Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
168/22.5GFVNG.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
CONDENAÇÃO
PROGENITOR
FILHO MENOR
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
A partir de 17 de Agosto de 2021 – com as alterações introduzidas pela Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto, ao art. 152º do C. Penal, ao art. 67º-A do C. Processo Penal e ao art. 2º, a) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro –, o C. Penal passou, expressamente, a prever no seu art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), um autónomo crime de violência doméstica agravado, tendo como elementos constitutivos do respectivo tipo de ilícito, os maus-tratos psíquicos causados, dolosamente, a menor descendente do respectivo autor, consistentes na sua exposição a contextos de violência doméstica, designadamente, na sua exposição a violência entre os progenitores.
Decisão Texto Integral:
RECURSO Nº 168/22.5GFVNG.P1.S1

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto – ... – ... 3, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, a), 4 e 5, do C. Penal e de dois crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e), 2, a), 4 e 5, do mesmo código [estes tendo por vítimas, cada um dos menores CC e DD].

A assistente BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 32000, acrescida de juros de mora da contar da notificação do pedido, para compensação dos danos não patrimoniais.

Por acórdão de ... de ... de 2023 [depositado no dia imediato], foi o arguido absolvido da prática dos dois imputados crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e), 2, a), 4 e 5, do C. Penal, e condenado, pela prática do imputado crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, a), 4 e 5, do mesmo código, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de três anos, condicionada à regra de conduta de o arguido frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica, com apoio e fiscalização dos serviços de reinserção social, e na pena acessória de proibição de contacto com a assistente, pelo período de três anos, proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou do local de trabalho da assistente.

Mais foi o arguido condenado no pagamento à assistente da quantia de € 3700, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do acórdão e até integral pagamento.

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Inconformado com a decisão, recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de ... de ... de 2024, concedendo provimento ao recurso, decidiu como segue:

“(…).

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:

A) Julgar verificado o vício decisório do erro notório na apreciação da prova (art. 410º nº 2 c) do CPP) e nessa conformidade, nos termos dos arts. 428º e 431º a) do CPP, aditar à matéria de facto provada os seguintes factos:

a) 81-C: o arguido representou e previu que com as suas condutas, praticadas na presença dos filhos menores CC e DD, os iria maltratar psicologicamente, nomeadamente, causar-lhes dor emocional/sofrimento, em particular, angústia, tristeza e permanente inquietação, mas apesar disso, não se absteve de as empreender, bem sabendo que ao assim actuar, os afectava na sua saúde psíquica, o que logrou;

b) 81-D: Ao expor os menores CC e DD à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que, como consequência dessa atuação, iria causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, mas apesar disso, não se absteve de agir como agiu, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico”.

B) Nessa sequência, alterar a redação do nº 82 da matéria de facto provada, devendo passar a ler-se:

“82 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde dos ofendidos BB, CC e DD, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, no que respeita aos menores, não se inibiu da sua realização”;

C) Nos termos do art. 424º nº 3 primeira parte por referência ao art. 358º nº 1, ambos do CPP, aditar à matéria de facto provada, os seguintes factos:

80-A: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, à menor CC foi identificada experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor – é compatível com a vivência de violência doméstica a que será exposta, denotando-se ainda da sua narrativa um impacto negativo sob a forma de projecção presente e futura nas suas próprias relações de intimidade. O impacto vindo de descrever ainda se mantém quanto à percepção de risco relativo à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor, embora o facto de os progenitores já não coabitarem atenue os seus níveis de alerta. A CC evidencia ressonância emocional congruente com as vivências relatadas e com o seu perfil e nível desenvolvimental. Sinaliza-se risco emocional e psíquico para a menor, considerando-se ainda face ao seu relato – embora salvaguardando-se não se ter efectuado avaliação pericial ao progenitor – a existência de risco para a progenitora;

80-B: Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, a avaliação do DD sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. A sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que se configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica como a descrita, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor;

D) Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA da autoria material, na forma consumada e em concurso real de dois crimes de violência doméstica na forma agravada perpetrados contra os seus dois filhos menores de idade p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal e, em consequência:

- Condenar o arguido AA como autor material da prática, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica na forma agravada, perpetrados contra os seus dois filhos menores de idade CC e DD, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão por cada crime;

- em cúmulo jurídico das concretas penas aplicadas aos menores e à progenitora (três anos de prisão) nos termos do disposto no art. 77º nºs 1 e 2 do Cód. Penal, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na execução, nos termos do disposto no art. 50º nºs 1 e 5, do CP, por igual período de tempo, subordinada à observância da regra de conduta da obrigação de frequentar programas específicos de violência doméstica, abrangendo os menores, mediante o apoio e fiscalização dos Serviços de Reinserção Social;

- Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com os seus filhos menores pelo período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor;

- Condenar o arguido AA no pagamento da quantia de € 1.000,00 a cada um dos seus filhos menores a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos crimes de violência doméstica que contra eles foram praticados p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a) do Cód. Penal, perfazendo o montante global de € 2.000,00, ao qual acrescerão juros à taxa legal em vigor a contar da data da notificação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento.

Não é devida tributação – cfr. art. 522º nº 1 do CPP.

(…)”.

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Inconformado com a decisão, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

I-) Na previsão da norma do nº 1, do artigo 152º do CP, o legislador utilizou a palavra “infligir”, que é um verbo transitivo e que tem por objecto o complemento directo, significando, por isso, que quis prever e punir os maus tratos feitos directamente a uma pessoa.

II-) Na agravação ou qualificação estabelecida no nº 2, do mesmo artigo, o legislador especificou como agravante qualificativa o cometimento de maus tratos se forem cometidos na “presença de menores”.

III-) E tal agravação/qualificação resulta da constatação dos efeitos indirectos que a violência doméstica produz sobre as crianças ao presenciarem a violência contra seus familiares próximos.

IV-) Essa determinação da agravação/qualificação contém ela própria o afastamento da tentativa da integração do conceito de que “quem agride a mãe agride o filho”.

V-) O Acórdão recorrido, ao julgar que se pode extrair uma norma que proíbe e pune, autonomamente, os efeitos psicológicos provocados indirectamente nos menores, presentes à agressão a outrem, funda-se num conjunto de remendos doutrinais, que não o defendem, de em jurisprudência que não o afirma.

VI-) Fazendo até uma grave confusão entre o que são efeitos indirectos, sobre vítimas indirectas, que são os menores, e a jurisprudência que dá por provados factos constitutivos de maus tratos “infligidos directamente aos menores”.

VII-) Ao condenar o recorrente pelos crimes de violência doméstica, pelos efeitos psicológicos sofridos pelos menores por virtude das agressões à mãe, violou o artigo 152º, nº 1, alínea e-) e 2, alínea a-), 4 e 5 do CP;

VIII-) Violando ainda o artigo 1º, nºs 1 e 3 do CP, que proíbe a condenação do arguido por factos não descritos e declarados crime em lei anterior, bem como o recurso a analogia ou à construção de normas por teorias de comparação.

IX-) A pena acessória aplicada ao arguido (e directamente aos menores, a quem se pretende proteger), mesmo em caso de ser legalmente admissível, tem que ser proporcional e necessária.

X-) No caso presente, e mesmo para a hipótese, que não se admite, de condenação do arguido por crime contra os menores, seus filhos, a proibição dos contactos não é nem necessária e nem proporcional.

XI-) Pois dos próprios relatórios forenses se constata que as perturbações resultavam da convivência do pai e da mãe, que já há muito findou.

XII-) E que os mesmos melhoraram das suas perturbações depois da separação dos pais.

XIII-) Ainda mais quando a filha CC já completou 18 anos, e o DD já tem 13 anos, e têm um relacionamento normal com o pai.

XIV-) O Acórdão recorrido, ao condenar o arguido (e os filhos) na pena acessória de proibição de contactos pelo período de quatro anos e oito meses, violou os nºs 4 e 5 do artigo 152º do CP, e ainda os artigos 65º e 71º, nºs 1, 2 e 3 do mesmo CP.

Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, e confirmando a decisão da primeira instância,

COMO É DE JUSTIÇA.

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O recurso foi admitido por despacho de ... de ... de 2024.

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Respondeu ao recurso a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação do Porto, alegando, em síntese, que a condenação operada no acórdão recorrido se funda no facto de o arguido ter, reiteradamente, sujeitado os seus filhos a comportamentos que sabia causar-lhes temor, ansiedade e pânico, sentimentos estes aptos a causarem-lhes sequelas psicológicas, como causaram, tendo agido livremente, querendo ter tais comportamentos e aceitando as consequências provocadas nos filhos, assim preenchendo a previsão do art. 152º, nº 1, e) do C. Penal, alínea esta aditada pela Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto e que expressamente prevê o menor como vítima autónoma do crime de violência doméstica, desde que seja descendente do agente, ou de uma das pessoas previstas nas alíneas a) a c) do mesmo número, em linha com a também aditada subalínea iii), da alínea a) do nº 1 do art. 67º-A do C. Processo Penal, que dispõe que os menores são considerados vítimas de crime, quer sejam vítimas directas, quer sejam vítimas indirectas, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica, que a agravação prevista na alínea a) do nº 2 do art. 152º do C. Penal é de aplicar no caso, pois as condutas do arguido foram praticadas no domicílio comum, que tendo a ofendida CC atingido já a maioridade e não resultando dos autos que, não obstante os ofendidos continuem a apresentar sintomatologia resultante da actuação do arguido, a retoma de contactos a possa agravar ou dela possa resultar acréscimo de riscos para os ofendidos, não se revela necessária à defesa destes a aplicação das decretadas penas acessórias, e concluiu pela condenação do arguido pela prática de dois crimes de violência doméstica agravados, tendo por ofendidos os dois filhos, e pela revogação das penas acessórias a estes respeitantes.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, no sentido de dever ter-se por irrepreensível a posição do acórdão recorrido quando funda a condenação no facto de o arguido ter, reiteradamente, sujeitado os seus filhos a comportamentos que bem sabia causar-lhes sentimentos de temor, de ansiedade, e de pânico, suscetíveis de lhes provocar sequelas psicológicas, como efetivamente causaram, tendo agido livremente, com consciência e vontade de cometer os factos imputados e as consequências provocadas nas vítimas, e no sentido de não se afigurar merecedor de censura a aplicação da pena acessória, atendendo às sequelas que para as vítimas advieram da conduta pela qual foi o arguido condenado, causalidade e consequências que exigem prevenção, defesa e segurança de riscos que só a pena acessória adequadamente realiza de forma objetiva, ainda que a dinâmica inerente à passagem do tempo, à eventual recomposição das relações entre pai e filhos dependa de condições que não se afiguram estar preenchidas, e concluiu pela improcedência do recurso e integral confirmação do acórdão recorrido.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.

Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

A matéria de facto provada que provém das instâncias é a seguinte [indo a negrito, as alterações à decisão da matéria de facto operadas pela Relação]:

“(…).

(Constante da acusação pública):

1 - A vítima BB e o arguido contraíram casamento católico no dia ... de ... de 2004.

2 - Fruto desta relação tiveram dois filhos, CC, nascida a ... de ... de 2006, e DD, nascido a ... de ... de 2011.

3 - Há cerca de 4 anos BB teve conhecimento, pelo próprio arguido, de que este mantinha uma relação amorosa extraconjugal.

4 - Desde então, a relação deteriorou-se e o arguido passou a maltratar BB, quer física, quer verbalmente, no interior da residência comum, sita na ..., e muitas vezes na presença dos seus filhos em comum.

5 - A situação agravou-se a partir do início do ano de ... e, em particular, em ..., quando o arguido passou a trabalhar em Portugal e a convivência do casal passou a ser diária.

6 - Desde então, nas discussões que iniciava com BB, o arguido colocou em causa as capacidades intelectuais da ofendida, vociferando-lhe "és uma burra", "és uma otária" e "não consegues fazer nada sozinha".

7 - O arguido, frequentemente, acusou a ofendida de depender economicamente de si, dizendo-lhe "tu vives às minhas custas", porquanto o arguido, na sua atividade profissional, auferia um vencimento bastante superior ao da ofendida, que trabalhava como ....

8 - O arguido nunca se coibiu de fazer todas estas acusações perante os próprios filhos e terceiros.

9 - A partir de ..., tais discussões tornaram-se ainda mais frequentes, fazendo com que BB se sentisse constantemente humilhada e diminuída pelo arguido.

10 - Para além das expressões acima mencionadas, o arguido tinha por hábito acusar BB de andar com outros homens e de lhe ser infiel, bem como a acusar de se vestir de forma provocante para seduzir outros homens, apelidando-a de “puta”.

11 - E, referiu-lhe, por diversas vezes, que no dia em que não tivesse o seu apoio, teria que se dedicar à prostituição, dirigindo-se-lhe nestes termos: "vais ter de ir dar a cona para sobreviver", ''vais ser uma puta num bar".

12 - Quando fez estas acusações de infidelidade, fê-lo na presença dos filhos menores e da mãe da ofendida, EE.

13 - No dia ... de ... de 2022, após o jantar, na casa de morada de família, o arguido comunicou à ofendida que se, efetivamente, quisesse o divórcio ia ''ficar na merda", acrescentando ''vou-te fazer a vida negra" e "não vais ficar com nada".

14 - Porque a ofendida não demonstrou intenção de mudar de ideias, o arguido, na presença dos filhos menores do casal e da mãe da ofendida, EE, partiu o vidro do forno e do micro-ondas aos murros, atirando-os de seguida ao chão.

15 - Com medo, a ofendida enviou uma mensagem à sua prima, FF, no sentido de esta chamar a polícia, que acorreu ao local.

16 - Após a chegada das autoridades policiais à referida residência, o arguido não se coibiu de dizer à vítima, em alta voz, “olha, olha, esta noite vai ser com o guarda”, na altura em que o agente autuante elaborava a ficha de avaliação de risco junto de BB.

17 - No dia ... de ... de 2022 o arguido pediu as chaves do carro da ofendida, tendo referido que se tinha esquecido do isqueiro.

18 - Nesse mesmo dia a ofendida encontrou no veículo uma câmara de filmar.

19 - Confrontado com este facto, o arguido disse a BB que a câmara tinha sido esquecida pelos filhos.

20 - No dia ... de ... de 2022, à noite, o arguido pediu as chaves do carro à ofendida, argumentando que os vidros se encontravam abertos, tendo esta acedido ao seu pedido.

21 - No dia seguinte de manhã a ofendida encontrou no carro um dispositivo de localização GPS.

22 - No final de ... o arguido conseguiu aceder à conta de Facebook da assistente e, sem a sua autorização para o efeito, fez-se passar pela mesma em conversas com GG, um amigo do casal.

23 - Nestas conversas, fazendo-se passar pela assistente, o arguido tentou estabelecer uma comunicação de teor romântico.

24 - Posteriormente, entre ..., o arguido transmitiu à assistente que tinha usado a conta desta no Facebook, fazendo-se passar por ela, e acusou-a de ser infiel.

25 - Neste período de tempo, o arguido contactou com vários familiares da assistente para transmitir o que tinha feito, como foram os casos de FF, HH, II e JJ, enviando-lhes cópia parcial das conversas e telefonando-lhes, procurando difundir que a assistente lhe estaria a ser infiel.

26 - O arguido contatou KK, para quem a assistente trabalhava no seu salão de ..., alegando que BB não era de confiar pois era mentirosa e alcoólica.

27 - Durante o ano de ... o arguido efetuou múltiplas chamadas para BB – tendo chegado às dez chamadas num dia – durante o seu horário de trabalho no referido estabelecimento comercial.

28 - Se a vítima não o atendia, o arguido, de seguida, ligava para o referido estabelecimento para saber se a vítima aí se encontrava.

29 - No dia ... de ... de 2022 a assistente constatou que o seu n.º ... se encontrava desativado.

30 – A ordem de desactivação tinha sido dada pelo arguido, enquanto titular do contrato de fornecimento de telecomunicações à família, que compreendia o telefone fixo da residência, televisão, fornecimento de internet, 4 números de telemóveis cada um, destinados, respetivamente, à assistente, ao arguido e aos filhos menores.

31 - O número de telefone ... era usado pela assistente há mais de 20 anos.

32 - No dia ... de ... de 2022, ao final da tarde, depois de a ofendida chegar a casa e tomar banho, o arguido voltou a acusá-la de ter tido um encontro amoroso e de lhe ter sido infiel.

33 - De seguida, o arguido pegou na roupa interior usada pela assistente, roupa essa que se encontrava já para lavar, e perseguiu-a pela casa, acusando-a de ser infiel e chamando-lhe “porca” e “puta”.

34 - Esta discussão decorreu na presença da filha menor, CC, que tentou intervir e acalmar o arguido, tendo ficado abalada.

35 - No dia seguinte, ... de ... de 2022, logo pela manhã, o arguido transmitiu à assistente em tom sério: "Ou te pões fina ou os teus filhos ficam órfãos".

36 - No dia ... de ... de 2022 o arguido comprou o jantar para a família.

37 - A meio do jantar, o arguido questionou a ofendida e os filhos se não estava bom e disse: "estou sempre a fazer coisas boas e aqui ninguém me agradece", "ninguém me dá valor".

38 – Depois do jantar, o arguido ameaçou que se matava caso a vítima se separasse dele.

39 - Nessa discussão, que ocorreu na cozinha e na presença dos filhos menores, o arguido aproximou-se da assistente, que se encontrava sentada numa cadeira, apontou-lhe uma faca à barriga e empurrou-a contra o armário da cozinha, vindo a vítima a embater com um dos seus ombros na esquina de um dos móveis, o que lhe causou dores.

40 - Nesse momento, o arguido pegou noutra faca, de cozinha, das maiores que possuía e próprias para cortar carne, e fechou-se na casa-de-banho.

41 - BB, com receio do que o arguido poderia fazer, seguiu-o, juntamente com os seus filhos.

42 - Ao abrir a porta da casa de banho, BB e os menores viram o arguido em pé, dentro do duche, de costas para porta, empunhando a faca com ambas as mãos e com a ponta da lâmina virada para a sua barriga.

43 - Quando se apercebeu da presença das vítimas, o arguido disse “Sai daqui, que eu vou-me matar. Já que não me dás mais uma chance, prefiro a morte”.

44 - Entretanto, o menor DD começou aos gritos, em pânico, e suplicou à mãe para voltar para o pai.

45 - O menor chegou a dizer: “Se ele se mata, eu também me mato”.

46 - BB aproximou-se do arguido e retirou-lhe a faca.

47 - Depois de conseguir acalmar o arguido, a vítima chamou as autoridades policiais.

48 - No dia seguinte, o arguido informou que iria viver para casa dos pais.

49 - Desde o dia ........2022 que o arguido não residia com a vítima, mas passava lá grande parte do seu tempo.

50 - Nos dias seguintes o arguido efetuou diversos telefonemas a BB, nos quais lhe chamou mentirosa.

51 - Por volta das 17 horas do dia ..., quando BB estava na casa-de-banho com a filha menor, foi surpreendida pelo arguido que, sem mais, entrou na casa-de-banho e agarrou-a pela cara com força e disse-lhe: "Não vês que faço isto para o teu bem, acorda para a vida.".

52 - De seguida, o arguido desferiu uma cabeçada na testa da assistente e disse-lhe que ela “era dele e de mais ninguém”.

53 - A assistente sentiu dor, tendo começado a chorar de medo.

54 - No dia ........2022, pelas 13h00, o arguido informou BB de que iria buscar o filho de ambos a casa dela.

55 - O arguido dirigiu-se a casa de BB e exigiu levar a criança.

56 - Perante a recusa da mãe, o arguido vociferou “Nunca foste mãe e agora estás preocupada” e disse-lhe que “andava metida” com o LL e com outros homens.

57 - Dito isto, o arguido lançou-se sobre BB, apertando-lhe o pescoço com uma das mãos e empurrando-a contra o armário da cozinha.

58 - De repente, AA largou a vítima e saiu acompanhado pelo menor DD, que presenciou todo o episódio.

59 - Na manhã do dia ........2022 o arguido rondou o local de trabalho de BB.

60 - Quando BB estava a chegar ao local de trabalho, o arguido atravessou o seu carro na frente do carro daquela.

61 - Com medo, BB tentou sair daquele local, mas foi perseguida pelo arguido, que voltou a bloquear-lhe a passagem.

62 - O arguido só desistiu da perseguição e abandonou o local quando se apercebeu que BB se preparava para chamar a polícia do seu telemóvel.

63 - Mais tarde, quando BB almoçava com a mãe num restaurante em ..., o arguido aproximou-se do referido estabelecimento e colocou a sua cabeça no interior.

64 - No dia ........2022, na casa de morada de família, o arguido iniciou uma discussão com a vítima BB, por não concordar com o seu pedido de divórcio, invocando que a sua mãe estava com um esgotamento derivado de toda esta situação.

