Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA PAULA LEAL CARVALHO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO SEGURADORA DIREITO DE REGRESSO SENTENÇA CRIMINAL DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS CASO JULGADO CONSTITUCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. A sentença penal absolutória decorrente de prova positiva ( por resultar provado que não foram praticados os factos imputados no processo penal), não se impõe, nos termos do art. 624º do CPC, com eficácia erga omnes na ação cível para efetivação da (eventual) responsabilidade civil decorrente dos factos de que o réu havia sido acusado na ação penal, antes constituindo uma presunção ilidível de que os mesmos não foram praticados e, por consequência, sendo ilidível por prova em contrário a cargo do demandante cível. II. A não imposição, erga omnes, da sentença penal absolutória (com base na referida prova positiva) não viola quer o principio ne bis in idem, quer os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do Estado de Direito Democrático (art. 2º do C.R.P.), não sendo o art. 624º inconstitucional por violação do disposto nos arts. 2º e 29º, nº 5, da CRP. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Recorrente: AA Recorrida: Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 75.975,11, acrescida de juros de mora vencidos, bem como os vincendos até integral e efetivo pagamento. Alega, em síntese, que: celebrou com a ré um contrato de seguro do Ramo Automóvel, por via do qual a ré transferiu para a autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-VN; no dia ........2018, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo seguro na ré e o peão BB, imputando a autora a culpa na produção do acidente à ré por conduzir o VN de forma negligente, desatenta, e em claro desrespeito das normas estradais e de segurança, sendo que ao tempo do acidente a ré apresentou uma TAS de 1,10g/l, tendo o álcool influenciado o comportamento da ré, diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão. Mais alega que a ré foi pronunciada pelo crime de homicídio por negligência em concurso aparente com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, tendo a autora nesse processo crime sido demandada civilmente, e chegado a acordo com os demandantes, legais sucessores do peão, antes da realização do julgamento naquele processo, liquidando àqueles sucessores o montante de € 75.000,00 e despendeu ainda a quantia de € 975,11 em despesas de peritagem e averiguação e despesas hospitalares com o dito peão, quantias das quais se quer ver ressarcida, concluindo que estão preenchidos todos os requisitos da alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL 291/2007 de 21 de agosto, que facultam à autora o direito de regresso invocado. A ré contestou, invocando a exceção de caso julgado, em face da decisão absolutória proferida no âmbito do processo comum singular que correu os seus termos sob o n.º 561/18.8..., do Juízo de Competência Genérica de .... No mais, impugnou a factualidade alegada, designadamente a referente ao acidente, imputando a responsabilidade na sua eclosão ao malogrado peão, dizendo que o mesmo iniciou de forma súbita a travessia da faixa de rodagem, tendo sido embatido pelo veículo da ré que nada pôde fazer para evitar o embate. A autora respondeu, concluindo pela improcedência da exceção do caso julgado. Dispensada a audiência prévia, foi fixado à ação o valor de €75.975,11 e proferido despacho saneador que julgou improcedente a mencionada exceção, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, por provada, e condenou a ré a pagar à autora da quantia de € 75.975,11, acrescida de juros de mora vencidos, bem como os juros vincendos, até integral e efetivo pagamento. Inconformada, a Ré apelou , tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 11.01.2024, com um voto de vencido, julgado a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida. Novamente inconformada, veio a Ré interpor recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões: “ 1. A recorrente foi arguida no processo com o nº 561/18.8... que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ..., tendo sido absolvida, por sentença de 31.03.2022, transitada em julgado. 2. Na sentença em apreço, confirmada pelo Tribunal da Relação, deu o tribunal como provados, para além de outros, os factos seguintes: “12- Subitamente, o referido BB iniciou, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, a travessia da faixa de rodagem. 13- Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela arguida. 14- O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo.” 3. No caso, ficou provado que o acidente em causa ocorreu, nas circunstâncias que constam da sentença penal absolutória. 4. Tal versão dos factos veio a ser radicalmente alterada por sentença e acórdão proferidos em subsequente processo civil, daí decorrendo a condenação da ora recorrente. 5. Ocorre que, a sentença penal absolutória (conhecida dos julgadores recorridos) tem que ter eficácia “erga omnes” em obediência ao princípio “non bis in idem”, assegurado entre nós pelos artigos 14º .7, do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 1996, 4º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa. 6. Como também, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático (vd. art. 2º do C.R.P.). 7. E assim sendo devem julgar-se como provados todos os factos que constam da decisão penal absolutória (tais como aqueles que se deixaram transcritos supra), julgando-se não provados os factos vertidos na sentença em crise que os contradigam. 8. Revogando-se, em consequência, o acórdão recorrido e, com isso, se absolvendo a recorrente. 9. Deve declarar-se inconstitucional o artigo 624º do C.P.C. no entendimento, caso venha a ser acolhido, de que a decisão penal absolutória, transitada em julgado, em que foram provados outros factos, não imputados ao arguido, de onde decorre a sua desresponsabilização penal, isto é, factos distintos e incompatíveis com os imputados ao arguido, não tem eficácia “erga omnes”, admitindo-se assim que em sede de processo civil se possam provar outros e distintos factos antagónicos, incompatíveis ou inconciliáveis com os provados em tal sentença absolutória (transitada em julgado), construindo-se assim duas versões distintas e opostas sobre a mesma realidade ou “acontecimento histórico”, igualmente estabilizadas no ordenamento jurídico, por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.” A Recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões: “1 - A Recorrida não encontra no acórdão recorrido qualquer violação de disposições legais ou erro na apreciação da prova que importem a alteração da matéria de facto e de direito no caso vertente nos autos. 2 – Andou bem o douto Tribunal a quo quando decidiu que a decisão penal absolutória não tem sobre o processo civil eficácia erga omnes como se de caso julgado se tratasse, mas apenas e tão somente quanto ao valor extraprocessual da prova. 3 – A Recorrida logrou provar em tribunal que à data dos factos existia ponto específico para o atravessamento dos peões. 4 – A Recorrida logrou provar que a vítima quando atravessou a passadeira na via em que lhe foi cedida passagem pela testemunha CC continuou o seu percurso pelo ponto específico no meio do separador central. 5 – E quando, pretendendo se dirigir para o nº 12 do ..., ..., localizado a direita do seu sentido de marcha, ao atravessar a passadeira foi colhido frontalmente pelo veículo conduzido pela Recorrente. 6 – Como decorre da prova produzida e ao contrário do decidido em processo crime, inexistiam arbustos e arvoredos altos e densos, dado que para além de se ter sido dado como provado que existia um local próprio para a passagem dos peões no separador central, pode-se ler da informação da Câmara Municipal de ... que o local do acidente foi intervencionado com poda de roseiras e hibiscos em ... de ... de 2018, ou seja menos de um mês antes do acidente. 7 - Mais se provou que a Recorrente conduzia o veículo seguro em claro desrespeito pelas normas estradais ao assumir a condução em estado fisiologicamente debilitada com uma percentagem taxa de álcool no sangue (TAS) de 1,10g/l (facto provado 21) e que essa percentagem de álcool no sague influenciou negativamente o seu estado anímico, a sua perceção e reação face as circunstâncias envolventes. 9 – Existe, pois, uma presunção legal de culpa que impera sobre a Recorrente uma vez que circulava na condução de um veículo a motor que deveria saber não estar apta para conduzir dado o seu estado fisiologicamente debilitado, o que nos termos da lei dá direito de regresso à Recorrida. 