/03/1981 DD e mulher doaram ao Grupo Desportivo e Cultural ... um terreno onde esta Associação construiu um campo de futebol.
16. À data em que se verificou a doação da parcela de terreno supra referida em 5., o co-Réu FF era arrendatário de parte do prédio “Casal ...”, precisamente da parte rústica constituída por “terra de semeadura, no limite e freguesia de ... , concelho de ... ... inscrito na matriz cadastral rústica de freguesia de ... sob o artigo nº 16-A”, por ter outorgado com DD , este na qualidade de senhorio , no dia 23/03/1976, com inicio em Janeiro de 1976, pelo prazo de seis anos e renovável por períodos de um ano , um contrato de “Arrendamento ao cultivador directo”.
17. Em 19/04/1991 DD requereu a rectificação da área da parcela urbana do artigo 439 para a harmonizar com a matriz cadastral do artigo 16, Secção A e daí ficar a constar a área de 560m2, tendo, então, indicado que a área de terreno total do prédio era 132.720m2.
18. Por escritura pública celebrada em 20/02/1992, DD e mulher HH venderam a GG casada com II o prédio misto no sítio do “Casal ...”, sito na freguesia do ..., concelho do ..., com a área total de cento e trinta e dois mil, setecentos e vinte metros quadrados, melhor identificado supra em 1. e 5..
19. O co-Réu FF instaurou pelo extinto Tribunal Judicial de ... contra DD e mulher HH, GG e marido II a acção ordinária de preferência registada com o n.º 78/92 tendo nela sido realizada transacção entre as Partes no dia 09/11/1992, homologada judicialmente em 10/11/1992, reconhecendo os, ali, Réus o ali, Autor, FF como arrendatário e titular do direito de preferência na alienação do prédio misto identificado supra em 1., 5. e 16., bem como a substituição do dito FF na posição da Ré GG na posição contratual de comprador na escritura pública supra identificada em 18., com a consequente transmissão para FF do direito de propriedade sobre o prédio identificado supra em 1, 5 e 18.
20. Na sequência da transacção homologada judicialmente referida em 19. foi inscrita na Conservatória do Registo Predial do ..., freguesia do ..., sob a Ap. 1 de 1993/04/30 a aquisição por compra e reconhecimento do Direito de Preferência a favor do co-Réu FF do prédio misto descrito nessa mesma Conservatória com a área total de 132720m2 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 439 e rústica, Secção A, sob o artigo 16 ARV, da freguesia do ..., melhor identificado supra em 1. , 5 e 16.;
21. A Junta de Freguesia do ... emitiu em 20/04/1993 uma “Declaração” onde fez constar que o co-Réu FF era “proprietário do prédio rústico n.º 16, da Secção A, com a área de 13,2720, Hectares denomina..., situado no Casal ..., freguesia do ..., concelho de ...”.
22. À data da aquisição pelo co-Réu FF do prédio misto identificado supra em 1., 5, 18 e 20 aquele sabia que o campo de futebol referido supra em 10. e 11. se encontrava construído e que era utilizado e mantido pela Autora a suas expensas, sem necessidade de autorização de outrem, como se sua dona fosse, utilização e manutenção que continuou a ocorrer nos termos supra definidos em 11., 12. e 13. sem qualquer oposição dos Réus, tendo o co-Réu FF chegado a participar nalguns eventos fornecendo géneros alimentícios.
23. O co-Réu FF nunca teve intervenção no calendário desportivo da Autora, nem lhe foi solicitada autorização para a realização de eventos ou utilização do mesmo.
24. Em 31/01/1997 a Autora solicitou ao Instituto Nacional do Desporto um subsídio para proceder a obras ordinárias de conservação, o qual lhe foi concedido no montante de 600.000$00 em Maio de 1997.
25. A verba referida supra em 24. foi utilizada nomeadamente na construção de balneários na sede da Autora para utilização pelos jogadores, a qual se situa a 500-600 metros de distância do campo de futebol referido supra em 10. e 11..
26. A Autora cuidava e arranjava previamente o campo de futebol referido supra em 10. e 11. sempre que nele estavam agendados jogos.
27. Em 27/07/1986, a Autora colocou uma placa no campo de futebol supra referido em 10. e 11. com os dizeres “Campo de Jogos DD e JJ” em homenagem ao referido casal pela doação a que se alude em 5. e 6.
28. Posteriormente ao acto de aquisição referido supra em 20, em data não concretamente apurada e na sequência de um jantar de homenagem à pessoa do co-Réu FF, a Autora colocou no campo de futebol mencionado em 10. e 11. uma outra placa com os dizeres: “Campo FF ”.
29. Aquando da construção dos dois bancos de suplentes para as equipas referidos supra em 10. a Autora fez constar por escrito na parte superior dos mesmos os dizeres “A.C.D. CC”.
30. Pelo menos entre os anos de 2011 e 2014 surgiram, nomeadamente entre os meses de Julho e Setembro para a campanha da apanha da pera rocha que, por vezes, permaneciam para as vindimas, famílias de raça cigana no local do prédio misto referido supra em 1., 5. e 18., que acamparam no terreno que constitui o campo de futebol referido supra em 10. e 11..
31. Tais famílias chegavam a abranger 35 a 40 pessoas, aproveitavam as balizas do campo de futebol para prenderem as suas tendas, utilizavam os bancos de suplentes para se sentarem e fazerem fogueiras com vista a confeccionarem alimentos e refeiçoarem de seguida e usualmente deixavam lixo após a sua saída.
32. As ditas famílias ciganas chegavam a parquear no terreno do campo de futebol referido supra em 10., 11. e 30. cerca de 10 a 12 viaturas automóveis.
33. Os Réus chamaram por algumas vezes a G.N.R. do ... para que os militares da dita força retirassem as famílias ciganas do local do campo de futebol.
34.Na sequência da intervenção da G.N.R. as famílias ciganas retiravam do local do campo de futebol, mas rapidamente regressavam, por vezes na mesma data da retirada, pela noite.
35. No dia 04/08/2014 uma retroescavadora entrou no campo de futebol supra referido em 10. e 11. e lavrou o seu terreno, retirou as balizas dos locais onde se encontravam, depositando-as noutro local e destruiu os bancos dos suplentes.
36. As balizas referidas em 35. exibem, actualmente, bastante ferrugem.
37. A actuação descrita suprem 35. foi ordenada pela co-Ré BB a mando do co-Réu FF que pretendia com isso obviar a que as famílias ciganas continuassem a acampar no campo de futebol identificado supra em 10 e 11 e 30.
38. Posteriormente à actuação referida supra em 35., as famílias ciganas deixaram de acampar no terreno do dito campo de futebol.
39. A reconstrução do campo de futebol supra identificado em 10. e 11. e 30 implicará o alisamento do terreno onde aquele está implantado, que abrangerá a necessidade de escavação e transporte de terras do local de escavação para local de aterro, bem como fornecimento e aplicação de materiais como areão/pó de pedra e saibro/piçarra, a construção integral de bancos de suplentes para as equipas com utilização de cimento e tijolos, rebocados e pintados e pintura das balizas e sua fixação no campo de futebol.
40. Os Réus são primos direitos um do outro, sendo o co-Réu FF padrinho da co-Ré BB.
41. Os Réus mantêm entre si convívio diário há mais de 20 anos sendo a co-Ré BB e o seu marido OO que vêm cultivando o prédio “Casal ...”.
42. Actualmente, as infra-estruturas respeitantes ao campo de futebol referido supra em 10., 11. e 30. já não existem, com excepção de alguns pilaretes de betão no topo norte do campo e ainda a existência de uma zona terraplanada, mas actualmente bastante irregular encontrando‑se o espaço do dito campo com bastante erva alta, silvas e caniços.
43. O valor locativo mensal do terreno onde foi construído o campo de futebol referido supra em 10., 11. e 30. é de 167,40 € para uma área de 5.400,00m2 e de 149,69 € para uma área de 4.536,20m2.