65 - A dada altura, o arguido aproximou-se de BB, encostou-a contra um móvel e projetou-a contra o chão.

66 - Nesse momento, para proteção da sua mãe, a menor CC interveio, mas o arguido afastou-a com o propósito de facilitar o contacto físico com BB.

67 - Como consequência direta da agressão infligida pelo arguido, BB sofreu as seguintes lesões “membro superior direito: equimose amarelada na face anterior do terço distal do antebraço com 2x2 cm; membro superior esquerdo: equimose azulada na face lateral do terço médio do braço com 3x3 cm; membro inferior esquerdo: equimose azulada a face medial do terço médio da perna esquerda com 2x2 cm”, que lhe determinaram cerca de 8 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional”.

68 - No dia ........2022, pelas 18h30, quando regressavam do estabelecimento de ensino Escola Secundária ..., sito na ... – local onde se tinham reunido com a psicóloga da escola para falarem sobre o seu filho DD – o arguido pressionou a vítima BB para irem juntos, na sua viatura, buscar a menor CC ao ....

69 - Inicialmente, BB não demonstrou vontade em ir com o arguido no seu veículo automóvel, mas acabou por ceder porque o arguido lhe disse “se não vieres comigo no carro, espeto-te uma traseirada no teu carro e já não vais a lado nenhum”.

70 – Enquanto isso, colocou a traseira do seu veículo junto à traseira do veículo da vítima, estando esta de pé junto ao seu carro, tendo-a atingindo na zona dos joelhos e impedindo-a de sair daquele local.

71 - No trajeto, o arguido e a vítima BB mantiveram uma discussão sobre a situação familiar.

72 - Quando a menor CC já se encontrava no referido automóvel, o arguido disse “a tua mãe é uma mentirosa porque ela anda com o LL. Mas nem que eu vá para a cadeia, eu vou desmascará-los. Eu vou para a cadeia, mas um dia sou solto.”.

73 - Ao chegarem à residência comum, sita na ..., BB saiu do referido veículo automóvel e entrou na dita habitação, vindo a ser seguida pelo arguido.

74 - Junto ao portão, o arguido forçou BB a dar-lhe um beijo, encostando-a com força contra o portão, o que acabou por conseguir, não obstante a resistência física demonstrada pela mesma.

75 - Já no interior da habitação, o arguido, sem mais, empurrou a vítima para o solo e, de seguida, colocou as suas mãos no pescoço daquela, apertando-o, causando-lhe dor e sufoco.

76 - Enquanto apertava o pescoço de BB, o arguido dizia-lhe, furioso, “és minha, não és de mais ninguém” e chamava-lhe “burra” e “otária”.

77 - Ao presenciar tal situação, a menor CC começou a gritar por socorro, fazendo com que o arguido acabasse por cessar tal conduta.

78 - BB aproveitou estar liberta do arguido e saiu da sua residência, tendo-se deslocado a casa do seu irmão.

79 - Como consequência direta da agressão infligida pelo arguido, BB sofreu as seguintes lesões “Membro inferior direito: equimose esverdeada com 5 cm de diâmetro no terço médio da face medial da coxa. Três equimoses acastanhadas com 2 cm de diâmetro na face anterior do joelho. Equimose esverdeada com 2 cm de diâmetro no terço médio da face anterior da perna”, que lhe determinaram cerca de 8 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral por 2 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional por 2 dias”.

80 - O arguido quis maltratar física e psicologicamente o seu cônjuge, sabendo que com tal conduta lhe causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e humilhada, o que logrou, bem sabendo que a afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-la na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.

80-A - Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, à menor CC foi identificada experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor – é compatível com a vivência de violência doméstica a que será exposta, denotando-se ainda da sua narrativa um impacto negativo sob a forma de projecção presente e futura nas suas próprias relações de intimidade. O impacto vindo de descrever ainda se mantém quanto à percepção de risco relativo à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor, embora o facto de os progenitores já não coabitarem atenue os seus níveis de alerta. A CC evidencia ressonância emocional congruente com as vivências relatadas e com o seu perfil e nível desenvolvimental. Sinaliza-se risco emocional e psíquico para a menor, considerando-se ainda face ao seu relato – embora salvaguardando-se não se ter efectuado avaliação pericial ao progenitor – a existência de risco para a progenitora.

80-B - Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a progenitora dos menores, supra descritas, a avaliação do DD sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. A sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que se configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica como a descrita, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que terá presenciado e às verbalizações de ameaça que descreve por parte do progenitor.

81 - E atuou, por vezes, no interior da casa de morada de família para melhor lograr os seus intentos e, algumas vezes, na presença dos seus filhos menores.

81-C - O arguido representou e previu que com as suas condutas, praticadas na presença dos filhos menores CC e DD, os iria maltratar psicologicamente, nomeadamente, causar-lhes dor emocional/sofrimento, em particular, angústia, tristeza e permanente inquietação, mas apesar disso, não se absteve de as empreender, bem sabendo que ao assim actuar, os afectava na sua saúde psíquica, o que logrou.

81-D - Ao expor os menores CC e DD à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que, como consequência dessa atuação, iria causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, mas apesar disso, não se absteve de agir como agiu, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico.

82 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde dos ofendidos BB, CC e DD, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, no que respeita aos menores, não se inibiu da sua realização.

(Constante do pedido de indemnização civil):

83 - Nas circunstâncias supra referidas em 75. a demandante pensou que ia morrer e esteve quase a desmaiar com a falta de ar.

84 - Fruto das agressões acima descritas, o demandado causou lesões, dores físicas, humilhação, desgosto, ansiedade e medo na demandante.

85 - As acusações de ser menos capaz intelectualmente e de ser dependente humilharam a demandante, fazendo-a sentir-se diminuída.

86 - A demandante foi diagnosticada com uma depressão, tendo sido medicada com Escitalopram 10 mg.

87 - As expressões utilizadas pelo demandado causaram vergonha, humilhação e tristeza à demandante.

88 - Em face das acusações do demandado, acima aludidas, a demandante começou a ter problemas de auto-estima, duvidando das suas próprias capacidades.

89 - No trabalho, quando a demandante ouvia o telefone a tocar, pensando que era o demandado a ligar, sentia-se ansiosa.

90 - Ao longo do tempo esta tristeza e ansiedade ao ouvir o toque do telefone no trabalho deu lugar a medo, chegando a tremer e a ter ataques de choro em frente à patroa e a clientes.

91 - A Demandante temia igualmente o efeito que a sua morte teria na vida dos seus filhos menores e quem poderia cuidar deles, tendo falado com familiares sobre o destino dos filhos caso fosse assassinada.

(Constante do Certificado do Registo Criminal do arguido):

92 – Do Certificado do Registo Criminal do arguido AAnada consta.

(Constante do Relatório Social do arguido):

93 – À data dos factos constantes dos presentes autos o arguido e a ofendida viviam em ..., sendo o agregado familiar constituído por estes elementos mais os dois filhos do casal, atualmente com 17 e 12 anos de idade.

Precedendo uma relação de namoro que o arguido iniciou com 19 anos e a ofendida com 15, casaram em ..., mantendo esta relação até .... Nesta altura o arguido exercia atividade profissional na ..., onde se encontrava emigrado, com funções na área da metalomecânica, auferindo, segundo diz, um ordenado na ordem dos 4000€ mensais. Neste âmbito, por via da sua profissão, o arguido permanecia por períodos de tempo consideráveis no estrangeiro, tendo estado emigrado em vários países da Europa por força do exercício da profissão de ... tubista, como encarregado de obras e em cargos de chefia, sempre com rendimentos avaliados como bastante satisfatórios. Referiu um sentimento de alguma solitude pessoal, decorrente desta vivência fora da esfera familiar, pelo que, segundo diz, priorizava a relação com a ofendida – e mais tarde com os filhos – sempre que se deslocava a Portugal, circunscrevendo a sua permanência no país de acordo com a partilha de interesses comuns e valorizando o convívio com estes e outros elementos da família.

Segundo o arguido, após uma fase alargada considerada equilibrada, perceciona pela negativa uma mudança na vida do casal, que ter-se-á alterado/agravado um pouco antes do inicio da pandemia Covid19, apontando à ofendida alguma sobranceria e distância na relação entre ambos, alegadamente desvinculando-se dos valores afetivos que, segundo o próprio, devem integrar uma relação entre um casal, fazendo ainda menção a uma alegada interação, pouco transparente, da ofendida com um amigo de infância da própria. Refere ele próprio ter mantido um relacionamento extraconjugal, que considerou furtuito, com uma cidadã polaca, temática que, apesar de ter interferido na dinâmica de ambos por um determinado período, ainda assim a ofendida o terá desculpado.

BB referiu que o casal experienciou harmonia familiar, dita satisfatória, durante uma boa parte do relacionamento, ainda que com a existência de períodos pontuais conturbados, designadamente, há cerca de seis anos atrás em que o arguido lhe terá confessado que mantinha uma relação extraconjugal com uma cidadã estrangeira. Ainda assim, a ofendida diz ter reconsiderado, reposicionando-se favoravelmente à continuidade do relacionamento, até porque, segundo disse, pretendeu zelar pelo interesse dos descendentes. Todavia, ainda segundo a própria, a dinâmica relacional ter-se-á continuado a deteriorar, enquadrando-se neste pressuposto as novas e alegadas relações extraconjugais por parte do arguido, subsistindo conflituosidade reiterada, com consequências, relativamente à harmonia e equilíbrio familiar. Estas circunstâncias terão desencadeado a existência de fases mais controversas, com reiteradas discussões, verbalizando que o arguido ter-se-á tornado obsessivo e ciumento.

O processo de desenvolvimento de AA inscreveu-se numa matriz familiar, constituída pelos pais e mais dois irmãos, um deles adotivo, de suficientes recursos socioeconómicos, tendo crescido integrado no agregado de origem. Ainda assim, dado que o pai do arguido esteve também emigrado, a necessidade de ajuste a esta realidade implicou o abandono da escolaridade ao 6º ano, (ainda que atualmente esteja a frequentar o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências RVCC), passando a trabalhar ainda em idade precoce, tendo emigrado aos 21 anos de idade, integrando, desde logo, o setor da metalomecânica, atividade na qual foi consolidando a sua experiência e estruturando o seu percurso profissional, com o exercício de funções praticamente até à atualidade.