10 – Não invocou a Recorrente durante todo o processo a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 624.º do CPC, pelo que não será em sede de recurso o momento adequado para alegar a inconstitucionalidade da norma, quando na verdade está em desacordo com a decisão judicial e interpretação da norma. Nestes termos e nos mais de Direito (…), roga-se pela manutenção na íntegra do acórdão recorrido (…)”. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2, 2ª parte, do CPC. *** II. Da admissibilidade do recurso de revista Verificam-se os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista relativos ao valor da ação e sucumbência, bem como a legitimidade da Recorrente. Por outro lado, tendo embora o acórdão recorrido confirmado a sentença da 1ª instância, fê-lo com um voto de vencido, pelo que não se verifica a situação de dupla conforme, sendo o recurso admissível nos termos do art. 671º, nºs 1 e 3, 2ª parte, este a contrario. O recurso de revista é, pois, admissível. *** III. Objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as que sejam de conhecimento oficioso (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06). Assim, são as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente: - Da eficácia erga omnes da sentença penal que absolveu a arguida, ora Ré/Recorrente, da prática dos crimes que lhe foram imputados no processo penal decorrente da aplicabilidade dos princípios ne bis in idem com consagração constitucional (art. 29º, nº 5, da CRP) e nas demais normas internacionais invocadas, e da segurança jurídica e da proteção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático (art. 2º do C.R.P.). - Da inconstitucionalidade do art. 624º do CPC por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa. *** IV. Fundamentação de facto A. É a seguinte a decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido: “1. No exercício da sua atividade a autora celebrou com a ré um acordo reduzido a escrito, titulado pela apólice com o nº ...........01, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-VN. 2. No dia ... de ... de 2018, pelas 19:00 horas, na Avenida ..., concelho de ..., ocorreu um sinistro, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-VN, seguro na autora, de que, à data do sinistro, a ré era proprietária e conduzido por esta e o peão BB. 3. A Avenida ..., onde ocorreu o sinistro, comporta duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte/Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul/Norte. 4. Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura. 5. Sensivelmente a meio da Avenida, em ambos os sentidos de marcha, havia uma passagem para peões assinalada na via de circulação. 6. Existe um ponto específico do separador para quem circulando a pé, pretenda atravessar de uma passadeira para a outra. 7. Em ... de ... de 2018 o local estava dotado de iluminação pública. 8. A ré conduzia o veículo seguro, na faixa da esquerda, no sentido Sul/Norte da Av. .... 9. Ao tempo do sinistro, tendo em conta o sentido de marcha da ré, antes da passadeira, existia sinalização vertical e, no solo, a assinalá-la. 10. Bem como, sinalização vertical de proibição de circular a mais de 40km/h. 11. Na altura o tempo estava bom e o piso seco. 12. Antes da eclosão do sinistro transitava, pelo menos, um veículo, em sentido contrário ao veículo da ré, que, parou na passadeira e deixou passar o peão BB na passadeira, no sentido esquerda/direita (Supermercado ...- Bairro ...). 13. Ao chegar junto da passadeira situada perto do bairro ..., 14. A ré não abrandou a marcha do veículo seguro, na aproximação da dita passadeira, 15. E veio a colher, com a parte central do veículo seguro, o peão BB, que efetuava a travessia de tal passadeira, no sentido esquerda/direita (Supermercado ...- Bairro ...). 16. O peão usava roupa de cor cinzenta ou castanha. 17. De acordo com a participação de acidente o peão possuía residência no r/c, do n.º 12, do referido Bairro .... 18. Em sequência, o peão BB foi projetado a cerca de 8 metros para a frente. 19. A ré imobilizou o seu veículo cerca de 5 metros após a passagem para peões e o BB ficou imobilizado no solo cerca de 5 metros à frente do veículo. 20. As lesões provocadas pelo atropelamento levaram à morte do peão BB, pelas 23H38, do mesmo dia. 21. Ao tempo do sinistro a ré apresentou uma TAS de 1,10g/l. 22. O álcool influenciou o comportamento da ré diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão. 23. Em virtude do estado em que se encontrava a ré não conseguiu atender que estava um peão a atravessar a passadeira. 24. O sinistro ficou a dever-se ao facto da ré conduzir o veículo seguro, de forma negligente, desatenta, e em claro desrespeito das normas estradais e de segurança, bem como aos deveres de cuidado que recaíam sobre si. 25. Ressalvando o espaço específico para atravessamento pela passadeira a que se refere no ponto 6., ao longo do separador existente entre os dois sentidos de trânsito, existiam vários pontos que se foram formando ao longo do tempo pelo uso reiterado das pessoas e através do forçamento e calcar dos arbustos aí existentes, os quais se encontram assinalados a 0,90 m, 5,17m e 8,48m da passadeira. 26. Através de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros datado de ... de ... de 2018, DD, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por BB, declarou serem herdeiros daqueles, além dele próprio, a viúva EE e os seus outros filhos, FF, GG, HH, II e JJ. 27. Em virtude do sinistro, por despacho datado de 19 de novembro de 2020, a ré foi acusada pela prática, em autoria material de um crime de condução perigosa de veículo automóvel, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, al. a) e b) e n.º 4, com referência ao artigo 81.º, nºs 1 e 2, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, al. a) e 27.º, n.º 1, do Código da Estrada, em concurso real com um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, do Código Penal e também pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. 28. Requerida a abertura de instrução pela ré, em 19 de janeiro de 2021, veio a ser proferido despacho de pronuncia pelos referidos crimes, mas em concurso aparente. 29. Nesse processo, EE, na qualidade de viúva do peão e DD, FF, II, JJ, HH e GG, todos na qualidade de seus filhos, deduziram pedido de indemnização cível contra a autora, pedindo a respetiva condenação no pagamento da quantia de € 95 000,00 (noventa e cinco mil euros). 30. Através de sentença proferida no âmbito dos referidos autos, a ré veio a ser absolvida da prática do crime pelo qual estava pronunciado, decisão que veio a ser confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado em 31 de janeiro de 2023. 31. No referido acórdão pode ler-se: “(…) Concluindo, vista a argumentação desenvolvida na decisão recorrida [nomeadamente o último do excertos citados, nenhum reparo merece a opção seguida pelo tribunal recorrido de, primeiramente, divergir das conclusões do relatório efectuado na instrução e, depois, de se socorrer do princípio in dubio pro reo quanto à matéria de facto não provada e consequentemente da responsabilização pelo ilícito que era imputado à arguida na pronuncia, sendo, por isso, de confirmar a decisão absolutória proferida, limitando-nos, nos termos do disposto no art.º 425.º, n.º 5, do CPP, a remeter para a respectiva fundamentação. (…)” 32. A autora foi demandada civil naquele processo e chegou a acordo com os herdeiros do peão BB, tendo pago àqueles o montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) a título de indemnização pelo dano morte, dano moral dos sucessores legais do peão BB, dano não patrimonial da vitima antes de falecer e dano patrimonial futuro. 33. A autora despendeu a quantia de € 975,11 (novecentos e setenta e cinco euros e onze cêntimos) a título de despesas de peritagem e averiguação e despesas hospitalares com o peão BB. E foram considerados não provados os seguintes factos: a) A velocidade que, no momento do embate, a ré imprimia ao seu veículo; b) Que a iluminação pública existente no local é fraca; c) (Sem prejuízo do referido nos pontos 6. e 25. dos factos provados) que, havia arbustos e arvoredo, alto e denso, em toda a extensão e largura do separador; d) Que o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem pela qual circulava a ré, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões; e) Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela ré; e, f) O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo da ré.” * B. Pese embora o Supremo Tribunal de Justiça não conheça de matéria de facto, pode contudo conhecer de factualidade que se encontre provada por documento com força probatória plena (arts. 682º, nº 2, e 674º, nº 3, do CPC). Com a contestação, a ré juntou aos autos a certidão do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado em 31 de janeiro de 2023, no Processo 561/18.8... , a que aliás se reportam os nºs 30 e 31 dos factos dados como provados. Tal documento faz pois prova plena do que a seguir se adita sob o nº 34: 34. Foi a seguinte a decisão da matéria de facto constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no Processo 561/18.8... a que se reportam os nºs 30 e 31 dos factos dados como provados pelo Acórdão ora recorrido: “Factos Provados 1 - Nesta cidade situa-se a Avenida ..., comportando duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte / Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul / Norte. 2- Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura. 3- Em ... de ... de 2018 o local estava dotado de iluminação pública, porém, fraca. 4 - E no referido separador havia, em toda a sua extensão e largura, arbustos e arvoredo, alto e denso. 5 - Inexistia, no atravessamento de tal separador, qualquer ponto próprio ou específico, antes existindo vários pontos que se foram formando ao longo do tempo pelo uso reiterado das pessoas e através do forçamento e calcar de tais arbustos. 6 - Sensivelmente a meio da Avenida, em ambos os sentidos de marcha, havia uma passagem para peões assinalada na via de circulação. 7 - E cerca de 10 metros antes de tal passagem, havia, considerando o sentido Sul / Norte, uma lomba no pavimento. 8 - No local existia, também, sinalização vertical a assinalar a existência da passagem para peões, e, ainda, de proibição de circular a mais de 40 km/h. 9 - Pelas 19 horas do dia ... de ... de 2018, ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes, modelo A170, preto, de matrícula ..-..-VN, a arguida seguia na referida Avenida, no sentido Sul – Norte, com uma TAS de 1, 01 g./l., imprimindo ao veículo velocidade de cerca de 33Km/h. 10- Não chovia, o piso estava seco e já não havia luz natural. 11- BB usando roupa escura e proveniente da zona do ..., atravessou, no sentido Oeste / Este, a passagem para peões existente na Avenida e considerando o sentido de marcha Norte / Sul. 12- Subitamente, o referido BB iniciou, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, a travessia da faixa de rodagem. 13- Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela arguida. 14- O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo. 15- A arguida imobilizou o seu veículo cerca de 5 metros após a passagem para peões e o BB foi projectado, ficando imobilizado no solo cerca de 5 metros à frente do veículo. 16- Por força do embate do veículo e subsequente embate no solo, BB sofreu traumatismos crânio encefálico e torácico graves, dos quais resultaram hematoma subdural e hemorragia subaracnoídea e contusões pulmonares, com paragem cardiorrespiratória subsequente, os quais foram causa da sua morte verificada pelas 23,38 horas do mesmo dia. Mais se provou que 17- A arguida é ..., trabalhando por conta de outrem. 18- Aufere cerca de 750 Euros mensais. 19- Vive em casa da sogra. 20- Tem 2 filhos com ... e ... anos. 21- O seu marido trabalha por conta própria. 22- Tem o 12º ano de escolaridade. 23- Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. Factos não provados Não se provou que 24- BB estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem pela passagem de peões assinalada no solo quanto foi embatido. 25- Que a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente, sem adoptar as precauções exigíveis a qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas circunstâncias, designadamente, não conduzir depois de ter consumido bebidas alcoólicas, bem como não reduzir a velocidade que imprimia ao veículo atenta a aproximação da passadeira para peões, e não parar ao verificar que a mesma estava a ser utilizada pela vítima, bem sabendo que a sua conduta punha em perigo a integridade física e a vida dos demais utentes da via, mas acreditando, levianamente, que tal não se iria concretizar em ferimentos ou na morte de quem quer que fosse. 26- Que sabia, perfeitamente, que a sua conduta era proibida e punida por lei.” *** IV. Fundamentação de Direito 1. No acórdão recorrido referiu-se (por maioria), para além do mais, o seguinte: “Do valor extraprocessual da prova no processo crime instaurada conta a aqui ré. (…) Escreveu-se a propósito no acórdão do STJ de 11.07.2019 6: 6 Proc. 7318/17.1T8CBR.C1.S1. «Daqui decorre que, a lei não prevê que a decisão penal absolutória possa ter a força de autoridade de caso julgado, nos termos em que a legislação processual cível o admite para as sentenças cíveis. O que ela prevê é tão só que a decisão penal pode constituir uma simples presunção da inexistência de factos que eram imputados ao arguido no processo-crime, mas apenas em relação a factos em relação aos quais se tivesse provado que não tinham sido praticados pelo arguido. Quanto aos outros – ou seja, quanto aos que não foram considerados por falta de prova – a presunção não funciona. Ou seja e como bem se referem Lebre de Freitas e Outros “in” Código de Processo Civil Anotado, em anotação ao artigo 674º-B do Código de Processo Civil de 2007, a que corresponde o atual artigo 624º, “não se trata (…) de presunção de inexistência de um facto (…) mas da presunção da ocorrência do seu contrário”. Dito doutro modo: quando num processo-crime se dá como provado que o arguido não praticou determinados factos, numa ação cível o autor tem o ónus de provar o contrário, isto é, que ele praticou esses factos.» Na sentença recorrida considerou-se que a decisão proferida no processo crime em que foi arguida a aqui ré, confirmada pelo Acórdão do Tribunal desta Relação de 15.12.2022 [Doc. 2 junto com a contestação], «apesar de definitiva, não constitui uma decisão absolutória que tenha apreciado se a aí arguida (ora ré) houvera praticado ou não os factos suscetíveis de integrar os crimes de que havia sido pronunciada, não tem aplicação o referido normativo [art. 624º do CPC]» Entendemos que, neste aspeto concreto, a sentença recorrida não fez uma análise correta da decisão proferida no processo crime. (…) Porém, escreveu-se na sentença penal: «(…) este é um caso no qual o peão, a infeliz vitima, não observou os deveres de cuidado e atenção que sobre si impediam na situação concreta, designadamente quando, de forma súbita, iniciou a travessia da faixa de rodagem fora do local próprio e, além do mais, já com o veículo da arguida praticamente em cima de si, coarctando a esta qualquer possibilidade de reacção. A arguida em nada contribuiu para a produção do resultado. Não se vislumbra como e em que medida é que esta poderia ter evitado o resultado. Assim sendo, não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal, pelo que se impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio negligente previsto no artº 137º, nº 1, do Código Penal. Resta apenas dizer que a circunstância da arguida conduzir sob a influência de álcool, em regime contraordenacional, não constitui causa de qualquer ilícito criminal, designadamente de condução perigosa (cfr. artº. 291º do CP). Não se verificam, também, os elementos constitutivos deste tipo de ilícito na medida em que, como deflui da matéria de facto supra, a arguida não causou qualquer perigo, antes sendo causal do acidente a conduta do peão.» Como resulta do trecho acabado de transcrever, não há dúvida que a absolvição da ora ré teve lugar com fundamento em prova de que a mesma não praticou os factos de que estava acusada, a chamada absolvição pela prova positiva. Ora, quando a sentença penal absolve o arguido pela prova positiva, e não por falta de provas, ou seja, com base no princípio in dubio pro reo, de que não praticou os factos que lhe eram imputados, tem-se por adquirido que ele atuou corretamente, de modo diligente. Porque verdadeiramente - como se viu supra - a presunção não é da inexistência dum facto, mas da sua existência, então o facto provado, na sentença penal, de que o arguido agiu diligentemente faz recair sobre o autor, na ação cível, o ónus probatório de que assim não aconteceu e de que essa atuação foi culposa. Assente, no processo penal, que a atuação do arguido não foi culposa, tendo antes atuado com a diligência devida, não se pode depois, em ação cível, e na falta de prova em contrário, imputar-se-lhe a culpa na ocorrência do acidente. Do que se acaba de expor logo se vê a falta de razão da recorrente quando pretende que sejam dados como provados os factos referentes à dinâmica do acidente dados como provados no processo crime (…). Só assim não seria se, na presente ação, a autora não fizesse prova da atuação culposa da ré na produção do acidente sub judice. E será que a autora logrou fazer tal prova? É o que veremos de seguida”, passando, após, a conhecer da impugnação da matéria de facto aduzida na apelação. Ou seja, no acórdão recorrido teve-se como assente que a absolvição da Ré na sentença proferida no processo crime não assentou no principio in dubio pro reo, mas sim na prova de que o acidente não proveio de atuação culposa imputável à ali arguida, ora Ré, ou dito de outro modo, que a absolvição penal decorreu da prova positiva de não ser o acidente imputável à Ré. Porém, entendeu-se e decidiu-se, também, no acórdão recorrido (por maioria), após a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto aduzida pela ré na apelação (quanto aos nºs 5, 6, 7, 10, 13, 14, 15, 18, 19, 23 e 24 dos factos provado e al. c) dos factos não provados), julgar improcedente tal impugnação e, daí, vindo a considerar-se ter sido feita prova, pela A., de que o acidente proveio de atuação culposa da Ré atenta a matéria de facto fixada na sentença proferida nos presentes autos. 