14. São os seguintes os factos considerados não provados nas instâncias:
A) Que a Autora seja uma associação privada sem fins lucrativos e com utilidade pública.
B) Que a Autora tenha sido constituída pela Comissão de Festas da Aldeia CC e que esta tenha sido extinta em 1986 aquando da constituição da Autora.
C) Que a Autora tenha assumido as obrigações e direitos da Comissão de Festas.
D) Que a Comissão de Festas da Aldeia CC já utilizasse o campo de futebol referido em 10. e 11. dos Factos Provados antes da constituição da Autora.
E) Que os balneários ainda existam na sede da Autora e continuem a servir o campo de futebol referido em 10. e 11..
F) Que o futebol seja e tenha sido sempre o único desporto realizado pela Autora.
G) Que a Autora tenha substituído tubos galvanizados do campo de futebol referido em 10. e 11. dos Factos Provados que se encontrassem estragados.
H) Que a Autora efectuasse todos os anos depois do Inverno obras de conservação do dito campo de futebol para o preparar para a realização de jogos durante a época de bom tempo.
I) Que um amigo da Autora de nome PP se tenha dirigido às famílias ciganas e as tenha informado para irem para os seus terrenos.
J) Que a reconstrução do campo de futebol ascenda a 21.370,00 € , acrescidos de I.V.A. à taxa legal em vigor.
L) Que a intervenção da retroescavadora tenha entortado as balizas do campo de futebol.
M) Que na data do acto descrito em 5. e 6. dos Factos Provados DD tenha dito relativamente à parcela de terreno mencionada em 5. desses Factos aos seus interlocutores que arrendar não arrendava, nem fazia escritura, mas que a emprestava para permitir que jogassem à bola na mesma.
N) Que aquando da transacção judicial supra referida em 19. dos Factos Provados e após ter sido questionado pelo co-Réu FF o referido DD lhe tenha dito que a parcela de terreno respeitante ao campo de futebol não tinha sido doado à Autora, mas sim emprestada.
O) Que após ter tido conhecimento que o co-Réu FF adquirira o prédio misto identificado em 20. dos Factos Provados um legal representante da Autora tenha contactado aquele no sentido de saber qual era a sua posição sobre a cedência por empréstimo da parcela de terreno identificada referida em 5. dos Factos Provados e bem assim que o dito co-Réu tenha respondido que continuaria a emprestar e a autorizar que a Autora utilizasse a dita parcela de terreno para campo de futebol.
P) Que a colocação da placa/lápide referida em 28. dos Factos Provados tenha ocorrido em reconhecimento pelo facto do co-Réu FF continuar a permitir à Autora a utilização gratuita da parcela de terreno referida em 5. daqueles Factos, que era utilizada para campo de futebol.
Q) Que na sequência de conversa mantida com DD, anteriormente à constituição da Autora, o Grupo Desportivo CC tenha mandado terraplanar/alisar uma parcela de terreno com o comprimento de 99m e largura de 49m, (área de 4.851.,00m2), lhe tenha colocado pó de piçarra, duas balizas, e uma vedação com vista à utilização como campo de futebol.
R) Que o futsal seja o único desporto promovido pela Autora desde pelo menos o ano de 2007.
S) Que a dita parcela de terreno do campo de futebol tenha chegado a ser aproveitada uma ou duas vezes para ralis de jipes sem intervenção e sem conhecimento da Autora, provocando a sua realização danos em um ou dois pilares.
T) Que elementos das famílias ciganas que acampanhavam no campo de futebol referido em 10. e 11. dos Factos Provados entrassem pelo prédio do co-Réu FF e ali furtassem fruta, comendo e estragando pêras e uvas deitando-as para o chão.
U) Que em Agosto de 2013 os referidos elementos tenham furtado do prédio do co-Réu FF as torneiras de distribuição das regas das pereiras, mangueiras de rega e o ferro das maternidades das porcas.
V) Que em 3 de Setembro de 2013 os ditos elementos das famílias ciganas tenham furtado do interior da residência do co-Réu FF a quantia monetária de 250,00 €, que o mesmo tinha no bolso de uma camisa.
X) Que os Réus tenham apresentado queixas relativamente aos atos referidos em T), U) e V), junto da G.N.R. do ....
Z) Que no ano de 2013 a co-Ré BB se tenha dirigido a um elemento da direcção da Autora para lhe pedir colaboração para retirarem os ciganos do campo de futebol referido em 5. dos Factos Provados e que tal membro tenha respondido que a Autora nada poderia fazer para pedir a intervenção da G.N.R. por não ser proprietária do terreno.
AA) Que com o objetivo de evitar os furtos e danos causados no prédio pertença do co-Réu FF e ainda para prevenir o risco de incêndio face à posição de indiferença da Autora aquele tenha comunicado a um dos membros da direcção da mesma que iria tomar posse da parcela de terreno correspondente ao campo de futebol.
AB) Que em momento anterior ou posterior à intervenção descrita em 36. dos Factos Provados o co-Réu FF tenha comunicado a legal representante da Autora que um contrato de comodato incidente sobre o terreno do campo de futebol teria terminado.

15. Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da Recorrente (artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do CPC), em face da decisão da formação que admitiu a revista excepcional limitada à 1ª questão (art.º 672.º CPC), impõe-se tratar apenas do problema de saber se “perante o disposto nos art.sº 1287.º, 1376.º, n.º1, e 1377.º do CC e art.º 1º e 27.º do DL 289/73, de 6/6, e na Portaria 202/70, é viável o fraccionamento /destaque da parcela de terreno em causa, com fundamento na sua aquisição por usucapião, se se entender que a mesma, apesar de nela ter sido erigido um campo de futebol, manteve a natureza rústica do prédio em que se integrava” (tal como explicitada pela formação – 672.º CPC).