Atualmente o arguido integra o agregado familiar dos pais, os quais lhe têm prestado todo o apoio necessário, considerando as condições habitacionais e económicas de que usufruem.

Existe a referência de que o arguido poderia/poderá consumir por vezes bebidas alcoólicas em excesso, mas este parece não assumir esta adição, não valorizando este consumo ou a assunção da sua gravidade/ilicitude em função de alegados excessos etílicos. Presentemente encontra-se em acompanhamento na especialidade de psicologia, apontando que o presente processo se repercutiu negativamente nas várias áreas da sua vida, lamentando, designadamente, não poder estabelecer quaisquer contactos com os filhos.

Confrontado o arguido e sempre que conseguiu descentrar-se da sua situação pessoal e pensar abstratamente acerca da natureza dos factos subjacentes ao presente processo, parece evidenciar capacidade reflexiva e crítica, com discurso ajustado ao socialmente expetável no que se refere à censura contra crimes como o de que aqui vem acusado.

A trajetória de vida do arguido parece integrar-se em características sociais marcadas pela valorização do trabalho, com a precocidade da autonomia de vida.

Não se identificam, no seu percurso vital e até ao presente, disfunções significativas ou desvio ao normativo, aparentando a eventual prática criminal circunscrever-se ao domínio da relação conjugal e suas particularidades.

Em caso de condenação, AA, suportado pela intervenção da DGRSP, reunirá condições para cumprir uma medida de execução na comunidade, nomeadamente, o reunir de ferramentas que lhe permitam o interiorizar do desvalor da sua conduta visando uma maior estabilidade pessoal/emocional e a prevenção de comportamentos de natureza idêntica àqueles pelos quais se encontra acusado, eventualmente subordinado a obrigações relacionadas com eventual problemática de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

(Resultantes da audiência de julgamento):

94 – O arguido confessou parte dos factos vertidos na acusação pública, disse estar arrependido e pediu desculpas aos filhos, à aqui assistente e à família desta.

(…)”.

B) Factos não provados

A matéria de facto não provada que provém da 1ª instância é a seguinte:

“ (…).

a) O referido em 6. dos factos provados sucedesse com frequência quase diária;

b) Nas circunstâncias supra referidas em 16. dos factos provados o arguido tivesse chamado a assistente de “puta”;

c) Nas circunstâncias supra referidas em 19. dos factos provados o arguido tivesse dito à assistente “és mesmo muito burra";

d) Tivesse sido o arguido a colocar no interior do veículo o dispositivo de localização GPS supra aludido em 21. dos factos provados;

e) Nas circunstâncias supra referidas em 28. dos factos provados, o arguido ligasse para a proprietária do estabelecimento, MM;

f) O pedido de cancelamento do telefone da assistente, supra aludido em 30. dos factos provados, tivesse sido efectuado sem o consentimento da assistente e sem previamente o arguido lho comunicar;

g) Nas circunstâncias supra referidas em 33. dos factos provados, o arguido tivesse dito à BB "metes- me nojo", "não vales nada";

h) Nas circunstâncias supra referidas em 39. dos factos provados, o arguido tivesse dito disse à BB: “És uma ingrata. Não vales nada. Não mereces os sacrifícios que faço por ti.”;

i) Nas circunstâncias supra referidas em 48. dos factos provados, o arguido tivesse afirmado que iria dar uma coça ao irmão da vítima e a um amigo dela, acrescentando que se iria vingar na sua família;

j) Nas circunstâncias supra referidas em 50. dos factos provados, o arguido tivesse dito à BB: “Tens amantes. Andas com outros gajos”;

k) No dia ........2022 o arguido deslocou-se a casa da vítima, para ir buscar o filho, e disse à BB que era uma “mãe de merda”, apertando-lhe a cabeça com ambas as mãos e desferindo-lhe uma cabeçada, que a atingiu no meio da testa.

l) Nas circunstâncias supra referidas em 56. dos factos provados, o arguido tivesse dito à assistente: “És uma cabra. Olha para ti, pareces uma puta. Tu és minha e não és de mais ninguém, ouviste?”;

m) O referido em 57. dos factos provados tivesse causado a BB dificuldade em respirar;

n) Nas circunstâncias supra referidas em 57. dos factos provados, o arguido tivesse encostado a sua cara à da vítima e lhe tivesse dito: “Em ti ninguém te toca. Só eu. Ouviste?”.

o) No dia .../.../2022, ao regressar a casa de BB com o seu filho DD, o arguido tentou forçar BB a que lhe desse um beijo na boca, mas, perante a sua recusa, agarrou-a pelos pulsos e tentou beijá-la à força;

p) Nas circunstâncias supra referidas em 65. dos factos provados, o arguido tivesse agarrado a BB pelo pescoço;

q) Nas circunstâncias supra referidas em 66. dos factos provados, o arguido tivesse apertado os pulsos da menor CC;

r) Nas circunstâncias supra referidas em 78. dos factos provados, o arguido se tivesse apoderado do telemóvel da assistente;

s) O arguido quis maltratar física e psicologicamente os seus filhos, sabendo que com tal conduta lhes causava dor, mas em particular angústia e tristeza, pretendendo que os mesmos se sentissem menorizados e humilhados, o que logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde psíquica e física, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou;

t) Ao expor os menores CC e DD à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, o que logrou;

u) A demandante sentia ansiedade durante a noite, tendo ataques de choro e problemas em adormecer e, pela privação de sono, passava os dias cansada;

v) A demandante deixou de conseguir dormir, tendo que ser medicada para adormecer, passando a tomar Diazepam Ratiopharm;

w) Pessoas que contactavam com a demandante no dia-a-dia e no trabalho começaram a reparar nas alterações de comportamento da demandante, que se mostrava agora sempre cansada e triste;

x) O referido em 86. dos factos provados tivesse ocorrido em Maio de 2022 e tivesse sido causado pela conduta do demandado supra descrita;

y) A demandante começou a temer que os filhos menores a passassem a ver como o demandado a descrevia;

z) A demandante andava tão ansiosa que não conseguia parar de tentar perceber se andava a ser seguida pelo demandante;

aa) Muitas vezes a demandante pedia ajuda a pessoas que estivessem com esta para ver se o demandado estava escondido a persegui-la;

bb) Nas circunstâncias supra referidas em 52. dos factos provados, a demandante, nos dias seguintes, teve um hematoma na testa, tendo sido questiona por várias pessoas sobre o que lhe tinha acontecido, o que muito a envergonhou;

cc) Os hematomas referidos em 67. dos factos provados eram bem visíveis, sendo a demandante questionada sobre os mesmos por familiares, o que muito a envergonhou;

dd) Nas circunstâncias supra referidas em 70. dos factos provados, o demandado tivesse dito à demandante que a ia esmagar com o carro;

ee) Nas circunstâncias supra referidas em 71. dos factos provados a demandante pediu várias vezes para o arguido parar o carro para esta sair, continuando a sentir fortes dores nos joelhos e náuseas;

ff) De 28 de Julho a 14 de Novembro de 2022 a demandante temeu pela vida todos os dias;

gg) A demandante teme ainda pelo seu futuro e o que pode vir a acontecer, e que tudo se pode vir a repetir, vivendo angustiada, abalada, nervosa e sobressaltada, continuando com necessidade de recorrer ao uso de antidepressivos e ansiolíticos;

hh) Antes, sempre foi uma pessoa bem-disposta e gostava de conviver com amigos e colegas;

ii) Nos últimos anos, passou a fechar-se em casa, a isolar-se, deixando de conviver com os demais;

jj) A demandante perdeu o ânimo e o orgulho, tendo crises de ansiedade e de pânico com frequência

(…)”.

C) Fundamentação quanto ao preenchimento do tipo do crime de violência doméstica, relativamente aos ofendidos filhos do arguido

“(…).

No caso dos autos, em face da matéria de facto provada e face ao conteúdo da norma do art. 152º do Cód. Penal, é manifesto que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos que integram o tipo de crime de violência doméstica imputados ao arguido na acusação quanto a cada um dos filhos menores nascidos do casamento celebrado entre o arguido/agressor e a ofendida BB e, no caso, sendo várias as vítimas (a progenitora dos menores CC e DD e os ditos menores, cfr. art. 30º nº 1 do Cód. Penal), o agente comete tantos crimes quantas as vítimas atingidas, atento o bem jurídico protegido pela incriminação (um bem complexo, pluriofensivo, manifestando-se “na tutela, a título principal, do bem jurídico saúde e, a título secundário, a pacífica convivência familiar, doméstica e para-familiar” porque “a existência presente ou pretérita de um vínculo jurídico-familiar, ou pelo menos afetivo, transfere a conduta em causa para um patamar superior de danosidade social”, eminentemente pessoal na vertente saúde, ou por outras palavras, a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica ou ainda estado completo de bem-estar físico e mental), cfr. art. 30º nºs 1 e 3 do Cód. Penal, existindo um concurso efetivo dos três crimes de violência doméstica( ), sendo um deles, o crime de violência doméstica (maus tratos físicos e psíquicos) perpetrado diretamente contra a progenitora dos menores (art. 152º nº 1 a) do CP), cônjuge do arguido/agressor, agravado por ter sido praticado na presença dos filhos menores de ambos e ainda no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º) e, os restantes dois crimes de violência doméstica na vertente de maus tratos psíquicos, de que são vítimas autónomas cada um dos menores CC e DD que presenciaram/vivenciaram os maus tratos (art. 152º nº 1 e) do CP), igualmente agravados por terem sido praticados no domicílio comum (nº 2 a) do art. 152º).

Na verdade, o contexto em que os factos foram praticados pelo arguido, embora tivessem como alvo preferencial a progenitora dos menores, não pode deixar de se repercutir, negativamente, na saúde psíquica dos mesmos, como aliás revelam, as conclusões dos relatórios periciais de psicologia forense no âmbito do exame a que foi submetido cada um dos menores.

É dado assente no domínio da psicologia, que a criança vítima de maus tratos é tanto aquela a quem são diretamente infligidas ofensas físicas ou psíquicas, como a que é espectadora de situações de violência familiar.

Para além dos Autores citados pelo MºPº no recurso, ensina a Prof. Teresa Magalhães que “a exposição de crianças a situações de violência doméstica repetida entre adultos da família, constitui uma forma de abuso emocional. Para além dos danos psicológicos, cria-se um risco acrescido da criança vir a sofrer lesões traumáticas ou doenças, de ter um mau desempenho e aproveitamento escolar, (…), bem como de perpetuar esta violência pela transmissão geracional da mesma. No caso de violência intrafamiliar, estão em jogo afetos intensos que são, por via do abuso, postos em causa”.