1.2. Quanto ao voto de vencido, foi referido o seguinte: “ (…) ocorrem outros sólidos fundamentos para que se alterasse a matéria de facto dada como provada na primeira instância, que determinariam que se concedesse provimento ao recurso interposto, concluindo-se pela exclusão de responsabilidade da Ré na produção do acidente e, consequentemente, pela respetiva absolvição. São as seguintes as razões em que se funda tal entendimento. Como se refere na decisão, a absolvição da ora Ré no processo penal ali mencionado constitui, nos termos do disposto no artigo 624º do Código de Processo Civil, presunção ilidível da inexistência dos factos imputados à ali arguida, invocável em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infração – a decisão penal constitui uma presunção da inexistência de factos que eram imputados à arguida no processo-crime. Dispõe tal preceito legal que: (…) Como várias vezes tem explicitado o Supremo Tribunal de Justiça , quando não fundada a absolvição em processo penal no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados - nomeadamente, os integrantes de uma infração estradal causal - fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido atuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que aquele atuou por forma culposa. Por funcionamento da regra probatória assente na presunção prevista no artigo 624º do Código de Processo Civil, impendia sobre a Seguradora Autora, ora recorrida, o ónus de demonstrar que (ao contrário do que se considerou provado no processo penal) o infeliz peão não surgiu inopinadamente, saído do meio da vegetação, no escuro, para, atravessar a faixa de rodagem em que circulava a Ré, fazendo-o fora da passadeira de peões. Impunha-se que a Seguradora Autora ilidisse a presunção, fazendo prova de circunstâncias que fundassem o juízo de culpa da Ré condutora na produção do acidente. O ónus que impendia sobre a Seguradora Autora, a nosso ver, não se deveria considerar satisfeito, uma vez que não foi lograda base para assentar convicção segura sobre as circunstâncias em que o embate do veículo no peão ocorreu, diversa da que foi firmada no processo penal, devendo, por isso, valer plenamente o determinado no artigo 624º do CPC. Como refere Lebre de Freitas (e outros), in "CPC Anotado", 2º Vol, p. 693, "a prova, no processo penal, de que o arguido actuou com a diligência devida onera o autor com a prova de que assim não foi e a actuação foi culposa". Divergimos da decisão que fez vencimento, por entendermos que no caso se verifica falta de prova em contrário e, por isso, com base na regra probatória prevista no artigo 624º do CPC, a prova produzida impunha, ressalvado o muito e devido respeito pelo entendimento que fez vencimento, a emissão de um juízo probatório diverso daquele que foi plasmado na decisão recorrida”, passando seguidamente à análise da prova que teve por pertinente, concluindo que: “Por tudo isso, e por entender que prova produzida impunha decisão diversa, julgaria ao menos parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto no que respeita ao ponto c) dos factos não provados e aos pontos 15, 23 e 24 dos factos provados. A prova produzida nestes autos é, no nosso entender, consentânea com o que se demonstrou no processo crime, não tendo sido produzida prova do contrário. Se o peão surgiu inopinadamente, a seguir à passadeira, provindo do meio da vegetação, no escuro (juízo probatório plenamente suportado pela prova produzida), não tendo a Autora/Seguradora feito prova do contrário (i. e., de circunstâncias diversas das que se provaram no processo penal e capazes de fundar um juízo de culpa da Ré condutora do veículo), as regras da prova impunham, em nosso entender, que se decidisse em sentido oposto ao do Acórdão. Por todas estas razões, sempre salvaguardado o respeito pelo entendimento oposto, divergimos da decisão que fez vencimento.” Do referido decorre, pois, que tanto a posição que fez vencimento, como a que ficou vencida, coincidem no entendimento quanto à aplicação do art. 624º e à possibilidade, no processo cível, de ser ilidida a presunção (de que o acidente não proveio de atuação culposa da arguida/ré) decorrente da absolvição no processo crime (absolvição com fundamento, não no princípio indubio pro reo, mas sim em que não foram praticados os factos imputados no processo crime, conforme no caso sucedeu). Ou seja, ambas as posições sufragadas no acórdão recorrido concordaram no sentido de que a absolvição no processo crime não se impõe erga omnes ou, dito de outro modo, ambas as posições concordam que a decisão penal absolutória não tem “autoridade de caso julgado” preclusiva da reapreciação, no presente processo cível, da factualidade por que foi a arguida absolvida no processo criminal. A discordância entre as posições radicou pois e apenas na avaliação que fizeram da prova produzida, entendendo a posição maioritária que a A. fez prova do contrário (ou seja, que a A. fez prova dos factos de onde se conclui que o acidente é imputável a atuação culposa da Ré) e, a posição vencida, que tal prova não foi feita ou não foi cabalmente feita (pelo que alteraria, “ao menos parcialmente”, a matéria de facto que indica), em consequência do que, face à presunção do art. 624º e das regras de repartição do ónus da prova, decidiria em sentido oposto ao do acórdão ora recorrido. Mas avançando. 2. Discordando do decidido (por maioria) no acórdão, entende a Recorrente que a decisão penal de absolvição, mormente quanto à factualidade dela resultante, se impõe ergo omnes, invocando para tanto o princípio non bis idem, “assegurado entre nós pelos artigos 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 1996, 4º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.”(conclusão 5ª). Mais invoca os “princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático (vd. art. 2º do C.R.P.)” (conclusão 6ª), devendo “julgar-se como provados todos os factos que constam da decisão penal absolutória (tais como aqueles que se deixaram transcritos supra), julgando-se não provados os factos vertidos na sentença em crise que os contradigam” (conclusão 7ª) e considerar-se inconstitucional o art. 624º do C.P.C. “no entendimento, caso venha a ser acolhido, de que a decisão penal absolutória, transitada em julgado, em que foram provados outros factos, não imputados ao arguido, de onde decorre a sua desresponsabilização penal, isto é, factos distintos e incompatíveis com os imputados ao arguido, não tem eficácia “erga onmes”, admitindo-se assim que em sede de processo civil se possam provar outros e distintos factos antagónicos, incompatíveis ou inconciliáveis com os provados em tal sentença absolutória (transitada em julgado), construindo-se assim duas versões distintas e opostas sobre a mesma realidade ou “acontecimento histórico”, igualmente estabilizadas no ordenamento jurídico, por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.” Por sua vez, contrapõe a Recorrida que: a decisão penal absolutória não tem sobre o processo civil eficácia erga omnes, como se de caso julgado se tratasse, mas apenas quanto ao valor extraprocessual da prova, tendo a Recorrida logrado provar, na presente ação, os factos de onde decorre a responsabilidade da Ré/Recorrente pela ocorrência do acidente. Mais diz que a Recorrente, durante todo o processo, não invocou a inconstitucionalidade do art. 624º do CPC, não sendo em sede de recurso o momento adequado a fazê-lo. 2.1. No que toca à invocação da inconstitucionalidade do art. 624º do CPC e tendo em conta o alegado pela Recorrida, é de dizer que, no