16. O tribunal recorrido analisou a problemática que vem suscitada nos seguintes termos (transcrição):
“A questão de saber se a usucapião prevalece ou não sobre normas imperativas tem dividido a doutrina e, sobretudo, a jurisprudência.
A título exemplificativo, cf. os acórdãos do STJ de 19.10.2004 e de 4.2.2014 (processos n.ºs 04A2988 e 314/2000.P1.S1, respectivamente, in www.dgsi.pt).
No primeiro desses arestos (que se louva noutros acórdãos), discorre-se do seguinte modo:
«Mesmo que houvesse fraccionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respectivos pressupostos (pressupostos que resultaram apurados no caso presente), procede a aquisição do direito de propriedade, com base na usucapião, relativamente ao prédio dos autores. É que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária. A lei, ponderando determinados aspectos que considerou relevantes, assumiu que certas situações de facto pudessem converter-se em verdadeiro direito, como acontece quando a posse se prolonga por um período de tempo significativo. A usucapião é o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a actos de alienação ou de oneração de bens. Através da usucapião, o sistema jurídico, provada que seja a realidade substancial de que depende, confere a legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afecta a sua posição face ao bem. Consequentemente, só resta concluir que, das regras da usucapião, decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados (…)».
E no segundo acórdão, seguindo a mesma linha, conclui-se que «(…) o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respectiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído “ex novo”, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respectiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada».
No mesmo sentido, o acórdão do TRE de 26.10.2000 (in CJ, tomo IV, pp. 272 e ss.), assim sumariou o acórdão:
  «São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efectuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas».
Atente-se também nos acórdãos do TRC de 25.2.2014 e de 3.3.2015 (processos n.ºs 1350/11.6TBGRD.C1 e 5730/06.0TBLRA.C1, respetivamente, mesma fonte).
  No primeiro, que contém extensa referência a outros arestos, sintetiza-se assim a sua jurisprudência:
  «Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens por ex. o caso dos baldios – artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro/ por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro – e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação – Lei 107/2001 de 8/09 – que, através do seu artigo 34.º, torna insusceptível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio –, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais. (…) Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. (…) A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem». E o segundo regista no seu sumário a seguinte afirmação: «A usucapião é uma aquisição originária, genética e endógena baseada na sua causa (posse). Não se pode, pois, dizer, com rigor, que pela invocação da aquisição do direito (usucapião) se realize um destaque, um loteamento, uma divisão em prédios com área inferior à unidade de cultura: já que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião».
  No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do TRL de 15.10.2015 (p. 1737/11.4TBALM.L1-6, idem), com a seguinte declaração: «(…) vem sendo pacificamente entendido, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, que a dita proibição do fraccionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados».
Será assim tão decisivo o argumento fundado na aquisição originária da propriedade como decorrência da usucapião?
Na verdade, não podemos olvidar que, na interpretação e aplicação das normas do Código Civil relativas ao direito de propriedade, o intérprete e aplicador não pode restringir-se à estrita consideração dos tradicionais regimes de direito privado, tendo necessariamente de se abrir a uma visão multidisciplinar, que confira indispensável relevo aos regimes jurídicos relativos ao direito do urbanismo e da ordenação do território e à tutela do ambiente, por essa via ponderando, na composição dos litígios, os relevantes interesses públicos que lhes subjazem.
Veja-se, a propósito, os acórdãos do STJ de 6.7. 2006 (p.05A4270) e de 3.4.2003 (p.03A663), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde se afirma o seguinte:
«Entende-se, pois, que o fracionamento de prédio para efeito de construção não pode ter lugar, nem ser confirmado pelos Tribunais, com violação, ignorância ou ultrapassagem do direito do urbanismo pelo recurso ao caminho da acessão, o que igualmente impede a aquisição, pelos réus, por meio de acessão, do direito de propriedade sobre a aludida parcela do prédio dos autores.
Salienta-se ainda que não é aplicável à figura da acessão o regime que se tem admitido vigorar em sede de aquisição por usucapião, segundo o qual, consumada a situação possessória necessária a tal aquisição originária, a situação fáctica que está na sua base prevalece sobre eventuais constrangimentos normativos, condicionadores de uma «normal» aquisição de direitos - expressa, por exemplo, no entendimento de que será possível usucapir uma parte de um prédio rústico, mesmo que a aquisição implique fracionamento vedado pelo preceituado no art. 1376º do CC, ou parcelas com área inferior à da unidade de cultura, decorrentes de partilha irregular de um prédio rústico: é que, sendo ambos os institutos formas de aquisição originária da propriedade, há entre eles uma diferença essencial e óbvia, decorrente dos muito longos períodos temporais de exercício da posse, exigíveis antes de se consumar a usucapião, contrapostos à imediatividade da aquisição por acessão, potenciadora da ocorrência de situações de fraude a disposições legais imperativas, imediatamente consumadas e sedimentadas com a mera atuação fáctica ou material dos interessados».
Posteriormente, o STJ manteve este entendimento no acórdão de 1 de junho de 2010 (processo n.º 133/1994.L1.S1, mesma fonte, reportado à acessão industrial imobiliária):
«Por outro lado, integrando o lote onde se encontrava implantada a moradia um prédio rústico indiviso, já que a sua divisão em lotes, levada a cabo por parte dos RR, o foi apenas de facto, que não de direito – (A), (F) e (H) -, tal circunstância constituía, também, fator impeditivo à peticionada aquisição, por acessão, do direito de propriedade relativamente àquela.
Com efeito, a constituição de direitos reais, nos quais se inclui obviamente o direito de propriedade, só pode incidir sobre coisas individualizadas (coisas certas e determinadas) e autonomizadas – Direitos Reais do Prof. Henrique Mesquita, págs. 12/13 - autonomização essa que, no que respeita ao fracionamento de parcelas de um prédio rústico, nomeadamente na sua vertente da divisão do mesmo em lotes, obedece à observância das normas legalmente estabelecidas para a ocorrência de tal separação, e subsequente constituição de um novo prédio, normas essas que impõem a sujeição da efetivação de tal divisão, sob pena de nulidade da mesma, a prévio licenciamento municipal, devidamente titulado por um alvará de loteamento - arts. 1º e 27º do DL n.º 289/73, de 06/06, diploma este, que, mesmo considerando a data que foi indicada, mas não provada, pelo recorrente, era o vigente, à época, sobre a referida matéria.
E, atendendo a que as operações de loteamento se enquadravam, quer à data, quer atualmente, no campo mais vasto do ordenamento do território – arts. 1º e 9º do DL n.º 208/82, de 26/05 -, as disposições legais às mesmas atinentes revestem carácter imperativo, vinculando o Estado e demais entidades públicas, bem como os particulares, uma vez que subjaz às mesmas a proteção de interesses de ordem pública consagrados constitucionalmente – arts. 9º, al. e), 65º, n.º 4 e 66º, n.º 2, als. b) e f) da CRP”.
De igual modo, o acórdão do STJ de 19.4.2012 (processo 34/09.0T2AVR.C1.S1, em www.dgsi.pt, também a propósito da acessão industrial imobiliária) vai ao encontro desta tese:
«Se é certo que a acessão não tem necessariamente de incidir sobre a totalidade de certo prédio, podendo reportar-se apenas a uma parcela fundiária na qual a edificação potenciou uma nova unidade económica independente, não é menos certo que não pode permitir-se que, pela via da acessão industrial imobiliária, se obtenha o que por via negocial não seria possível conseguir, por faltarem requisitos, impostos por normas imperativas, sem os quais seriam inválidos os respetivos actos constitutivos negociais – sendo, deste modo, critério decisivo para aferir da referida possibilidade de autonomização predial o resultante das leis administrativas respeitantes aos loteamentos e destaques para fins de edificação e às possibilidades de fracionamento de prédios rústicos. Ou seja: os Tribunais não devem declarar a aquisição por acessão do direito de propriedade sobre uma parcela de prédio alheio sem que dos autos conste prova produzida pelo interessado de as competentes entidades administrativas terem autorizado o loteamento ou destaque, bem como o fracionamento do prédio rústico em questão (cfr, v.g., os acs. do STJ de 4/2/03 in CJ/STJ 1º, pag. 76, de 3/4/03 in CJ/STJ 2º, pag.15, de 3/12/09 – p. 1102/03.7TBILH.C1.S1 e de 1/6/10 – p. 133/1994.L1.S1)».
No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 20.5.2014 (p. 11430/00.8TVPRT.P1.S1, mesma fonte) quando adverte que «(…) o direito que rege uma comunidade e que constitui a respetiva ordem jurídica, deve ser aplicado com o pensamento na harmonia do sistema, de maneira a que os vários institutos, de direito privado e direito público que tenham contacto com o caso a decidir, se harmonizem ou se hierarquizem de acordo com a importância relativa que o legislador lhes atribuiu” E conclui: “nesse sentido, deverá o juiz exigir a prova dos licenciamentos ou dos pareceres favoráveis dos órgãos administrativos competentes que sejam impostos pelos referidos regimes jurídicos do loteamento urbano…” – idem, p.24.
No mesmo sentido, escreve Dulce Lopes, em estudo publicado na revista o Direito, nº 10, 2010, p. 22: “as entidades competentes, antes de se decidirem pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito de acessão industrial imobiliária ou de usucapião, devem certificar-se de que não irá consolidar-se uma situação desconforme com as regras que limitam o fracionamento de prédios rústicos, bem como com as que regulam as operações de fracionamento para fins urbanísticos».
Com interesse ainda, vide o acórdão do STJ de 26.1.2016 (processo n.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1, mesma fonte), onde se faz um estudo detalhado das divergências doutrinárias e jurisprudenciais na matéria.
Na doutrina, temos nomeadamente os seguintes estudos, todos no eBook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários “A Interação do Direito Administrativo com o Direito Civil”, em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Interacao_Adm_Civil.pdf:
- Fernanda Paula Oliveira, “Loteamentos, Reparcelamentos e Destaques”, pp. 31 e ss.: «Situações há, porém, em que se torna necessário certificar a possibilidade de ocorrência de destaques. É o caso da ocorrência de acessão industrial imobiliária parcial e usucapião parcial de um terreno no qual se encontre implantada uma edificação, de modo a evitar que estes institutos se configurem como expedientes de fraude aos requisitos dispostos na legislação urbanística para a divisão fundiária» (p. 52);
- Salazar Casanova, “Usucapião, Acessão Industrial e Construção Clandestina”, pp.. 73 e ss.: «Permitir-se em quaisquer circunstâncias a divisão de propriedades em parcelas por via da usucapião ou da acessão industrial imobiliária, portanto, com indiferença absoluta face à comprovada violação de normas imperativas do direito urbanístico, levaria a que se conseguisse um resultado que a lei não consente, originando-se uma fragmentação da propriedade contra legem» (p. 82). Mais concretamente, no que diz respeito ao fracionamento de prédios rústicos em área inferior à unidade de cultura, defende o autor, nomeadamente no que diz respeito à aquisição por usucapião, que «Não se duvidando de que o interesse público, no que respeita às transformações fundiárias em que não se pretenda a construção, é o do emparcelamento, a usucapião seria também aqui de excluir tanto mais que a anulabilidade apenas se pode alcançar na sequência de negócios jurídicos e não por via do controlo das situações possessórias. O interesse público, também aqui, prevaleceria contra a usucapião que se limitaria às situações possessórias consolidadas na sequência da não impugnação de negócios anuláveis».
Milita a favor desta orientação a própria alteração introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27.8, a qual estabeleceu o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária e alterou o Código Civil, designadamente o disposto no artigo 1379.º, n.º 1.
Originalmente, o fracionamento em contravenção da interdição legal instituída pelo artigo 1376.º do Código Civil gerava a anulabilidade do ato que lhe desse origem.
O que significava que, não sendo exercido o direito potestativo de anulação pelo Ministério Público ou por qualquer proprietário que gozasse do direito de preferência nos termos do artigo 1380.º do mesmo diploma, dentro do prazo fixado pelo anterior n.º 3 do artigo 1379.º, aquele ato, tornando-se inatacável, consolidava-se definitivamente.
E, afinal, o resultado proibido acabava por, não obstante, ser obtido.
Seria até contestável, por isso, a afirmação do carácter imperativo da norma que proibia o parcelamento de prédios rústicos em desrespeito pelo mencionado n.º 1 do artigo 1379.º do Código Civil (neste sentido, cf. José González, Usucapião e fracionamento de prédios rústicos, Lisboa: Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, A. 37, n.º 148 (out.-dez. 2016), pp. 9-37).
Ao decretar-se agora, por intermédio da nova redação introduzida no n.º 1 do artigo 1379.º do Código Civil, que «são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º», incrementou-se a certeza de que nestes se encontram ínsitas normas de índole imperativa.
O próprio fundamento geral da nulidade – a salvaguarda do interesse público – tornou-se bastante mais nítido.
Tudo ponderado, concorda-se com a segunda posição enunciada, acompanhando-se os argumentos expendidos que sustentam essa tese.
Ora, a parcela de terreno em apreço tem área inferior à unidade de cultura (4 ha), sendo assim, à partida, insuscetível de fracionamento nos termos do artigo 1376.º, n.º 1 do Código Civil – conjugado com a Portaria n.º 202/70, de 21 de abril, em vigor à data do início da posse (cf. art. 1317.º, alínea c) do Código Civil), o mesmo sucedendo, de todo o modo, também no contexto da Portaria atualmente em vigor (Portaria n.º 219/2016, de 9.8).
Será aplicável ao caso a exceção prevista no artigo 1377.º, alínea a) do Código Civil?
O fracionamento parcelar no que concerne ao caso em apreço encontra-se regulado nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25.10, e nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil.
Na interpretação destes preceitos é imprescindível não perder de vista, tanto quanto possível, o fim que se sabe ter sido querido pelo legislador.
«A disposição revela que a lei procura evitar o fraccionamento da propriedade, sobretudo por razões de ordem económica, que respeitam à exploração da terra» – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., p. 259.
Também sobre os objetivos legislativos a respeito desta matéria vale a pena citar Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2002, p. 93: «O fraccionamento da propriedade (usando-se a palavra em sentido não técnico-jurídico) é uma tendência histórica facilmente comprovável (...).
Daqui que, desde há muitas dezenas de anos, o Estado tenha formulado medidas no sentido de evitar esse fraccionamento (...)».
Seguimos de perto o acórdão do TRC de 7.2.2017 (p. 133/04.4TBRSD.C1, in www.dgsi.pt), segundo o qual «pretende a lei que um terreno com aptidão para a cultura não seja dividido de forma a pôr em causa essa aptidão».
A propósito da filosofia inerente a este regime Antunes Varela (in RLJ n.º 33849 p. 374) escreveu que «visa eliminar os minifúndios pelos graves inconvenientes duma exploração rural que não reúna condições mínimas de rentabilidade».
Posterior ao artigo 1376.º do Código Civil é o Decreto-Lei n.º 384/88, de 25.10, que estabelece um regime global para o problema do fracionamento e o Decreto-Lei n.º 103/90, de 22.3, que regulamenta aquele.
Mais uma vez o objetivo do regime é a formação de unidades agrícolas com uma dimensão que lhes proporcione um mínimo de viabilidade e de exigibilidade económica (cf. acórdão do STJ de 5.2.81, p. 069143, disponível em www.dgsi.pt).
Nos termos do artigo 19.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 384/88, com a epígrafe «Fraccionamento e Troca de Prédios Rústicos» determina-se que «Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se além as regras dos arts. 1376º e 1379º do Código Civil, as disposições da presente lei».
Preceitua o artigo 20.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma, com a epígrafe «Fraccionamento de Exploração Agrícola», que:
«1 - A divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola economicamente viável só poderá realizar-se:
a) Para efeitos de redimensionamento de outras explorações, operada nos termos da presente lei;
b) Para reconversão da própria exploração ou se a sua viabilidade técnico-económica não for gravemente afectada;
c) Se da divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica;
d) Se do fraccionamento não resultar grave prejuízo para a estabilidade ecológica».
Ou seja, a divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola economicamente viável só poderá realizar-se se da divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica.
Os artigos em análise preveem duas realidades diferentes:
O artigo 19.º refere-se ao fracionamento dos prédios rústicos e o artigo 20.º ao fracionamento da exploração agrícola. O prédio rústico traduz a existência de uma aptidão agrícola, excluindo assim os prédios que pelas suas características naturais nunca poderão ter capacidade para suportar uma atividade agrícola. A exploração agrícola traduz uma exploração agrícola efetiva.
Assim, é aplicável in casu o citado artigo 19.º, n.º 1.
Por sua vez, preceitua o artigo 1379.º do Código Civil, na versão aplicável aos autos, que o fracionamento dos prédios em desobediência às regras legais estabelecidas, e, designadamente no artigo 1376.º do mesmo diploma, gera a anulabilidade dos respetivos atos. No mesmo sentido, vide o artigo 47.º do Decreto-Lei n.º 103/90, de 22 de março, ao preceituar que «São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal que contrariem o disposto no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro».
Entende-se na sentença recorrida que ao caso tem aplicabilidade o preceituado no artigo 1377.º do Código Civil e, por isso, nessa vertente não haveria lugar à anulabilidade (regime em vigor à data do início da posse da parcela, em 1986).
Preceitua este artigo, sob a epígrafe «Possibilidade de fracionamento», que:
A proibição não é aplicável:
«a) A terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura;
b) Se o adquirente da parcela resultante do fraccionamento for o proprietário de terreno contíguo ao adquirido, desde que a área da parte restante do terreno fraccionado corresponda, pelo menos, a uma unidade de cultura;
c)Se o fraccionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou retificação de estremas».
Analisando a exceção em causa, prevista na alínea a), segunda parte do preceito, onde se alude «se destinem a algum fim que não seja a cultura», escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. citada, p. 240, que «Em atenção ao fim, admite a segunda parte desta alínea a) que se fraccione qualquer terreno, desde que a parcela se destine a algum fim que não seja a cultura. Não importa que o terreno, no momento do fraccionamento, tenha por fim a cultura agrícola ou florestal, basta que o seu destino posterior passe a ser outro. Este sentido do texto ficou bem esclarecido no parecer da Câmara Corporativa, de 21 de Abril de 1960, quando se substituiu a frase equívoca “destinados” a algum fim que não seja a cultura, que estava na proposta do Governo, por “sejam destinados a algum fim que não seja a cultura”. O código, ao referir-se agora aos terrenos “que se destinem”, mantém claramente a orientação da Câmara e da lei anterior. O terreno pode destinar-se, por exemplo, a um campo de jogos, a um fim acessório de qualquer indústria, e pode, o que é mais vulgar, destinar-se a uma construção».
No mesmo sentido parece pronunciar-se o acórdão do TRP de 8.5.2012 (p. 4810/0.1TBVFR-P1, in www.dgsi.pt), onde se escreveu que «O artigo 19º do Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro circunscreve o âmbito de aplicação do fraccionamento previsto nesse diploma aos terrenos com aptidão agrícola e florestal, estipulando que: Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos artigos 1376º e 1379º do Código Civil, as disposições da presente lei (…)».
As limitações ao fracionamento de prédios rústicos visam evitar os inconvenientes de ordem económica, designadamente, de menor produtividade agrícola dos prédios quando estes se reduzem a proporções muito limitadas.
A Portaria n.º 202/70, de 21.4, aplicável ao caso, fixou a área de cultura mínima para as diversas regiões do território continental, classificando para este efeito os prédios rústicos em terrenos de regadio, arvense ou hortícolas, bem como de sequeiro.
Tal significa que o proprietário do terreno que dele queira dispor em parcelas ou frações só poderá exercer esse direito de disposição se cada uma dessas unidades fundiárias que se vier a formar tiver área não inferior à unidade de cultura fixada pela aludida Portaria (no caso, a unidade de cultura era de 4 ha).
É, todavia, admissível o fracionamento de prédios rústicos que integram terrenos destinados a fins diversos da cultura, bem como o fracionamento de terrenos para construção, ficando esta sujeita ao regime jurídico dos loteamentos urbanos sempre que esteja em causa a constituição de novos prédios destinados, imediata ou subsequentemente, à construção urbana, que abrange a construção de edifícios destinados a habitação, escritórios, indústria ou comércio.
Aplicando-se ao caso, como pensamos, o preceituado no artigo 1377.º do Código Civil, cabe verificar se resulta provado que o fim é diverso do da cultura.
Para além do que resulta evidente de uma mera leitura deste artigo, verifica-se que é entendimento jurisprudencial que «A limitação relativa ao fraccionamento dos prédios rústicos diz respeito, apenas, aos terrenos aptos para cultura, isto é, aqueles que são próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários, sendo já possível a divisão de qualquer terreno, desde que a parcela fraccionada de destine a algum fim que não seja a cultura» (cf. acórdão do STJ de 7.04.2011 (p. 30031-A/1979.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, como é evidente e resultou amplamente provado nos presentes autos, a Recorrida pretendia e pretende o destaque da parcela de terreno para nele (re)edificar um campo de futebol, tendo por isso finalidade diversa da cultura.
Motivo pelo qual não é aplicável ao caso concreto a proibição estatuída no artigo 1376.º do Código Civil, concluindo-se pela validade do destaque em questão.”