Celina Manita, também defende que o testemunho da violência conjugal pela criança, constitui uma forma de mau trato/abuso psicológico, entendido como um ataque concreto pelo adulto ao desenvolvimento do self e competência social da criança, uma amostra de um comportamento fisicamente destrutivo; uma das formas de mau trato emocional frequente em situações de violência conjugal consiste precisamente em expor a criança a modelos de papéis negativos e limitados, porque encorajam a rigidez, a autodestruição, os comportamentos violentos e antissociais.

Clara Sottomayor a propósito das crianças que testemunham episódios de violência de um progenitor sobre o outro e o fenómeno da vitimação indireta, defende que “a violência contra a mãe é uma forma de abuso psicológico das crianças. O facto de os filhos assistirem ou meramente se aperceberem da violência conjugal provoca nestes problemas comportamentais, psíquicos e físicos”.

Maria Elisabete Ferreira na sua obra intitulada “Violência Parental e Intervenção do Estado. A questão à luz do direito português”, ensina na pág. 64, que “No mesmo sentido, a EU, no Relatório do Parlamento Europeu “rumo a uma estratégia da EU sobre os direitos da criança (2207//2093(INI) A6-0520/2008, no seu ponto 79, solicita a todos os Estados-Membros que considerem uma criança que testemunhou violência doméstica como vítima de um crime e, no seu ponto 81, recomenda que a futura estratégia atribua especial importância à proteção médica, psicológica e social dos jovens de ambos os sexos vítimas de (…) violência (…) indireta; recorda que o impacto da violência indireta no bem-estar das crianças, bem como a sua prevenção, deverão estar incluídos nos trabalhos da Comissão” – destacado da nossa autoria.

A corroborar tudo o que acaba de dizer-se, pode ler-se no ponto 13 da Diretiva (UE) 2024/1385 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de maio de 2024, no Jornal Oficial da União Europeia, sobre o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, com o seguinte teor: “(13) Devido à sua vulnerabilidade, testemunhar a violência doméstica pode ser devastador para as crianças. Crianças que testemunham violência doméstica dentro da família ou unidade doméstica normalmente sofrem danos psicológicos e emocionais diretos que afetam seu desenvolvimento e correm um risco aumentado de sofrer de doenças físicas e mentais, tanto a curto quanto a longo prazo. O reconhecimento de que as crianças que sofreram danos causados diretamente por terem testemunhado violência doméstica são elas próprias vítimas marca um passo importante na proteção das crianças que sofrem por causa da violência doméstica”.

Conforme resulta da matéria de facto provada, os factos foram perpetrados pelo arguido após a entrada em vigor da Lei nº 57/2021 de 16 de agosto que introduziu alterações no art. 152º nº 1 do Cód. Penal, acrescentando-lhe a alínea e), que consagra expressamente o menor como vítima autónoma do crime de violência doméstica desde que ele seja descendente do agressor (como no caso destes autos) ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c) ( como sucede também no caso destes autos) pois os dois menores ofendidos são filhos comuns do arguido e da ofendida BB, cônjuge do arguido.

Até à publicação da referida Lei, a jurisprudência maioritária não considerava a criança (ou jovem até aos 18 anos de idade) enquanto vítima do crime de violência doméstica, nas situações em que esta presencia ou vivencia os atos típicos praticados sobre um progenitor pelo outro progenitor (entre outras), imputando ao agressor em tais situações a prática de apenas um crime de violência doméstica, pese embora a tipicidade da conduta do agente já resultasse da redação do nº 1 d) do art. 152º do Cód. Penal (“em razão da idade… ou dependência económica, que com ele coabite”).

A referida alteração legislativa e o aditamento da alínea e) ao nº 1 do art. 152º, visa garantir a proteção das crianças e jovens contra o risco de violência física e psicológica em contexto familiar, mesmo que esta ocorra em situações em que não haja coabitação (que não é o caso dos autos), como nos casos em que os progenitores apenas têm os menores a seu cargo ao fim de semana, ou pontualmente, em contexto de direito de visita.

No recente Ac. do STJ de 02/05/2024, exarou-se que “Importa, igualmente, ter em conta que a violência doméstica representa hoje um dos mais importantes fatores de perigo para a saúde, desenvolvimento, segurança e educação das crianças. Como lembra Rui do Carmo, as crianças são vítimas de graves traumas quando vivenciam cenas de violência na família, pelo que as últimas alterações ao tipo legal, designadamente, com a inclusão da alínea e) ao seu nº 1, bem como à redação do art. 2º al. a), da Lei n.º 112/2009, de 16/09, e à do art. 67º -A nº 1 al. a) iii), do C.P.P., vão no bom sentido de afastar a velha e pouco rigorosa distinção que se fazia entre crianças vítimas de violência doméstica e crianças expostas à violência doméstica” – negrito de destacado da nossa autoria.

Mas ainda antes da revisão do art. 152º do Cód. Penal, na jurisprudência, e bem, o Ac. da R.L. de 19/06/2019 já havia decidido que “1. Comete o crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º nº 1 al. a) e d) e nº 2 do cód. penal, contra o ex-marido e filha de ambos, a mulher divorciada que, no contexto de uma relação familiar, por causa das responsabilidades parentais para com a menor, impede o pai de estar com a filha, ao mesmo tempo que o insulta, bem como aos seus amigos na presença da menor, com epítetos grosseiros e vocábulos ofensivos, ameaçando-o de não mais lhe deixar ver a filha, deixando esta fortemente transtornada e em choro. 4. Quanto à menor, aplica-se a al. d) do nº 1 e nº 2 da mesma norma, tendo em conta a sua idade que, dos 2 aos 11 anos viveu sob forte pressão e stress devido a situações conflituosas geradas pela arguida, (mãe). 5. A menor é neste caso uma "pessoa particularmente indefesa", tendo em conta a idade e a dependência familiar, social e económica, desta em relação à mãe, geradora de uma especial incapacidade de defesa ou de reacção perante os actos de maus-tratos físicos e psíquicos infligidos pela arguida. (…)”. No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da R.E. de 07/05/2019 exarando que “Realiza inquestionavelmente maus tratos psíquicos o acto de apelidar recorrentemente de “puta” a mãe da vítima (…), fazendo-o na frente da vítima e para que esta o ouça”.

No caso destes autos, entre outros comportamentos típicos perpetrados na presença dos filhos menores, o arguido, na presença dos mesmos (ora de ambos, ora apenas na presença da menor CC), apelidou a respetiva progenitora de “burra”, “otária”, “puta”, “porca” e “mentirosa”.

Também P. Pinto de Albuquerque sobre a alteração introduzida no art. 152º do Cód. Penal pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, refere que “Na revisão do CP de 2021, o legislador confirmou expressamente duas formas de violência que já resultavam da lei anterior: a violência económica (…); e a violência contra menor descendente do agressor ou de alguma das vítimas das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 152º ”.

Violência essa contra menor, que não tem que ser direta, ou seja, tê-lo como alvo direto (enquanto pessoa objeto do crime), como se entendeu na decisão recorrida (art. 14º nº 1 do Cód. Penal), mas que o atinge a título de dolo necessário ou dolo eventual (cfr. art. 14º nºs 2 e 3 do Cód. Penal) quando os maus tratos sobre o/a respetivo/a progenitor/a, alvo preferencial do agente, são praticados na sua presença.

Coloca-se a questão de saber se face a esta interpretação, não ficaria esvaziada a agravação contida no nº 2 do art. 152º do Cód. Penal consubstanciada na perpetração de condutas descritas no corpo do nº 1 «na presença de menor».

Crê-se que assim não sucede, porque como consta do Parecer do CSMP de 12/04/2021, essa agravação “se liga diretamente à outra vítima ou à vítima inicial, do mesmo modo que se ocorrer no domicílio comum ou no domicílio desta”.

Pense-se na hipótese de maus tratos físicos ou psíquicos (p. ex., ameaça de morte, injúrias com epítetos soezes) perpetrados sobre a progenitora do menor (que pode também ser filho comum desta com o agressor) levados a cabo pelo agressor na via pública, na presença do menor, que assim os testemunha. Em tal caso, o agente incorre em dois crimes de violência doméstica, sendo um quanto à vítima direta (progenitora do menor), p. e p. pelo art. 152º nºs 1 a) ou c) e 2 a) do Cód. Penal e o outro crime de violência doméstica praticado contra o menor, p. e p. pelo art. 152º nº 1 e) do Cód. Penal.

Na verdade, como se disse supra em nota de rodapé, a agravação (do limite mínimo da moldura penal) que no caso opera (art. 152º nº 2 a) do Cód. Penal) realça, no que ao presente caso interessa, não a perspetiva dos menores, mas sim a da vítima direta e a do próprio arguido. Explicando: para uma mãe, sofrer o tipo de maus tratos que aqui estão em causa em frente aos filhos é infinitamente mais doloroso, pela humilhação suprema de ser tratada como lixo em frente aos filhos e até pelo receio de que a violência possa alastrar para os filhos e o horror da impotência de nada poder fazer. Uma vítima nessa circunstância sofre as mesmas dores físicas e psicológicas de outra que não é maltratada à frente dos filhos, mas sofre ainda esse acréscimo, incomensurável, de dor e aflição, que justifica a agravação, que tem como reverso a insensibilidade do arguido que foi indiferente a esse acréscimo de sofrimento. Os filhos não são eles mesmos, equação nessa agravação.

A não se entender assim, como supra se deixou já dito, seria transformar em letra morta os textos da subalínea iii) do nº 1 a) do art. 67º-A do CPP, do art. 2º a) e 14º nº 6 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, resultantes da revisão operada pela Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, ao abrangerem/alargarem o conceito de vítima à “A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;”.

E nada resulta do texto do nº 1 alínea e) do art. 152º do Cód. Penal que contrarie esta interpretação. Pelo contrário, o conjunto das normas acabadas de referir formam entre si um todo coerente.

Em abono do ora decidido concorre o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 9º do Cód. Civil ao estatuir que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico” e que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O Prof. Baptista Machado, falando sobre a doutrina tradicional e os fatores hermenêuticos de interpretação da lei de que se serve o intérprete, ensina serem para esta doutrina, dois os factores interpretativos: a) o elemento gramatical (texto da lei) e b) o elemento lógico, o qual se subdivide em três elementos: o racional; o sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) e o elemento histórico.