recurso de apelação, a Recorrente, para além da invocação da eficácia erga omnes da decisão penal absolutória e dos mencionados princípios e disposições constitucionais e internacionais, invocou também a inconstitucionalidade do citado art. 624º, como decorre das alegações e conclusão 12ª da apelação, na qual se refere que: “ 12. Deve declarar-se inconstitucional o artigo 624º do C.P.C. no entendimento, caso venha a ser acolhido, de que a decisão penal absolutória, transitada em julgado, em que foram provados outros factos, não imputados ao arguido, de onde decorre a sua desresponsabilização penal, isto é, factos distintos e incompatíveis com os imputados aos arguido, não tem eficácia “erga onmes”, admitindo-se assim que em sede de processo civil se possam provar outros e distintos factos antagónicos, incompatíveis ou inconciliáveis com os provados em tal sentença absolutória (transitada em julgado), construindo-se assim duas versões distintas e opostas sobre a mesma realidade ou “acontecimento histórico”, igualmente estabilizadas no ordenamento jurídico, por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.” De todo o modo sempre se dirá que, nos termos do art. 204º da CRP, “[n]os feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados” pelo que sempre competiria a este STJ a apreciação da (in) constitucionalidade, tanto mais suscitada no recurso de revista. 3. Previamente à apreciação do objeto do recurso, importa tecer algumas considerações sobre os arts. 623º e 624º. Está em causa o disposto no art. 624º do CPC, o qual se prende com a eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal ou, se se preferir, nas palavras de José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, p.6911, mais propriamente com “a eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes”. Os arts. 153º e 154º do então Código de Processo Penal (CPP) de 1929 dispunham sobre os efeitos das sentenças penais condenatórias e absolutórias nas ações não penais: - O art. 153º, sob a epígrafe “Caso jugado condenatório”, que: “A condenação definitiva proferida na acção penal constituirá caso julgado, quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes, mesmo nas acções não penais em que se discutam direitos que dependam da existência da infracção.” - O art. 154º, sob a epígrafe “Efeitos da sentença penal absolutória em acção não penal” que: “A sentença absolutória, proferida em matéria penal e com trânsito em julgado, constituirá nas acções não penais simples presunção legal da inexistência dos factos que constituem a infracção, ou de que os arguidos a não praticaram, conforme o que se tenha julgado, presunção que pode ser ilidida por prova em contrário”. Tais normas não transitaram para o CPP de 1987, vindo a matéria da eficácia da decisão penal nas ações não penais a ser novamente prevista, agora porém no CPC (de 1961), pelo DL 329-A/95, de 12.12., sob os arts. 674º-A e 674º-B, nos quais se dispunha que: - art. 674º-A, sob a epígrafe “Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória”: “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção” [com a redação do DL 180/96] - Art. 674º-B, sob a epígrafe “Eficácia da decisão penal absolutória”: “1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. 2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.” Tais preceitos transitaram, com idêntica redação, para o atual CPC, aprovado pela Lei 41/2013. 3.1. Em anotação ao então art. 154º do CPP/1929 M. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal (de 1929), 4ª Edição, Almedina, Coimbra, pp. 238/239 referia que: “ Confrontando os comandos dos arts. 153º e 154º, verifica-se que é diferente a orientação do CPP quanto aos efeitos nas acções não penais das sentenças condenatórias e absolutórias.” Para explicar tal diferença alude à absolvição ditada pelo principio do in dubio pro reo, mas mais dizendo: “ Outras vezes, para atingir uma solução que considerações humanitárias impõem ou explicam, o tribunal absolve, embora convencido da existência da infracção e da responsabilidade dos seus agentes. A isto poder-se-á acrescentar que a absolvição pode radicar em causas da exclusão culpa em regra menos graves; a decisão tem consequências menos prejudiciais para a pessoa e honorabilidade do réu; o litígio decorre com mais tranquilidade e não aprecem aquelas apontadas razões humanitárias. O âmbito da responsabilidade criminal e civil não coincide. A absolvição em processo penal não poderia, portanto, resolver definitivamente interesses de outra natureza e que obedecem a outras determinantes”. 2 E, conforme Acórdão do STJ de 13.11.20033, Proc. 03B2998, in www.dgsi.pt citando Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 5ª edição, Coimbra, 1982, p. 239 “ Na verdade, a ação penal e a ação civil são reconhecida e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objetiva, pelo simples risco (cfr. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp. 186, 195 e 196)”. Por sua vez, no preâmbulo do citado DL 329-A/95, disse o legislador o seguinte: “no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções conexas civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria». 3.2. O mencionado regime legal denota uma primazia do direito penal: no âmbito do CPP de 1929, uma primazia absoluta da sentença penal condenatória (que se poderia configurar como consubstanciando a figura do caso julgado), primazia essa, porém e já a essa data, mitigada no caso de sentença penal absolutória, em que já ela não se impunha, nas ações civis, como tendo efeito erga omnes, mas apenas como consubstanciando simples presunção legal da inexistência dos factos integradores da infração ou de que o arguido não os praticou. A evolução legislativa que ocorreu posteriormente verificou-se, pois e essencialmente, no que respeita à sentença penal condenatória, em que, ao invés da sua eficácia (em relação a terceiros) erga omnes, optou o legislador por uma eficácia também “mitigada” dessa sentença, passando a consagrar uma presunção legal, ilidível, da prática dos factos, assim passando a competir ao réu/arguido condenado na prática do crime, face à inversão do ónus da prova (arts. 350º e 344º do Cód. Civil), o ónus da prova do contrário, isto é, de que não praticou os factos pelos quais foi condenado no processo crime. E procedeu o legislador a tal alteração, em nome do princípio do contraditório em detrimento do princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança na imodificabilidade dos factos. Em relação à sentença penal absolutória a evolução legislativa verificada repristinou, no essencial, o regime do então art. 154º do CPP/1929, mantendo a presunção legal, ilidível, de que não foram praticados os factos que haviam sido imputados no processo penal e de cujo crime o arguido foi absolvido. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil (Versão do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), Março/Julho de 1996, LEX, p.359, refere que: “(…), o caso julgado penal condenatório constitui presunção ilidível da prática da infracção em qualquer acção civil, proposta por um terceiro ou contra um terceiro, em que se discutam relações jurídicas dependentes daquele acto (art. 674º - A). Suponha-se que, por exemplo, o condutor do veículo que provocou o acidente foi condenado por conduzir embriagado; na acção de indemnização instaurada pelo lesado contra a companhia de seguradora, presume-se a prática desse acto. Regime idêntico vale quanto à eficácia da decisão penal absolutória”. De acordo com Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, em anotação ao então art. 674º-B:“II. Esclarece-se que a “presunção de inocência”, estabelecida no nº 1, só tem cabimento quando a absolvição penal haja assentado na conclusão de que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados. Pelo contrário, se a decisão penal absolutória assentou na verificação de que o arguido praticou certos factos (embora, porventura, insuficientes para ditarem a sua condenação, v.g., por preencherem insuficientemente todos os elementos do tipo legal ou por ocorrer uma causa de exclusão da culpa penal), é evidente que não se verifica a presunção estabelecida nesta norma, devendo valer inteiramente as regras gerais sobre o ónus da prova na ação em causa. (…)”. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Almedina, em anotação ao art. 624º, p. 805, refere que: “1. O preceito não abarca toda e qualquer sentença absolutória, designadamente aquela em que a absolvição emerge do princípio indubio pro reo, mas apenas aquela em que seja demonstrado, pela positiva, que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados e que servem de sustentação a pretensão de natureza cível deduzida autonomamente. É essa sentença que integra uma presunção legal ilidível mediante prova do contrário, (…).” José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º. 4ª Edição, Almedina, em anotação ao art. 624º, p. 765/766, dizem que: “(…). Não se trata, pois, da presunção de inexistência dum facto (como, com menos rigor, se lê no preceito), mas da presunção da ocorrência do seu contrário. Por outro lado, a previsão do artigo em anotação não é integrada pela absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados, mas pela absolvição pela prova (positiva) de factos de que, na ação civil, ele teria de outro modo, o ónus”. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, em anotação aos art. 623º e 624º, p.398 e 400, diz que: “Procura o artigo garantir alguma coerência decisória entre julgado penal e julgado civil, como no passado constituía objecto dos arts. 153º e 154º CPP/1929. Concluímos na anotação ao artigo 421º que as decisões sobre a matéria de facto em outro processo estão sujeitas à livre apreciação da prova no novo processo e valem como princípio de prova. Não têm força de caso julgado. Ora, justamente os preceitos 623º e 624º fogem a essa solução. Ambos estatuem que a sentença penal, seja condenatória, seja absolutória, tem força probatória plena quanto a certos factos, em resultado da atribuição de valor de presunção legal ilidível ao que nela foi decidido a esse respeito. Recorde-se que o art. 350º CC dita que “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, mas que “as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário. Trata-se, agora, de fazer uso dos factos assim presumidos em acções civis” (p. 398). E, bem assim, que: “I. Âmbito objectivo. I. No caso da sentença penal absolutória importa distinguir se a absolvição foi fundada em prova positiva ou em prova negativa: o preceito apenas se aplica à absolvição fundada na prova positiva. Se a absolvição penal tiver por fundamento a falta de prova dos factos imputados ao arguido – a chamada absolvição pela prova negativa (com base no princípio in dubio pro reo) – o arguido não foi” absolvido (…) com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados” como exige o art. 624º. (…), não dispensando, por isso, aquele que invoca os factos em que se alicerçou a acusação no processo-crime do ónus de os demonstrar na acção civil se deles quiser tirar proveito (…) II. Diversamente, se a absolvição teve lugar com fundamento em prova de que o arguido não praticou os factos de que estava acusado – a chamada absolvição pela prova positiva – tem-se por adquirido (rectius, presumido) que ele actuou correctamente, de modo diligente, nos termos desse art. 624º. (…) Por isso, irá recair, nas acções de natureza civil, sobre a parte que não tem a seu favor a presunção o ónus da prova do contrário (RL 1-7-2020/4817/04.9YXLSB.L1-6 (…)” [p. 400]. Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª Edição, p. 199, a propósito do art. 624º, refere que: “Esta presunção pressupõe a prova em processo crime de que os factos não foram praticados, (…). A previsão desta norma apenas integra a absolvição pela prova positiva de factos que, na ação civil, incumbiria ao arguido provar. Quando a absolvição em processo penal se tiver fundado em que o arguido não praticou os factos, nomeadamente, os integrantes da contravenção causal ou crime, que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido atuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido atuou por forma culposa. Todavia, nessa ação cível não pode o autor beneficiar de presunções legais de culpa, v.g., 503º, nº 3, 491º a 493º. 799º ex vi artigo 624º, nº 2. Esta norma, neste circunspecto, determina uma inversão do ónus da prova (artigo 344º, nº 1), cabendo ao autor provar que o arguido atuou culposamente. O disposto no nº 2 do Artigo 624º não obsta a que, na ação civil, se recorra a todos os meios legais de prova, inclusive a presunções judiciais como forma de firmar factos. (…)”. Cristina Dá Mesquita, Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal, in https://julgar.pt/, diz que: “Desta forma, o CPP de 1987 compreende uma opção de abandonar a regulação dos artigos 153.º e 154.º do CCP de 1929 (…), em sintonia com um modelo de independência da prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática do crime instaurada em separado enquanto matéria da lei civil (substantiva e adjetiva) o que é coerente com a nova filosofia do sistema jurídico, em particular, a já assinalada reconfiguração dos direitos de indemnização do lesado ao abrigo dos institutos de natureza civil. (…) A norma do artigo 624.º, n.º 1, do CPC tal como o artigo 154.º do CPP de 1929 estabelece uma presunção legal sobre factos de sentença penal absolutória que, contudo, se apresenta significativamente mais restrita do que a norma do antigo CPP, por limitar a presunção ao segmento da fundamentação de sentença absolutória que considere provado que o arguido não praticou «os factos que lhe eram imputados». Por fim, Maria José Capelo, in A sentença entre a Autoridade e a Prova, em Busca de Traços Distintivos do Caso Julgado, Almedina, pp. 216 e ss: «Na regulamentação da eficácia subjetiva da sentença penal, a redacção do artigo 674º-A [artigo 623º do NCPC] inspirou-se no princípio do contraditório. Isto é, pretendeu-se adequar “o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria. O eventual interesse público na prevenção de uma contraditoriedade lógica, no que diz respeito às questões de facto ou de direito, não prevaleceu, de forma absoluta, sobre o interesse na tutela aqueles sujeitos a quem não foi dada a possibilidade de serem ouvidos. (…)”, mais dizendo que “(…) não queremos deixar de reiterar o eventual anacronismo da previsão de uma eficácia probatória da sentença penal no processo civil. Argumentar-se-á que a solução legal é uma “solução de compromisso”, perspetivando-se a sentença penal como fundamento de presunções suscetíveis de ilisão. Tal “presunção” não comprometerá a liberdade na formação do juiz civil, prevenindo, antes de mais, situações de incompatibilidade lógica”. Quanto aos efeitos relativamente a terceiros da sentença penal condenatória, desde há muito (desde o DL 329-A/95) que, nos termos da lei ordinária, deixou de vigorar a subordinação total dos processos cíveis (conexos) àquela, antes tendo dado lugar a uma forma mitigada de subordinação, por via da presunção legal estabelecida no anterior art. 674-A e, atualmente, mantida no art. 623º. E, no que toca à sentença penal absolutória (decorrente, não do princípio in dubio pro reo4 , mas da prova, de não terem sido praticados os factos imputados na sentença penal) nunca, nem mesmo no domínio do CPP de 1929, se verificou a subordinação total do juiz cível à sentença penal, antes tendo vigorado, e continuado a vigorar, apenas, a forma mitigada de subordinação, por via da presunção dos então arts. 153º do CPP de 1929, 674º-B do CPC/1961 (com a reforma do DL 329-A/95) e do atual art. 624º. Assim também o já citado Acórdão do STJ de 13.11.2003, Processo 03B2998, consultável in www.dgsi.pt, ao dizer que [omitimos as notas de rodapé]: “7- Antes da reforma do processo civil operada em 1995/96, entendia-se, assim, que, fixada em processo-crime a verdade dos factos, a eficácia dessa averiguação em relação a qualquer outro procedimento em que esses factos se controvertessem não dependia da identidade das partes, mas sim, e apenas, da identidade dos factos (12). Com a reforma do processo civil operada em 1995/96, a sobredita lacuna de regulamentação foi preenchida pelo modo que, "na ausência intercalar de preceito substitutivo", já, como dito, se vinha entendendo dever sê-lo, isto é, retomando, como expressamente notado no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, o regime constante do CPP29. Designadamente, o artº. 674º-B, nº. 1, CPC, repristina o disposto no artº. 154º, CPP29, relativamente ao qual se salientava que o âmbito da responsabilidade criminal e da responsabilidade civil não coincidem (14); e daí que, hoje como antes, a absolvição no processo penal não baste para resolver interesses de outra natureza e que obedeçam a outras determinantes. 8- Em sede, agora, da teleologia - de finalidade e razão de ser - dos supracitados normativos da lei processual civil vigente, o relatório do DL 329-A/95, de 12/12, desvenda que foi por exigências decorrentes do princípio do contraditório - corolário lógico da proibição da indefesa ínsita nos artºs. 