Os principais argumentos do recorrente são os seguintes:
a) O douto acórdão recorrido considerou que, com a construção do campo de futebol, a parcela de terreno se destinava a um fim que não a cultura agrícola e que era possível o fraccionamento nos termos da alínea a) do art.º 1377.º do Cód. Civil;
b) Um campo de futebol, neste caso, uma parcela de terreno em terra batida destinado a recinto de jogo, é obviamente incompatível com a existência (note-se, “dentro das quatro linhas”) de qualquer edifício, o que se constata no caso dos autos;
c) A parcela de terreno terraplanada, em terra batida, limpa de ervas e destinada a campo de futebol, com duas balizas e por protecção de dois lados do campo, não é, nem pode ser qualificado, como edifício:
d) Das obras referidas no nº 10 dos factos provados, apenas serão qualificáveis como construção os dois bancos de suplentes, em tijolo, cimento, com cerca de 1,30m de largura e de 1,5m de altura.
e) Todavia (aqueles dois bancos) não são decisivos para a qualificação da parcela de terreno como urbana, dada a sua ausência de autonomia económica; e isto porque a noção de prédio rústico não exclui a existência de construções desprovidas de autonomia económica.
f) E permanecendo rústica estava proibido o fraccionamento, nos termos do art.º 1376º, nº 1, do Cód. Civil, que dispõe: “Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país”.
g) O douto acórdão recorrido considerou que, com a construção de campo de futebol, a parcela de terreno se destinava a um fim que não a cultura agrícola, e deveria ter ponderado que, nesse caso, o fraccionamento constituía operação de loteamento e como tal só poderá efectuar-se depois de obtido o respectivo alvará de loteamento (…) (art.º 27.º n.º 1 do DL n.º 289/73 de 6 de Junho) ou de certidão camarária, autorizando o destaque e dispensando o alvará, nos termos da legislação respectiva.

Nos argumentos a) a e) a recorrente indica que o tribunal qualificou o campo de futebol objecto da invocação de usucapião como sendo um prédio urbano.

Lido o acórdão recorrido não se identifica essa qualificação do campo de futebol.

No argumento e) o campo de futebol mantém a qualidade de prédio rústico e, por esse motivo, estaria vedado o seu fraccionamento nos termos do art.º 1376.º, n.º1 do CC.

A 1ª ilação tem sustentação na decisão recorrida – o prédio mantém-se rústico – não suscitando questões por não ser controvertido; a 2ª ilação (porque o prédio é rústico não comporta fraccionamento) corresponde já a uma verdadeira questão jurídica, compreendida no objecto da revista; mais deve equacionar-se se, no estado em que se apresenta e com os factos provados nestes autos, o campo de futebol é destinado a cultura agrícola; deve também indagar-se se o fraccionamento deste campo de futebol (integrado no prédio descrito nos factos provados…) constitui uma operação de loteamento a que se aplique o regime do DL 289/73 (exigindo-se um alvará de loteamento) ou de uma certidão camarária que autorize o destaque e dispense o alvará de loteamento urbano.

Passemos a apreciar a questão substantiva suscitada pela Recorrente, segundo a qual o “reconhecimento do direito de propriedade da A adquirido por usucapião, viola regras legais imperativas”, designadamente regras legais respeitantes:
(a) Ao fraccionamento de prédios rústicos e unidade mínima de cultura;
 (b) Ao loteamento urbano, ou;
(c) À exigência de certidão camarária, autorizando o destaque e dispensando o alvará.

Tal como foi decidido em anteriores arestos deste STJ, nomeadamente no Ac. do STJ de 02-05-2019, processo 514/07.1TBGDL.E1.S1, que passamos a seguir, “Antes de mais importa determinar qual a data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade da R. BB, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais imperativas. Tal questão foi recentemente apreciada, de forma expressa, pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 08/11/2018 (proc. nº 6000/16.1T8STB.E1.S1, in www.dgsi.pt), proferido nesta 2ª Secção Cível [sendo a questão retomada nos subsequentes acórdãos da mesma Secção de 15/11/2018 (proc. nº 2769/17.4T8STB.E1.S1) e de 21/02/2019 (proc. nº 7651/16.0T8STB.E1.S3), consultáveis em www.dgsi.pt] a propósito da data ou momento relevante para apurar da violação das regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos (concretamente, se seria relevante a data da escritura de justificação notarial como invocava o Ministério Público ou se seria antes relevante a data da divisão material do imóvel e do início da posse).
No indicado aresto manteve-se a orientação no sentido de considerar a data do início da posse como corresponde ao momento relevante para aferir do respeito pelo regime legal imperativo.
Esta orientação merece apoio da jurisprudência e de outras fontes de direito, sendo a orientação que também aqui se defende.