O elemento sistemático compreende outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o «lugar sistemático» que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou a unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário.

Nomeadamente, o recurso aos «lugares paralelos» pode ser de grande utilidade, pois que, se um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema, sucede com frequência que num desses lugares a fórmula legislativa emerge mais clara e explícita. Em tal hipótese, porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve ser por igual forma um todo coerente, é legítimo recorrer à norma mais clara e explícita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua”.

E mais adiante, sobre a posição adotada pelo art. 9º do Cód. Civil refere que o seu nº 1 dá três elementos de interpretação sem qualquer hierarquia entre eles, sendo quanto ao da «unidade do sistema jurídico» que “uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na «unidade do sistema jurídico»”.

Em decorrência do que vem de dizer-se e aplicando ao caso dos autos, dos relatórios periciais e da matéria de facto provada agora aditada sob os nºs 80-A e 80-B, resultou que em consequência das condutas do arguido, a menor CC revela “experienciação de ansiedade fóbica, isto é, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor “ e o menor DD “sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, i.e., queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. (…), sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora (…)”.

Não se desconhece que parte da doutrina considera o crime de violência doméstica como um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), fazendo depender o preenchimento do tipo da efetiva lesão do bem jurídico eleito. Mas há também quem defenda tratar-se de um crime de perigo abstrato, nomeadamente Nuno Brandão, para o qual “o tipo tem em vista atos de violência, traduzidos na inflição, reiterada ou não, de maus tratos físicos ou psíquicos”, não sendo necessário ao seu preenchimento a demonstração de que como consequência da conduta do agente sobreveio na vítima um estado somático patológico objetivável, um transtorno da sua saúde psíquica ou mental, defendendo que da leitura da norma do art. 152º não existe nenhuma exigência expressa de que a lesão da integridade física ou a produção de perturbações ao nível da saúde psíquica da vítima constituam elementos do tipo”, tese que também perfilhamos.

Defende este Autor que é “o perigo para a saúde do objeto da ação alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto”. Dá como exemplo de maus tratos físicos todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e que em regra também preenchem a factualidade típica de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas (…), empurrões, arrastões, puxões, apertões de braço ou puxões de cabelos, mesmo que se não comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada; e como maus tratos psíquicos (que selecionamos tendo em conta a situação versada nos presentes autos no que respeita aos crimes perpetrados indiretamente contra os filhos menores em comum do arguido e da ofendida BB, que tiveram como alvo preferencial a progenitora dos mesmos), “os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as perseguições, etc” e que, “para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm que possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime”.

No mesmo sentido, na jurisprudência, o Ac. da R.P. de 11/03/2015( ), decidiu que “O crime de Violência doméstica é um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos”.

Assim, os danos provocados na saúde psíquica das vítimas observados através dos exames periciais constantes dos autos são de relevar e fazer refletir em sede das consequências jurídico-penais da conduta apurada do arguido, nomeadamente, em sede de determinação da medida concreta da pena e do montante da reparação oficiosa formulada pelo MºPº na acusação (cfr. art. 82º-A do CPP e a não oposição expressa ao seu arbitramento por parte da legal representante dos menores ofendidos) a atribuir às respetivas vítimas.

(…)”.

D) Fundamentação quanto à aplicação de penas acessórias relativamente aos crimes que têm por ofendidos os filhos do arguido

(…).

Após a separação do casal e a aplicação ao arguido, para além de outra, da medida de coação da proibição de contactos por quaisquer meios com os três ofendidos, a situação de risco para os ofendidos tem sido avaliada como média (cfr. ainda os contactos que o arguido insiste em estabelecer com os menores enviando-lhes mensagens por telemóvel, violando a medida de coação imposta de proibição de contactos e a advertência feita pelo Tribunal quanto à necessidade de cumprir escrupulosamente as medidas de coação aplicadas, sob pena de serem revogadas, tudo conforme ata de audiência de julgamento, sessão do dia .../.../2023, com a referência ...).

O MºPº qualificou juridicamente os factos da acusação por referência também aos números 4 e 5 do artigo 152º do CP, o que configura um pedido expresso de condenação em penas acessórias (também) relativamente aos crimes cometidos contra os menores.

Nesta senda, decide-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com os menores pelo período fixado para a suspensão da execução da pena única de prisão aqui aplicada (quatro anos e oito meses), proibição essa que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor.

(…)”.

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Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:

- A de saber se os factos provados consubstanciam, além do mais, a prática pelo arguido, em concurso efectivo, de dois crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), 4 e 5, do C. Penal;

- A de saber se a pena acessória de proibição de contactos entre o arguido e os filhos, pelo período de quatro anos e oito meses, é desnecessária e desproporcional.

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Da prática pelo arguido, em concurso real, de dois crimes de violência doméstica agravados, tendo por ofendidos os dois menores, seus filhos (art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), 4 e 5, do C. Penal

1. Alega o arguido – conclusões I a VIII – que a utilização pelo legislador do verbo infligir, no nº 1 do art. 152º do C. Penal, visou prever e punir os maus tratos directamente feitos numa pessoa, que a agravação prevista no nº 2 do mesmo artigo, relativamente ao cometimento dos maus tratos na presença de menores constitui a previsão dos efeitos indirectos que a violência doméstica produz sobre crianças, afastando o conceito de que quem agride a mãe agride o filho, pelo que, o acórdão recorrido, ao criar uma norma que prevê e pune os efeitos psicológicos indirectamente causados a menores que presenciam agressões no âmbito da violência doméstica, funda-se em doutrina e em jurisprudência que o não defende, confundindo efeitos indirectos sobre vítimas indirectas, que são os menores, com a jurisprudência que considera provados factos que configuram a inflição de maus tratos directamente em menores, violando a sua condenação por crimes de violência doméstica pelos efeitos psicológicos causados aos menores pelas agressões à progenitora, o disposto no art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), 4 e 5 do C. Penal bem como, o disposto no art. 1º, nºs 1 e 3 do mesmo código.

No corpo da motivação, o arguido densifica a alegação, dizendo que a Relação esqueceu o princípio da legalidade, pois não pode existir crime que não esteja previsto em lei anterior nem é legalmente admissível o recurso à analogia, tendo optado pela punição autónoma da presença dos menores, satisfazendo-se com o dolo necessário ou eventual, assim desrespeitando aquele princípio, que o a Relação, ao aditar os factos que fixam o dolo necessário, parte do princípio de que a presença dos menores, no decurso das ofensas à mãe, tem uma incriminação autónoma, o que poderia ser, se se provasse o dolo directo, a intenção de causar nos menores maus tratos psíquicos através de ofensas à progenitora, mas tal elemento não consta da acusação e a sua consideração constituiria uma alteração substancial, que o crime da presença de menores não pode ser preenchido com dolo eventual, que as Leis nº 16/2009 e nº 57/2021 não preveem nem punem crimes, apenas estatuem sobre a prevenção e protecção das vítimas e sobre a atribuição do estatuto de vítima, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2024, proferido no processo 1061/21.4GBVNE.P1.S1, invocado pela Relação, se reporta a maus tratos feitos directamente aos menores, e que não existe jurisprudência sobre a punição autónoma da presença dos menores.

Vejamos.

a. O crime de violência doméstica encontra-se previsto no art. 152º do C. Penal, disposição esta integrada no Capítulo III, Dos crimes contra a integridade física, do Título I, Dos crimes contra as pessoas, do Livro II do referido código.

Embora não exista unanimidade quanto ao interesse especialmente visado com a incriminação, diremos, com parte significativa da doutrina, que o crime tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512, Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305, Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição revista e actualizada, 2007, AAFDL, pág. 110 e Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 15 e ss.), havendo, no entanto, quem entenda que o crime tutela os bens jurídicos integridade física e psíquica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual e honra (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 591), ou o asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo (André Lamas Leite, Julgar, Especial 12, 2010, Edição da ASJP, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a criminologia, pág. 49).

Trata-se de crime específico – só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial –, habitual – pressupõe a prática reiterada da mesma acção, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única – e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado, outras de mera actividade, umas vezes de dano, quanto ao bem jurídico, outras de perigo (Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 520).

Nos autos, o arguido foi acusado da prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, a), 4 e 5 do C. Penal [na pessoa de BB, então seu cônjuge] e de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e), 2, a), 4 e 5 do mesmo código [nas pessoas dos seus dois filhos, CC e DD].

Por acórdão de ... de ... de 2023, o Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi o arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica que tinha por vítima o seu cônjuge, e absolvido da prática dos crimes de violência doméstica que tinham por vítimas os seus filhos [absolvição fundada no entendimento de que a lei pune apenas a conduta que tem como vítima directa a pessoa menor de idade, mas apenas quando esta vítima é o alvo directo visado pela acção do agente].

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de ... de ... de 2024, ora recorrido, revertendo a decisão da 1ª instância na parte absolutória, condenou o arguido, em concurso efectivo, pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nºs 1 e) e 2 a), 4 e 5 do Cód. Penal, tendo por vítimas os seus dois filhos.

É esta condenação inovatória operada pela Relação, que sobe ao Supremo Tribunal de Justiça em recurso, estando, assim, para decidir, se a matéria de facto provada, fixada pela Relação [que comunicou uma alteração não substancial dos factos descritos no acórdão da 1ª instância] preenche, ou não, o tipo do crime de violência doméstica, previsto na alínea e) do nº 1 do art. 152º do C. Penal.

b. É um dado hoje inquestionável, que a criança ou o jovem que é exposto repetidamente a cenários de violência entre os progenitores revela perturbações idênticas à criança ou ao jovem que foi vítima de abuso, podendo dizer-se que, nestes casos, a violência conjugal constitui uma forma de abuso psicológico sobre o menor.

Encontra-se, pois, em perigo, a criança ou o jovem que é vítima de violência intrafamiliar, por esta ser cometida na sua presença, realidade que integra as situações em que a criança está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectam gravemente a sua segurança ou o seu comportamento emocional (Helena Bolieiro, Julgar, Especial 12, 2010, Edição da ASJP, A criança vítima: necessidades de protecção e articulação entre intervenções, pág. 142).

A questão a decidir tem como pedra angular a problemática e mal definida distinção entre o menor vítima de violência doméstica e o menor exposto a violência doméstica, em sede de tipicidade, havendo que distinguir entre o antes e o depois, relativamente à entrada em vigor da Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto [em vigor desde 17 de Agosto de 2021].

i) Antes de 17 de Agosto de 2021, no que aos menores respeita, o art. 152º do C. Penal tinha a seguinte redacção:

1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais:

(…);

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

(…).