2º e 20º da Constituição - que a decisão penal condenatória deixou de ter eficácia erga omnes, tendo a absoluta e total indiscutibilidade da decisão relativa à culpa então apurada sido transformada em mera presunção iuris tantum, ilidível por terceiro, da existência do facto e da sua autoria. Se assim caminhou o legislador quanto à eficácia da sentença penal condenatória, afastando-se (quanto a terceiros) da sua eficácia erga omnes em favor da presunção prevista no art. 623º, muito menos se poderá justificar, à face da legislação ordinária, o entendimento da Recorrente de que a sentença penal absolutória (ainda que com base na mencionada prova positiva) se impõe erga omnes quando esta nunca esteve prevista. E que a sentença penal absolutória (com fundamento em prova positiva) consubstancia presunção legal ilidível se pronuncia, de forma reiterada, o STJ, designadamente nos seguintes Acórdãos, todos consultáveis in www.dgsi.pt: - de 20.10.2020, Proc. 5/05.5TBPTS.L1.S1 [sumário]: “IV. O artigo 624.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estabelece uma presunção juris tantum, suscetível de ser ilidida por prova em contrário, que poderá resultar da prova obtida no âmbito do processo civil.” - de 11.07.2019, Proc. 7318/17.1T8CBR.C1.S1 [sumário]: «I - A decisão penal que tiver absolvido o arguido – réu numa ação cível – “com fundamento em este não ter praticado os factos que lhe eram imputados” constitui presunção legal ilidível da “inexistência desses factos”. (…)». - de 05.05.2016, Proc. 215/05.5TBRMR.E1.S1 [sumário]: “I - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, não reveste, em ações de natureza civil nas quais o mesmo seja réu, a autoridade de caso julgado, constituindo simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (art. 624.º, n.º 1, do NCPC (2013)). (…)” - de 21.10.2010, Proc. 95/04.8TBCDR.P1.S1 [texto do acórdão]: “O que releva destes preceitos não é, decisivamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas que tenham suportado os factos dados como assentes. E o alcance desta eficácia probatória é estabelecido mediante a presunção, ilidível mediante prova do contrário, da existência ou inexistência dos factos imputados ao arguido. Por isso, quando a sentença penal absolve o arguido pela prova positiva, e não por falta de provas, ou seja, com base no princípio in dubio pro reo, de que não praticou os factos que lhe eram imputados, tem-se por adquirido que ele actuou correctamente, de modo diligente. Porque verdadeiramente a presunção não é da inexistência dum facto, mas da sua existência (2), então o facto provado, na sentença penal, de que o arguido agiu diligentemente faz recair sobre o autor, na acção cível, o ónus probatório de que assim não aconteceu e de que essa actuação foi culposa. Assente, no processo penal, que a actuação do arguido não foi culposa, tendo antes actuado com a diligência devida, não se pode depois, em acção cível, e na falta de prova em contrário, imputar-se-lhe a culpa na ocorrência do acidente” - de 27.09.2005, Proc. 05A2398 [sumário]: “(…). 2 - A absolvição do Réu em processo crime é simples presunção legal ilidível mediante prova em contrário (art.º 674-B C.P.C.)” - de 17.05.2004, Proc. 04B1967 [sumário], “1. Do art. 674º-B do C. Proc. Civil resulta que quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou por forma culposa, prova que, no entanto, não pode ser feita através do apelo a qualquer presunção de culpa estabelecida na lei civil. 2. Por isso, a previsão do artigo 674º-B do C. Proc.Civil apenas integra a absolvição pela prova positiva de factos de que, na acção civil, o arguido teria, de outro modo, o ónus, não abrangendo a absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido.” - de 30.04.2003, Proc. 03B943 [texto do acórdão]: “Dessa questão se ocupou, em contrapartida, o Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (que aprovou a Reforma do Processo Civil), como, aliás, o legislador se encarregou de frisar no respectivo preâmbulo: "no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação dos efeitos do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções civis conexas com as penais, retomando o regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria". Nesse desiderato, foram aditados ao C.Proc.Civil os arts. 674º-A e 674º-B, prescrevendo-se neste último que "a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário" (nº 1), sendo que tal presunção "prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil" (nº 2). (…) Ora, na medida em que nos autos em apreço se provaram os factos que acima enunciamos, estará por força deles -se entendermos que apontam para a culpa do recorrente na produção do acidente (como, aliás, as instâncias concluíram) - ilidida a presunção que resultaria da sentença alegadamente exarada na acção penal a que o réu alude.” Ou seja, e concluindo as considerações tecidas, para além do entendimento doutrinário, constitui, pois e também, entendimento uniforme do STJ que a sentença penal absolutória decorrente de prova positiva, ao contrário do pretendido pela Recorrente, não se impõe erga omnes, antes constituindo mera presunção legal, ilidível, da inexistência dos factos de que o arguido havia sido penalmente acusado, salientando-se não ter sido, em toda a mencionada doutrina e jurisprudência, suscitada a eventual inconstitucionalidade do art. 624º. 4. Mas, não obstante o que ficou referido, entende a Recorrente, ainda assim e pese embora alegue conhecer a doutrina e jurisprudência, que a não imposição, erga omnes, da sentença penal absolutória (com base, não no principio in dubio pro reo, mas pela já referida prova positiva) viola quer o principio ne bis in idem, com consagração constitucional (art. 29º, nº 5, da CRP) e no art. 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 1996, no art. 4º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 22 de Novembro de 1984 e no art. 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, quer os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do Estado de Direito Democrático (art. 2º do C.R.P.), sendo o art. 624º inconstitucional por violação do disposto nos citados artigos 2º e 29º nº 5 da CRP. Diz também que “Ocorre que o que está em causa, no que ora se discute, não é a circunstância, como adiante se verá, de o tribunal recorrido ter dado como verificado determinado “acontecimento histórico” ou “pedaço de vida” que em sede que processo crime havia sido dado como não provado. Trata-se antes de “reescrever” a história e, por isso, passarmos a ter duas realidades distintas para o mesmíssimo evento naturalístico, “contadas” por quem para isso tem a mesmíssima legitimidade (cf. art. 202º da C.R.P.), sendo certo que “in casu” a primeira das versões já se havia consolidado no ordenamento jurídico por ter transitado em julgado.” Desde já avançando, dir-se-á que não lhe assiste razão. 4.1. Começar-se-á por dizer que o art. 624º, ao permitir a prova em contrário (ou seja, ao permitir a prova dos factos contrários aos que, na sentença penal absolutória, determinaram a absolvição), permite, é certo e como diz a Recorrente, que se “reescreva a história”. Alias, se assim não fosse dificilmente seria feita a prova do contrário prevista no art. 624º. E, para essa prova do contrário, não exige o legislador a produção de qualquer “novo” meio de prova (v.g., novas testemunhas e/ou nova prova documental e/ou pericial), podendo o juiz cível recorrer aos meios de prova, legalmente admissíveis, que sejam apreciados na ação cível. E não se trata, também, de maior ou menor “habilitação” ou “legitimidade” do tribunal/juiz (art. 202º da CRP). Ambos, se para tanto tiverem, nos termos legais, competência material, e verificados que sejam outros princípios constitucionais e processuais que se imponha observar, designadamente o contraditório, terão a “legitimidade” constitucional e legalmente conferida para o julgamento. Mas avançando. 4.2. Dispõem os citados preceitos, relativos ao princípio ne bis in idem, que: - Art. 29º da CRP, sob a epígrafe “Aplicação da lei criminal”, que: “1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. 2. O disposto no número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna, por acção ou omissão que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos. 3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior. 4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. 5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. 6. Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.” - Art. 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos: “1 - Todos são iguais perante os tribunais de justiça. Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações de carácter civil. (…). 