No caso dos autos, a usucapião invocada pela A. reporta-se ao início da posse datada de 1986, em conformidade com os seguintes factos provados:
“10. No ano de 1986, em data não concretamente apurada, a Autora procedeu à construção do campo de futebol tendo terraplanado o terreno do campo, procedido a marcações, colocado duas balizas, construído dois bancos de suplentes e nos seus limites colocado umas protecções à volta do campo em ferro sustentadas por manilhas para que o público assistente dos jogos não fosse para dentro do campo.
11. A partir da época desportiva de 1986, a Autora passou a utilizar o campo de futebol em beneficio dos seus associados realizando frequentes torneios de futebol de cariz social, não federado, tais como os realizados em 17.7.1994, 24.7.1994, 31.7.1994, 27.11.1994 e 7.7.1996, bem como disponibilizando o mesmo para a realização de outros eventos lúdicos como almoços e festas (“Dia Mundial da Criança”) e para a realização de torneios de futebol promovidos e organizados pela Câmara Municipal do ..., tal como o realizado em 13.4.1997.
12. Os torneios referidos em 11. realizaram-se com regularidade até seguramente à época desportiva de 2000-2001, tendo a partir desse ano e até ao ano de 2014 a Autora utilizado o campo de futebol pelo menos uma vez por ano, no mês de maio, para a realização de um jogo de futebol social entre associados seus (entre “solteiros e casados”) por ocasião da “Festa da Espiga”.
13. No ano de 2007, a Autora disponibilizou o campo de futebol no dia 1 de Junho para a realização de um evento envolvendo crianças de um estabelecimento de ensino (Escola EB 1 e Jardim de Infância de ...), comemorativo do “Dia Mundial da Criança”.
14. A Autora nunca pediu autorização a quem quer que fosse para a utilização e disponibilização do campo de futebol para a realização dos torneios e eventos referidos em 11., 12. e 13., que decorreram com o conhecimento e sempre à vista de toda a gente sem qualquer manifestação de oposição a tal.
22. À data da aquisição pelo co-Réu FF do prédio misto identificado supra em 1., 5, 18 e 20 aquele sabia que o campo de futebol referido supra em 10. e 11. se encontrava construído e que era utilizado e mantido pela Autora a suas expensas, sem necessidade de autorização de outrem, como se sua dona fosse, utilização e manutenção que continuou a ocorrer nos termos supra definidos em 11., 12. e 13. sem qualquer oposição dos Réus, tendo o co-Réu FF chegado a participar nalguns eventos fornecendo géneros alimentícios.
26. A Autora cuidava e arranjava previamente o campo de futebol referido supra em 10. e 11. sempre que nele estavam agendados jogos.
28. Posteriormente ao acto de aquisição referido supra em 20, em data não concretamente apurada e na sequência de um jantar de homenagem à pessoa do co-Réu FF, a Autora colocou no campo de futebol mencionado em 10. e 11. uma outra placa com os dizeres: “Campo FF ”.
29. Aquando da construção dos dois bancos de suplentes para as equipas referidos supra em 10. a Autora fez constar por escrito na parte superior dos mesmos os dizeres “A.C.D. CC”.

A sentença e o acórdão do tribunal da Relação isso mesmo declararam e confirmaram, nomeadamente, nesta última decisão dizendo:
“Na situação em apreço, a Autora começa por invocar a aquisição decorrente da doação verbal da parcela.
Porém, tal doação é nula por falta de forma legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 940.º, 947.º, e 220.º Código Civil, pelo que não constitui uma forma válida de aquisição do direito de propriedade.
Sem embargo, com a doação verbal, a Autora tornou-se possuidora da parcela de terreno em apreço, sendo uma posse, nos termos do direito de propriedade, pública, pacífica, não titulada e de boa-fé (mostrando-se ilidida a presunção de má-fé pelo facto de a posse ser não titulada - artigo 1260.º, n.º 2, Código Civil) - artigos 1251.º, 1258.º a 1263.º Código Civil.
Remetemos aqui para a sentença recorrida, na qual se desenvolve a conclusão anterior de forma muito completa e acertada, assim se escrevendo que:
«Regressando à matéria factual assente nesta sentença para a conformar com os normativos acabados de indicar estamos em crer que do cotejo dos factos provados sob os nºs 5. , 7. , 8. , 10. , 11. , 12. , 13. , 14. , 19. , 20., 22., 23., 26., pode concluir-se que a Autora terá adquirido por meio de usucapião a parcela de terreno integrada no prédio misto sito no “Sítio ...”, ..., (o qual possui uma área de terreno total de 132.720,00m2), onde foi implantado o campo de futebol, parcela essa com área de 5.400m2 e que confronta a Norte, Sul, Nascente e Poente com o Co-Réu FF».
«De facto - continua a ler-se na sentença - da matéria factual indicada resulta que por virtude de um ato de doação de uma parcela de terreno, com vista à futura construção de um campo de futebol, nulo por falta de forma, praticado por DD e mulher JJ, em data indeterminada do ano de 1984, a Autora começou, em data não concretamente apurada no ano de 1986, a construir o dito campo de futebol, executando vários actos materiais como terraplanagem, marcações, colocação de balizas, construção de bancos de suplentes e colocação de protecções à volta do campo, tendo a partir daí passado a utilizar o campo em apreço em beneficio dos seus associados promovendo e realizando frequentes torneios sociais de futebol e disponibilizando o dito campo para almoços, festas, comemorações com regularidade até seguramente à época desportiva de 2000-2001, tendo a partir daí e até ao ano de 2014, à excepção do ano de 2007 em que disponibilizou, também, o campo para um evento escolar com crianças no “Dia Mundial da Criança”, utilizado o campo de futebol pelo menos uma vez por ano, no mês de Maio, para a realização de um jogo de futebol entre associados seus por ocasião da “Festa da Espiga”.
Tais actos foram sendo praticados pela Autora pacificamente, à vista de quem quer que fosse, sem oposição de outrem, inclusive dos Réus, que  deles tinham conhecimento, tendo até o Co-Réu FF chegado a participar nalguns eventos, nomeadamente após ter adquirido o prédio misto “Casal ...” a DD, conforme decorre de 22. dos Factos Provados, sem pedir previamente autorização ou consentimento a outrem, convicta de que agia como dona do terreno onde foi construído o campo de futebol.
Como tal, entende-se que desde 1986 até à data a Autora vem actuando por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a parcela de terreno onde foi erigido o campo de futebol, através de uma posse não titulada, pois, conforme já acima explanado, o acto de doação da parcela de terreno que esteve na base da construção do campo de futebol é nulo por falta de forma, embora de boa fé, dado que a declaração/acto, ainda que verbal, de doação descrito em 5. e 6. dos Factos Provados tornou consistente o convencimento por parte da Autora de que não lesava o direito de outrem no exercício da sua posse sobre a parcela de terreno do campo de futebol, dessa forma considerando-se ilidida a presunção de má fé que impende sobre a posse não titulada, sendo a mesma, ainda, pacífica e pública como acima já se explanou».
(…)
Com efeito, como se escreveu na sentença, para provar uma posse boa para usucapião o possuidor não carece de provar a posse dia após dia, mês após mês, ao longo de 5, 10, 15 ou 20 anos, bastando uma prova por amostragem, acompanhada da ausência de atos de outrem que impliquem a perda da posse invocada, pelo que pode aceitar-se que se o possuidor provar a posse inicial mesmo que não alegue, ou prove, atos posteriores de posse, ainda assim pode adquirir por usucapião, por se presumir, nos termos do aludido artigo 1257.º, no seu n.º 2, do Código Civil, que a posse inicial se manteve na sua esfera jurídica até ao presente. Sustentando esta posição, veja-se, por todos, o douto acórdão do TRC de 15.11.2011 (in C.J. 2011, 5.º - p. 16), citado pelo Tribunal recorrido.”

Também é entendimento uniforme dos tribunais o de que a usucapião como forma de aquisição originária de direitos reais, carece de ser invocada (nos termos do art.º 303.º do CC, aplicável à prescrição aquisitiva por remissão do art.º 1292.º do mesmo Código), e que, quando tal suceda e quando se comprove que se encontram reunidos os pressupostos legais para o efeito (posse prolongada no tempo; por período suficiente), a aquisição produz efeitos retroactivos à data do início da posse (cfr. art.º 1288.º do CC).
Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, a lei aplicável é, sem dúvidas, a vigente à data do início da posse. Será assim essa lei que indicará se pode haver fraccionamento do prédio e de o mesmo for fraccionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem. O mesmo se diga em matéria de loteamento urbano, licenças e dispensas.
Em face do exposto, pretende-se no presente recurso de revista aferir se, à data do início da posse, isto é, em 1986 foram ou não violadas normas legais imperativas que tutelam o interesse público.
Vejamos então quais as normas legais que vigoravam em 1986 e que tutelam o interesse público, para aferir se a usucapião invocada e reconhecida as violou.

 A este título dizem os recorrentes que:
a) A usucapião não pode ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre a norma imperativa de proibição de fraccionamento, quer a contida no art.º 1376.º, n.º 1 do Cód. Civil, quer a contida nos art.ºs 1.º e 27.º do Decreto-Lei 289/73 de 06 de Junho.
b) Dispondo o art.º 1287.° do Código Civil, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art.º 1376.° do Código Civil, que impede o fraccionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

Iniciando a análise pelo disposto no art.º 1376, n.º1 do CC, na versão vigente em 1986, dizia-se aí:

Artigo 1376.º (Fraccionamento)
1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno.
2. Também não é admitido o fraccionamento, quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura.
3. O preceituado neste artigo abrange todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos

E no art.º 1379.º (Sanções):
1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.
2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ou do termo do prazo referido no n.º 1.