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

(…).

Era então entendimento maioritário que o menor, desde que pudesse ser qualificado como pessoa particularmente indefesa, seria vítima do crime de violência doméstica agravado, se o facto fosse directamente praticado contra si.

Isto porque a letra do art. 152º do C. Penal não previa expressamente um crime autónomo de violência doméstica, nos casos de exposição de menor a situações de maus-tratos ocorridos entre adultos, consentindo, aliás, a alínea a) do seu nº 2 o entendimento de que, não sendo o menor directamente visado pela conduta do agente [situação prevista na 1ª parte da alínea], a sua exposição a violência doméstica [prática do facto na sua presença] apenas constituirá circunstância agravante de crime de violência doméstica que tem terceira pessoa como vítima.

Robustecia este entendimento a circunstância de a Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro (Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas) na redacção originária, no seu art. 2º, a), definir vítima como a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, ou seja, visando a lei, exclusivamente, a vítima do crime de violência doméstica, dela resulta que o dano mental ou o dano moral deverá ser causado directamente por conduta do agente na execução do crime, constituindo a ausência de referência a dano causado pela exposição da vítima, menor, a ambiente de violência doméstica a consequência daquela restrição quanto ao dano.

Acrescendo que o art. 67º-A, nº 1, a), i) do C. Processo Penal, na redacção originária (a da Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro) definiu a vítima como, a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente, um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime. Trata-se de definição aplicável a todo o ilícito típico, e não, apenas, ao crime de violência doméstica, da qual resulta, que o dano psíquico ou o dano emocional ou moral deverá ter sido directamente causado por conduta do agente na execução do crime, pelo que, também aqui, a ausência de referência a dano decorrente da exposição a climas de violência doméstica, fragilizava a sustentação da prática de crime autónomo, tendo por vítima o menor.

Não obstante, algumas decisões judiciais entendiam já, dissentindo do entendimento dominante [timidamente, diga-se], que o menor particularmente indefeso, exposto a situações de violência doméstica entre adultos, v.g., entre os progenitores, seria, na previsão da alínea d) do nº 1 do art. 152º do C. Penal, vítima de crime autónomo de violência doméstica (acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Junho de 2019, processo nº 7886/15.2TDLSB.L1-3 e do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Maio de 2019, processo nº 1508/15.9T9BJA.E1, ambos in www.dgsi.pt).

ii) Assumindo o legislador que o fenómeno da violência doméstica se tornou, além do mais, um relevantíssimo factor de perigo para a saúde e desenvolvimento das crianças, veio modificar os dados da questão, através da Lei nº Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto, entrada em vigor, conforme já dito, a 17 de Agosto de 2021, ampliando a protecção das vítimas de violência doméstica, mediante alterações ao C. Penal, à Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e ao C. Processo Penal.

Assim, a partir de 17 de Agosto de 2021, no que aos menores respeita, o art. 152º do C. Penal passou a ter a seguinte redacção [sublinhados relativos às alterações introduzidas]:

1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais, ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

(…);

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

(…).

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

(…).

Por sua vez, a definição de vítima do art. 2º, a) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro passou a ser, a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica, previsto no art. 152º do Código Penal, incluindo as crianças os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.

E o C. Processo Penal, no seu art. 67º-A, nº 1, a), iii), passou a qualificar como vítima, [a] criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.

É nosso entendimento que as alterações introduzidas pela Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto ao art. 152º do C. Penal, ao art. 67º-A do C. Processo Penal e ao art. 2º, a) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, numa leitura e interpretação conjugada, revelam o propósito do legislador em considerar um autónomo crime de violência doméstica – art. 152º, nºs 1, e) e 2, a) do C. Penal – os maus-tratos psíquicos causados, dolosamente, a menor descendente do respectivo autor, decorrentes da sua exposição a contextos de violência doméstica, designadamente, da sua exposição a violência entre os progenitores (neste sentido, Rui do Carmo, As crianças vítimas de violência doméstica, Revista do Ministério Público 175, Ano 44, Jul-Set, 2023, pág. 39 e seguintes e Margarida Santos, A tutela da criança exposta à violência interparental após a revisão da Lei nº 57/2021, de 16-08: foi superada a dúvida?, Revista do CEJ, Nº I, 2022, pág. 115, e em obiter dictum, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2024, processo nº 1061/21.4GBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt).

Terminando, diremos que a posição assumida é também visível ao nível da jurisprudência recente das relações (acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Julho de 2024, processo nº 1251/22.2POLSB.L1-9 e da Relação do Porto de 13 de Novembro de 2024, processo nº 85/21.6GBVLG.P1. in www.dgsi.pt).

Dito isto.

c. Da matéria de facto fixada pelas instâncias resulta provado, na parte em que agora releva, que:

- A assistente BB e o arguido contraíram reciprocamente casamento no dia ... de ... de 2004, e são progenitores de CC, nascida a ... de ... de 2006 e de DD, nascido a ... de ... de 2011 [pontos 1 e 2];

- Há cerca de 4 anos, depois de a assistente saber, pelo arguido, da relação amorosa extraconjugal que este mantinha, a relacionamento entre o casal deteriorou-se, passando o arguido a maltratar a assistente, física e verbalmente, frequentemente na presença dos filhos, chamando-a «burra» e «otária», dizendo-lhe que «não consegues fazer nada sozinha» e «vives à minha custa», o que fez perante os filhos e terceiros [pontos 3 a 8];

- A partir de Junho de 2022 as discussões entre os membros do casal tornaram-se mais frequentes, tendo o arguido por hábito, para além de dirigir à assistente as expressões já referidas, de lhe dizer que andava com outros homens, que lhe era infiel, que se vestia provocantemente para atrair outros homens e chamava-a «puta», tudo na presença dos filhos e da mãe da assistente [pontos 9 a 12];

- No dia ... de ... de 2022, na residência comum, após o jantar, o arguido disse à assistente que se quisesse o divórcio «ia ficar na merda», que lhe ia «fazer a vida negra» e que não ia «ficar com nada», e tendo a assistente reafirmado tal propósito, na presença dos filhos e da sogra, partiu a murro o vidro do forno micro-ondas e atirou-o ao chão, o que determinou a assistente a pedir ajuda a um familiar, e à posterior chegada da polícia à residência, altura em que o arguido disse à assistente, em voz alta «olha, olha, esta noite vai ser com o guarda», quando o OPC elaborava o expediente [pontos 13 a 16];

- No dia ... de ... de 2022, à tarde, na residência do casal, o arguido acusou a assistente de ter tido um encontro amoroso e de lhe ter sido infiel, pegou na roupa interior usada por esta, e que se encontrava já para lavar, e persegui-a pela casa, acusando-a de ser infiel e chamando-lhe «porca» e «puta», tudo isto tendo decorrido na presença da filha do casal, que tentou acalmar o pai, e ficou abalada com o sucedido [pontos 32 a 34];

- No dia ... de ... de 2022 o arguido comprou o jantar, no decurso da refeição, questionou a assistente e os filhos sobre a qualidade da comida e depois disse «estou sempre a fazer coisas boas e ninguém me agradece», «ninguém me dá valor», depois do jantar ameaçou matar-se se a assistente se separasse dele e na cozinha, diante dos filhos, apontou uma faca à barriga da assistente e empurrou-a contra o armário, vindo esta a embater com um dos ombros na esquina daquele, o que lhe causou dores, tendo depois o arguido pegado noutra faca própria para cortar carne e foi para a casa-de-banho, temendo o que este pudesse fazer, a assistente e os filhos foram atrás dele, abriram a porta da casa-de-banho e viram o arguido com a faca apontada para a própria barriga, o qual, apercebendo-se da presença dos três, disse à assistente, «Sai daqui, vou-me matar. Já que não me dás mais uma chance, prefiro a morte», o filho começou a gritar, em pânico, e suplicou à mãe para voltar para o pai e disse «Se ele se mata, eu também me mato», a assistente aproximou-se do arguido e tirou-lhe a faca, conseguiu acalmá-lo e depois, chamou a polícia [pontos 36 a 47];

- O arguido deixou de residir com a assistente e os filhos a partir de ... de ... de 2022, continuando, no entanto, a passar na residência da família, parte do seu tempo [ponto 49];

- Na tarde do dia ... de ... de 2022, quando a assistente e a filha se encontravam na casa-de-banho o arguido aí entrou, agarrou a ofendida pela cara com força, disse-lhe «Não vês que faço isto para o teu bem, acorda para a vida», desferiu-lhe uma cabeçada na testa e disse-lhe que ela era dele e de mais ninguém, tendo causado dores e medo à assistente [pontos 51 a 53];

- Ao início da tarde do dia ... de ... de 2022, depois de ter informado a assistente que ia buscar o filho de ambos, o arguido dirigiu-se a casa desta e exigiu levar o menor, perante a recusa da assistente, o arguido disse-lhe «Nunca foste mãe e agora está preocupada» e que andava metida com outros homens, lançou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço e empurrando-a contra o armário da cozinha, depois deixou a ofendida e, juntamente com o filho, que a tudo assistiu, saiu de casa [pontos 54 a 58];

- No dia ... de ... de 2022, na residência que havia sido comum, o arguido iniciou uma discussão com a assistente por não concordar com o pedido de divórcio desta, e a dada altura, encostou a assistente contra um móvel e depois, projectou-a contra o chão, a filha de ambos, para proteger a mãe, interveio, mas foi afastada pelo arguido, para poder continuar a ter contacto físico com a assistente, tendo-lhe causado diversas lesões nos membros, superiores e inferiores [pontos 64 a 67];

- No dia ... de ... de 2022, pelas 18h30, após saírem da escola do filho de ambos, onde tinham tido uma reunião com a psicóloga do estabelecimento de ensino, após insistências e ameaças do arguido, a assistente anuiu em ir de carro com o arguido, buscar a filha de ambos ao colégio que frequentava, no trajecto, arguido e assistente mantiveram uma discussão sobre a situação familiar, quando a filha de ambos já se encontrava no veículo o arguido disse-lhe «a tua mãe é uma mentirosa porque ela anda com o LL. Mas nem que eu vá para a cadeia, eu vou desmascará-los. Eu vou para a cadeia, mas um dia sou solto», ao chegarem à casa que havia sido comum, junto ao portão, o arguido forçou a assistente a um beijo, e no interior da casa, sem mais, empurrou-a para o chão, apertou-lhe o pescoço com as mãos, causando-lhe dores e sufocação, ao mesmo tempo que dizia «és minha, não és de mais ninguém» e lhe chamava «burra» e «otária», tendo a filha de ambos, ao presenciar toda a situação, começado a gritar por socorro, fazendo com que o pai cessasse a agressão à mãe, tendo a assistente aproveitado para sair de casa e ido para casa de um familiar [pontos 68 a 79];

- Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a assistente, à filha de ambos, CC, foi identificada experienciação de ansiedade fóbica, portanto, resposta de medo persistente em relação a uma pessoa ou situação específica. A ansiedade identificada – que se eleva a níveis de hipervigilância e a uma desajustada inversão de papéis na díade parental, assumindo-se a figura de protecção da progenitora perante o progenitor – é compatível com a vivência de violência doméstica a que foi exposta, denotando-se ainda da sua narrativa um impacto negativo sob a forma de projecção presente e futura nas suas próprias relações de intimidade. O impacto descrito ainda se mantém quanto à percepção de risco relativo à progenitora, dados os comportamentos passados que presenciou e às verbalizações de ameaça por parte do arguido, embora o facto de os progenitores já não coabitarem atenue os seus níveis de alerta. A CC evidencia ressonância emocional congruente com as vivências relatadas e com o seu perfil e nível desenvolvimental. Sinaliza-se risco emocional e psíquico para a menor, considerando-se ainda face ao seu relato – embora salvaguardando-se não se ter efectuado avaliação pericial ao progenitor – a existência de risco para a progenitora [ponto 80-A];

- Como consequência das agressões infligidas pelo arguido sobre a assistente, a avaliação do menor DD sinaliza indicadores no limiar da expressão clínica no âmbito de comportamentos que se inscrevem em problemas de atenção e queixas somáticas, portanto, queixas de aparente patologia de índole orgânica que resultam da experienciação de ansiedade. As repercussões desta sintomatologia parecem estender-se ao relacionamento com os pares e ao desempenho no contexto académico. A sintomatologia identificada é compatível com as vivências abusivas que configuram a exposição a uma dinâmica de violência doméstica, sublinhando-se hipervigilância que face à separação dos progenitores se atenuou mas ainda se mantém quanto à percepção de risco relativa à progenitora, dados os comportamentos passados que presenciou e às verbalizações de ameaça por parte do arguido [ponto 80-B];

- O arguido actuou, por vezes, no interior da residência comum para melhor lograr os seus intentos e, algumas vezes, na presença dos filhos [ponto 81];

- O arguido representou e previu que com as suas condutas, praticadas na presença dos filhos CC e DD, os iria maltratar psicologicamente, nomeadamente, causar-lhes dor emocional/sofrimento, em particular, angústia, tristeza e permanente inquietação, mas apesar disso, não se absteve de as empreender, bem sabendo que ao assim actuar, os afectava na sua saúde psíquica, o que logrou [ponto 81-C];

- Ao expor os menores CC e DD à violência a que submeteu a sua progenitora, sabia que, como consequência dessa atuação, iria causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação, mas apesar disso, não se absteve de agir como agiu, atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico [ponto 81-D];

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se pela saúde dos ofendidos BB, CC e DD, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que as condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, no que respeita aos menores, não se inibiu da sua realização [ponto 82].

Diante a factualidade acabada de sintetizar, tendo em consideração o que em b. i) e ii) que antecedem se deixou dito, entendemos ter o arguido praticado, em autoria material e concurso efectivo, relativamente a cada um dos ofendidos CC e DD, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), do C. Penal.

Com efeito, o arguido, pelo menos, a partir do início de ..., passou a agredir física e verbalmente a assistente BB, mãe dos seus filhos, CC e DD, geralmente, na residência comum, o que fazia na presença dos dois filhos.

Este comportamento agressivo e violento do arguido para com a progenitora dos seus filhos, então, ambos menores – a CC atingiu a maioridade em ... de ... de 2024 e o DD atingirá a maioridade em ... de ... de 2029 –, causou-lhes estados de ansiedade fóbica e de sofrimento emocional, como seria natural, consubstanciando, portanto, tais estados maus-tratos psíquicos, decorrentes da exposição de ambos ao ambiente da violência doméstica, estando, assim, preenchido o tipo de ilícito objectivo do crime e a referida circunstância agravante.

Por outro lado, ao agir como agiu, o arguido previu que a sua conduta maltratante, relativamente à mãe dos seus filhos, praticada na presença destes, os iria afectar psicologicamente, como afectou, causando-lhes sofrimento, tristeza e inquietação, assim atentando contra a sua saúde e o seu bem estar psíquico, resultado que alcançou, mostrando-se, assim, também preenchido o tipo de ilícito subjectivo do crime.

Finalmente, sabendo o arguido que as descritas condutas relativas aos seus filhos lhe estavam vedadas e eram proibidas por lei verificado está, igualmente, o tipo de culpa do crime em questão.

Pelas sobreditas razões, sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, carece de fundamento a, pelo arguido, invocada violação do princípio da legalidade (art. 1º, nºs 1 e 3 do C. Penal).

Em conclusão, mostra-se correcta a qualificação jurídico-penal feita pelo Tribunal da Relação, no que concerne aos ofendidos CC e DD, ao considerar que o arguido, quanto a estes, praticou, em concurso efectivo, dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e) e 2, a), do C. Penal.

Deve, pois, manter-se a condenação do arguido pela prática de tais crimes.

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Da desnecessidade e desproporcionalidade da pena acessória de proibição de contactos entre o arguido e os filhos

2. Alega o arguido – conclusões IX a XIV – que a decidida proibição de contactos entre si e os filhos não é necessária nem proporcional, quer porque os relatórios forenses demonstram que as perturbações resultavam da convivência entre os progenitores, convivência que há muito terminou, que os filhos melhoraram após a separação dos pais, tendo consigo um relacionamento normal, sendo que a filha atingiu já a maioridade e o filho perfez 13 anos de idade, tendo a decretada pena acessória – ao fixar um período de proibição de contactos por 4 anos e 8 meses – violado o disposto nos arts. 65º e 71º do C. Penal.

Vejamos.

O C. Penal prevê as penas acessórias no Livro I, Título III, Capítulo III, sem prejuízo da sua previsão, quer relativamente a crimes contemplados no Livro II, v.g., para o crime de violência doméstica ou por crimes eleitorais, quer em legislação extravagante, v.g., para os crimes de tráfico de estupefacientes (expulsão de estrangeiros).

As penas acessórias pressupõem a condenação do arguido numa pena principal [prisão ou multa], mas são, também, verdadeiras penas criminais, estando igualmente ligadas à culpa do agente e justificando a sua aplicação por exigências de prevenção (Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 34).

Por outro lado, sendo-lhes aplicáveis os critérios legais de determinação das penas principais, não pode esquecer-se que o fim visado pela aplicação da pena acessória é mais restrito, limitando-se, essencialmente, a prevenir a perigosidade do agente.

No caso, o Tribunal da Relação decretou ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com os seus filhos menores pelo período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor, estabelecendo plena correspondência entre o quantum da pena única principal de 4 anos e 8 meses de prisão – resultante do cúmulo jurídico de uma pena de 3 anos de prisão, por crime que tem por ofendida a assistente, mãe de CC e de DD, e de duas penas de 2 anos e 3 meses de prisão –, suspensa na respectiva execução por idêntico período, e o quantum – período de proibição de contactos – da pena acessória.

Pois bem.

Da conduta do arguido, como se provou, resultaram para os ofendidos CC e DD, danos emocionais, traduzidos em angústia, tristeza e permanente inquietação, decorrentes dos maus tratos-psicológicos em que se consubstanciou a exposição de ambos a ambientes de violência doméstica, mais concretamente, de violência interparental.

Com efeito, a ofendida padece de ansiedade fóbica ou seja, medo persistente, assumindo o papel de protectora da mãe em relação ao pai, com projecção negativa nas suas próprias relações de intimidade, e se a separação dos progenitores atenuou os seus níveis de alerta, os mesmos persistem, pois ainda considera a existência de risco para a mãe.

Por seu turno, o ofendido, alguns anos mais novo que a irmã, apresenta queixas somáticas causadas pelo estado de ansiedade que o afecta, e que se repercutem no relacionamento com os pares e no contexto académico, e embora a hipervigilância decorrente daquele estado se tenha atenuado com a separação dos progenitores, o mesmo mantem-se no que respeita à percepção do risco relativo à mãe.

Não obstante, é expectável que a aplicada pena de substituição da pena única de prisão fixada, com a inerente ameaça da prisão e a sujeição do arguido à regra de conduta de frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica, com apoio e fiscalização dos serviços de reinserção social, imposta pela 1ª instância [e não impugnada por este], abrandem, efectivamente, o risco referido.

Acresce que, conforme dito, no âmbito da condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, na pessoa da assistente BB, além da pena principal de 3 anos de prisão, foi-lhe imposta a pena acessória de proibição de contacto com aquela, pelo período de três anos, proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou do local de trabalho da assistente.

Deste modo, uma vez que a ofendida CC atingiu já a maioridade e que o ofendido DD é um adolescente de 13 anos, considerando que os crimes de que são vítimas resultam da sua exposição ao ambiente de violência doméstica de que era vítima a mãe de ambos, às mãos do pai, considerando que os seus progenitores se encontram separados, considerando que, para além da mencionada regra de conduta, condicionante da suspensão da execução da pena única de prisão, o arguido está sujeito à pena acessória de proibição de contactos com a assistente BB, incluindo o seu afastamento da residência desta e do seu local de trabalho, e considerando, por último, que ofendidos vivem com a mãe, entendemos não ser necessária e por isso, não se mostrar justificada, a decretada pena acessória de proibição de contactos do arguido com os filhos pelo período de 4 anos e 8 meses, posto que, os fins visados pela sua aplicação se mostram assegurados pela mesma pena acessória, imposta relativamente à assistente BB.

Deve, pois, proceder esta pretensão do recorrente.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em conceder parcial provimento ao recurso.

Consequentemente, decidem:

A) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com os filhos pelo período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses [proibição que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou dos estabelecimentos de ensino e ainda de outros locais frequentados pelos menores, sem prejuízo do que vier a ser determinado pelo Tribunal de Família e Menores quanto às responsabilidades parentais e regime de visitas ao progenitor].

B) Manter, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

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C) Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, a contrario).

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 12 de Dezembro de 2024

Vasques Osório (Relator)

Celso Manata (1º Adjunto)

Agostinho Torres (2º Adjunto)