7 - Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país.” - Art. 4º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, sob a epígrafe “Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez”, que: “1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado. 2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento. 3. Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no artigo 15.º da Convenção.” - Art.50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sob a epígrafe “Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito”: “Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.” Quanto ao art. 2º da CRP, sob a epígrafe Estado de direito democrático, dispõe que: “ A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.” 4.3. O princípio do non bis in idem, consagrado na CRP, bem como nas convenções internacionais invocadas, consubstancia um princípio básico da lei penal, que assenta, de forma sintética, no “reconhecimento geral de que ninguém pode ser condenado mais de uma vez (ne bis) pelo mesmo (idem) delito” – Agostinho S. Torres, O PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM, in Julgar, nº 14, https://julgar.pt/o-principio-ne-bis-in-idem/, comportando, como dizem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, em anotação ao nº 5 do art. 29º, p. 194, uma dimensão subjetiva, garantindo “ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto”, e uma dimensão objetiva, obrigando “o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto”. E, a p. 800 (sobre o caso julgado) dizem os mesmos autores que: “V. A Constituição não garante explicitamente o princípio da intangibilidade do caso julgado. Todavia, para além de poder ser deduzido do princípio do Estado de direito democrático (art. 2º), ele aflora claramente no art. 282º - 3 (…). Todavia, não sendo mais do que um princípio constitucional implícito, pode ele ter de ceder quando estejam em causa outros valores constitucionais mais importantes, e desde que, naturalmente, se respeitem as garantias constitucionais dos tribunais, quanto à separação de poderes, à reserva da função judicial e ao respeito das decisões judiciais pelas autoridades administrativas, pelo que o caso julgado só poderá ser revisto por via judicial e na base de uma lei geral e abstracta. (…)” [sublinhado nosso]. Isabel Alexandre, “O Caso Julgado na Jurisprudência Constitucional Portuguesa”, in Estudo em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, pp. 61/62, diz que: “Uma outra conclusão que se pode extrair da jurisprudência do Tribunal Constitucional é a de que a definitividade da decisão proferida a final num processo é encarada como algo de natural, porque imanente à função jurisdicional. A livre modificabilidade ou revogabilidade dessa decisão parece-nos ser permitida apenas em casos excepcionais, embora não se possa identificar, com segurança, quais sejam esses exactos casos. Mas, apesar dessa “exigência de caso julgado”, ou dessa garantia de que, num processo, alguma decisão deverá será definitiva, da jurisprudência do Tribunal Constitucional depreende-se também uma vasta margem de liberdade do legislador na escolha das decisões que, dentro do processo, são aptas a constituírem caso julgado, na determinação dos limites do caso julgado e, bem assim, no estabelecimento dos requisitos do trânsito em julgado de uma decisão.” [sublinhado nosso]. Quanto ao princípio do Estado de Direito Democrático, referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 63 e segs, que assenta ele na sujeição do “poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”, consistindo o seu cerne na “protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça” e abrangendo diversos outros princípios, designadamente, os princípios da segurança jurídica e proteção da confiança e, bem assim, os do contraditório, da igualdade, do acesso à justiça. Embora o ne bis in idem consubstancie um princípio de observância necessária, trata-se, todavia, de um princípio de direito criminal, com efeitos no campo do direito penal, como aliás decorre do art. 29º, nº 5, da CRP e das demais normas das convenções invocadas, sendo impeditivo do julgamento penal, por mais do que uma vez, pelo mesmo crime. Não é, todavia e nos termos constitucionalmente previstos, aplicável, nem extensivo, ao julgamento pelo tribunal civil para efetivação da responsabilidade civil conexa da decorrente de (eventual) responsabilidade criminal 5 ainda que desta absolvido no processo penal . Ou, dito de outro modo, o mencionado principio, de natureza penal e necessário, certamente, à certeza, segurança e confiança jurídicas relativas à efetivação da responsabilidade penal, não impede, todavia, que, julgado o arguido para efetivação dessa sua responsabilidade criminal, mas desta absolvido, possa vir, depois6, a ser civilmente julgado para efetivação da sua responsabilidade civil conexa com a (eventual) responsabilidade decorrente da prática de factos que haviam sido imputados no processo penal. Nem tal principio, cujo campo de aplicação se situa, como referido, no domínio penal, nem também os da segurança e da proteção da confiança, são impeditivos da margem de liberdade, conferida pela Constituição ao legislador ordinário, de legislar sobre os efeitos ou eficácia processuais da sentença penal absolutória no âmbito da responsabilidade civil, mormente consagrando, como consagrou, uma presunção legal, ilidível, de inexistência da prática do crime imputado (ao invés da consagração, pretendida pela Recorrente, de uma eficácia erga omnes da sentença penal absolutória, que aliás nunca esteve consagrada na legislação ordinária) tratando-se, como se tratam, de responsabilidades de natureza distinta, visando diferentes objetivos, sujeitas a diferentes regras processuais e privilegiando o legislador outros princípios, também com proteção constitucional, designadamente os do contraditório, do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e do direito a processo equitativo (art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP). O que também decorre do nº 1 do art. 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos. No caso do art. 624º, quando em confronto com a pretendida imposição erga omnes da sentença penal absolutória, tutela-se o interesse do demandante cível, porém em nome dos princípios do contraditório e do acesso à justiça também com proteção constitucional, consubstanciando opção do legislador que não viola o princípio do ne bis in idem (de proibição, apenas, de novo julgamento penal) e que não se mostra materialmente injusta ou injustificada e que não atenta a “protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça”. Em conclusão, nem o art. 624º do CPC, ao consagrar uma presunção ilidível de inexistência dos factos imputados (ao invés de consagrar a eficácia erga omnes pretendida pela recorrente) viola os arts. 29º, nº 5, e 2º da CRP e as demais normas e princípios invocados, nem, por consequência, é o mesmo inconstitucional por alegada violação dos citados preceitos e princípios constitucionais. No caso, não está em causa um novo julgamento da Recorrente para efetivação da sua responsabilidade penal, mas sim da sua responsabilidade civil, solicitada pela Seguradora, demandante cívil, decorrente, no âmbito do contrato de seguro, do direito de regresso pela indemnização paga, ainda que em consequência da prática, por aquela, dos factos de que havia sido absolvida na sentença penal, mas de que a A/Recorrida, na presente ação, fez prova. Diga-se, por fim, que, na presente revista, para além da invocação da eficácia erga omnes da sentença penal absolutória e da alegada inconstitucionalidade do art. 624º do CPC, nada mais é suscitado. Improcedem, assim, as conclusões do recurso. *** V. Decisão Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas pela Recorrente. Lisboa, 28.05.2024 Relatora: Cons. Paula Leal de Carvalho Adjuntos: Cons. Fernando Baptista de Oliveira Cons. Ana Paula Lobo _______
1. E José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, Almedina, p. 763. 2. Diga-se que nos arts. 148º a 150º do CPP se dispunha dos efeitos do “caso julgado” absolutório penal relativamente a outras ações penais, reconhecendo a sua eficácia erga omnes, acolhendo, pois, o princípio do ne bis in idem. 3. Mencionado no acórdão ora recorrido. 4. Caso em que não se verifica a sujeição a qualquer presunção legal de inexistência de infração penal, antes funcionando as regras gerais do ónus da prova. 5. O art. 84º do CPP apenas regula o caso julgado formado no âmbito do processo de adesão, dispondo que “A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”. 6. Na medida em que, fora do princípio da adesão – art. 71º do CPP - essa responsabilidade possa ser exercida em separado, o que, no caso, não foi posto em causa. |