Da leitura das normas indicadas decorre assim:
1. Que o fraccionamento se reporta a terrenos aptos para cultura;
2. Que os fraccionamentos não seriam admitidos quando dele resultasse uma parcela com área inferior à unidade de cultura fixada para a zona do país em que a mesma se insere;
3. Que os fraccionamentos efectuados em violação das regras expostas estariam viciados, sendo aplicável o regime da anulação, conforme o regime especial indicado no art.º 1379.º - legitimidade e prazo.

Decorre do exposto que, não tendo sido proposta nenhuma acção de anulação, não se impõe aferir da anulabilidade, nem dos seus requisitos.

Não pode, assim, dizer-se que a usucapião invocada e reconhecida nos autos é ou era anulável, nem a questão vem suscitada no recurso – onde se defende que a sanção é a nulidade, invocável a todo o tempo e por qualquer interessado.

Para afastar o argumento de que, a entender-se que o fraccionamento violou a regra do art.º 1376.º, n.º1 do CC, cuja consequência é a nulidade, importa também dizer:
i) A alteração legal ao art.º 1379º, nº 1 do CC, efectuada pela Lei n.º 111/2015, de 27/08, não pode ser de aplicação para o passado (art.º 12.º, n.º2 do CC);
ii) A Lei n.º 111/2015, de 27/08 não tem carácter interpretativo, nos termos do disposto no art.º 13.º do CC;
iii) O carácter interpretativo não decorre do facto de a lei nova manter um regime de invalidade, quando a invalidade é de tipo diferente.

À luz da lei vigente em 1986 o fraccionamento não seria nulo, quando muito anulável.

Para ser anulável, a lei também impunha que o fraccionamento se reportasse a terrenos aptos para cultura.

Ora, no caso dos autos, está claramente provado que a reivindicação do prédio em causa não está relacionada com qualquer utilização (anterior, ou futura) do mesmo relacionada com actividade agrícola, florestal ou pecuária, ou, nas palavras da lei, aptidão para cultura.

Procurando-se indagar porque terá o legislador colocado limites ao fraccionamento de prédios aptos para cultura, não têm surgidos vozes dissonantes sobre os objectivos legais: o que se quis evitar foi que os terrenos agrícolas, explorados como tal, pudessem ter uma dimensão tão pequena que a viabilidade da actividade pudesse ser comprometida.

In casu, não há este risco.

Não havendo o risco, não se deve entender que a restrição se aplica pelo facto de a parcela em causa se integrar (antes da autonomização) em prédio misto.

Esta ideia veio já defendida no acórdão recorrido, quando aí se disse – o que merece o apoio deste STJ:
“Aplicando-se ao caso, como pensamos, o preceituado no artigo 1377.º do Código Civil, cabe verificar se resulta provado que o fim é diverso do da cultura.
Para além do que resulta evidente de uma mera leitura deste artigo, verifica-se que é entendimento jurisprudencial que «A limitação relativa ao fraccionamento dos prédios rústicos diz respeito, apenas, aos terrenos aptos para cultura, isto é, aqueles que são próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários, sendo já possível a divisão de qualquer terreno, desde que a parcela fraccionada de destine a algum fim que não seja a cultura» (cf. acórdão do STJ de 7.04.2011 (p. 30031-A/1979.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, como é evidente e resultou amplamente provado nos presentes autos, a Recorrida pretendia e pretende o destaque da parcela de terreno para nele (re)edificar um campo de futebol, tendo por isso finalidade diversa da cultura.
Motivo pelo qual não é aplicável ao caso concreto a proibição estatuída no artigo 1376.º do Código Civil, concluindo-se pela validade do destaque em questão.”
O artigo 19º do Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro, lei posterior aos efeitos da usucapião, reforça a ideia ao circunscrever o âmbito de aplicação do fraccionamento previsto aos terrenos com aptidão agrícola e florestal, estipulando que: «Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos artigos 1376º e 1379º do Código Civil, as disposições da presente lei (…)».

Também não se considera relevante a argumentação da recorrente quando diz: a parcela de terreno tem área inferior à unidade de cultura fixada para a zona, concelho de ..., de 40.000 m2, nos termos da Portaria n.º 202/70, que fixava para os terrenos de sequeiro, nas regiões de Lisboa e Santarém a área de 4 hectares.

A dimensão da unidade de cultura fixada para efeitos de permitir às Câmaras Municipais o destaque de parcelas de prédios rústicos só pode ser entendida como restrição que se coloque a prédio/parcela destinada a finalidade indicada na lei.

A recente alteração à Lei n.º 111/2015, de 27/08, operada pela Lei n.º 89/2019, de 03/09, que passou a dizer no ser art.º 48.º o que se indica, parece confirmar o entendimento que se defende no caso dos autos. Diz-se aí (sublinhados nossos):


Fraccionamento

Artigo 48.º Regime

1 - Ao fraccionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.
2 - A posse de
terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de actos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.
3 - São nulos os actos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.
4 - Quando todos os interessados estiverem de acordo, as situações de indivisão podem ser alteradas no âmbito do emparcelamento rural ou da valorização fundiária, pela junção da área correspondente de alguma ou de todas as partes alíquotas, a prédios rústicos que sejam propriedade de um ou de alguns comproprietários.
5 - Da aplicação do disposto nos números anteriores não podem resultar prédios com menos de 20 m de largura, prédios onerados com servidão ou prédios com estremas mais irregulares do que as do prédio original.

18. Quanto à questão de saber se os AA. teriam de, previamente à invocação da usucapião, obter um alvará de loteamento ou uma certidão camarária a autorizar o destaque, cumpre dizer o que se segue.

O DL n.º 289/73, de 6 de Junho (vigente em 1986, data dos efeitos aquisitivos da usucapião), reportando-se às operações de loteamento, indicava nos seus art.ºs 1.º e 27.º o seguinte:
Artigo 1.º
 A operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma.

Artigo 27.º -
1. As operações de loteamento referidas no artigo 1.º, bem como a celebração de quaisquer negócios jurídicos relativos a terrenos, com ou sem construção, abrangidos por tais operações, só poderão efectuar-se depois de obtido o respectivo alvará, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º
2. Nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos notariais relativos aos actos ou negócios referidos no número anterior, deverá sempre indicar-se o número e data do alvará de loteamento em vigor, sem o que tais actos serão nulos e não podem ser objecto de registo.

Por seu turno, no preâmbulo do diploma dizia-se:
“2. Com o presente diploma pretende-se rever o regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46673, por forma a dotar efectivamente a Administração, como promotora do interesse colectivo, de meios eficazes de intervenção nas operações chamadas de loteamento, não esquecendo, porém, os aspectos positivos de que, por vezes, se reveste a iniciativa privada e a contribuição que tem trazido à resolução dos problemas do crescimento urbano.
Começa-se, assim, por alargar o conceito de loteamento, que tal como estava formulado deixava à margem de qualquer disciplina uma série de situações que, não se concretizando através de contratos de venda ou locação, logravam, na prática, os mesmos efeitos.
Alargada a base de intervenção da Administração, considerou-se, no entanto, indispensável evitar que os processos burocráticos de aprovação se prolonguem para além do razoável, forçando os interessados a esperas antieconómicas.
Nessa perspectiva, sujeita-se a aprovação dos loteamentos a regime semelhante ao que o Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril, consagrou para o licenciamento municipal de obras particulares, fixando prazos para as várias fases do respectivo processo, obrigando à fundamentação das decisões de indeferimento ou de deferimento condicionado, facultando aos interessados a consulta dos processos e atribuindo, finalmente, ao silêncio da Administração efeito positivo.”

Da conjugação dos dispositivos indicados, com a finalidade ínsita no preâmbulo do diploma, aliado à utilização da parcela de terreno em discussão nos autos resulta, salvo melhor opinião, que esta disciplina não era aplicável à A. no momento em que passou a utilizar a parcela de terreno como campo de futebol, pois a mesma não foi destinada “imediata ou subsequentemente à construção”.

O fraccionamento ficaria sujeito a este regime apenas caso se tratasse de um fraccionamento de terrenos para construção urbana, ficando sujeita ao regime jurídico dos loteamentos urbanos sempre que estivesse em causa a constituição de novos prédios destinados, imediata ou subsequentemente, à construção urbana, que abrange a construção de edifícios destinados a habitação, escritórios, indústria ou comércio[1].

A solução do acórdão do STJ citado pelos recorrentes, de 6/3/2014, proc. 1394/04.4PCAMD.L1.S1, tratando de questão semelhante, mas sem contornos fácticos nem legais equivalentes (na sua totalidade), não pode ser transposta para o presente caso.

No referido aresto consta o seguinte sumário, que já permite verificar a dissonância (sublinhados nossos):
II - O destaque de uma determinada parcela de terreno visando a construção de imóvel, que veio a ser efetivada, constitui operação de loteamento sujeita a licenciamento salvo se se verificarem cumulativamente os requisitos a que alude o art. 2.º, n.º 1 do DLi n.º 400/84, de 31-12.
III- A aquisição da propriedade por usucapião sobre parcela de imóvel pressupõe a sua autonomia, seja por via de atos materiais, seja por via de atos jurídicos de fracionamento, sobre ela então se exercendo os atos possessórios, não bastando a ocupação de uma parte de terreno para se considerar que se efetivou um fraccionamento.”
 
E na fundamentação diz-se:
“21. Prescreve o artigo 2.º/1 do DL n.º 400/84, de 31 de Dezembro que:
«Não constitui operação de loteamento, não estando, portanto, sujeita ao licenciamento previsto nesse diploma, a celebração de negócio jurídico que tenha como efeito a transmissão através do seu destaque, de uma única parcela de prédio inscrito ou participado na matriz, desde que, cumulativamente:
a) O prédio se situe dentro do aglomerado urbano;
b) A parcela a destacar confronte com arruamento público existente;
c) O interessado disponha de projecto para a construção do edifício com o máximo de 2 fogos, a erigir na parcela a destacar, aprovado pela câmara municipal;
d) A licença de construção expressamente mencione as situações referidas nas alíneas a) e b).
22. Não se vê que estejam provados os requisitos cumulativos constantes deste preceito.
23. A jurisprudência deste Tribunal tem considerado que "é nulo o negócio de divisão, de que resulte directa ou indirectamente, a constituição de lotes em que não conste o número e data de emissão do alvará de loteamento (cf. artigo 49.º,n.º1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro" (Ac. do S.T.J. de 16-3-2010, rel. João Camilo, C.J., 1, pág. 133). De igual modo, o Ac. da Relação de Lisboa de 30-4-2002 (rel. Abrantes Geraldes) C.J.,2, pág. 126 considerou que " não é permitida a aquisição por usucapião de parcela de terreno de um prédio rústico ilicitamente loteado, por isso contrariar disposições legais imperativas).
24. Saliente-se ainda o seguinte: como se referiu no Ac. do S.T.J. de 11-4-1978 (rel. Manuel Ferreira da Costa), B.M.J. 276-183 o fraccionamento " […] tanto pode consistir numa operação material como num ato jurídico de que resulte, directa ou só mediatamente, a divisão de qualquer terreno destinado à construção (Ac. do S.T.A. de 11-4-1980, B.M.J. 276-183). O mero apoderar de parte de um imóvel por ocupante não configura uma operação material de divisão.
25. A usucapião sobre parcela de propriedade pressupõe o seu destaque dessa propriedade; o destaque pode constituir ou não uma operação de loteamento, como se viu. Se constituir operação de loteamento violador de regras urbanísticas determinativas de actos e negócios nulos (artigos 294.º e 295.º do Código Civil), a usucapião não pode ser decretada. Se não constituir operação de loteamento ilegal com as consequências indicadas, o fraccionamento para construção não constitui ato nulo, mas anulável se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos, nada obstando, por isso, à aquisição por usucapião (artigos 1376.º, 1377.º, alínea c) e 1379.º/1 do Código Civil).
26. Importa sempre, por isso, ponderar se houve qualquer ato jurídico ou operação material de destaque para construção. A construção em terreno alheio não pressupõe nem implica um fraccionamento. A aquisição da propriedade por acessão industrial imobiliária, questão aqui fora de causa, dá-se, verificados os condicionalismos legais, independentemente de qualquer fraccionamento (artigo 1340.º e segs. do Código Civil).
27. Seria, portanto, sempre de ponderar a questão de saber se a autora poderia adquirir por usucapião uma parcela de terreno que não foi fraccionada da propriedade em que se inseria visto que, sem fraccionamento, seja por acto jurídico, seja por ato material, a coisa objecto da posse é o imóvel na sua totalidade.
28. Estamos, no entanto, face a questão que apenas se justificaria tratar se a acção, nos termos em que foi perspectivada, pudesse proceder. Tanto o recorrente, no pedido que deduziu, como as instâncias pressupuseram que houve uma efectiva autonomização da parcela só que, conforme se decidiu, ela era constitutiva de loteamento ilegal, situação obstativa da aquisição por usucapião. O registo predial da parcela teve em vista apenas o registo da presente ação; dele não decorre a atribuição de direitos.”

19. Também no que respeita à necessidade de prévia obtenção de certidão camarária a autorizar o destaque ou a dispensar o alvará, que os recorrentes entendem ser necessário, cremos que não têm razão in casu, até pelas razões indicadas no acórdão do STJ por último indicado[2].

20. Quanto ao acórdão do STJ de 26/1/2016 – proc. 5434/09.2TVLSB.L1.S1 (indicado pela recorrente para ilustrar a necessidade de concessão da revista), trata-se de caso com contornos distintos e com legislação igualmente diversa, envolvendo novamente problemas de loteamento urbano, situação não equiparada à dos presentes autos.

21. Cremos, assim, poder dizer-se que também no presente recurso são válidas as considerações expostas no Ac. do STJ de 30/5/2019, proc. 916/18.8T8STB.E1.S2, quando aí se diz:
“No campo dos actos de fraccionamento, levados a cabo com violação de normas de natureza imperativa reguladoras da gestão do património, vem sendo defendido por alguma da nossa doutrina a inadmissibilidade de invocação da usucapião como meio de superar os obstáculos legais criados à realização desses fraccionamentos.
Nesta senda e como outros direitos reais de gozo que não podem ser adquiridos por usucapião, LL indica os relativos a parcela de terreno de um prédio rústico que tenha sido loteado em violação da norma imperativa do art. 54º, nº1, da Lei nº 91/95, de 2.09 que, na sua versão original, ferida de nulidade “os negócios jurídicos entre vivos de que resultem ou possam vir a resultar a constituição da compropriedade ou a ampliação do número de compartes de prédios rústicos, quando tais actos visem ou deles resulte parcelamento físico em violação ao regime legal dos loteamentos urbanos.”
Prossegue este autor dizendo que “o reconhecimento da autonomia jurídica da dita parcela, mediante recurso à figura da usucapião, redundaria na violação de normas imperativas, designadamente daquelas que visam a recuperação de áreas degradadas.
(…) a usucapião é um meio alternativo de constituição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo através da posse, no pressuposto de que essa aquisição, em abstracto, também poderia ter lugar através de outro meio legal de aquisição, designadamente o negócio jurídico ou o contrato.
(…) não pode funcionar como válvula de escape para se adquirir o bem que de outro modo nunca seria susceptível de aquisição.
Não pode a usucapião ser vista, em qualquer circunstância, como um processo singular de aquisição de direitos que, de outra forma, não poderiam ser adquiridos em face do direito constituído.
Deste modo, não só os bens expressamente excluídos por lei da usucapião não podem ser usucapidos, como também, não podem ser objecto de usucapião aqueles outros que, por natureza, ou por disposição da lei, estão excluídos do comércio jurídico.
(…) se um prédio rústico, em termos legais, não podem ser objeto de fraccionamento, não pode o mesmo operar-se mediante invocação da usucapião, ainda que no plano da realidade empírica ele se verifique.”
No mesmo sentido opinam Mónica Jardim e Dulce Lopes.
Mas este não é entendimento que colha unanimidade na nossa doutrina.
Mesmo em casos de posse fundada em negócio de que resulte um fraccionamento proibido por lei e que por esta seja cominado com o vício da nulidade – o que no caso dos autos não acontece, como vimos -, há que ponderar e ter em conta posições doutrinárias diversas sobre a matéria.
Afirmam Mota Pinto e Castro Mendes que a possibilidade de invocação perpétua da nulidade do negócio pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva.
No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela escrevem que o não estabelecimento de um prazo para a arguição da nulidade “não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião”.
Também no dizer de Oliveira Ascensão “A usucapião representa (como aliás a ocupação e a acessão) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular”.
Ainda segundo Abílio Vassalo Abreu, “o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa”.
Finalmente, Durval Ferreira, tratando a matéria com profundidade – em capítulo com a epígrafe “Usucapião e Lei do Ordenamento do Território” –, faz notar que a aquisição do direito por usucapião é originária, genética e endógena, na medida em que tem por causa, tem na sua génese, apenas a posse; esta e a “aquisição do direito por usucapião são originárias, agnósticas e bastam-se com certo senhorio de facto, tal como é, por certo lapso de tempo.”
E ainda que, visando a usucapião satisfazer o interesse público “da certeza da existência dos direitos reais sobre as coisas e da respectiva titularidade e de a conseguir através da respectiva prova – «pela posse» (…)”, o possuidor que invoca a usucapião apenas tem de se preocupar com a posse que alega e respectiva demonstração.
Salienta ainda o facto de não existir nos diplomas legais sobre loteamentos, destaques ou fraccionamento de prédios rústicos “a disposição em contrário”, exigida pelo art. 1287º para que a posse exercida por certo lapso de tempo não faculte ao possuidor a aquisição do direito por usucapião.
E porque esta se funda directamente na posse, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes tenham incidido sobre a coisa, este autor conclui que a ilegalidade do fraccionamento de prédio rústico carece de idoneidade para interferir (excluindo-a) na aquisição, por usucapião, de parcela de terreno resultante daquela divisão.
A nossa jurisprudência sobre o tema adopta, em larga maioria esta segunda posição, considerando que a usucapião prevalece sobre fraccionamento ilegal de terreno apto para cultura, como nos dão conta os acórdãos deste STJ de 19.10.2004; de 27.06.2006, de 4.02.2014; de 6.04.2017, de 1.03.2018, de 3.05.2018, de 12.07.2018 e de 8.11.2018.
Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, possuindo, por isso, autonomia e independência em relação a certos vícios que afectem o ato ou negócio gerador da posse, afigura-se-nos também a nós que mesmo sendo nulo o fraccionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é susceptível de interferir negativamente - excluindo-a - na faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.
No dizer claro e certeiro do já citado acórdão deste STJ de 27.06.2006:
“Invocada a usucapião, como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial.
O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.
Daí que, pode concluir-se, porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, aquela invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento, de resto há muito sanada (art. 1379º-2 e 3 C. Civil), careçam de qualquer potencialidade ou idoneidade para interferir na operância da invocada forma de aquisição da parcela, tal como se mostra formulada na reconvenção (no mesmo sentido, o ac. deste STJ de 19/10/04, Proc. 04A2988, ITIJ).”
Acresce notar que, em face do já citado art. 1287º, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, só deixa de facultar ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, se houver disposição em contrário; e não se descortina que, entre as normas legais reguladoras do fraccionamento de prédios rústicos, alguma disponha em sentido idêntico aos já referidos arts. 1293º e 1548º, nº 1, ou seja, negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objecto de posse mercê de fraccionamento ilegal de prédio rústico.
“(…) disposição legal em contrário será aquela que estabeleça, precisamente, que certa e determinada posse não conduz a usucapião.”
Disposição “que no plano do «senhorio de facto», da realidade empírica exclua a sua existência ou a sua relevância perante os preceitos legais e normativos (…) da posse e do usucapião.”
Não tem esta natureza o art. 1376º, devendo ainda dizer-se que a afirmada prevalência da usucapião sobre o fraccionamento ilegal, ao invés do que sustenta o recorrente, de modo algum esvazia de sentido este preceito.
Constitui fundamento legal para, através das competentes acções constitutivas, o Estado obter a declaração de nulidade (ou anulabilidade) dos negócios que contrariem a regra de proibição que contém, desde que exerça o correspondente direito a tempo de evitar que a posse emergente do negócio viciado dê lugar, mercê do decurso do tempo, à aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Ademais no caso dos autos, como acima salientámos já, o fraccionamento ilegal que despoletou o início da posse nem sequer é sancionado com o vício da nulidade.
É-lhe aplicável, como vimos, o art. 1379º, na redacção anterior à ora vigente, que, no seu nº 1, feria de mera anulabilidade os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º, e no nº 3 estabelecia a caducidade da acção de anulação que não fosse proposta no prazo de três anos a contar da celebração do ato.
Em causa está, pois, uma mera anulabilidade que ficou sanada pelo decurso do prazo de três anos sem que fosse proposta a acção constitutiva tendente a anular o negócio, a significar que a violação das regras legais cometida no fraccionamento perde, nestes casos, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito.
Assim, no dizer da Pires de Lima e Antunes Varela, em comentário ao art. 1379º, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08, “se através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fraccionamento ou uma troca contrária ao disposto nos artigos 1376º e 1379º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fraccionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinados por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no nº 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião."
Deste modo, e considerando a data em que ocorreu o ato material da divisão – 1969 - que esteve na base do início da posse dos réus sobre a parcela de terreno em causa e o lapso de tempo entretanto decorrido com manutenção ininterrupta dessa mesma posse, tem de concluir-se que esta determinou, independentemente do vício de anulabilidade efectivamente verificado – e há muito sanado -, a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa.”

21. Valem também aqui as considerações do Ac do STJ de 08-11-2018, proc. 6000/16.1T8STB.E1.S1[3]:
“Outras situações têm sido apreciadas pelos tribunais e designadamente por este Supremo Tribunal de Justiça sendo a invocação da usucapião impedida quando está em causa a violação de regras de direito do urbanismo ligadas, por exemplo, ao regime dos loteamentos urbanos (v.g. Acs. do STJ de 26-1-16, 5434/09, de 30-4-15, 10495/08, de 7-6-11, 197/2000, em www.dgsi.pt; contra, com voto de vencido: Ac. do STJ, de 6-4-17, 1578/11).
Já, porém, estando em causa o regime de fraccionamento de prédios rústicos sem objectivos urbanísticos, como ocorreu no caso concreto, a solução que vem sendo adoptada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça é de sentido inverso, como o comprovam os recentes acórdãos de 1-3-18, 1011/16, de 3-5-18, 7859/15 e de 12-7-18, 7601/16, em www.dgsi.pt.
No Ac. do STJ de 1-3-18 a solução adoptada está condensada no seguinte sumário:
“A expressão “disposição em contrário” ressalvada pelo art. 1287º do CC, não abarca a situação prevista no art. 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excepcional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião.

Operada a divisão material de um prédio rústico em duas parcelas de terreno com área inferir à unidade de cultura … e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do CC, não operando a anulabilidade do acto de fraccionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do CC (na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 111/15, de 27-8).
A usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a protecção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse”.
7. No caso, considerando que se nos apresenta uma divisão material de prédios rústicos, sem que se intrometa qualquer outra questão de natureza urbanística que porventura encontrasse nas respectivas regras consequências mais gravosas do que a anulabilidade prevista na primitiva redacção do art. 1379º do CC, concluímos pela improcedência da acção de impugnação sustentada na anulabilidade dos actos de fraccionamento subjacentes às escrituras de justificação notarial.
Tendo-se verificado a divisão material dos prédios em parcelas na década de 60, a partir daí iniciou-se uma situação de posse prolongada e ininterrupta sobre cada uma das referidas parcelas de terreno, o que, independentemente do vício de anulabilidade invocado pelo A., determinou a constituição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via do instituto da usucapião.”

Conclui-se, assim, pela não ocorrência de violação das regras legais relativas ao fraccionamento de prédios rústicos em vigor à data da divisão material e do início da posse.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Lisboa, 24 de Outubro 2019

Fátima Gomes (Relatora)

Acácio Neves

Fernando Samões

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[1] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20/02/2002, da 3.ª Subsecção da 1.ª Secção (Processo n.º 047854) com o seguinte sumário:
I. A divisão de um prédio rústico em várias parcelas não constitui, só por si, uma operação de loteamento, pois, só o será se um dos lotes, pelo menos, se destinar imediata ou subsequentemente a construção urbana.
II. Constatando-se que, após a divisão de um prédio rústico se vierem a efectuar obras de urbanização nos terrenos por aquele abrangidos, os actos que a concretizaram devem ser qualificados como operações de loteamento, para efeitos do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, passando o licenciamento de qualquer construção urbana na área do prédio dividido a depender de prévio licenciamento de uma operação de loteamento.
III. Esta destinação subsequente a construção urbana não tem qualquer efeito sobre a validade do acto ou actos de divisão do prédio, estando a validade dependente apenas das regras sobre fraccionamento de prédios rústicos, pelo que a eventual ilegalidade das operações de loteamento tem apenas o alcance de inviabilizar o licenciamento de construções urbanas, não afectando a possibilidade de utilização do prédio resultante do fraccionamento como rústico.
IV. A construção da vedação de um prédio rústico, correspondendo ao exercício de um direito de tapagem imanente ao direito de propriedade, não constitui uma construção urbana, nem é incompatível com a utilização dos solos por ele abrangidos para fins agrícolas.
Cf. ainda Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, 1. 2003, p. 91 e ss – disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/8543/3/4.pdf?ln=pt-pt, em que o A. (António Pereira da Costa) faz uma análise crítica da jurisprudência e comenta a decisão do caso supbmetido à decisão dos tribunais administrativos e onde defende: “A divisão em lotes, desacompanhada de outros elementos não permite concluir que se realiza uma operação de loteamento, que pode nunca ter passado pela cabeça do proprietário”, “Como o Supremo bem afirma, a afectação posterior da parcela a construção não tem qualquer reflexo sobre a validade do acto ou actos de divisão do prédio mãe. No momento em que ocorreu a divisão, nada (em termos urbanísticos) a impedia, pelo que a mesma se mantém válida. A afectação diferente à que o prédio tinha é que tem de ser travada, se houver violação de normas urbanísticas.”
Também aqui se indica doutrina que permite perceber o que se entende por loteamento urbano, quer no antigo DL n.º 46.673, de 29 de Novembro de 1965, onde se referiam lotes “destinados à construção de habitações ou estabelecimentos comerciais ou industriais”, ou já no domínio do DL 289/73, de 6 de Junho (aplicável ao caso do nosso recurso), em que a mudança legal se deveu,  no dizer de Augusto Lopes Cardoso, à desnecessidade “pois que é evidente os destinos de uma construção: a habitação ou o estabelecimento comercial ou industrial”.

[2] Em 1986, dada em que se iniciou a posse da A. que justificou a aquisição por usucapião, estava em vigor o DL 400/84, de 31 de Dezembro, onde se dizia (com sublinhados nossos):
Artigo 1.º - 1 - Estão sujeitas a licenciamento municipal nos termos do presente diploma:
a) As acções que tenham por objecto ou simplesmente tenham por efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, destinados, imediata ou subsequentemente, à construção;
b) A realização de obras de urbanização, incluindo as destinadas a conjuntos e aldeamentos turísticos e a parques industriais, bem como a construção de vias de acesso a veículos automóveis ou a simples preparação do terreno com essa finalidade.
2 - São proibidas todas as operações preparatórias, designadamente a destruição de vegetação ou de elementos construídos, a simples preparação do terreno por meio de terraplenagens, marcações de qualquer tipo ou colocação de estacas ou outros elementos que indiciem a divisão em lotes ou parcelas, que não sejam efectuadas ao abrigo de uma operação previamente licenciada nos termos deste diploma.
3 - As acções mencionadas na alínea a) do n.º 1 do presente artigo serão objecto de uma operação de loteamento a aprovar pela câmara municipal competente.
4 - As obras de urbanização referidas na última parte da alínea b) do n.º 1 serão licenciadas nos termos da alínea c) do n.º 4 do artigo 37.º, dos artigos 39.º e 40.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 41.º do presente diploma, com as devidas adaptações.
Art. 2.º - 1 - Não constitui operação de loteamento, não estando, portanto, sujeita ao licenciamento previsto neste diploma, a celebração de negócio jurídico que tenha como efeito a transmissão, através do seu destaque, de uma única parcela de prédio inscrito ou participado na matriz, desde que, cumulativamente:
a) O prédio se situe dentro do aglomerado urbano;
b) A parcela a destacar confronte com arruamento público existente;
c) O interessado disponha de projecto para a construção de edifício com o máximo de 2 fogos, a erigir na parcela a destacar, aprovado pela câmara municipal;
d) A licença de construção expressamente mencione as situações referidas nas alíneas a) e b).
2 - Não poderá ser efectuado no mesmo prédio e no prazo de 10 anos mais de um destaque idêntico ao referido no número anterior.

[3] In www.dgsi.pt.